Decisão Arbitral
Os árbitros Fernanda Maçãs (árbitro presidente), João Sérgio Ribeiro e António Martins, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 30/6/2015, acordam o seguinte:
I. Relatório
1. A sociedade “A ..., SGPS, S.A.”, NIPC ..., apresentou, em 22/4/2015, pedido de constituição do tribunal arbitral colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante também AT).
2. A pretensão objecto do pedido de pronúncia arbitral consiste na apreciação da legalidade da liquidação n.º 2014 ..., de 10/11/2014, que deu origem à demonstração de acerto de contas n.º 2014 ..., compensação 2014 ..., no valor de € 630.911,71, referente ao IRC do exercício de 2010, emitida pela Direcção de Serviços de Cobrança da Autoridade Tributária e Aduaneira em 28/11/2014.
3. A Requerente pede, na sequência da procedência do pedido que seja “(…) declarada ilegal e anulada a liquidação sub judice no que concerne à correcção ao lucro tributável (no valor de € 2.742.559), alteração da derrama (para € 39.808,63) e juros compensatórios (de € 32.489,56), com as consequências daí decorrentes”.
4. Em 24/4/2015, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
4.1. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, os quais comunicaram a aceitação da designação dentro do prazo.
4.2. Em 15/6/2015, as partes foram notificadas da designação dos árbitros não tendo arguido qualquer impedimento.
4.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 11.º do RJAT, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 30/6/2015.
4.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.
5. As principais questões a decidir referem-se ao sentido e alcance do artigo 32.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (doravante também EBF), impondo-se determinar: i) Qual o momento em que os encargos financeiros devem ser considerados; e ii) Qual a metodologia de determinação do quantum de encargos a considerar.
i) Relativamente à questão do momento em que os encargos devem ser considerados.
A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente, que junta diversos documentos e um parecer do Professor Doutor Carlos Baptista Lobo, alega, em síntese:
a) Que no ponto I.4. do Relatório de Inspeção no item “Descrição sucinta das correções efetuadas”, é referido o seguinte:
“Da análise interna efetuada aos elementos contabilístico-fiscais do exercício de 2010, das contas individuais da sociedade B..., SGPS, SA (“B...”), “sujeito passivo” ou “empresa”), NIPC..., resultou a seguinte correção:
Encargos financeiros não dedutíveis - artigo 32º n.º 2 do EBF
O sujeito passivo acresceu ao resultado líquido o montante de 123.122,72 euros referentes a encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital que, de acordo com o nº. 2 do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), não concorrem para o apuramento do lucro tributável. No entanto, o valor apurado pela Autoridade Tributária para encargos desta natureza ascende a 2.865.681,94 euros, pelo que deverá ser corrigido o montante de 2.742.559,22 euros, correspondente à diferença entre aqueles dois valores;
b) A referida correção, no valor de €2.742.559,22 resulta de uma errónea e ilegal interpretação feita pela AT, veiculada pela Circular nº 7/2004, de 30 de Março da Direcção de Serviços de IRC, quer quanto ao sentido e alcance do artigo 32º, n.º 2 do Estatuto dos Benefícios Fiscais, quer quanto à metodologia de determinação do quantum de encargos financeiros a desconsiderar, através da definição de um método indireto de imputação dos encargos financeiros às partes de capital;
c) Uma SGPS deve aceitar a dedutibilidade fiscal daqueles encargos financeiros no exercício em que os suportou, avaliando o seu eventual acréscimo, para efeitos da determinação do seu lucro tributável, apenas no momento da alienação da participação social detida e desde que verificados os requisitos subjacentes à aplicação do regime;
d) À dificuldade prática de relacionar as mais-valias (que são geradas num determinado ponto do tempo) com os encargos financeiros (que podem ser continuados no tempo) a AT, sem qualquer suporte ou fundamento legal, dá a solução que melhor lhe convém, ou seja, a priori desconsidera sempre os encargos financeiros e, a posteriori, é que verificará, em função do tratamento dado às mais-valias, se tais encargos terão de vir a ser considerados e aceites como custo.
e) Esse procedimento não encontra o mínimo assento ou respaldo na lei, pelo que os encargos financeiros devem ser considerados como custo ou gasto fiscal e apenas se e quando as mais-valias decorrentes da alienação de partes de capital forem realizadas e sejam, nos termos do artigo 32º, nº 2, do EBF, desconsideradas.
Por sua vez, relativamente a esta mesma questão a AT apresentou resposta e juntou processo instrutor, invocando, em síntese, o seguinte:
a) A solução adotada pela Circular nº 7/2004, na parte respeitante ao exercício em que deverão ser feitas as correções fiscais dos encargos financeiros ora em discussão, reflete a preocupação do legislador em não influenciar o lucro tributável do exercício em que são suportados os encargos financeiros com a aquisição de participações suscetíveis de beneficiar do nº 2 do art. 31º do EBF, sem antes conhecer se os mesmos podem ou não concorrer para a formação do lucro tributável da sociedade;
b) Determina aquela circular que caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo no exercício fiscal em que foram suportados;
c) Os encargos que possam concorrer para a formação do lucro tributável serão, no máximo, reconhecidos no período imediatamente seguinte àquele em que foram suportados, e os que não puderem ser reconhecidos nesse período imediatamente posterior não reúnem, simplesmente, os pressupostos para poderem concorrer para a formação do lucro tributável;
d) A solução preconizada pela referida circular acolhe as preocupações do legislador em sede de periodização do lucro tributável, sobretudo quando conjugando com o disposto no art. 23º do CIRC, impedindo o seu reconhecimento no exercício em que, embora suportados, não é ainda possível aferir da sua indispensabilidade para a formação do lucro tributável;
e) O Acórdão do STA n.º 269/2012, refere:
«Para MANUEL H. F. PEREIRA (Cfr. “ A periodização do lucro tributável”, Ciência e Técnica Fiscal, 1988, nº 349, pp. 80-81.) referindo-se à importância e razão de ser do princípio da especialização dos exercícios, pondera que “a especialização temporal das componentes do lucro é ainda mais importante para efeitos fiscais do que contabilísticos, dados os condicionalismos em que decorre a determinação do imposto a pagar, de modo a evitar desvios de resultados entre exercícios diferentes com propósitos de minimização da carga fiscal, (…). Com efeito, essa imputação temporal pode ser instrumento de uma manipulação de resultados, de modo, a, designadamente:
a) Diferir no tempo os lucros;
b) Fraccionar os lucros, distribuindo-os por exercícios diferentes, com o objectivo de evitar, num imposto de taxas progressivas, a tributação por taxas mais elevadas;
c) Concentrar o lucro em exercício onde se podem efectivar deduções mais avultadas (v.g. por reporte de prejuízos ou por incentivos fiscais).»
f) A obrigação legal de quantificação dos encargos financeiros não dedutíveis resultantes da articulação deste regime com o art.º 32.º do EBF incidia sobre a Requerente no âmbito do apuramento do lucro tributável e preenchimento da declaração anual onde efetuou a autoliquidação de IRC;
g) Os encargos financeiros suportados no exercício em causa, no montante que entende estar relacionados com a aquisição da totalidade das partes sociais, não concorrem, por consequência, para a formação do lucro tributável da Requerente, independentemente do facto de a Requerente, relativamente a essas partes de capital, ter ou não realizado mais-valias com a respectiva alienação;
h) O custo fiscal os encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital, independentemente de se terem gerado mais-valias, não devem ser considerados, pois não existe um nexo entre uma coisa e a outra.
ii) No que concerne à metodologia de determinação do quantum de encargos a considerar.
A Requerente alega que:
a) Para além da divergência de entendimento quanto ao sentido e alcance do artigo 32º, nº 2 do EBF, não concordando com o que lhe é atribuído pela Circular e com o inerente ao procedimento da AT, também não se conforma quanto à metodologia de determinação do “quantum” de encargos financeiros a desconsiderar, através da definição de um método de imputação indireto daqueles encargos às partes de capital prosseguido pela Circular e pela AT;
b) A AT não questiona à partida – como seria imperioso ─ se os financiamentos obtidos foram contraídos para a aquisição de partes de capital ou se foram utilizados em financiamentos para suprir as necessidades de tesouraria das suas participadas ou se, até, foram usados para pagamento dos salários dos trabalhadores;
c) A AT não efectuou quaisquer diligências no sentido de averiguar se os empréstimos contraídos se destinaram à aquisição das participações sociais de que a sociedade era detentora;
d) A AT ignora até o fator tempo, desconsiderando as datas de aquisição das partes de capital e as datas da contração dos empréstimos, limitando-se a ficcionar que os empréstimos têm que ver com aquelas aquisições numa lógica de “tudo tem a ver com tudo” e, com fundamento nessa errada e ilegal indução, aplica fórmulas e estabelece proporções.
