Decisão Arbitral
Relatório
A…, NIF …, casado, residente na Rua … em Lisboa, melhor identificado nos autos, formulou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) e da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, para declaração de ilegalidade e consequente anulação das liquidações de Imposto de Selo (relativas à verba 28.1 da correspondente Tabela Geral), respeitantes ao ano de 2014, no montante total de € 12.729,59 (doze mil, setecentos e vinte e nove euros e cinquenta e nove cêntimos).
É Requerida a Administração Tributária e Aduaneira (AT).
O Requerente não procedeu à designação de Árbitro. Para o efeito, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa designou, então, o signatário, que expressamente aceitou essa nomeação. As partes foram devidamente notificadas desta, não tendo manifestado vontade de a recusar.
O tribunal arbitral foi assim constituído em um de outubro deste ano.
A AT apresentou tempestivamente a sua resposta, pugnando pela total improcedência do pedido, com consequente absolvição da Requerida.
As partes dispensaram a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT.
O Tribunal foi regularmente constituído e é materialmente competente.
As partes têm personalidade jurídica e capacidade judiciária e são legítimas.
O processo não enferma de nulidades, nem nele foram suscitadas questões que possam obstar à apreciação do mérito da causa.
Objeto do litígio e matéria de facto
Em 2014, o Requerente era proprietário de um prédio urbano em propriedade vertical, situado na…, Lisboa, inscrito na matriz predial da freguesia de … sob o artigo…, ao qual correspondia um valor patrimonial tributário (VPT) total de € 1.628.211,03.
O dito prédio, que é propriedade do Requerente, corresponde a um edifício habitacional, em propriedade total, não constituído em propriedade horizontal, composto por pisos e divisões suscetíveis de utilização independente, destinadas a habitação umas e afetas ao comércio (lojas) outras.
Cada uma das habitações, que são autónomas e independentes entre si, tinha então um registo matricial autónomo e um valor patrimonial tributável (VPT) atribuído a cada uma delas inferior a € 1.000.000 (um milhão de Euros).
As liquidações em causa, decorrem da aplicação da citada verba do Imposto de Selo (IS) às divisões independentes afetas a habitação do referido prédio, num total de doze, incluindo a casa da porteira, ascendendo o VPT total destas ao montante € 1.272.959,50, o qual é inferior ao VPT total do prédio, por não incluir o VPT das demais partes suscetíveis de uso independente mas não afetas a habitação.
Os atos de liquidação em causa deram lugar aos documentos de cobrança a seguir referidos, os quais correspondem à primeira prestação do imposto, todas com vencimento em Abril de 2015:
2015…,
2015…,
2015…,
2015…,
2015…,
2015…,
2015…,
2015…,
2015…,
2015…,
2015…,
2015…;
Todos juntos aos autos como documentos números um a doze do Requerimento Inicial.
Não há factos com relevo para a apreciação do mérito da causa que não se encontrem provados.
Os factos provados baseiam-se nos documentos fornecidos pelas partes, cuja correspondência à realidade não é controvertida.
Matéria de direito
Posição das partes
A questão dos autos corresponde à aplicação, nas situações da denominada propriedade vertical, da nova tributação em IS incidente sobre prédios urbanos com afetação habitacional e VPT igual ou superior a um milhão de euros. Esta nova tributação foi introduzida em 2012 para reforço das medidas de controlo orçamental pelo lado da receita, num quadro de estado de necessidade financeira (ou económico-financeira, cfr. Sustentabilidade e Solidariedade em Tempos de Crise, Suzana Tavares da Silva, in Sustentabilidade Fiscal em Tempos de Crise, Coord. José Casalta Nabais e Suzana Tavares da Silva, pág.s 61 e ss).
Como é bem sabido, aquela nova tributação em IS tem suscitado fortes dúvidas e elevada contestação. Isto não apenas para casos pontuais da sua aplicação (e.g., propriedade vertical, compropriedade, terrenos para construção ou sua aplicação ao ano de 2012), como também em termos gerais, pela sua eventual inconstitucionalidade, seja do seu regime geral, seja do seu regime transitório (ver Luís Menezes Leitão, Sobre a Tributação em Imposto de Selo dos Imóveis de Luxo (verba 28.1 TGIS), in Arbitragem Tributária nº1, pág.s 44 e ss).
