Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 304/2015-T
Data da decisão: 2016-01-14  IRS  
Valor do pedido: € 3.606,40
Tema: IRS - domicílio fiscal, união de facto, juros indemnizatórios
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DECISÃO ARBITRAL[1]

 

 

1.      Relatório

 

 

A - Geral

 

 

1.1.            A..., contribuinte fiscal n.º ... e B..., contribuinte fiscal n.º..., residentes no Porto, na Rua..., n.º..., 1.º Frente (de ora em diante designados “Requerentes”), apresentaram, no dia 13.05.2015, um pedido de constituição de tribunal arbitral singular em matéria tributária, que foi aceite, visando a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ... 14/... e consequente anulação do acto tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (de ora em diante “IRS”) n.º 2014..., de 01.03.2014, relativo ao ano de 2012, notificada ao Requerente A... pelo documento n.º 2014..., que constitui o documento n.º 2 junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral.

 

1.2.            Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro Nuno Pombo, não tendo as partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essa designação.

 

1.3.            Por despacho de 29.05.2015, a Administração Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada “Requerida”) procedeu à designação das Senhoras Dra .... e Dra. ... para intervirem no presente processo arbitral, em nome e representação da Requerida.

 

1.4.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi constituído a 27.07.2015.

 

1.5.            No dia 28.07.2015 foi notificado o dirigente máximo do serviço da Requerida para, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional.

 

1.6.            No dia 30.09.2015 a Requerida apresentou a sua resposta.

 

 

B – Posição dos Requerentes

 

 

1.7.            Os Requerentes vivem em situação análoga à dos cônjuges desde o ano de 2009, partilhando desde então mesa, habitação e leito, na residência sita na Rua..., n.º..., 1.º Frente, Porto.

 

1.8.            Os Requerentes, relativamente aos seus rendimentos de 2012, pretenderam ser tributados nos termos do disposto no art.º 14.º do CIRS, com o regime aplicável aos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, o que não lhes foi permitido pelo Chefe de Finanças do Serviço de Finanças do Porto ... . 

 

1.9.            A Requerente solicitou em 2011 a emissão do cartão do cidadão, indicando como morada de residência habitual a Rua ..., n.º ..., 1.º Frente, Porto.

 

1.10.        Por razões que os Requerentes desconhecem, a declarada morada de residência habitual da Requerente não foi assumida pelos serviços da autoridade tributária e aduaneira.

 

1.11.        Tendo tomado conhecimento, apenas em Janeiro de 2013, de que os serviços da Requerida não haviam assumido, como sua residência habitual, a declarada aquando do pedido de emissão de cartão do cidadão, a Requerente, no dia 26.07.2013, solicitou ao Departamento de Identificação Civil do Instituto dos Registos e Notariado a rectificação da morada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, o que foi feito no dia 31.07.2013.

 

1.12.         Os Requerentes, em tempo útil, entregaram à Requerida suficientes meios de prova para demonstrar a situação de união de facto existente entre eles, desde 2009, que sempre foram desconsiderados.

 

1.13.        Tal incompreensível desconsideração impediu que fosse reconhecida aos Requerentes, para efeitos fiscais, a situação de união de facto.

 

1.14.        Vivendo os Requerentes em condições análogas às dos cônjuges desde 2009, na mesma residência habitual, observa-se a identidade de domicílio fiscal prevista no n.º 2 do artigo 14.º do CIRS.

 

1.15.        O Requerente, no dia 30.04.2014, procedeu ao pagamento do imposto cuja liquidação considera ilegal, pelo que entende ter direito a ser reembolsado do valor indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, calculados à taxa legal.

 

 

C – Posição da Requerida

 

 

1.16.        A Requerida, na sua resposta, começa por afirmar que o tribunal arbitral não tem competência para determinar a residência dos Requerentes, nem à data dos factos, nem à presente data, pelo que entende estarem prejudicadas a prova testemunhal indicada e a apreciação do que se refere especificamente à residência dos Requerentes.

 

1.17.        A Requerida entende que à data dos factos, a Requerente tinha a sua residência fiscal na Rua ... n.º..., ... e o Requerente na Rua ..., n.º..., 1.º Frente, Porto.

 

1.18.        A Requerente, em violação do disposto no n.º 3 do artigo 19.º da Lei Geral Tributária (LGT), não comunicou a alteração da sua residência fiscal à Requerida, pelo que essa alteração não lhe pode ser oponível.

 

1.19.        Sustenta a Requerida que não assiste aos Requerentes, por força da lei, a possibilidade de beneficiarem do regime tributação previsto na Lei n.º 7/2001 aplicável aos unidos de facto, por não estar reunido um dos requisitos legais: a identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante o período exigido.

 

1.20.        Não basta o preenchimento e respectiva prova dos requisitos da união de facto, sendo necessária a identidade de domicílio fiscal durante os dois anos anteriores e no período de tributação.