e) “a AT não só não desenvolveu qualquer tipo de estratégia que permitisse mitigar os riscos identificados, como propôs um método que ultrapassa claramente o espírito do legislador subjacente ao disposto no artigo 32º, nº 2 do EBF, ao arrepio do princípio da legalidade e tipicidade constitucionalmente consagrados”;
f) A Circular desvia-se por completo da lei, porquanto parte de um receio de que um método de afectação directa ou específica seria de evitar devido “(…) à possibilidade de manipulação que o mesmo permitiria…”, impondo sempre um método indirecto ou pro rata;
g) O método de afectação directa afigura-se ser o único que, para além de mais justo e rigoroso, encontra assento na boa e correcta interpretação do texto da lei;
h) Revela-se evidente que o legislador apenas pretende a desconsideração tributária dos encargos financeiros incorridos com os financiamentos efectivamente relacionados com a aquisição de partes de capital, e apenas estes;
i) A letra e teleologia da norma em apreço afastam a admissibilidade da utilização de um método de pro rata, havendo que respeitar a afectação real do destino dos empréstimos obtidos e somente após essa determinação é que seria admissível o uso de um método indirecto, à luz do que ocorre, por exemplo, em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado;
j) Ao recorrer a métodos indirectos para ficcionar os encargos financeiros supostamente incorridos com a aquisição de partes de capital, a AT incorre numa outra grave e frontal ilegalidade ─ o recurso indevido a avaliação indireta;
k) A AT acabou por presumir que existindo encargos financeiros e, simultaneamente, participações financeiras, existiram financiamentos para a aquisição de partes de capital e, com base nas fórmulas e doutrina de “adivinhação” constantes da Circular, presume ainda o montante dos encargos financeiros atribuídos à aquisição das partes de capital, assim determinando, a seu bel-prazer, a matéria colectável;
l) O método indirecto preconizado pela Circular é manifestamente frágil e inconsistente;
m) O montante de partes de capital detido pela Requerente durante o ano de 2010 considerado pela AT no método quantitativo de cálculo dos encargos financeiros que utiliza (mapa que constitui o anexo 5) ao relatório individual é, ao longo dos diferentes meses do ano, o seguinte:
- Janeiro a março de 2010: €275.352.449,70
- Abril: €275.613.892,40
- Maio a novembro: €275.588.952,51
- Dezembro: €277.719.140,71;
o) Constitui, pois, um sofisma, porque completamente arredado da realidade, considerar, como faz a AT de forma errada e ilegal, que a Requerente suportou encargos financeiros com a aquisição das referidas participações ou partes de capital;
p) A AT deveria ter, por conseguinte, atendido à realidade concreta da Requerente, que demonstra a inexistência de contração de endividamento por conta da aquisição das referidas participações sociais e não, com base na metodologia ilegal, frágil e errada constante da Circular, ter pressuposto através do recurso ilegal a métodos indirectos, quais os putativos encargos suportados pela Requerente com tal aquisição;
q) Em suma, para a Requerente “O acto de liquidação sub judice é manifestamente ilegal por errónea qualificação e quantificação de lucros, ausência ou vício de fundamentação legalmente exigida e preterição de outras formalidades legais, consubstanciado, além do mais, na violação dos artigos 32º, nº2, do EBF, 8º,74º, nº1, 85º, nº2, 87º e 90º da LGT, 13º,103º, nºs 2 e 3 e 104º, n.ºs 2 e 3 da CRP, dos princípios da legalidade tributária, especialização dos exercícios e da capacidade contributiva, impondo-se a respectiva anulação, nos termos do disposto nos artigos 2º, nº1, alínea a) do RJAT, 99º, alíneas a), c) e d) do CPPT e 135º do CPA.” (cfr. a Conclusão 36.ª do Pedido).
No que se refere a essa mesma questão a AT invocou, em síntese, o que se segue:
a) Transcrito o teor da norma legal aplicada, bem como da Circular cuja ilegalidade/inconstitucionalidade é invocada, mais cumpre esclarecer que, a despeito do alegado pela Requerente, o método utilizado in casu, independentemente de ser preconizado pela Circular n.º 7/2004, de 30/03, é adoptado pela generalidade das sociedades gestoras de participações sociais, que o empregam em função da extrema complexidade e subjectividade da afectação directa destes encargos aos diversos activos;
b) Atendendo às características intrínsecas da moeda, este método é uma ferramenta necessária às SGPS, de forma a permitir-lhes efectuarem a imputação destes encargos às partes de capital e determinarem o lucro tributável do exercício de acordo com a legislação aplicável;
c) Como o considerou a decisão arbitral proferida no Processo n.º 12/2013-T, referindo-se à quantificação dos encargos financeiros imputáveis às partes de capital:
«... os dados da questão não têm esta linearidade ou simplicidade: não há uma relação factual directa entre os fundos obtidos (com pagamento de juro) e os fundos concedidos (sem juro) – mas apenas a aplicação de uma fórmula aproximativa descrita na Circular 7/2004 (até por causa da fungibilidade do dinheiro), no sentido de se apurar, na aplicação do art. 32.º, n.º 2, do EBF, quais os “encargos financeiros suportados” com a aquisição de partes de capital.» E prossegue aquela decisão:
«... a lei fiscal não contém qualquer regra concreta ou princípio específico de desconsideração fiscal dos custos, se os fundos deles obtidos não gerarem quaisquer proveitos tributados.
E não o contém por razões de simplicidade e de adesão à verdade.
A simplicidade ancora-se na dificuldade de estabelecer uma relação causal direta entre um custo e um proveito financeiro, numa organização, como uma sociedade comercial, cujos financiamentos concedidos se destinam, por regra, à totalidade da sua atividade e que se socorre indistintamente de fundos próprios e de terceiros para prosseguir o seu escopo e é impossível aferir, por isso, se os fundos das prestações sem juros concedidos à dominadas provêm de financiamento de terceiro ou próprio e em que proporção ocorreu cada um deles... é este o motivo que preside, aliás, à Circular 7/2004, para as SGPS...»;
d) É por isso evidente que o motivo que preside à utilização do método de imputação dos encargos financeiros às partes de capital utilizado no caso em apreço é o da tributação mais próxima do lucro real possível, respeitando o disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF;
e) Veja-se que a norma constante do n.º 2 do artigo 31.º do EBF, na redacção dada pela Lei n.º 32-B/2002, de 30/12, ao determinar que os encargos financeiros suportados com a aquisição de partes sociais não concorrem para a formação do lucro tributável das SGPS, não estabeleceu o método a utilizar para efeitos de afectação dos encargos financeiros às participações sociais;
f) Na verdade, a Circular n.º 7/2004, em respeito pela ratio legis implementada com a alteração legislativa ocorrida ao n.º 2 do artigo 32.º do EBF, mais não pretende que dar cumprimento à lei, determinando o método e a forma de cálculo dos encargos financeiros suportados com a sua aquisição de partes sociais;
g) O Tribunal Arbitral se pronunciou sobre a legalidade e a conformidade constitucional daquela Circular. Decidiu-se, com efeito, no Processo n.º 21/2012-T:
«Efectivamente, consideramos que a adequada hermenêutica do regime especial aplicável às SGPS´s, previsto no n.º 2 do art.º 31.º do EBF, acima explicitada com desenvolvimento, nos leva a considerar que o propósito do legislador quando colocou a vigorar aquele regime foi o de, efectivamente, obstar a que (no pressuposto de que potencialmente a SGPS pode vir a beneficiar da exclusão de tributação aplicável aos rendimentos de mais valias realizados com a alienação de partes sociais) os custos relevantes que estejam relacionados com a obtenção de tais rendimentos possam ter relevância em termos de apuramento do lucro tributável do sujeito passivo que os obteve.
Donde se infere que não é a Circular n.º 7/2004 que cria presunções inilidíveis de custos não dedutíveis, mas é a própria lei, interpretada nos termos acima expostos, que afasta a dedutibilidade dos encargos financeiros (incorridos com financiamentos ligados à aquisição das participações sociais alienadas e que realizam mais-valias excluídas de tributação) para efeitos de apuramento da lucro tributável do exercício em que são incorridos, mesmo que anteriores ao da realização.
Salvo no que diz respeito à imposição, no n.º 7 da Circular 7/2004, da utilização do método indirecto de afectação dos encargos financeiros (considerámos acima que nada obstava, no pressuposto de que a afectação directa fosse possível, que ela se pudesse empreender, contrariando, assim, a imposição do método indirecto de afectação dos encargos financeiros), não vislumbramos em que medida aquela doutrina administrativa possa conter normas de incidência, de determinação da taxa e de liquidação, violando por isso, o princípio da legalidade fiscal previsto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 103.º da CRP.
(...)
