Decisão Arbitral
I. RELATÓRIO
A…, S.A., sociedade com sede no Edifício …, Avenida …, lote .... ... … , … andar, Lisboa, titular do número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva…, doravante simplesmente designada Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante abreviadamente designado por RJAT), peticionando a anulação dos 36 actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) e respectivos juros compensatórios identificados na Tabela Anexa ao requerimento inicial, referentes aos exercícios de 2013 e 2014, no valor total de € 3.959,67, bem como a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT ou Requerida) no reembolso do valor pago, acrescido de juros indemnizatórios.
Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese:
a) É uma instituição financeira de crédito que prossegue a sua actividade no ramo do financiamento automóvel;
b) No âmbito da sua actividade, procede à concessão de empréstimos para a aquisição dos veículos e à celebração de contratos de locação financeira;
c) Foi notificada de várias notas de liquidação de IUC respeitantes aos veículos relacionados com a actividade supra mencionada, relativas aos exercícios de 2013 e 2014;
d) Os actos de liquidação de IUC impugnados respeitam a veículos já vendidos pela Requerente; a veículos em relação aos quais se encontrava em vigor contrato de locação financeira e a um veículo em relação ao qual foi celebrado contrato de locação financeira, em situação de incumprimento;
e) Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 6.º e do n.º 2 do artigo 4.º, todos do CIUC, o imposto considera-se exigível no primeiro dia do período de tributação do veículo, isto é, na data da atribuição da matrícula;
f) Relativamente aos veículos alienados pela Requerente, na data do vencimento do IUC, esta já não era proprietária dos veículos em questão, pelo que o sujeito passivo do imposto deverá ser o novo proprietário de cada veículo;
g) Ainda que a transmissão da propriedade dos veículos não tenha sido registada pelos adquirentes dos veículos, tal não obsta a que o IUC incida sobre os reais proprietários dos veículos;
h) O n.º 1 do artigo 3.º do CIUC contém uma presunção ilidível;
i) No caso de o veículo ter sido objecto de contrato de locação financeira, o sujeito passivo do imposto é o locatário financeiro, não sendo o proprietário do veículo responsável subsidiário pelo pagamento do IUC;
j) Tendo o contrato de locação financeira celebrado sido objecto de resolução por incumprimento do locatário, também não é o seu proprietário sujeito passivo de IUC.
A Requerente juntou 26 documentos, não tendo arrolado testemunhas.
No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº1 do RJAT, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa o signatário, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.
O tribunal arbitral foi constituído em 21 de Julho de 2015.
Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, alegando, em síntese, o seguinte:
a) À excepção da liquidação respeitante ao veículo de matrícula …-…-…, mais nenhuma liquidação foi junta pela Requerente aquando do pedido de constituição do tribunal arbitral, pelo que não se encontra demonstrada a tempestividade do pedido de constituição do Tribunal Arbitral relativamente às demais liquidações impugnadas;
b) A Requerente não juntou documentos que poderiam sustentar as teses por si defendidas;
c) As 2.ªs vias de alegadas facturas de venda de veículos não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como a compra e venda;
d) A Requerente não juntou prova documental do recebimento do preço;
e) Não foi junta qualquer prova de que os contratos de locação financeira alegados se encontravam em vigor à data da verificação do facto gerador do imposto;
f) Da mesma forma, não foi feita qualquer prova do incumprimento do contrato de locação financeira;
g) O legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que são sujeitos passivos do IUC os proprietários, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados;
h) O artigo 3º do CIUC não estabelece qualquer presunção de propriedade, mas uma verdadeira ficção de propriedade – o legislador não diz que se presumem proprietários mas que se consideram proprietários;
i) A falta de inscrição no registo das alterações de propriedade ou das situações de locação tem como consequência que a obrigação de pagamento do IUC recaia no proprietário inscrito, não podendo a AT liquidar o imposto com base em elementos que não constem do registo;
j) O IUC é devido pelas pessoas que constam no registo como proprietárias dos veículos.
Termina peticionando a improcedência do pedido de pronúncia arbitral e consequente absolvição da Requerida do pedido e manutenção na ordem jurídica dos actos tributários impugnados.
A Requerida não juntou nenhum documento e não arrolou nenhuma testemunha.
Na sequência da notificação para o efeito efectuada, a Requerida, por requerimento de 06/10/2015, informou não proceder à junção do processo administrativo, uma vez que o mesmo não se encontra informatizado.