Requerente
Ora, o Requerente vem, precisamente, contestar a aplicação da nova verba 28.1 da TGIS aos prédios urbanos não constituídos em propriedade horizontal, mas que incluam divisões suscetíveis de utilização independente, em que o valor mínimo de incidência fixado na lei seja atingido pelo somatório do VPT dos registos matriciais separados (ou autónomos) correspondentes àquelas várias divisões, mas não por qualquer uma delas individualmente considerada.
Sustenta pois o Requerente não ser proprietário de um prédio com VPT igual ou superior ao referido montante mínimo, mas sim proprietário de um prédio em propriedade vertical em que o VPT superior a esse valor apenas é alcançado pelo somatório do VPT das divisões suscetíveis de utilização independente afetas a habitação, sem que nenhuma delas, considerada individualmente, atinja esse montante mínimo de relevância tributária. Por essa razão, para o Requerente, as liquidações em crise padecem de vício de violação de lei, o que as torna anuláveis.
A concluir o Requerente entende que os atos tributários violam os princípios da Boa-Fé, da Segurança Jurídica, da Confiança e da Cooperação e da Prevalência da Substância sobre a Forma, bem ainda como o da Igualdade, citando em abono da sua posição as decisões proferidas nos processos nºs 50/2013 T e nº 95/2013-T, disponíveis em ww.caad.org.pt.
Requerida
Diversamente, a Requerida contesta aquele entendimento, sustentando a manutenção das liquidações, salientando, em síntese, que a propriedade total, ou vertical, corresponde a um prédio, sendo esta a realidade a atender para apurar da verificação do valor mínimo constante da norma de incidência. Para a Requerida, o VPT relevante para efeitos de incidência tributária é pois o VPT do prédio urbano e não o VPT de cada uma das partes que o integram, ainda que estas sejam suscetíveis de utilização independente, posto que afetas a habitação. Em reforço desta tese salienta também que a unidade do prédio não é afetada, não podendo as suas partes distintas ser juridicamente equiparadas às frações autónomas de um prédio constituído em propriedade horizontal, até porque a sua titularidade é necessariamente atribuída apenas a um único proprietário (ou mais do que um, mas nos casos de compropriedade).
Acrescenta ainda que entendimento diverso (i.e., que o VPT relevante para a norma de incidência corresponderia ao VPT de cada andar ou divisão suscetível de utilização independente) seria inconstitucional, por violação do princípio da legalidade tributária (ínsito no art. 103º, nº 2 da CRP).
Mais desenvolvidamente, a AT sustenta que o valor patrimonial relevante para efeitos da incidência do imposto é o valor patrimonial total do prédio urbano e não o valor patrimonial de cada uma das partes que o componham, ainda que suscetíveis de utilização independente, relembrando que o art. 80, n° 2, do C.I.M.I. declara que, salvo o disposto nos arts. 84° e 92º, a cada prédio corresponde um único artigo inscrito na matriz. Isto não obstante reconhecer que, tal como consta da respetiva matriz predial, os andares ou divisões independentes são avaliadas nos termos do art. 12°, nº 3, do C.I.M.I, segundo o qual cada andar ou prédio suscetível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição matricial, a qual discriminará igualmente o respetivo valor patrimonial tributário, sobre o qual será liquidado o IMI.
E reconhece ainda que tal norma não é inédita, tendo correspondência no corpo do art. 232°, regra 1ª, do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola (C.C. P.I.I.A.), que dispunha já que cada habitação ou parte de prédio devia ser tomada automaticamente para efeitos de determinação do rendimento coletável sobre o qual incidiria a liquidação.
Não obstante, no entender da Requerida, o valor patrimonial tributário de que depende a incidência do imposto de selo da verba 28.1. da Tabela Geral terá de ser, como o foi, o valor patrimonial global do prédio e não o valor de cada uma das suas partes independentes.
Isto porquanto a unidade do prédio urbano em propriedade vertical composto por vários andares ou divisões não seria afetada pelo facto de todos ou parte desses andares ou divisões serem suscetíveis de utilização económica independente. Neste contexto refere que o prédio em propriedade vertical não deixa de ser apenas um, não sendo, assim, as suas partes distintas juridicamente equiparadas às frações autónomas em regime de propriedade horizontal, sendo propriedade de apenas um único titular, sem prejuízo do regime de compropriedade, quando for o caso. Neste contexto, a inscrição autónoma na matriz predial de cada uma das partes, económica e funcionalmente independentes, de um mesmo prédio, com indicação do correspondente valor patrimonial de cada uma, apurado separadamente nos termos dos arts. 37° e seguintes do C.I.M.I., seria irrelevante para efeitos de interpretação da nova verba da TGIS. Ou seja, o facto de o IMI ser apurado em função do valor patrimonial tributário de cada parte de prédio com utilização económica independente não afetaria a aplicação do art. 28°, nº 1, da Tabela Geral.