O que importa aqui retirar é que o acto tributário de autoliquidação aqui em causa não está viciado ou enfermado de qualquer ilegalidade (por violação de qualquer princípio constitucional) que lhe possa ser assacada com base nesta questão da afectação dos encargos financeiros, tanto assim que, tal como aduz a Requerida na sua resposta, associada à emanação da Circular n.º7/2004, de 30 de Março, inexiste qualquer intenção legislativa por parte da AT, ou, pelo menos, não a conseguimos descortinar.»
h) A desconsideração dos encargos financeiros, resulta, tão-somente, do quadro normativo vigente e não da eventual aplicação dos critérios vertidos na aludida Circular n.º 7/2004, de 30/03;
i) A importância das referidas orientações resulta, desde logo, do facto de a «actividade tributária [ser] hoje uma actividade massiva, que envolve o tratamento de milhares de casos, geralmente traduzidos em declarações fiscais dos contribuintes e nesse contexto é elemento importante da segurança jurídica o conhecimento prévio da organização implementada para tratar desses casos, dos critérios e dos procedimentos que adopta, dado que, designadamente, permite aos particulares perante um problema ou uma dúvida saber, caso exista regulamento interno sobre essa matéria, como, em princípio, vai ser resolvido esse caso pelos funcionários a quem cabe aplicar a lei»;
j) Acresce que a explanação, na circular em discussão, do método a utilizar para efeitos dos encargos financeiros às participações sociais, além de promover a segurança jurídica, contribui para a realização efectiva das finalidades extrafiscais acima enunciadas (e que presidiram à própria criação do regime especial das SGPS) e tem a virtualidade, não menos importante, de obstar a que os contribuintes utilizem o normativo em causa para prosseguirem fins completamente alheios aos fins visados na lei e que subvertem a justiça de todo o sistema fiscal;
k) O entendimento vertido na Circular n.º 7/2004, de 30/03, limita-se a tentar esclarecer as emergentes dúvidas sobre o regime fiscal aplicável às SGPS e às SCR, previsto no art.º 31.º do EBF, na redacção que lhe foi dada pela Lei 32-B/2002, de 30/12 (OE para 2003);
l) Para a Requerida, em síntese, “a interpretação defendida pela Requerente (…)” é “contrária à Lei fundamental, na medida em que viola os princípios da igualdade tributária, da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real”.
5.2. A Requerida suscitou, ainda, a excepção da incompetência do Tribunal em razão da matéria, em relação ao pedido de reconhecimento do direito, conforme artigos 11º a 13º do Pedido arbitral.
A Entidade requerida contesta também o valor do processo indicado pela Requerente. Segundo a AT, o valor do processo não é o correspondente à utilidade económica do pedido (“€ 630.911,71”) resultante da “demonstração de acerto de contas 2014...”, devendo “a decisão incidir tão só sobre a legalidade ou ilegalidade do acréscimo à matéria colectável do valor €2.742.559, por serem imputáveis a partes de capital, de acordo com o disposto no n.º 2 do art. 32.º do EBF”.
6. Por despacho de 21 de Setembro de 2015, foi o Sujeito Passivo notificado para responder, querendo, à matéria de excepção e para concretizar os artigos referentes a aspectos de facto do requerimento arbitral, relativamente aos quais pretendia produzir prova testemunhal.
7. Por despacho de 3 de Outubro, foi indeferido o requerimento de produção de prova testemunhal, por os artigos indicados pelo Sujeito Passivo corresponderem a matéria de direito ou a matéria de facto carente de prova documental. Nesse mesmo despacho foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo-se designado o dia 20 de Dezembro como prazo limite para a prolação da decisão arbitral, prazo este posteriormente alterado para o dia 30 de Dezembro, por estar dentro do prazo legal para a emissão da decisão arbitral.
7.1. Atenta a complexidade da questão e o facto de o prazo de seis meses para emitir a decisão arbitral incluir períodos de férias judiciais, o Tribunal, por despacho de 27 de Dezembro, de 2015, decidiu prorrogar o prazo da arbitragem por dois meses, nos termos do disposto no artigo 21º, n.º 2, do RJAT, e indicar a data limite para ser proferida a decisão o dia 20 de Fevereiro de 2016.
8. As partes prescindiram de alegações.
II. Saneamento
9. Como ficou dito, em sede de contestação, invocou, a Requerida, uma excepção dilatória de incompetência material absoluta do Tribunal para apreciação do pedido que ora cumpre apreciar e decidir.
9.1. Começa a Requerida por alegar que não se insere no âmbito das competências dos Tribunais Arbitrais a apreciação das «alterações que adviriam da consideração das diferenças entre a liquidação anteriormente vigente e a resultante da acção inspectiva, nomeadamente:
i) Na matéria colectável (de € 42.837,73 para 2.798.312,72;
ii) Na correcção da dupla tributação internacional da C… (de € 600.154,45 para € 470.961,97);
iii) Na consideração de um benefício fiscal de € 49.244,79, antes não considerado por insuficiência de colecta;
iv) Na consideração de pagamentos especiais por conta, no valor de € 177.808,92, antes não utilizados por insuficiência de imposto;
v) Na alteração da derrama de € 3.058,34 para € 39.808,63;
vi) Na correcção às tributações autónomas de € 951.941,94 para € 922.606,28, e
vii) Na liquidação de juros compensatórios de € 32.489,56 – cfr., para tudo, arts. 11º a 13º da PI» já que “que inexiste qualquer suporte legal que permita que sejam proferidas condenações de outra natureza que não as decorrentes dos poderes fixados no RJAT, ainda que constituíssem consequência, a nível de execução, da declaração de ilegalidade de actos de liquidação.” Com efeito, “decorre do previsto no artigo 24.º do RJAT, a definição dos actos em que se deve concretizar a execução de julgados arbitrais compete, em primeira linha, à AT, com possibilidade de recurso aos tribunais tributários para requerer coercivamente a execução, no âmbito do processo de execução de julgados, previsto no artigo 146.º do CPPT e artigos 173.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos”.
Segundo a AT, a “incompetência material do Tribunal para a apreciação do pedido identificado supra consubstancia uma excepção dilatória que obsta ao conhecimento do mesmo, conducente à absolvição da instância quanto á pretensão em causa, de acordo com o previsto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT”.
Considera-se, todavia, que não assiste, nesta matéria, razão à AT, como passamos a demonstrar.
Não obstante a Requerente tecer considerações referentes a uma liquidação anterior (artigos 10.º a 13.º do Pedido), fê-lo, como expressamente admite, para se perceber melhor o seu pedido, sem perder de vista o objecto do mesmo. Na verdade, logo no artigo 14.º do Pedido refere expressamente que “Destas matérias, importa definir e delimitar o objecto do presente pedido de pronúncia arbitral como reportando-se à matéria da correção constante do ponto i) do artigo 10º supra e das respetivas consequências ao nível do cálculo da derrama e dos juros compensatórios”. Ora, o referido ponto i) do artigo 10.º tem o seguinte conteúdo: “Ao lucro tributável do grupo no referido período, efectuou uma correcção no valor de €2.742.559,22”.
Afigura-se, desta forma, não haver dúvidas quanto ao pedido da Requerente, cujo âmbito a AT reconheceu expressamente.
Com efeito, como a mesma Requerida refere, no artigo 13.º da Resposta, que «A Requerente apenas impugna – nestes autos – a legalidade dos actos tributários em causa na parte em que traduzem a correcção ao lucro tributável no valor de € 2.742.559, relativamente ao exercício de 2010, realizada pela Administração Tributária na sequência de acção inspectiva, por desconsideração de encargos financeiros relativos a aquisição de participações sociais, nos termos do artigo 32º, nº 2 do EBF (cfr. art. 10º e 14º da PI)».
Por sua vez, a Requerente é também muito clara quando, no artigo 166.º do Pedido, refere expressamente que demonstrada está “a manifesta ilegalidade do acto de liquidação sub judice por errónea qualificação e quantificação de lucros, ausência ou vício de fundamentação legalmente exigida e preterição de outras formalidades legais (….). Pretensão que repete na parte conclusiva do mesmo pedido (cfr. a Conclusão 36.ª).
Ora, a competência do Tribunal afere-se em razão dos pedidos formulados, sendo certo que, caso aquele extravase o âmbito destes, a questão que se colocará será, não de competência, mas de excesso (ou não) de pronúncia.
Além do mais, também não assiste razão à Requerida quanto à alegada incompetência deste Tribunal para decidir a eventual condenação em juros. Como ficou consignado, no Acórdão n.º 28/2013-T, de 16 de Outubro de 2013, “[e]mbora o art. 2.º, n.º1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD e não faça referência a decisões constitutivas (anulatórias) e condenatórias, deverá entender-se, em sintonia com a referida autorização legislativa, que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários em relação aos actos cuja apreciação de legalidade se insere nas suas competências”.
De igual modo, apesar de não existir também norma expressa no CPPT a prever o direito a uma indemnização por garantia indevida, a verdade é que, como é salientado no Acórdão que vimos seguindo, “tem-se vindo pacificamente a entender nos tribunais tributários, desde a entrada em vigor dos códigos da reforma fiscal de 1958-1965, que pode ser cumulado em processo de impugnação judicial pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios com o pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência do acto, por nesses códigos se referir que o direito a juros indemnizatórios surge quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, a administração seja convencida de que houve erro de facto imputável aos serviços. Este regime foi, posteriormente, generalizado no Código de Processo Tributário, que estabeleceu no n.º 1 do seu art. 24.º que «haverá direito a juros indemnizatórios a favor do contribuinte quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido». Posteriormente, também a LGT veio estabelecer, no seu artigo 43.º, n.º 1, que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido»”.