Por requerimento de 04/11/2015, a Requerente veio, em cumprimento do despacho de 02/10/2015, juntar aos autos as liquidações impugnadas, as facturas dos veículos alegadamente transmitidos em momento anterior à ocorrência do facto gerador do IUC, dois contratos de locação financeira, um contrato de mútuo e um contrato de aluguer.
Atenta a posição assumida pelas partes e não existindo necessidade da realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, foi a mesma dispensada, tendo sido fixado prazo para apresentação de alegações escritas, não tendo nenhuma das partes procedido à junção de alegações.
II.SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas.
O processo não enferma de vícios que afectem a sua validade.
III.QUESTÕES A DECIDIR
Atentas as posições assumidas pelas Partes, vertidas nos argumentos expendidos, cumpre:
a. Conhecer da tempestividade do pedido de pronúncia arbitral;
b. Apurar quem é sujeito passivo de IUC quando, na data da verificação do facto gerador do imposto, o veículo automóvel tiver já sido alienado ou se encontrar dado em locação financeira;
c. Apurar qual o valor jurídico do registo automóvel em sede de IUC, maxime para efeitos da incidência subjectiva do imposto;
d. Determinar se a não actualização do registo automóvel permite considerar, como sujeitos passivos de IUC, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.
IV.MATÉRIA DE FACTO
a. Factos provados
Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, deram-se como provados os seguintes factos:
1. A Requerente é uma instituição financeira de crédito
2. No âmbito da sua actividade, a Requerente concede aos seus clientes financiamento com vista à aquisição de veículos automóveis
3. A Requerente foi notificada das liquidações referentes aos exercícios e veículos identificados na Tabela Anexa ao requerimento inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzida;
4. A data de pagamento do IUC e juros compensatórios das liquidações a que se alude em 1. ocorreu no dia 13 de Março de 2015;
5. Nenhum dos veículos referidos em 1. pertence às categorias F ou G, a que alude o artigo 4.º do CIUC;
6. À data do facto gerador do imposto, a Requerente havia emitido facturas de venda dos veículos com as matrículas …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-… e …-…-…;
7. A Requerente celebrou um contrato de mútuo relativamente ao veículo de matrícula …-…-…;
8. A Requerente celebrou contratos de locação financeira relativamente aos veículos de matrícula …-…-… e …-…-…;
9. A Requerente celebrou um contrato de aluguer relativamente ao veículo de matrícula …-…-…;
10. A Requerente pagou o IUC e juros compensatórios correspondentes às liquidações a que se alude em 1, no valor global de € 3.959,67;
11. O pedido de constituição do tribunal arbitral em matéria tributária e de pronúncia arbitral foi apresentado em 05/05/2015.
b. Factos não provados
Com interesse para os autos, não resultou provado que relativamente ao veículo de matrícula …-…-… tenha sido celebrado contrato de locação financeira e que este tenha sido incumprido por parte do locatário.
a) Fundamentação da matéria de facto
A convicção acerca dos factos tidos como provados formou-se tendo por base a prova documental junta pela Requerente, indicada relativamente a cada um dos pontos, e cuja adesão à realidade não foi questionada.
Quanto aos factos não provados, a convicção do Tribunal teve por base a total ausência de prova nesse sentido efectuada.
V.DO DIREITO
Fixada que está a matéria de facto, cumpre agora, por referência àquela, apurar o Direito aplicável.
Antes de mais, cumpre apreciar da questão prévia invocada pela Requerida, relativamente à tempestividade do pedido de pronúncia arbitral.
É certo que, aquando do pedido de constituição do tribunal arbitral, a Requerente apenas juntou aos autos a liquidação relativa ao veículo de matrícula …-…-….
No entanto, notificada para o efeito, veio a Requerente juntar aos autos todas as liquidações impugnadas.
Conforme consta dos factos provados – cfr. ponto 4 -, a data limite de pagamento de todas as liquidações impugnadas ocorreu no dia 13 de Março de 2015, sendo que a apresentação do pedido de pronúncia arbitral ocorreu no dia 05/05/2015 – cfr. facto provado 11.
Atento o prazo para apresentação do pedido de pronúncia arbitral a que alude o artigo 10º nº 1 a) do RJAT, verifica-se, sem necessidade de quaisquer outras considerações, ter sido o presente pedido apresentado tempestivamente.