De acordo com a Requerida, outra interpretação violaria, isso sim, a letra e o espírito da verba 28.1. da Tabela Geral e ainda o princípio da legalidade a propósito dos elementos essenciais dos impostos, previsto no art. 103°, nº 2, da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.). Por essa razão uma interpretação da verba 28.1 da Tabela Geral no sentido de que o valor patrimonial de que depende a incidência desta verba não deva ser apurado globalmente mas antes divisão a divisão, seria inconstitucional por ofensiva do princípio da legalidade tributária.
A propósito do princípio da igualdade, a Requerida sustenta ainda que o legislador pode submeter a um enquadramento jurídico tributário distinto, logo, discriminatório, os prédios em regimes de propriedade horizontal e vertical, sem que essa discriminação deva ser considerada necessariamente arbitrária e, portanto, violadora de tal princípio.
Síntese das questões controvertidas
Em síntese, no caso vertente, são assim três as questões de direito controvertidas:
1) Qual o VPT relevante nos casos de propriedade vertical;
2) Eventual conformidade da interpretação obtida com o princípio da igualdade;
3) Eventual conformidade da mesma com o princípio da legalidade.
Matéria de Direito
Propriedade vertical
Como é referido a Lei nº 55-A/2012, de 29 de Outubro, veio alterar o Código do Imposto de Selo, aditando uma nova verba à Tabela Geral do CIS.
Sobre a problemática da determinação do VPT (mínimo) relevante para a aplicação da verba 28.1 da TGS nos casos de propriedade vertical, já se pronunciaram, de entre outras, as decisões do CAAD nos processos números 50/2013-T, 132/2013, 181/2013-T, 183/2013-T, 272/2013 2013-T, 280/2013-T, 26/2014-T, 30/2014-T, 88/2014-T, 177/2014-T e 206/2014-T, as quais foram posteriormente confirmadas por várias outras decisões arbitrais.
Em todos a questão residia, tal como nestes autos, em saber se o VPT relevante para a norma de incidência (28.1 da TGIS) é o VPT correspondente a cada uma das divisões suscetíveis de utilização independente separadamente consideradas na matriz ou se, pelo contrário, o VPT relevante deverá corresponder ao somatório de todas essas divisões suscetíveis de utilização independentes mas integrantes de um mesmo prédio e que se encontrem afetas a habitação.
E a resposta, naquelas decisões, foi sempre pela primeira opção e entende-se que bem. Vejamos agora as razões subjacentes a tal Jurisprudência e à interpretação aqui seguida.
O CIS
A nova verba foi inserida no Código do Imposto de Selo, opção que não oferece contributo de relevo para enquadrar sistematicamente o novo tributo, pois aquele imposto “incide sobre uma multiplicidade heterogénea de factos ou actos … sem um traço comum que lhes confira identidade”, o que foi, aliás, agravado com a Reforma da Tributação do Património de 2003/20014, tornando ainda mais complexo “o problema da classificação deste imposto” (cfr. José Maria Fernandes Pires, Op. Cit., pág. 422).
Mas é sabido que esta nova verba foi introduzida como forma de reforço das medidas de controlo orçamental pelo lado da receita, num quadro de estado de necessidade financeira (ou económico-financeira, cf. Sustentabilidade e Solidariedade em Tempos de Crise, Suzana Tavares da Silva, in Sustentabilidade Fiscal em Tempos de Crise, Coord. José Casalta Nabais e Suzana Tavares da Silva, pág.s 61 e ss), com o propósito de identificar novas formas de exteriorização de capacidade contributiva que pudessem ser chamadas a apoiar o propósito de redução do saldo orçamental negativo.
E fê-lo optando por fazer incidir a nova tributação exclusivamente sobre determinados bens, implicando pois uma forte discriminação negativa destes, o que postula uma explicitação reforçada dessa opção, de modo a não colocar em crise o princípio da igualdade, ou equidade na terminologia de Glória Teixeira, quer no seu sentido de equidade horizontal, quer no de equidade vertical (Glória Teixeira, Manual de Direito Fiscal, pág. 56, 2º ed., Almedina).