No sentido da solução que se advoga vai também o artigo 171.º do CPPT, o qual, relativamente ao pedido de condenação no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, dispõe que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda».
Não apenas o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida como até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, “o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação”. “O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido art. 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.” (cfr. o citado Acórdão Arbitral n.º 28/2013-T).
Finalmente, constitui também jurisprudência pacífica que “a cumulação de pedidos relativos ao mesmo acto tributário está implicitamente pressuposta no art. 3º do RJAT, ao falar em «cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos», o que deixa perceber que a cumulação de pedidos também é possível relativamente ao mesmo acto tributário”, estando, assim, englobados nesta fórmula, seja os pedidos de indemnização por juros indemnizatórios e de condenação por garantia indevida, seja o pedido de condenação em juros compensatórios.
No caso dos autos, cumpre realçar, porém, que, como vimos, não está em causa qualquer pedido condenatório em juros.
Com efeito, ficou claro que a Requerente pede que o Tribunal anule a liquidação sub judice (liquidação n.º 2014..., de 10/11/2014), anulação essa que terá como legais consequências “designadamente a correcção ao lucro tributável (no valor de € 2.742.559,22), a alteração da derrama (para €39.808,63) e juros compensatórios (de €32.489,56)”.
Em relação aos juros compensatórios, a Requerente reafirma no artigo 161.º do Pedido arbitral que “a AT na liquidação impugnada calcula juros compensatórios de €32.489,56 derivados destas correções que, na medida em que são subsidiários ou acessórios das correções anteriores, também devem ser anulados”.
Por conseguinte, a Requerente não faz qualquer pedido condenatório, seja em juros compensatórios, seja em juros indemnizatórios.
Na resposta, a AT entendeu, porém, erroneamente, que estaria em causa pedido condenatório em juros, para o qual este Tribunal seria incompetente. Acrescenta, ainda, no artigo 87.º da Resposta, que “Não é alegado o pagamento do imposto, nem se peticiona o pagamento de juros indemnizatórios, não cabendo, portanto qualquer condenação ao pagamento dos mesmos”.
Em todo o caso, sempre se dirá que não assistiria razão à AT, mesmo que estivesse em causa pedido condenatório em juros, em conformidade, como ficou dito, com a jurisprudência dos tribunais arbitrais.
Não é, porém, como referido, esse o caso, dado ter ficado claro que a Requerente se limita a pedir a anulação da liquidação sub judice, em resultado das correcções efectuadas ao lucro tributário, das quais fazem parte os juros compensatórios, debitados pela AT ao SP, por recebimento indevido (cfr. os documentos 1 e 2 juntos aos autos ).
Termos em que, por tudo o que vai exposto, não assiste qualquer razão à Requerida.
Sendo, confessadamente, o Tribunal competente para a apreciação dos pedidos formulados, haverá, por isso, de improceder a arguida excepção da incompetência.
9.2. Falece igualmente o argumento da Requerida quanto ao valor da causa.
Nos processo em que é impugnada a liquidação de tributos, o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) prevê, de forma expressa, que o valor da causa seja o da importância cuja anulação se pretende, conforme preceituado no artigo 97.º-A, n.º1, alínea a) do CPPT.
No caso dos autos, o que vem questionada é a “ilegalidade da liquidação n.º 2014..., de 10/11/2014, que deu origem à demonstração de acerto de contas n.º 2014..., compensação 2014..., no valor de € 630.911,71, referente ao IRC do exercício de 2010, emitida pela Direcção de Serviços de Cobrança da Autoridade Tributária e Aduaneira em 28/11/2014” (conforme docs n.ºs 1 e 2 juntos aos autos).
Não assiste, assim, também por aqui, razão à Requerida.
9.3. Em conformidade com o exposto declara-se, o Tribunal, regularmente constituído e materialmente competente para conhecer da presente acção, em sede declarativa.
9.4. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
9.5. O processo não enferma de nulidades.
9.6. Não se verificam quaisquer outras circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
III. Mérito
III.1. Matéria de facto
10. Factos provados
10.1.Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, prévias, e de mérito, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma Sociedade Anónima Gestora de Participações Sociais (“SGPS”), constituída ao abrigo do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de Dezembro, que lidera o Grupo A... e que encabeça as três áreas de negócios do Grupo: construção, concessões e imobiliária;
b) A Requerente tem como objeto social a detenção e gestão de participações sociais das empresas do Grupo, como forma indireta de exercício de atividades económicas, bem como a prestação de serviços técnicos de administração e gestão, comunicação e responsabilidade social, jurídica e fiscal às sociedades participadas (cf. código de acesso à certidão permanente ...-... -...);
c) A Requerente é assim uma sociedade gestora de participações sociais (SGPS), encabeçando um conjunto de empresas, que constituem um grupo económico, sendo a sociedade dominante de um grupo de empresas sujeito a tributação em IRC pelo regime especial de tributação dos grupos de sociedades – “RETGS” (cf. artigos 69º e segs. do CIRC);
d) Em cumprimento da Ordem de Serviço com o n.º OI2013..., foi promovida uma acção de inspecção ao grupo do qual a Requerente é a sociedade dominante, de âmbito parcial, por referência ao exercício de 2010, com o objectivo de verificar o cumprimento das obrigações contabilístico-fiscais inerentes à aplicação do regime especial de tributação do grupo de sociedades, e de reflectir no lucro tributável do grupo, nos termos da citada legislação, e no imposto a pagar pelo grupo, as correções efectuadas pela Administração Fiscal, em resultado de procedimentos de inspecção relativos a sociedades integrantes do grupo;
e) Como se explanou do Relatório de Inspecção resultante da OI 2013...:
«Correções efetuadas à sociedade dominante B... SGPS, SA
Em cumprimento da Ordem de Serviço número OI2012... realizou-se o procedimento de inspeção à sociedade B... SGPS, SA (NIPC...).
Na sequência da referida ação inspetiva, foi efetuada a correção ao resultado fiscal declarado, que se fixou no montante total de € 2.742.559,22, conforme se expõe:
Encargos financeiros não dedutíveis fiscalmente (n.º 2 do artigo 32.º do EBF)
O total da correção efetuada na empresa B... SGPS, SA, à matéria tributável ascende a € 2.742.559,22 e decorre de ter sido considerado pelo sujeito passivo, na determinação do resultado tributável, o valor total dos encargos financeiros suportados, no exercício de 2010, sem se atender à limitação quanto à dedutibilidade destes encargos prevista na parte final do número 2 do artigo 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) (anexo 1- 33 folhas).»
(cfr. fls. 6/14 do Relatório de Inspecção);
f) Concluiu-se naquele procedimento inspectivo que a Requerente não acresceu ao resultado líquido do exercício a totalidade dos encargos financeiros imputáveis a partes de capital, demonstrando-se em falta o acréscimo do valor de € 2.742.559, tendo sido efectuada a correspondente correcção de natureza meramente aritmética à matéria colectável (cfr. Relatório de Inspecção);
g) Que deu origem à “Demonstração de Acerto de Contas” (“Documento 2014...”), “Compensação 2014 ...”, no valor de € 630, 911,71, [valor resultante do diferencial entre os valores a reembolsar (de €1.085.317,19 e de €454.405,48), na alteração da derrama (de €3.058,34 para 39.808,63) e juros compensatórios no montante de €32.489, 56] - cfr. docs. 1 e 2 juntos aos autos e Relatório de Inspecção.
h) Em virtude do acréscimo promovido em correcção, resultou o valor a pagar pela Requerente de € 630.911,71, relativamente ao exercício de 2010, o que concretizou o acto de liquidação de IRC n.º 2014 ...;
i) No montante de partes de capital detido pela requerente durante o ano de 2010 incluem-se, entre outros, os valores das seguintes participações financeiras (que são, aliás, as partes de capital fundamentais detidas pela Requerente enquanto entidade dominante):
- B... X, SGPS, SA - €95.929.852,63;
- B...Y, SGPS, SA - €25.967.526,78;
- B... Z, SGPS, SA - €48.297.642,21;
- B...K, SGPS, SA - €99.393.056,60,
participações estas cujo valor global ascende a €269.588.078,22;
j) Sendo certo que o valor de cada uma dessas participações sociais corresponde exactamente ao capital social e prémio de emissão que constam dos instrumentos de constituição e que foi total e integralmente realizado em espécie. Ou seja, essas participações não foram adquiridas ao exterior ou a terceiros, assim como a sua aquisição não foi efectuada com recurso a endividamento (cfr. documentos juntos aos autos).
k) Na sequência da notificação do acto tributário de liquidação de IRC n.º 2014..., de 10 de Novembro, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral sub judice.