Conhecida a questão prévia invocada, estamos assim em condições de conhecer do mérito do pedido, relativamente às restantes questões.
Assim,
Analisada a argumentação expendida pelas Partes, facilmente se atinge que a questão de fundo reside na interpretação da norma contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC e, mais concretamente, em saber se aquela contém ou não uma presunção legal. Esta questão, como ademais já sublinhado noutras decisões, tem suscitado profusa jurisprudência – também arbitral – que, oportunamente, aqui se trará.
Sob a epígrafe incidência subjectiva, o artigo 3.º do CIUC dispõe que:
“1. – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2. – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”
Ora, dissipar as dúvidas sobre o sentido e o alcance a atribuir a determinada norma jurídica implica levar a cabo uma tarefa interpretativa que permita retirar do enunciado linguístico um concreto sentido ou “conteúdo de pensamento”([1]). Contudo, tal tarefa apenas se pode cumprir – assim se logrando apreender a vis ac potestas legis – através da utilização de um concreto método, que se estriba na interpretação literal, por um lado, e na interpretação lógica ou racional, por outro.
Recorde-se, ainda, que de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária, as normas tributárias se interpretam de acordo com os princípios de hermenêutica jurídica comummente aceites, maxime os fixados, entre nós, no artigo 9.º do Código Civil. Prossigamos.
A interpretação literal apresenta-se, então, como o primeiro estádio da actividade interpretativa. Como refere FERRARA, “o texto da lei forma o substrato de que deve partir e em que deve repousar o intérprete”([2]).
Na verdade, uma vez que a lei se encontra expressa em palavras, deve, então, delas ser extraída a significância verbal que contêm, segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais. Porém, sendo as palavras empregues pelo Legislador equívocas ou indeterminadas, será forçoso recorrer à interpretação lógica, que atende ao espírito da disposição a interpretar.
A interpretação lógica, tal como vem sendo pacificamente figurada pela doutrina([3]), estriba-se no elemento racional, no elemento sistemático e no elemento histórico; ponderando-os e deles deduzindo o valor da norma jurídica em apreço.
Por elemento racional há-de entender-se a raison d´être da norma jurídica, i.e., a finalidade para a qual o legislador a instituiu. A descoberta da ratio legis apresenta-se, assim, como um factor de indubitável importância para a determinação do sentido da norma.
Sucede, porém, que uma determinada norma não existe isoladamente, antes convive com as demais normas e princípios jurídicos de forma sistemática e complexa. Assim, natural se torna que o sentido de uma concreta norma resulte claro da confrontação desta com as demais. Como refere BAPTISTA MACHADO, “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.”([4]).
Já o elemento histórico, por seu turno, há-de reportar-se e incluir os materiais conexos com a história da norma, tais como “a história evolutiva do instituto, da figura ou do regime jurídico em causa (…); as chamadas fontes da lei, ou seja os textos legais ou doutrinais que inspiraram o legislador na elaboração da lei (…); os trabalhos preparatórios.”.
Apliquemos, então, o que se vem dizendo ao caso vertente.
Compulsados os argumentos de Requerente e Requerida, e no que tange ao elemento literal, facilmente se compreende que o foco de dissenso reside na expressão “(…) considerando-se como tais (…)”, contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC.
Pergunta-se – como de resto se fez na Decisão Arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 73/2013-T([5]): “O facto do legislador ter optado pelo vocábulo “considerando-se” destrói a possibilidade de estarmos perante uma presunção?”. Não. É a resposta que, cremos, se impõe. E nem se venha dizer que tal conclusão vai infirmada pela circunstância de o legislador não ter utilizado o vocábulo “presumem-se”, que empregou no vetusto Regulamento do Imposto Sobre Veículos.
Também aqui não podemos deixar de sublinhar o que naquela decisão ficou dito: “examinando o ordenamento jurídico português, encontramos imensas normas que consagram presunções utilizando o verbo considerar, muitas das quais empregues no gerúndio (“considerando” ou mesmo “considerando-se”). São disso exemplos as normas a seguir enumeradas: No Código Civil, entre outras, os artigos 314.º, 369.º n.º 2, 374.º n.º 1, 376.º n.º 2, 1629.º (…). Também no ordenamento jurídico tributário se pode encontrar o verbo “considerar”, nomeadamente o termo “considera-se” com um sentido presuntivo. E ali se acrescenta o ensinamento de LEITE DE CAMPOS, SILVA RODRIGUES e LOPES DE SOUSA que, pela clareza de exposição, igualmente se transcreve. Assim, escrevem os Autores que “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, revelada pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”.