Ora, parece vislumbrar-se no pensamento do legislador a intenção de identificar nos imóveis com VPT igual ou superior a um milhão de euros (“de luxo”) destinados a habitação, um referencial, não arbitrário, de uma capacidade contributiva adicional, capaz de alargar o espectro de contributos para o desejado e necessário equilíbrio orçamental.
Neste quadro, a questão decidenda é a de saber se um prédio constituído em propriedade total ou vertical, mas com andares ou divisões com utilizações independentes, é um “prédio com afetação habitacional” para efeitos da aplicação do art.º 1.º do CIS e da verba 28.1 da TGIS, aditada pelo art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro (até porque, tal como no caso dos autos, pode ter áreas afetas a fins não habitacionais) ou se por “prédio” devem considerar-se antes as divisões separadamente consideradas na matriz predial e, ainda, qual o VPT relevante (se o VPT relativo ao prédio, se o VPT inerente ao somatório das suas partes com afetação habitacional, ou se antes o VPT relativo, autonomamente, a cada uma destas).
Para o efeito, importa ter presente que cada andar ou parte de prédio suscetível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição predial do prédio total, a qual discrimina também o valor patrimonial tributário daquelas (n.º 2 do art.º 12.º do CIMI), sendo o IMI liquidado individualmente em relação a cada andar ou parte de prédio suscetível de utilização independente (art.º 119.º, n.º 1 do CIMI).
E, se assim é em IMI, também assim deverá ser em Imposto de Selo. Vejamos porquê.
Interpretação literal
Como se refere na decisão tomada no processo 206/2014-T: “Dado que o CIS remete para o CIMI, há que concluir que a inscrição na matriz de imóveis em propriedade vertical, constituídos por diferentes partes, andares ou divisões com utilização independente, obedece às mesmas regras de inscrição do horizontal”.
Sendo o IMI e o Imposto de Selo “liquidados individualmente em relação a cada uma das partes”, também “o critério legal para definir a incidência do novo imposto terá de ser o mesmo”. Em consequência, haverá incidência da verba 28.1 da TGIS (apenas) caso alguma dessas partes, andares ou divisões com utilização independente apresente um VPT, pelo menos, igual ao montante previsto na norma de incidência.
Assim, prédio será a área independente, considerada separada e autonomamente na matriz, sendo sujeito a IS se cumpridos dois requisitos: ser destinado a fins habitacionais e ter um VPT igual ou superior a um milhão de euros, critério de aferição dos imóveis habitacionais “de luxo”. De outro modo, criar-se-ia uma realidade não prevista pelo legislador: a de um, por assim dizer, “prédio habitacional”, eventualmente inserido dentro de um prédio mais vasto com várias finalidades, em que o VPT daquele, espúrio aos registos matriciais, consistiria na ficção de um VPT dado pela adição do VPT autónomo de cada divisão (independente e com finalidade habitacional) considerado na inscrição matricial. Ou seja, onde o legislador considerou duas realidades, teria agora o intérprete, sem apoio no texto legislativo, tal como ocorre nas liquidações ora em crise, de ficcionar uma terceira realidade, híbrida, a meio caminho entre o prédio urbano e as suas divisões independentes a que o legislador do IMI, e do IS por remissão para o CIMI, entendeu dar relevo tributário.
Também na decisão proferida no processo 272/2013-T (CAAD) se refere que “considerando que a inscrição na matriz de imóveis em propriedade vertical, constituídos por diferentes partes, andares ou divisões com utilização independente, nos termos do CIMI, obedece às mesmas regras de inscrição dos imóveis constituídos em propriedade horizontal, sendo o respectivo IMI, bem como o novo Imposto de Selo, liquidados individualmente em relação a cada uma das partes, não oferece qualquer dúvida que o critério legal para definir a incidência do novo imposto tem de ser o mesmo”. Aliás, é ainda referido nessa mesma decisão que a posição da AT “não encontra sustentação legal e é contrário ao critério que resulta aplicável em sede de CIMI e, por remissão, em sede de Imposto de Selo”, razão pela qual “a adopção do critério defendido pela AT viola os princípios da legalidade e da igualdade fiscal, bem assim como, o da prevalência da verdade material sobre a realidade jurídico-formal”.