10.2. Fundamentação da matéria de facto
A factualidade provada teve por base, a posição assumida por cada uma das Partes e não contrariada pela parte oposta, a análise crítica dos documentos juntos aos autos pelos Requerentes (documentos 1 a 7, juntos com o Pedido de pronúncia arbitral), cuja autenticidade e veracidade não foram impugnados, bem como o conteúdo do processo instrutor.
10.3. Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.
III.2. Matéria de Direito
11. Como vimos, o presente Pedido tem como objecto a ilegalidade da liquidação n.º 2014..., de 10/11/2014, que deu origem à “Demonstração de Acerto de Contas” (“Documento 2014...”), “Compensação 2014...”, no valor de € 630, 911,71, referente ao IRC do exercício de 2010, emitida pela AT, na sequência e no âmbito de inspecção ao mencionado exercício do então denominado “Grupo B...“ (hoje, A...).
Para a Requerente, a referida correcção resulta, entre o mais, de “uma errónea e ilegal interpretação feita pela AT (veiculada pela Circular n.º 7/2004, de 30 de Março da Direcção de Serviços de IRC), quer quanto ao sentido e alcance do artigo 32º, nº 2, do Estatuto dos benefícios fiscais (“EBF”), quer quanto à metodologia de determinação do quantum de encargos financeiros a desconsiderar, através da definição de um método indireto de imputação dos encargos financeiros às partes de capital” (Conclusão 3ª do Pedido).
Assim sendo, a questão central a decidir nos presentes autos gira em torno do sentido e alcance do artigo 32.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, mais propriamente no que concerne a determinar:
a) Qual o momento em que os encargos financeiros devem ser considerados;
b) Qual a metodologia de determinação do quantum de encargos a considerar
11.a) Momento em que os encargos financeiros devem ser considerados
Argumenta a Requerente, opondo-se à tese defendida pela AT, que “os encargos financeiros devem ser considerados como custo ou gasto fiscal e apenas se e quando as mais-valias decorrentes da alienação de partes de capital forem realizadas e sejam, nos termos do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, desconsideradas”.
Como é bem conhecido, o artigo 17.º do CIRC estabelece uma relação de dependência, ainda que parcial, entre o resultado fiscal e o resultado apurado pela contabilidade. O referido preceito tem o seguinte conteúdo:
“Artigo 17.º
Determinação do lucro tributável
1 — O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.
2 — Para efeitos do disposto no número anterior, os excedentes líquidos das cooperativas consideram-se como resultado líquido do período.
3 — De modo a permitir o apuramento referido no n.º 1, a contabilidade deve:
a) Estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código;
b) Reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes.”
Por seu turno, o n.º 1, do artigo 18.º, do mesmo Código, sob a epígrafe “Periodização do lucro tributável” determina a aplicação do regime da periodização económica no processo de apuramento dos resultados tributáveis, dizendo que “Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.”
Ora, não definindo o CIRC em que consiste tal princípio, ele tem de se importar das normas contabilísticas, estabelecendo, neste plano, a Estrutura Conceptual do SNC, no respetivo § 22 que: “Regime de acréscimo (periodização económica) (parágrafo 22):
22 — A fim de satisfazerem os seus objectivos, as demonstrações financeiras são preparadas de acordo com o regime contabilístico do acréscimo (ou da periodização económica). Através deste regime, os efeitos das transacções e de outros acontecimentos são reconhecidos quando eles ocorram (e não quando caixa ou equivalentes de caixa sejam recebidos ou pagos) sendo registados contabilisticamente e relatados nas demonstrações financeiras dos períodos com os quais se relacionem.”
Deve, ainda, acrescentar-se, que a Norma contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) 10 “Custos de empréstimos obtidos”, dispõe no seu § 1 que (negrito nosso):
“1 — O objectivo desta Norma Contabilística e de Relato Financeiro é o de prescrever o tratamento dos custos de empréstimos obtidos. Esta Norma exige que, de uma forma geral, eles sejam imediatamente considerados como gastos do período, excepto quanto aos custos de empréstimos obtidos que sejam directamente atribuíveis à aquisição, construção ou produção de um activo que se qualifica, caso em que é permitida a sua capitalização.”
Aqui chegados, resulta claro que o regime geral do reconhecimento contabilístico dos encargos financeiros é o de serem considerados gastos ou perdas do período a que respeitam. E, conjugando ao artigos 17.º, 18.º e 23.º do CIRC - este último na parte em que se dispõe: “1 — Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente (…) c) De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de obrigações e outros títulos, prémios de reembolso e os resultantes da aplicação do método do juro efectivo aos instrumentos financeiros valorizados pelo custo amortizado;(…)” deles resultará que, por via de regra, o regime fiscal de tais encargos segue o princípio de imputação temporal segundo o qual serão dedutíveis no momento em que forem reconhecidos como gastos ou perdas contabilísticos.
Este princípio geral de imputação dos encargos financeiros aos exercícios a que respeitam somente poderá ser afastado, caso haja normas fiscais que, em situações concretas, disponham em sentido diverso.
Assim sendo, esta é a questão essencial que importa analisar, com vista a averiguar se a tese da Requerente encontra arrimo em disposições do SNC/CIRC.
Vejamos.
Como atrás se mencionou, a NCRF 10- Custo de empréstimos obtidos estabelece que “de uma forma geral, eles sejam imediatamente considerados como gastos do período, excepto quanto aos custos de empréstimos obtidos que sejam directamente atribuíveis à aquisição, construção ou produção de um activo que se qualifica, caso em que é permitida a sua capitalização.”
Ora, um activo que se qualifica, pode ter, num plano contabilístico, um regime diverso de imputação de encargos financeiros. A resposta para a definição de um activo que se qualifica encontra-se nos §§ 4 e 6 que a seguir se transcrevem:
4 — Os termos que se seguem são usados nesta Norma com os significados especificados:
-Activo que se qualifica: é um activo que leva necessariamente um período substancial de tempo para ficar pronto para o seu uso pretendido ou para venda.
-Custos de empréstimos obtidos: são os custos de juros e outros incorridos por uma entidade relativos aos pedidos de empréstimos de fundos
6 — Exemplos de activos que se qualificam são os inventários que exijam um período substancial de tempo para os pôr numa condição vendável, instalações industriais, instalações de geração de energia e propriedades de investimento. Outros investimentos e inventários que sejam de forma rotineira fabricados ou de qualquer forma produzidos em grandes quantidades numa base repetitiva durante um curto período de tempo não são activos que se qualificam. Os activos que estejam prontos para o seu uso pretendido ou venda quando adquiridos também não são activos que se qualificam.”
O CIRC acolhe expressamente, em certos casos, este regime especial de imputação temporal de encargos financeiros.
Vejamos o artigo 26.º (negrito nosso), cujo conteúdo é o seguinte:
“Artigo 26.º
Inventários
1 — Para efeitos da determinação do lucro tributável, os rendimentos e gastos dos inventários são os que resultam da aplicação de métodos que utilizem:
a) Custos de aquisição ou de produção;
b) Custos padrões apurados de acordo com técnicas contabilísticas adequadas;
c) Preços de venda deduzidos da margem normal de lucro;
d) Preços de venda dos produtos colhidos de activos biológicos no momento da colheita, deduzidos dos custos estimados no ponto de venda, excluindo os de transporte e outros necessários para colocar os produtos no mercado;
e) Valorimetrias especiais para os inventários tidos por básicos ou normais.
2 — No caso de os inventários requererem um período superior a um ano para atingirem a sua condição de uso ou venda, incluem-se no custo de aquisição ou de produção os custos de empréstimos obtidos que lhes sejam directamente atribuíveis de acordo com a normalização contabilística especificamente aplicável.”
Como se observa, ao legislador fiscal não são estranhos regimes de imputação específicos de encargos financeiros. O SNC consagra-os e o CIRC, em certas situações, acolhe-os.
Uma aplicação fiscal de regras contabilísticas especiais relativas à imputação dos chamados “gastos de juros” também se pode verificar no artigo 39.º do CIRC. Aí, permite-se que os designados “gastos de juros” resultantes do reconhecimento de uma provisão pelo seu valor atual ou descontado sejam, em períodos posteriores a esse desconto, considerados gasto fiscais.
Veja-se o artigo 39.º do CIRC (negrito do tribunal), com o seguinte conteúdo:
Artigo 39.º
Provisões fiscalmente dedutíveis
1 — Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes provisões:
a) As que se destinem a fazer face a obrigações e encargos derivados de processos judiciais em curso por factos que determinariam a inclusão daqueles entre os gastos do período de tributação;
b) As que se destinem a fazer face a encargos com garantias a clientes previstas em contratos de venda e de prestação de serviços;
c) As provisões técnicas constituídas obrigatoriamente, por força de normas emanadas pelo Instituto de Seguros de Portugal, de carácter genérico e abstracto, pelas empresas de seguros sujeitas à sua supervisão e pelas sucursais em Portugal de empresas seguradoras com sede em outro Estado membro da União Europeia;
d) As constituídas com o objetivo de fazer face aos encargos com a reparação dos danos de caráter ambiental dos locais afetos à exploração, sempre que tal seja obrigatório nos termos da legislação aplicável e após a cessação desta. (Redação da Lei n.º 82-D/2014, de 31/12)
(…)
3 — Quando a provisão for reconhecida pelo valor presente, os gastos resultantes do respectivo desconto ficam igualmente sujeitos a este regime.”