 

1.21.         Aliás, os requisitos legais têm que se encontrar reunidos previamente ao preenchimento da declaração de rendimentos, não sendo razoável admitir que eles o possam ser a posteriori e, ainda por cima, a cargo da própria Administração Tributária e Aduaneira.

 

1.22.        Certo é que a Requerente requereu novo cartão de cidadão no dia 18.10.2011 e só no dia 26.07.2013 formulou o pedido de rectificação de morada.

 

1.23.        Portanto, à data dos factos, os Requerentes não tinham identidade de residência fiscal, pelo que não podia a Requerida ter procedido de forma diversa, falecendo a hipótese de se estar perante uma situação originada em erro dos serviços, nos termos do disposto no art.º 43.º da LGT.

 

 

D – Conclusão do Relatório

 

 

1.24.        Por despacho de 19.12.2015, o tribunal arbitral dispensou a reunião prevista no art.º 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), uma vez que era seu entendimento terem as partes carreado para o processo todos os elementos de facto necessários e suficientes para a prolação da decisão, decisão a que as Partes não se opuseram.

 

1.25.        O tribunal arbitral é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT, uma vez que o que está a ser apreciada é a eventual ilegalidade dum acto de liquidação de imposto e não, em sentido próprio, a determinação do domicílio fiscal dos Requerentes.

 

1.26.        As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

1.27.        A coligação de autores e a cumulação de pedidos efectuada no presente pedido de pronúncia arbitral, em homenagem ao princípio da economia processual, justificam-se porquanto o art.º 3.º do RJAT, ao admitir expressamente a possibilidade de coligação de autores e de “cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos”, acomoda, sem abuso hermenêutico, a apreciação de um pedido que decorre, em termos necessários, do juízo que o tribunal arbitral sufrague quanto à validade da liquidação posta em crise.

 

1.28.        O processo não padece de qualquer nulidade nem foram suscitadas pelas partes quaisquer excepções que obstem à apreciação do mérito da causa, pelo que se mostram reunidas as condições para a prolação da decisão arbitral.

 

 

2.      Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

 

Têm-se por provados os seguintes factos com interesse para os presentes autos:

 

2.1.1.      O Requerente, desde, pelo menos, 2007, reside na Rua..., n.º..., 1.º Frente, Porto (Anexo 3 ao doc. n.º 3, junto com o pedido de pronúncia arbitral)

 

2.1.2.      A Requerente, desde, pelo menos, 2010, reside na Rua..., n.º..., 1.º Frente, Porto (Anexos 5 e 6 ao doc. n.º 3, junto com o pedido de pronúncia arbitral). 

 

2.1.3.      Os Requerentes, desde, pelo menos, 2010, vivem em condições análogas às dos cônjuges (convicção do tribunal assente no transmitido pelas Partes no âmbito do processo administrativo junto pela Requerida com a sua resposta).

 

2.1.4.      A 18.10.2011, a Requerente solicitou a emissão do seu cartão do cidadão, tendo referido como sua morada a Rua ..., n.º..., 1.º Frente, Porto (Anexo 7 ao doc. n.º 3, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.5.      Nos serviços da Requerida, mau grado a informação apresentada pela Requerente aquando do pedido de emissão do seu cartão do cidadão a 18.10.2011, não foi actualizada a sua morada (consenso das Partes).

 

2.1.6.      No dia 26.07.2013, a Requerente solicitou junto dos serviços do cartão do cidadão a rectificação da morada que constava como sendo a sua nos registos da Requerida (Anexo 8 ao doc. n.º 3, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.7.      A Requerida, no dia 31.07.2013, comunicou que procedera à rectificação da morada que constava nos seus registos como sendo a da Requerente (Anexo 9 ao doc. n.º 3, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.8.      A Requerida recusou a aceitação da declaração de rendimentos, em IRS referente ao ano de 2012, submetida pelos Requerentes ao abrigo do regime de tributação aplicável aos unidos de facto (consenso das Partes).

 

2.1.9.      Na sequência da não aceitação da declaração de rendimentos a que se refere o 2.1.8., a Requerida notificou o Requerente do acto de liquidação n.º 2014..., de 01.03.2014 (doc. n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.10.  No dia 28.03.2014 os Requerentes reclamaram graciosamente do acto de liquidação referido no número anterior, tendo sido indeferida a sua pretensão no dia 17.12.2014 (doc. de págs. 38 e 42 do processo administrativo que a Requerida juntou com a sua resposta).

 

2.1.11.  O Requerente, no dia 30.04.2014 procedeu ao pagamento do imposto liquidado (doc. n.º 5, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.2. Factos não provados

 

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

 

3.      Matéria de direito

 

3.1. Questões a decidir

 

Resulta do que acima se deixou dito que as questões a apreciar são, no fundo:

 

a)      A de saber se os Requerentes, em 2012, podem ser tributados em sede de IRS pelo regime de tributação aplicável aos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens;

 

b)      A de esclarecer se, caso se julgue procedente o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação contestada, o Requerente, no âmbito do presente processo arbitral, poderá obter a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios relativamente à quantia por si entregue para satisfação do imposto por esta ilegalmente exigido.