E no mesmo sentido se refere na decisão arbitral do processo 30/2014-T (CAAD) encontrar-se na doutrina da AT uma “desconformidade com o elemento literal da parte final da norma de incidência (verba 28 da TGIS) que refere que o imposto incide sobre “o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI” e por isso, não deverá incidir sobre a soma de valores patrimoniais tributários de prédios, partes de prédios ou andares, não tendo suporte legal a operação de adição de valores patrimoniais tributários dos andares ou partes de prédio susceptíveis de utilização independente, de afectação habitacional, cindido do VPT dos demais com fins diferentes, por forma a atingir-se o limiar de tributação elegível de 1 000 000,00 de euros ou mais”.
Como também se refere na decisão arbitral tomada no processo 30/2014-T (CAAD), o que acontece no que respeita aos prédios urbanos com afetação habitacional, em propriedade vertical, com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, é que a AT procede, nas operações de liquidação do IS, tal como procedeu no caso vertente, à adaptação das regras do CIMI (adicionando os valores patrimoniais tributários de um mesmo prédio, sem considerar os que correspondam a partes do prédio com fim não habitacional, dando assim lugar a um novo e híbrido VPT). Com efeito, essa “adaptação” corresponde a “somar os VPT de cada andar ou divisão independente afecta a fins habitacionais (cindido do VPT dos andares ou divisões destinados a outros fins), criando uma nova realidade jurídica, sem suporte legal, que é um VPT global de prédios urbanos em propriedade vertical, com afectação habitacional”, o que atenta “contra o elemento literal da norma de incidência” (incidência sobre “o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI”). Assim, “nos prédios urbanos com afectação habitacional, em propriedade vertical, com andares ou divisões susceptíveis de utilização independente”, deverá considerar-se o valor patrimonial tributário “que resulta exclusivamente do nº 3 do artigo 12º do CIMI. Quer para o IMI, quer para este IS”.
Concretizando, como se concluiu na decisão proferida no processo 26/2014-T do CAAD, “para efeitos de aplicação da verba 28 do TGIS aos prédios em propriedade vertical, aplicam-se as mesmas regras do CIMI que ao prédios em propriedade horizontal, e no mesmo sentido o VPT para efeitos da aplicação da verba é o VPT individual de cada fracção independente habitacional, sendo que no presente caso nenhuma das fracções ultrapassa o critério de incidência de 1.000.000,00€”, o mesmo ocorrendo no caso dos presentes autos.
Conclui-se assim, em síntese, como claramente decorre das decisões citadas, que a interpretação literal da nova verba da TGIS não poderá deixar de ser diversa da sustentada pela AT, aliás, a oposta, dada a clara e indiscutível remissão operada a propósito da nova verba da TGIS para as regras do CIMI, não podendo o interprete da norma “criar” um novo conceito de prédio para assim obter um VPT híbrido, não reconhecido na matriz e sem qualquer apoio no texto da lei.
Substância económica
Mas conforme bem se refere no Acórdão 117/2013 T do CAAD, "a interpretação exclusivamente baseada no teor literal .... não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada». Sendo que para se verificar uma correspondência entre a interpretação e a letra da lei bastará «um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), o que só impedirá que se adoptem interpretações que não possam em absoluto compaginar-se com a letra da lei, mesmo reconhecendo nela imperfeição na expressão da intenção legislativa”.
E se olharmos agora para a substância económica dos factos tributários, em cumprimento do art. 11º, nº 3 da LGT, sem que para o efeito se adira a uma interpretação económica das normas de direito tributário, hoje condenada pela Doutrina (cfr. Impostos, Teoria Geral, Américo Fernando Brás Carlos, pág. 196, 2014, 4º ed. Almedina), teremos igualmente de reconhecer que a expressão “cada prédio urbano” usada no nº 7 do artigo 23º, por identidade de razões, abrange não apenas os prédios urbanos em propriedade horizontal, como também os andares, divisões ou partes de prédios urbanos em propriedade vertical, desde que afetos a fins habitacionais, partindo sempre, em qualquer dos casos, de uma só base tributável para todos os efeitos legais: o valor patrimonial tributário utilizado para efeitos de IMI (parte final da verba 28 da TGIS), como se concluiu na decisão arbitral do processo 177/2014-T (CAAD).