A este propósito, JORGE LOPES DE SOUSA([6]) refere que no n.º 1 do artigo 40.º do Código do IRS se utiliza a expressão “presume-se”, ao passo que no n.º 2 do artigo 46.º do mesmo diploma se faz uso do vocábulo “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal.
Assim, e ao que aqui nos interessa, revela-se admissível assimilar o verbo considerar ao verbo presumir. Com efeito, podemos estar perante uma presunção mesmo quando o legislador haja optado por outros verbos, nomeadamente pelo verbo considerar. Na verdade, e ao invés do propugnado pela Requerida, é esta a conclusão que menos belisca a coerência sistemática postulada pelo ordenamento jurídico como um todo.
Mas mais: também o elemento racional autoriza semelhante conclusão.
Convoquemos a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 118/X, de 07/03/2007, que originou a Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, porquanto dali resulta clara a ratio legis.
Pretendeu-se empreender uma “reforma global e coerente dos impostos ligados à aquisição e propriedade dos veículos automóveis” em função da “necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.
Assim, “os dois novos impostos que agora se criam, o imposto sobre veículos e o imposto único de circulação, constituem muito mais do que o prolongamento técnico das figuras criadas nos anos 70 e 80 que os antecederam, voltadas predominantemente para a angariação da receita, indiferentes ao custo social resultante da circulação automóvel. Constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade.”
De forma congruente àquela motivação, o legislador veio consagrar, no artigo 1.º do CIUC, o princípio da equivalência, ficando claro “que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária. É este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate”.
Pode, aliás, dizer-se que as preocupações ambientais e energéticas são tão impressivas em sede de IUC, que o princípio da equivalência molda não apenas a base tributável, mas também, e sobretudo, a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º.
Uma vez mais se convoca a Decisão Arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 73/2013-T: “Tendo em conta quer o lugar sistemático que o princípio da equivalência ocupa (artigo 1.º do CIUC) – elemento sistemático – quer o elemento histórico corporizado pela Proposta de Lei n.º 118/X (fonte de lei), quer o racional (ou teleológico) acabado de analisar, todos apontam no sentido da conclusão preliminar a que chegámos aquando da análise do elemento gramatical, só fazendo sentido conceber no contexto do artigo 3.º do CIUC a expressão “considerando-se como tais” como reveladora da presença de uma presunção ilidível (…). Na verdade, a ratio legis do imposto antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o proprietário económico, no dizer de DIOGO LEITE DE CAMPOS, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade”.
Assente que fica a natureza jurídica da norma contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, cumpre agora clarificar a questão da incidência subjectiva do imposto quando o veículo, à data do facto gerador do imposto, já tiver sido alienado.
Celebrado o contrato de compra e venda, o adquirente será instituído, ex contratu, na posição de proprietário, consequentemente passando a ser-lhe aplicável o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC; i.e., o novo proprietário passa a deter, para efeitos de IUC, a posição de sujeito passivo do imposto.
E tal solução impõe-se desde o momento da perfeição do contrato de compra e venda não apenas porque o Código do IUC o determina – ao afirmar que são sujeitos passivos do imposto os proprietários –, mas também pelo facto de entre nós vigorar o princípio da consensualidade, que importa que a transmissão da propriedade ocorra por mero efeito do contrato; como resulta em primeira linha do n.º 1 do artigo 408.º do Código Civil. Veja-se ainda, reforçando o «que acima se diz, a alínea a) do artigo 879.º daquele diploma.
Refira-se, ainda, que o entendimento exposto no parágrafo que antecede é unanimemente propugnado por Doutrina([7]) e Jurisprudência([8]), não carecendo, assim, de desenvolvimentos adicionais.
E o que se vem de dizer releva para sustentar a nossa posição no que tange ao valor jurídico do registo automóvel. Recorde-se, porém, que de acordo com a regra geral acima vista a transferência do direito se produz ex contratu, sem necessidade de qualquer acto material ou de publicidade([9]).