Em suma, verifica-se que o CIRC não é estranho a regimes especiais de imputação de gastos financeiros. Mas estando estes, por definição, fora do regime regra, esses regimes especiais ou particulares têm de estar expressamente previstos. A nosso ver, a Requerente só teria razão caso nas normas fiscais (maxime no artigo 32.º do EBF ou em outra norma com ele relacionada) se determinasse um regime de imputação fiscal dos encargos financeiros diferente do que vigora como regra geral.
Nesse sentido aponta igualmente o artigo 11.º da LGT e do artigo 9.º do Código Civil. O artigo 11.º da LGT dispõe, no seu n.º 1, que “Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.” Por sua vez, o artigo 9.º do Código Civil, dispõe que: “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, e que “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (cfr. n.ºs 2 e 3 respectivamente).
Em particular, o artigo 9.º do Código Civil, nos números 2 e 3, afasta a interpretação da Requerente, uma vez que a tese por si sufragada não tem na lei qualquer suporte legal. Além do mais, existindo no CIRC regras particulares de imputação de encargos financeiros, tal constitui razão suplementar para que, quanto a este ponto, se negue razão à Requerente.
Por fim, sublinha-se que o princípio de balanceamento entre custos e proveitos fiscais, no que redundaria afinal a tese da Requerente, foi claramente afastado pela doutrina e pela jurisprudência. Neste sentido, ficou consignado, no Processo 0779/12, pelo Supremo Tribunal Administrativo, o seguinte:
“I - No entendimento que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a adoptar para efeito de averiguar da indispensabilidade de um custo (cfr. art. 23.º do CIRC na redacção em vigor em 2001), a AT não pode sindicar a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa, sob pena de se intrometer na liberdade e autonomia de gestão da sociedade.
II - Assim, um custo será aceite fiscalmente caso, num juízo reportado ao momento em que foi efectuado, seja adequado à estrutura produtiva da empresa e à obtenção de lucros, ainda que se venha a revelar uma operação económica infrutífera ou economicamente ruinosa, e a AT apenas pode desconsiderar como custos fiscais os que não se inscrevem no âmbito da actividade do contribuinte e foram contraídos, não no interesse deste, mas para a prossecução de objectivos alheios (quando for de concluir, à face das regras da experiência comum que não tinha potencialidade para gerar proveitos).
III - Sendo o contribuinte uma sociedade que se dedica à construção de edifícios, não pode a AT desconsiderar os custos respeitantes à aquisição de dois prédios com fundamento na falta de demonstração da indispensabilidade, ainda que este negócio se venha a revelar economicamente não rentável em virtude da sua venda por um preço seis vezes inferior àquele por que foram adquiridos ter gerado um prejuízo.”
Na verdade, a jurisprudência vem reiterando, desta forma, que a questão da indispensabilidade que, até 2014, constou do artigo 23.º do CIRC, não implica qualquer nexo de causalidade obrigatório entre gastos e rendimentos. Basta que o gasto se subsuma na atividade ou escopo social do contribuinte e seja incorrido com um propósito de obtenção de rendimento ou de manter a fonte produtora, cumprindo-se, assim, o requisito da dita indispensabilidade.
Em tal contexto, seria absurdo exigir que os gastos das empresas tivessem de estar relacionados com negócios que se revelassem rentáveis. O risco económico faz-se sentir com particular intensidade. Assim, os gastos previamente incorridos não têm, em muitos casos, a esperada contribuição para a lucratividade das entidades que os suportaram. Tal constitui uma inevitabilidade económica, um fator de risco externo, que é incontrolável pela gestão das organizações empresariais.
O STA, no acórdão atrás mencionado, também dilucida a questão do momento a que se deve reportar o juízo sobre a adequação dos gastos.
Partindo do que se disse acerca do risco empresarial, é claro que o momento deve ser aquele em que se decide suportar esses gastos. A informação que serve de base às decisões que induzem gastos empresariais só poderá ser a que está disponível momento em que aquelas se tomam. O que acontece depois está, em grande medida, fora do controlo do decisor, e não pode ser considerado como elemento para aferir da justeza, razoabilidade ou acerto de decisão.
Ora, se na relação entre gastos e rendimentos se deve afastar o nexo de causalidade e de balanceamento temporal, também no caso concreto de que se ocupa este tribunal seria manifestamente inconsistente vir impor esse balanceamento ou equivalência entre gastos e rendimentos. A lei fiscal em lado algum o impõe, e a doutrina e a jurisprudência são consensuais no seu afastamento.
Em conclusão, atento o que vai exposto, não assiste nesta sede razão à Requerente. Passemos, então, à análise da segunda dimensão do problema posto.
11.b) Metodologia de determinação do quantum de encargos a considerar
Como ficou dito, defende a Requerente, em síntese, “que o legislador apenas pretende a desconsideração tributária dos encargos financeiros incorridos com os financiamentos efectivamente relacionados com a aquisição de partes de capital, e apenas estes”, (…) pelo que “A letra e teleologia da norma em apreço afastam a admissibilidade da utilização de um método de pro rata, havendo que respeitar a afectação real do destino dos empréstimos obtidos e somente após essa determinação é que seria admissível o uso de um método indirecto (…)”.
Por outro lado, para a Requerente cabia à AT o ónus de quantificar, com os meios que tinha ao seu dispor, o montante de gastos a desconsiderar, no âmbito do art. 32.º, n.º 2, do EBB, “designadamente através da identificação dos financiamentos que tinham sido especificamente utilizados para a aquisição de participações sociais e, bem assim, as respectivas participações adquiridas (e alienadas)” (cfr. 135.º do Pedido), o que não acontece no caso dos autos .
Para se chegar a uma decisão sobre este ponto em litígio, o tribunal considera de particular relevo dilucidar a questão de saber se a fórmula constante da Circular 7/2004 teria de ser aplicada (como argumenta a AT), ou se um método directo de imputação dos encargos financeiros seria (como argumenta a Requerente) passível de utilização e conduziria a um resultado mais sustentável no plano da legalidade fiscal.
Antes de abordar tal questão, é curial que se conheça o processo de cálculo (no contexto da utilização da forma da imputação constante da Circular) usado pela AT, que a seguir se sintetiza, a partir dos elementos do Relatório de Inspeção.
- a fórmula usada funda-se numa metodologia, expressa na Circular 7/2004, que consiste em “imputar os passivos remunerados das SGPS aos empréstimos remunerados concedidos às suas participadas e a outros investimentos geradores de juros”, e (…) “Afetar o remanescente aos restantes ativos, nomeadamente às participações sociais, proporcionalmente ao respetivo custo de aquisição”;
- a inspecção baseou-se num período de análise referido ao “mês” e utilizou como fonte de dados os balancetes mensais de 2010, fornecidos pelo sujeito passivo, bem como os balanços reportados ao mesmo período, que foram construídos a partir dos balancetes;
- deste modo, e de acordo com cálculos que se apresentam no anexo 5 do Relatório da inspecção, o montante de encargos financeiros apurados, e que se consideraram não dedutíveis, foi de 2.865.681, 94 euro.
Tendo a Requerente, em sede de direito de audição, contestado a aplicação da referida fórmula, dado que, na sua opinião, havendo uma relação directa entre determinados capitais próprios e a aquisição de partes sociais, seria de afastar a aplicação automática da fórmula, a AT respondeu como se segue:
- o sujeito passivo defenderia uma hipotética “isenção de base” na aplicação do método proposto pela Circular, em virtude de terem existido entradas de capital em espécie relacionadas com as partes de capital detidas pela requerente;
- não se poderia aceitar tal interpretação porque isso implicaria, no caso vertente e noutros, um apuramento de “encargos financeiros não dedutíveis” (…) “quase insignificante”, o que não estaria de acordo com a realidade factual em apreço;
- a noção de encargos financeiros relacionados com a aquisição de partes de capital não se esgotaria em encargos derivados de endividamento, mas também nos outros tipos de encargos financeiros previstos no artigo 23º, nº 1, do CIRC;
- o argumento segundo qual as partes de capital teriam uma génese anterior à entrada em vigor do regime vertido no artigo 32.º do EBF em nada afetaria a análise da AT, pois tal regime aplicar-se-ia às mais-valias realizadas após 1 de janeiro de 2003.
A argumentação da Requerida não merece acolhimento, como passamos a demonstrar, através de análise detalhada e cuidada.