Ou, como se salienta na decisão proferida no processo 272/2014-T do CAAD, “na óptica do legislador, não importa o rigor jurídico-formal da situação concreta do prédio mas sim a sua utilização normal, o fim a que se destina o prédio”, pelo que “para o legislador a situação do prédio em propriedade vertical ou em propriedade horizontal não relevou, pois que nenhuma referência ou distinção é efectuada entre uns e outros. O que releva é a verdade material subjacente à sua existência enquanto prédio urbano e à sua utilização”, ou seja a realidade económica da detenção de partes independentes, e.g. suscetíveis de utilização ou de arrendamento autónomos, tal como as frações autónomas no caso da propriedade horizontal, e portanto suscetíveis de permitir o uso ou a obtenção de rendimentos de modo similar e exteriorizando, por isso, igual capacidade contributiva (como o exteriorizaria o somatório do VPT de várias frações autónomas de um mesmo prédio em propriedade horizontal ou de vários prédios que no seu conjunto superassem o valor de um milhão de euros, sem que tal tenha sido considerado pelo legislador como exteriorização de capacidade contributiva relevante para efeitos de IS).
Coesão do sistema
E se olharmos para a globalidade do sistema tributário não encontraremos indícios que venham infirmar a conclusão traçada até agora.
Como se refere no Acórdão proferido no processo 26/2014-T do CAAD, não se vislumbra qualquer censura do legislador à propriedade vertical. Com efeito, “dir-se-á, não sem razoabilidade, que o legislador, para efeitos de tributação em sede de IMI, optou por conferir autonomia, independência, a cada uma das partes ou a cada um dos andares de um único prédio, desde que umas e outros se mostrem de utilização independente, ao ponto de prever a inscrição individualizada na matriz de cada uma dessas partes independentes e de impor à tributação em sede de IMI uma cobrança também ela autónoma. Mau grado a existência jurídica de um único prédio, é o próprio legislador que não apenas recomenda mas impõe a consideração autónoma de cada uma das partes independentes, para efeitos de tributação do património”. Aliás, como decorre de uma interpretação económica do facto, com prevalência da sua substância sobre a sua forma, como acima se viu. E se assim é em IMI, não se perceberia que assim não fosse, também, em Imposto de Selo, nomeadamente no caso da nova tributação sobre prédios (casas, melhor dizendo) “de luxo”.
Com efeito, se o legislador é indiferente a uma ou outra forma de estruturação da propriedade de prédios urbanos no CIMI, não se perceberia que pretendesse agora favorecer uma em detrimento da outra, nomeadamente por considerar uma forma de estruturação mais avançada do que a outra. De facto, como se decidiu nos processos 26/2014-T e 272/2014-T do CAAD, “o regime jurídico actual não impõe a obrigação de constituição de propriedade horizontal”, razão pela qual “a discriminação operada pela AT traduz uma discriminação arbitrária e ilegal“, pois “não pode a AT distinguir onde o próprio legislador entendeu não o fazer, sob pena de violar a coerência do sistema fiscal, bem assim como o princípio da legalidade fiscal previsto no artigo 103º, nº2 da CRP, e ainda os princípios da justiça, igualdade e proporcionalidade fiscal.”
Ou seja, continua a valer a interpretação literal inicialmente alcançada.
Intenção do legislador
E o certo é que também nada induz o intérprete à conclusão que o concreto legislador da nova verba da TGIS, contrariamente ao legislador do IMI, que aliás permanece inalterado, tenha pretendido discriminar a propriedade vertical face à horizontal. Como bem se relembra no Acórdão proferido no já referido processo 26/2014-T do CAAD, “aquando da apresentação e discussão, no Parlamento, da proposta de lei n.º 96/XII (2.ª), o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais referiu expressamente: “O Governo propõe a criação de uma taxa especial sobre os prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8% em 2012 e de 1% em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros” (cfr. DAR I Série n.º 9/XII -2, de 11 de Outubro, pág. 32). Ora, como se salienta nesse Acórdão, “o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais apresenta esta proposta de lei referindo sem tibiezas a expressão “casas”… de valor igual ou superior a 1 milhão de euros”, pelo que “resulta com meridiana clareza que a verba 28.1 da TGIS não pode ser interpretada no sentido de nela estarem abrangidos cada um dos andares, divisões ou partes susceptíveis de utilização independente quando apenas do respectivo somatório resulta um VPT superior ao que prevê a mesma verba”. Isto porquanto, nesse caso, “nenhuma das “casas” … apresenta, de per se, “valor igual ou superior a 1 milhão de euros””.
Sendo portanto claro, tal como se refere na referida decisão 272/2014-T, que para o legislador só aquele valor de um milhão de euros, desde que afeto “a uma habitação (casa, fracção autónoma ou andar com utilização independente) traduz uma capacidade contributiva acima da média e, enquanto tal, susceptível de determinar um contributo especial para garantir a justa repartição do esforço fiscal”.