Como pacificamente aceite pela Doutrina e pela Jurisprudência, perante o silêncio do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, quanto à questão do valor jurídico do registo automóvel, torna-se necessário lançar mão da disciplina do registo predial; operação ademais autorizada pelo artigo 29.º daquele Decreto-Lei.
Ora, atendendo ao Código do Registo Predial – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 125/13, de 30 de Agosto –, maxime ao seu artigo 7.º, e conjugando esta norma com o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 54/75, rapidamente se infere a função primacial do registo (automóvel): dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor.
Pode então afirmar-se que o registo não tem natureza constitutiva, antes meramente declarativa, permitindo apenas presumir a existência do direito e a sua titularidade. Note-se: presumir e não ficcionar, podendo assim ser ilidida mediante prova em contrário.
E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408.º do Código Civil, e salvas as excepções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente de qualquer acto subsequente, e.g., inscrição no registo.
Desta feita, não prevendo a lei qualquer excepção para o contrato de compra e venda de veículo automóvel, a eficácia real produz normalmente os seus efeitos, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo.
Ora, se independentemente do registo o adquirente passa a ser o proprietário, o titular inscrito deixa concomitantemente de o ser; pese embora no registo figure como tal.
In casu, e não obstante a falta de inscrição no registo, as transmissões efectuadas são oponíveis à Requerida, não podendo esta prevalecer-se do disposto no n.º 1 do artigo 5º do Código do Registo Predial.
Desde logo pelo facto de a Requerida não ser, para efeitos do disposto naquela norma, havida como terceiro para efeitos de registo.
A noção de terceiros para efeitos de registo é-nos dada pelo n.º 4 do mesmo artigo 5.º: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si; donde fatalmente se retira não ser este, manifestamente, o caso dos autos.
O mesmo raciocínio se terá, naturalmente, de aplicar às hipóteses de locação financeira, em relação às quais também o registo não tem qualquer eficácia constitutiva, mais não passando de uma presunção de que o direito existe.
Presunção ilidível, do mesmo passo, mediante prova em contrário.
Ora, pese embora à data das liquidações de imposto a Requerente ainda figurar no registo como proprietária dos veículos, a verdade é que alega não ser, à data do facto gerador do imposto, a sua proprietária, por já os haver alienado.
Assim, e uma vez que a presunção resultante do registo é, como vimos, ilidível, vejamos se os documentos juntos pela Requerente são aptos a cumprir tal desiderato.
Com vista a provar que os veículos referidos nos presentes autos foram por si alienados em data anterior à da ocorrência do facto gerador do imposto, a Requerente juntou, relativamente aos veículos a que alude em 6) dos factos provados, as respectivas facturas de venda.
Vejamos agora o valor probatório das facturas juntas pela Requerente.
A este propósito, invoca a Requerida que as facturas de venda dos veículos juntas pela Requerente “não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como a compra e venda”.
Conforme já exposto, a Requerente juntou, relativamente a vinte e um dos veículos automóveis em causa, facturas de venda. Por outro lado, conforme resulta dos factos provados, nenhum dos veículos em causa nos presentes autos pertence às categorias F ou G a que alude o artigo 4º do CIUC, pelo que o facto gerador do imposto ocorre na data da respectiva matrícula ou em cada um dos seus aniversários.
Significa isto que, à data da liquidação do IUC em causa nos presentes autos, já havia sido emitida pela Requerida uma factura de venda relativa a cada um dos veículos, conforme decorre, aliás, do ponto 6) dos factos provados.
No entanto, a Requerida impugnou todas as facturas juntas pela Requerente.
Assim, tratando-se de documentos particulares, sem qualquer força probatória plena, incumbia à Requerente provar os factos constantes dos mesmos, os quais poderiam ser efectuados por qualquer outro meio.
Aliás, a Requerente foi expressamente notificada para juntar prova de todos os factos por si alegados.
Em resposta a esta notificação, a Requerente limitou-se a juntar as liquidações impugnadas, com o respectivo comprovativo do pagamento, e os contratos relativos aos veículos em relação aos quais alegou existir locação financeira, nada mais tendo junto nem tendo pedido ao Tribunal prazo para juntar quaisquer outros documentos.
Assim, em face da ausência de prova nesse sentido efectuada pela Requerente, sobre quem impendia o respectivo ónus, em face da impugnação expressa de todas as facturas juntas, não pode este Tribunal considerar que as facturas juntas são aptas a provar a venda dos veículos em data anterior à ocorrência do facto gerador do imposto.