Para tanto, admita-se que uma certa entidade ALFA inicia a sua atividade no ano N, e que, por via de entradas de capital em espécie, recebe elementos patrimoniais que configuram investimentos financeiros no valor de 1000. O seu balanço inicial será o seguinte:
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Balanço inicial de ALFA
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Investimentos financeiros- partes de capital
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1000
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Capital social
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1000
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Se, um ano depois, a entidade ALFA se endivida em 500 para comprar activos tangíveis (computadores, viaturas, etc.), julga-se claro que a fórmula da dita Circular não deve ser aplicada, pois é possível mostrar que o endividamento posterior não serviu para adquirir partes de capital.
Porém, admita-se que, não se conhecendo a génese temporal dos diversos meios de financiamento de uma outra entidade BETA, nem a sequência da aplicação desses fundos na aquisição de activos, esta entidade apresenta o seguinte balanço, num certo momento.
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Balanço de BETA
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Investimentos financeiros
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1200
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Capital social
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1000
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Ativos tangíveis
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100
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Empréstimos a participadas
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850
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Empréstimos obtidos
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1200
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Disponibilidades/meios monetários
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50
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TOTAL
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2200
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TOTAL
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2200
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Aqui faria sentido, esgotadas as hipóteses de se imputar capital próprio diretamente à aquisição de partes de capital em participadas, aplicar a fórmula ínsita na Circular.
Mas, julga-se claro que, neste último caso, deve a AT mostrar que não existiria, na situação concreta, maneira mais justa, mais economicamente racional ou mais conforme à afectação específica dos encargos financeiros às partes de capital, que não seja a mencionada fórmula. Isto é, a fórmula constitui um expediente, compreensível, útil e por vezes apropriado de aplicar quantitativamente a norma do artigo 32.º do EBF. Mas não será sempre assim, pois nos casos em que se prove que as partes de capital têm um financiamento específico, por capital próprio, a AT deve, antes de aplicar a fórmula, interrogar-se se uma imputação directa será a via mais justa de actuação.
Estamos agora em condições de enfrentar a resposta para o problema que vem posto.
Com efeito, julga-se que o caso dos autos de subsume a esta última situação, na qual a AT, antes de aplicar a fórmula, deveria ter ponderado se tal constituía a solução correcta, atendendo ao sentido e alcance do artigo 32.º do EBF.
Esta orientação é corroborada, aliás, por jurisprudência do TCAN (Processo 00946/09.0BEPRT, 15 de Janeiro de 2015), cujo teor se passa a transcrever por a situação ser transponível para o caso dos autos.
“Como determina o art. 74º/1 da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque. Esta é a redação vigente do n.º 1 que também era a redação inicial. O preceito foi alterado pela Lei n.º 55-B/2004 de 30/12 para o seguinte teor: O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque, excepto nas situações de não sujeição, em que recai sempre sobre os contribuintes. Porém, a Lei n.º 50/2005, de 30 de Agosto repôs a redação inicial, que se manteve até ao presente.
Sabendo-se que o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque, o que é que isso significa? Em que é que essa regra se traduz em termos práticos? Muito simplesmente, como tem sido pacificamente entendido, significa que na «falta de regras especiais, ou seja, salvo presunção legalmente consagrada, é assim, à administração fiscal que cabe demonstrar os pressupostos de facto da sua actuação, designadamente a existência dos factos tributários em que assenta a liquidação do tributo que não tenham sido declarados pelo contribuinte» (António Lima Guerreiro, "LGT Anotada", Rei dos Livros, 2001, pp. 329).
Ou, dito de outro modo, Cabe à Administração Tributária o dever de demonstrar os pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável), impendendo, por seu turno, sobre os administrados apresentar prova bastante da ilegitimidade do acto, quando se mostrem verificados esses pressupostos. (ac. do TCAN n.º 00624/05.0BEPRT de 12-01-2012, Relator: Catarina Almeida e Sousa)
Esta norma embora integre o conjunto de regras atinentes ao procedimento também se aplica ao processo judicial, não sendo aliás, o seu conteúdo distinto do critério geral da repartição do ónus da prova previsto no art. 342º do Código Civil.
De modo que pretendendo a ATA desconsiderar os custos contabilizados pela recorrida com fundamento na violação do art.º 31º/2 do EBF deveria demonstrar os pressupostos do seu direito à tributação, ou seja, deveria provar que esses custos não eram legalmente dedutíveis quer porque se realizaram menos valias com a transmissão onerosa de partes de capital detidas há menos de um ano, quer porque foram suportados e contabilizados encargos financeiros com a sua aquisição.
Mas em vez dessa prova, a ATA partiu para a desconsideração dos custos contabilizados pela recorrida (sociedade dominante) no montante de € 3.237.838,62 dando por adquirido que esta verba era relativa a encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital e que foram indevidamente considerados como custo fiscal. Com o mesmo fundamento se desconsideraram € 56.081,74 referentes à dominada S... Management SGPS,SA, o que acarretou correcções ao lucro tributável do grupo no montante de € 3.293.920,36 pelo que os resultados fiscais constantes na declaração modelo 22 do grupo passaram de 14.017.394,34 € declarado para 17.311.314,70 corrigido.
A ATA deu por adquirido que um certo montante dos encargos financeiros contabilizados foram suportados com a aquisição de partes de capital, mas nada demonstrou nesse sentido. Não identificou os financiamentos usados para o efeito, nem as partes de capital que teriam sido adquiridas com eles, falhando por completo o cumprimento do seu encargo probatório.
Podemos dizer que a ATA falhou nos pressupostos da tributação e no método quantificador usado.
Falhou nos pressupostos da tributação porque não logrou demonstrar os requisitos factuais legais da sua actuação, como acima se deixou referido.
E falhou no método quantificador porque se desvinculou da necessidade de apurar se houve alienação de participações sociais e qual o montante do financiamento usado na sua aquisição.
Mas só perante estes dois requisitos – alienação de participações e respectivo financiamento usado na sua aquisição – poderia a ATA ter desconsiderado os custos de financiamento.
Desconhecendo ambos, a ATA enveredou pela correcção e tributação lançando mão de três (pelo menos) presunções: uma, de que foram alienadas participações sociais; outra, que foram contabilizados custos com o financiamento para a aquisição dessas participações e a terceira constituída pelas operações de cálculo: (1) imputou os passivos remunerados da SGPS aos empréstimos remunerados por esta concedidos às empresas participadas e aos outros investimentos geradores de juros e (2) afectou o remanescente aos restantes activos, nomeadamente participações sociais, proporcionalmente ao respectivo custo de aquisição (3) após obter o valor dos passivos remunerados imputáveis aos restantes activos não remunerados, apurou de forma proporcional o valor dos passivos remunerados imputáveis às partes de capital.
Com este conjunto de presunções, a ATA concluiu que o contribuinte suportou no exercício, a título de encargos financeiros com a aquisição de participações, a quantia de € 3.237.838,62.
O facto de na sua metodologia ter usado os critérios preconizados na circular n.º 7/2004, de 30 de Março, em especial seus pontos n.ºs 7 e 8 não salva a legalidade da operação, pois os critérios e pressupostos de imputação dos passivos remunerados das SGPS ultrapassam manifestamente o conteúdo do art. 31º/2 do EBF criando presunções e apuramentos proporcionais que o legislador manifestamente não assumiu nem consentiu.
Como salienta Júlio Tormenta (in As Sociedades Gestoras de Participações Sociais como Instrumento de Planeamento Fiscal e os Seus Limites, Coimbra Editora, pp. 145) «Uma questão que se levanta a propósito do estabelecido no art. 32.º do EBF nos seus n.º 2 e 3 é saber como apurar ou quais os encargos financeiros directamente relacionados com aquisição de participações sociais (na sua maioria constituídos pelos juros correntes de serviço da dívida relativos a um mútuo ou outra forma de crédito utilizado pela SGPS para aquisição de participações sociais) daqueles que são usados pela SGPS para no prosseguimento do seu objecto que não tenha a ver com aquisição de participações.
A Administração tributária vem defendendo que essa afectação deve realizar-se no respeito pelo “princípio do equilíbrio financeiro” (cf. o Ofício de I de Setembro de 2003 do Director-Geral dos Serviços do IRC), o qual aconselha a que se financie um activo com capitais de maturidade compatível com a vida económica desse activo e capacidade de geração de meios monetários.
Para a Administração tributária os encargos financeiros deverão ser afectos com base numa fórmula que atenda ao seguinte: os passivos remunerados das SGPS deverão ser imputados, em primeiro lugar, aos empréstimos remunerados por estes concedidos às empresas participadas e aos outros investimentos geradores de juros, afectando-se directa e automaticamente o remanescente aos restantes activos, nomeadamente participações sociais, proporcionalmente ao respectivo custo de aquisição.