E se assim é, teremos então de atender ao conceito de “casa” enquanto realidade física que possibilita um fim habitacional, uma unidade suscetível de utilização independente, incluindo o seu arrendamento, pois é nessa realidade económica que encontraremos a exteriorização da capacidade contributiva associada a “habitações de luxo” que o legislador considerou relevante. Mais, se assim não fosse, procederia o legislador a uma discriminação que não se encontraria justificada, pois como já se viu não se encontra no sistema uma censura da propriedade vertical quando comparada com a horizontal. Mais, essa distinção chocaria com uma necessária equidade entre idênticas exteriorizações de uma mesma capacidade contributiva.
Capacidade contributiva e interpretação conforme à Constituição
É seguro que o legislador fiscal está subordinado aos princípios da igualdade, o qual, como bem refere Sérgio Vasques (Manual de Direito Fiscal, págs. 249 e ss, 2011, Almedina), é mais do que um mero limite negativo e impõe algo mais do que a mera proibição do arbítrio, postulando antes uma repartição dos impostos de acordo com o critério da capacidade contributiva, pelo que o legislador terá de ancorar a tributação em elementos económicos razoáveis e não arbitrários, suscetíveis de justificar a pretensão tributária numa capacidade contributiva concretamente exteriorizada pelo sujeito passivo.
Deste modo é imperativo procurar no texto da nova verba uma leitura que dê cumprimento àqueles princípios. Ou, o que vale o mesmo, não procurar obter daquele texto um sentido que viole tais princípios.
Ora, as capacidades contributivas exteriorizadas pela propriedade de um prédio composto por um conjunto de frações autónomas em propriedade horizontal ou por um conjunto de divisões de utilização independente em regime de propriedade vertical, não podem deixar de ser consideradas idênticas, se não mesmo, eventualmente, menores no caso da segunda hipótese. Ou seja, um prédio não tem, seguramente, um valor de mercado maior por estar organizado como propriedade vertical. Vale o mesmo (permitindo igual benefício pelo seu uso ou igual rendimento por via do seu arrendamento, como acima se referiu), ou terá mesmo um valor menor, já que as alternativas de transmissibilidade serão eventualmente menores. E sabemos que o VPT pretende ser uma aproximação, precisamente, ao valor de mercado dos prédios e será, portanto, a medida e o limite da capacidade contributiva relevante para a nova verba da TGIS.
Assim, a interpretação pugnada pela AT, não encontrando justificação hermenêutica, conforme se viu até agora, conduziria ainda a uma manifesta desigualdade entre proprietários de imóveis em propriedade horizontal e em propriedade vertical (e também já se viu que não se vislumbra uma qualquer intenção penalizadora destes, mesmo que se admitisse que tal fosse constitucionalmente admissível). Nesse mesmo sentido, como bem se salienta na decisão do processo 272/2014-T do CAAD, a “existência de um prédio em propriedade vertical ou horizontal não pode ser, por si só, indicador de capacidade contributiva. Pelo contrário, da lei decorre que uns e outros devem receber o mesmo tratamento fiscal em obediência aos princípios da justiça, da igualdade fiscal e da verdade material”.
Concluindo, “a verdade material é a que se impõe como critério determinante da capacidade contributiva e não a mera realidade jurídico-formal do prédio, visto que constituição da propriedade horizontal implica uma mera alteração jurídica do prédio não impondo sequer uma nova avaliação” (como se refere na decisão proferida no processo 26/2014-T do CAAD). E esse facto “não se afigura coerente com a decisão da AT tributar as partes habitacionais de um prédio em propriedade vertical, em função do VPT global do prédio e não do que é efectivamente atribuído a cada parte”. Assim, “não pode a AT distinguir onde o próprio legislador entendeu não o fazer, sob pena de violar a coerência do sistema fiscal, bem assim como o princípio da legalidade fiscal … e ainda os princípios da justiça, igualdade e proporcionalidade fiscal”, como se disse pela criação ex novo de um conceito inovador e de uma VPT híbrido, frequentemente correspondente a parte de um prédio, como sucede no caso dos autos.
Conclusão
Nestes termos, os atos tributários em crise enfermam de vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito e de facto, pois nenhuma parte do prédio possui um VPT de valor igual ou superior ao limiar decorrente da norma aplicada, o que torna os ditos atos tributários anuláveis.