Tem, pois, de improceder a impugnação das liquidações respeitantes aos veículos de matrícula …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-…; …-…-… e …-…-… .
Analisemos agora as liquidações respeitantes aos restantes veículos, em relação aos quais resultou provado:
a) Veículo de matrícula …-…-…: foi celebrado um contrato de mútuo – cfr. ponto 8) da matéria de facto provada;
b) Veículos de matrícula …-…-… e …-…-…: foram celebrados contratos de locação financeira – cfr. ponto 9) da matéria de facto provada; e
c) Veículo de matrícula …-…-…: foi celebrado um contrato de aluguer – cfr. ponto 10) da matéria de facto provada.
Quanto aos veículos de matrículas …-…-… e …-…-…, encontra-se provada nos autos não a celebração de contratos de locação financeira, como invocado pela Requerente, mas a celebração de contratos de mútuo e de aluguer, respectivamente.
Pese embora a celebração destes contratos, não foi feita qualquer prova que estes contratos, à data da ocorrência do facto gerador do imposto ainda se encontrassem em vigor.
Prova essa que, mais uma vez, impendia sobre a Requerente.
No que diz respeito aos veículos em relação aos quais foram celebrados contratos de locação financeira, conforme já alegado, o registo destes contratos não tem qualquer efeito constitutivo, mais não passando de uma presunção de que o direito existe.
In casu, não resultou provado que os contratos de locação financeira se encontrassem registados.
Mas, atento o carácter não constitutivo do registo da locação financeira, a sua falta de registo não determina a impossibilidade de fazer prova da sua existência por qualquer outro meio.
Prova essa que a Requerente logrou fazer com a junção dos respectivos contratos.
Sucede porém que, pese embora se encontre demonstrada nos autos a celebração de contratos de locação financeira em relação aos veículos de matrículas …-…-… e …-…-…, à semelhança dos veículos anteriormente analisados, não foi feita qualquer prova de que estes contratos, à data da ocorrência do facto gerador do imposto, ainda se encontrassem em vigor, prova essa que impendia sobre a Requerente.
Em face do exposto, tem igualmente de improceder a impugnação das liquidações respeitantes aos veículos de matrículas …-…-…, …-…-…, …-…-… e …-…-… .
De tudo quanto se expendeu resulta clara a inexistência de qualquer fundamento para anulação das liquidações impugnadas, as quais terão, assim, de manter-se na ordem jurídica.
VI.DISPOSITIVO:
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente o pedido de impugnação das liquidações e os inerentes pedidos de condenação da Requerida no reembolso do valor pago pela Requerente e no pagamento dos juros indemnizatórios
***
Fixa-se o valor do processo em € 3.959,67, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
***
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, bem como do disposto no n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 3 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar pela Requerente, por ser a parte vencida.
***
Registe e notifique.
Lisboa, 21 de Dezembro de 2015.
O Árbitro,
Alberto Amorim Pereira
***
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.
[1] ([1]) Cf. BAPTISTA MACHADO, JOÃO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1982, p. 175.
[2] ([2]) FERRARA, FRANCESCO, Interpretação e Aplicação das Leis, 1921, Roma; Tradução de MANUEL DE ANDRADE, Arménio Amado, Editor, Sucessor – Coimbra, 2.ª Edição, 1963, p. 138 e ss.
[3] ([3]) Vide, por todos, BAPTISTA MACHADO, JOÃO, op. cit., p. 181.
[4] ([4]) BAPTISTA MACHADO, JOÃO, op. cit., p. 183.
[5] ([5]) Cf. Decisão Arbitral de 5 de Dezembro de 2013, proferida no âmbito do Processo n.º 73/2013, p. 21.
[6] ([6]) Cf. LOPES DE SOUSA, JORGE, Código do Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Vol. I, 6ª Edição, Áreas Editora, Lisboa, 2011, p. 589.
[7] ([7]) Vide, por todos, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volumes I e II, Coimbra Editora, 4ª Edição Revista e Actualizada, Anotações aos artigos 408.º e 79.º.
[8] ([8]) Vide, inter alios, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Março de 1998.
[9] ([9]) Cf. EWALD HÖRSTER, HEINRICH, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 2ª Reimpressão da Edição de 1992, p. 467.