Em Portugal vigora o princípio da legalidade tendo como corolário segundo a doutrina clássica o princípio da tipicidade fechada sendo a matéria de incidência tributária de reserva relativa de Lei da Assembleia da República. No caso presente a lei não estabelece critérios de afectação de recursos financeiros à aquisição de participações sociais e não pode a administração tributária, por via administrativa criar normas de incidência (através do chamado” direito circulatório”), sob pena de se estar perante uma inconstitucionalidade material, uma vez que tais normas devem emanar de lei (da Assembleia da República) ou Decreto-Lei (do Governo) devidamente autorizado.
Os contribuintes não estão obrigados a seguir os procedimentos vertidos na Circular 7/2004 de 30.3.2004 (doravante designada por circular 7/2004) pois aos mesmos apenas estão vinculados os funcionários tributários perante a sua tutela e nada mais.
Não podemos concordar com o enunciado na Circular 7/2004 no seu ponto 7 onde se refere “dada a extrema dificuldade de utilização, nesta matéria, de um método de afectação directa ou específica e à possibilidade de manipulação que o mesmo permitiria”: devido ao desenvolvimento e sofisticação dos sistemas de informação de gestão disponíveis no mercado, deveria privilegiar-se o método de afectação directa e só na impossibilidade de utilização do mesmo; é que se avançaria como método alternativo o preconizado na Circular 7/2004»
Se o legislador não instituiu qualquer critério que permita distinguir nos custos financeiros totais das SGPS quais os que se devem à compra de participações sociais e quais os que foram usados para outros fins, a ATA só poderia mover-se no âmbito de um método que respeitasse a afectação directa ou específica, porque só esse seria compatível com o princípio da legalidade e da imparcialidade a que está sujeita (art. 55º LGT) e que resulta da redação do art. 31º/2 EBF ao excluir da formação do lucro tributável os encargos financeiros suportados com a aquisição das participações alienadas.
Admitindo porém que não é possível a partir da escrita da empresa saber qual o fim para que foram obtidos os financiamentos, isso poderá colocar em causa o controlo legal por parte da ATA. Mas mesmo que assim seja, não pode ser a ATA a completar a norma através de uma circular que institua um regime de apuramento proporcional, indirecto ou presuntivo, criando condições mais gravosas para o contribuinte do que as previstas na lei, desrespeitando o quadro normativo vigente. Com tal interpretação, a circular 7/2004 propõe-se completar a norma do art. 31º/2 EBF criando um modo de cálculo diferente do da imputação directa e específica dos passivos remunerados das SGPS que o legislador não contemplou e que ultrapassa drasticamente a mera interpretação da norma.
Como se refere no ac. deste TCAN n.º 00997/12.8BEPRT de 14-03-2013 (Relator: Pedro Marchão Marques) VIII – Atento o primado da lei sobre as orientações administrativas (princípio da legalidade), as regras estatuídas nas circulares da Administração Tributária, têm que respeitar o quadro normativo legislativo de referência – normas jurídicas primárias –, que lhe é prevalente. E quando aquelas estabelecem um sentido normativo que não tem acolhimento na norma legislativa que pretensamente é interpretada, estão afinal a derrogá-la e a criar norma jurídica inovatória inválida.
Assim, quer por ter falhado o seu encargo probatório, quer por ter ido além do que o art. 31º/2 do EBF exigia, não está em condições de sustentar a legalidade da liquidação impugnada. E nem tão pouco pode desviar para a recorrida o ónus de provar que os encargos financeiros não resultam da aquisição de partes de capital, porque em parte alguma da lei se prevê – para este caso - a inversão do ónus da prova (art. 344º/1 do Código Civil). Acrescente-se ainda que não tendo a ATA colocado em causa a fiabilidade da contabilidade, a declaração fiscal da recorrida beneficia da presunção de veracidade e boa fé nos termos do art. 75.º da LGT, pelo que também por força deste estatuto a ATA estava onerada com a ilisão daquela presunção”.
Aplicando a jurisprudência acabada de expor ao caso dos autos, verifica-se, como é visível nos anexos 1 a 5 do relatório de inspeção, (em particular no quadro 3 do anexo 5 do dito Relatório) que a AT aplica a fórmula da Circular n.º 7/2004 como se, após retirar os empréstimos a participadas ao montante de todos os passivos remunerados, o valor sobrante de dívida financeira estivesse afecto aos activos, por forma indirecta. Ou seja, sem cuidar de saber se haveria partes de capital cuja aquisição tivesse sido sustentada em capital próprio.
Contra esta orientação, a Requerente argumenta (e bem, no entender do tribunal), nos artigos 122 e segs. do Pedido arbitral, que: “O montante de partes de capital detido pela Requerente durante o ano de 2010 considerado pela AT no método quantitativo de cálculo dos encargos financeiros que utiliza (mapa que constitui o anexo 5) ao relatório individual é, ao longo dos diferentes meses do ano, o seguinte: - Janeiro a março de 2010: €275.352.449,70 - Abril: €275.613.892,40 - Maio a novembro: €275.588.952,51 - Dezembro: €277.719.140,71
Ou seja, o valor das partes de capital detidas pela Requerente sofre alterações muito ligeiras ao longo do ano.
Ora, nestes montantes incluem-se, entre outros, os valores das seguintes participações financeiras (que são, aliás, as partes de capital fundamentais detidas pela Requerente enquanto entidade dominante): - B... X, SGPS, SA - €95.929.852,63; -B... Y, SGPS, SA - €25.967.526,78; - B... Z, SGPS, SA - €48.297.642,21; - B... K, SGPS, SA - €99.393.056,60, participações estas cujo valor global ascende a €269.588.078,22.
As aludidas quatro participações integram o Grupo Requerente desde o acto constitutivo de cada uma delas, todos outorgados notarialmente em 30 de Dezembro de 2002 (cf. Documentos 4 a 7 adiante juntos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Sendo certo que o valor de cada uma dessas participações sociais corresponde exactamente ao capital social e prémio de emissão que constam dos instrumentos de constituição e que foi total e integralmente realizado em espécie.
Ou seja, essas participações não foram adquiridas ao exterior ou a terceiros, assim como a sua aquisição não foi efectuada com recurso a endividamento.”
A prova documental junta aos autos, mostra que assim aconteceu. Ou seja, as partes de capital em causa não foram adquiridas com recurso a endividamento, pelo que, em face do disposto na lei, se julga ilegal a correcção efetuada pela AT, já que não atendeu à situação concreta, na qual era visível uma ausência de ligação entre partes de capital e endividamento, tal como essa ligação surge na Circular.
Esta devia pois ter sido afastada, e usar-se um método de imputação com uma lógica económico-financeira mais sustentável, justa e adaptada ao texto legal.
A interpretação ora sufragada para o sentido e alcance do artigo 32.º, nº 2, do EBF é a que resulta, além do mais, ao contrário da tese da Requerida, conforme aos princípios constitucionais da igualdade tributária, da capacidade contributiva, e da tributação do rendimento real.
***
Deste modo, atento o que ficou exposto, procede o vício de violação de lei alegado pela Requerente, relativamente à forma como foram calculados os encargos financeiros relevantes no contexto do artigo 32.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente Pedido e, nesta sequência, anulada a liquidação n.º 2014 ..., de 10/11/2014, que deu origem à demonstração de acerto de contas n.º 2014 ..., compensação 2014 ..., no valor de € 630.911,71, referente ao IRC do exercício de 2010.
12. Questões prejudicadas
Procedendo o pedido de pronúncia arbitral com base no vício de ilegalidade por erro de direito quanto ao sentido e alcance do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, que assegura efectiva e estável tutela dos direitos da Requerente, fica prejudicado o conhecimento dos outros vícios que são imputados ao acto tributário em causa.
Na verdade, decorre do estabelecimento de uma ordem de conhecimento de vícios, no artigo 124.º do CPPT, que julgado procedente um vício que obste à renovação do acto impugnado, não há necessidade de se apreciar os outros que lhe sejam imputados. Se fosse sempre necessário conhecer de todos os vícios seria indiferente a ordem pela qual o seu conhecimento se fizesse.
IV. Decisão
Temos em que acorda este Tribunal Arbitral em:
· Julgar improcedente a excepção dilatória de incompetência material absoluta do Tribunal para apreciação do presente Pedido;
· Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação n.º 2014 ..., de 10/11/2010, que deu origem à demonstração de acerto de contas n.º 2014 ..., compensação 2014 ..., no valor de € 630.911,71, referente ao IRC do exercício de 2010, emitida pela Direcção de Serviços de Cobrança da Autoridade Tributária e Aduaneira em 28/11/2014 e, nesta sequência, anular a liquidação impugnada, com todas as legais consequências.
V. Valor do Processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2, do C.P.C., do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), do C.P.P.T., e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 630.911,71.
VI. Custas
Custas, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, no valor de €9.486,00, nos termos do previsto nos artigos 22.º, n.º 4, e 12.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem, no artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma.
Lisboa, 5 de Janeiro de 2016.
Os árbitros,
Fernanda Maçãs
João Sérgio Ribeiro
António Martins