Inconstitucionalidade
Fica assim prejudicada a análise da inconstitucionalidade da norma, quer com base no princípio da igualdade, quer ainda com base no princípio da legalidade (fundamentos que conduziriam a conclusões opostas), porque a interpretação pugnada decorre, precisamente, do texto da lei, e não de uma aplicação divergente do seu comando normativo imediato, por intervenção mediata e subsequente de um qualquer princípio constitucional, ou por intervenção inovadora do intérprete.
Não se desconhece o teor do Acórdão do TC nº 692/2015 de 16 de dezembro de 2015, proferido no Processo n.º 51/14 (cfr. a página http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20150692.html) e que tal como o Acórdão n.º 620/2015 do TC de 3 de dezembro (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), a propósito da aferição da eventual inconstitucionalidade da norma em causa, concluiu pela conformidade com a Constituição em vigor de um tratamento diferenciado entre propriedade vertical e horizontal, para efeitos da verba em questão da Tabela Geral do Imposto de Selo. Isto por se entender constituírem ”realidades com um estatuto jurídico distinto, em que a titularidade dos direitos reais referidos da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo que incidem sobre as frações de um prédio constituído em propriedade horizontal podem pertencer a diferentes pessoas, enquanto num prédio constituído por unidades suscetíveis de utilização independente, mas que não se encontra constituído em propriedade horizontal, essa titularidade é necessariamente da(s) mesma(s) pessoa(s)”, razão pela qual as “diferenças decorrentes dos diferentes regimes dominiais constituem fundamento bastante para, no que diz respeito à incidência do imposto de selo no caso de edifícios em propriedade horizontal se tenha em atenção o valor patrimonial tributário individualizado de cada uma das frações, o que já não sucede, no caso dos prédios urbanos habitacionais em propriedade total compostos por partes suscetíveis de utilização independente e consideradas separadamente na inscrição matricial”.
Com efeito, vista a questão do ponto de vista constitucional, o princípio da igualdade poderia vedar apenas uma distinção arbitrária, isto é, não fundada num motivo racional, sendo certo que a diferença da estrutura da propriedade poderia ser, por si só, causa bastante de diferenciação não arbitrária (independentemente do seu mérito, aferição essa que, claro, sempre competiria ao legislador e não ao intérprete).
Assim a aferição da observância do princípio da igualdade, entendido como proibição do arbítrio e, portanto, bastando-se meramente com uma causa racional de fundamentação, assenta no pressuposto de que a lei postula um tratamento diferenciado a duas realidades idênticas (ou seja que o comando imediato da norma levaria a uma diferenciação tributária entre propriedade vertical e horizontal) e que só mediatamente, por aplicação do princípio da igualdade, se obteria uma interpretação oposta, por inconstitucionalidade da norma ou da interpretação que dela fosse feita.
Ora, sucede que no caso vertente a propósito da tributação dos imóveis constituídos em propriedade vertical e em propriedade horizontal se conclui, sem apelo a princípios constitucionais, mas outrossim apenas por referência a elementos de hermenêutica infra constitucional, que a lei (a verba em causa) trata de modo igual essas duas realidades.
Assim, a ilegalidade dos atos decorre da norma invocada não ser aplicável à situação em causa, já que nenhuma das liquidações se reporta ao liminar mínimo exigido pela referida verba n.º 28, devendo assim ser anuladas com esse fundamento, o que constitui uma conclusão prévia à análise da constitucionalidade da norma ou da interpretação que dela seja feita, nos termos referidos no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 693/2015 de 16 de dezembro de 2015 no Processo n.º 304/15 (cfr. a página http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20150693.html), em recurso da decisão arbitral proferida no processo 205/2014-T do CAAD.
E, por outro lado, corresponde à opção do legislador, não à do intérprete que se substituiria àquele com interpretação diversa, pelo que não está igualmente em causa a observância do princípio da legalidade.
Dispositivo
Em resultado do exposto, este Tribunal Singular decide julgar procedente o pedido e, em consequência, anular os atos de liquidação em crise, com fundamento em violação de lei, decorrente de erro nos pressupostos.
Valor
De harmonia com o disposto no art. 306.º, nºs 1 e 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 12.729,59 (doze mil, setecentos e vinte e nove euros e cinquenta e nove cêntimos).
Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 918,00 (novecentos e dezoito euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 28-12-2015
Texto elaborado em computador, nos termos do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, com versos em branco, revisto e assinado pelo árbitro signatário.
O Árbitro
(Jaime Carvalho Esteves)