 

3.2. O regime da união de facto no Código do IRS

 

À data a que se reportam os factos, sob a epígrafe “Uniões de facto”, dispunha o art.º 14.º do CIRS o seguinte:

 

1 - As pessoas que vivendo em união de facto preencham os pressupostos constantes da lei respectiva, podem optar pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.

2 - A aplicação do regime a que se refere o número anterior depende da identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante o período exigido pela lei para verificação dos pressupostos da união de facto e durante o período de tributação, bem como da assinatura, por ambos, da respectiva declaração de rendimentos.

3 - No caso de exercício da opção prevista no n.º 1, é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 13.º, sendo ambos os unidos de facto responsáveis pelo cumprimento das obrigações tributárias.

 

O exercício do direito consagrado nesta disposição dependia fundamentalmente do preenchimento de três requisitos:

a)      Viverem os sujeitos passivos em união de facto, nos exactos termos previstos na respectiva lei, ou seja, em suma, viverem em situação análoga à dos cônjuges há mais de dois anos;

b)      Terem os sujeitos passivos o mesmo domicílio fiscal durante o período exigido pela lei para a verificação dos pressupostos da união de facto e durante o período de tributação em causa;

c)      Optarem os sujeitos passivos pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, assinando ambos a respectiva declaração de rendimentos.

 

Note-se que a Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, estabelece que a existência de uma união de facto entre duas pessoas se pode provar por qualquer meio legalmente admissível (art.º 2.º-A), dispondo ainda que as pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na dita lei têm direito à aplicação do regime do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares nas mesmas condições aplicáveis aos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens (art.3.º).  

 

Recorde-se que está em causa um acto de liquidação de IRS, cujo facto tributário é complexo e de formação sucessiva, referente a 2012, relevando para este efeito o último dia do ano. Assim, entende este tribunal arbitral que tanto no período de tributação em causa (2012), como nos dois anos anteriores (2010 e 2011), os Requerentes viviam em condições análogas às dos cônjuges. Assim, o problema parece cingir-se à identidade do respectivo domicílio fiscal durante o período exigido pela lei para a verificação dos pressupostos da união de facto e durante o período de tributação em causa.

 

3.2.1. O domicílio fiscal e a obrigatoriedade da sua comunicação

    

Esclarece a alínea a) do n.º 1 do art.º 19.º da LGT que, salvo disposição em contrário, o domicílio fiscal das pessoas singulares corresponde ao local da sua residência habitual.

 

O legislador não define o conceito de “residência habitual”. Ensinam os dicionaristas que “residência” é o local onde alguém fixa a sua habitação durante determinado período. É um conceito que mais do que uma mera presença, sugere por parte do habitante uma certa permanência intencional. Não espanta por isso que o adjectivo escolhido pelo legislador para qualificar essa residência seja “habitual”, o mesmo é dizer, rotineiro, costumeiro. Contudo, como parece também resultar com meridiana clareza, o período determinante para esse apuramento não coincidirá com a eternidade. Assim, “residência habitual” não será sinónimo de “residência vitalícia”.

 

Ora, porque justamente o conceito de residência habitual é volátil, susceptível de mudança, impôs o legislador, no n.º 3 do art.º 19.º da LGT, a obrigação dos sujeitos passivos comunicarem o respectivo domicílio à administração tributária. Como é evidente, ninguém está em melhores condições de declarar o domicílio de alguém do que o próprio. É aliás uma decorrência natural do princípio da boa fé por que devem pautar-se as relações entre a administração fiscal e os contribuintes impor a estes o dever de comunicarem o seu domicílio e àquela o de se ater ao que lhe for comunicado.

 

Mas o preceito que vimos de citar é ainda mais específico. Não basta ao sujeito passivo comunicar o domicílio. É preciso que essa comunicação se faça “nos termos da lei”. Entende-se também este cuidado. A própria ordem jurídica escolhe os meios pelos quais as declarações dos contribuintes perante a administração tributária hão-de produzir os seus efeitos. A segurança jurídica exige que se use de rigor em comunicações desta natureza, atentas as suas consequências. Porque na verdade, delas depende o normal desenvolvimento da relação jurídica que se estabelece entre o contribuinte e o Estado, enquanto credor tributário.

 

3.2.2. As consequências da não comunicação da alteração de domicílio fiscal – a ineficácia e a inoponibilidade

    

A consequência, para o sujeito passivo, da não comunicação, nos termos da lei, da mudança do seu domicílio, é a inoponibilidade dessa alteração à administração tributária. Não seria razoável considerar eficaz, para efeitos tributários, perante a administração, uma mudança de domicílio que esta desconhece ou não tem obrigação de conhecer. Daí que o n.º 4 do art.º 19.º da LGT comine de ineficaz a mudança de domicílio enquanto ela não for comunicada (nos termos da lei, subentende-se) à administração tributária.

 

O que se deixa dito, no entender deste tribunal arbitral, não corresponde a dizer que domicílio fiscal é o domicílio fiscal declarado pelos sujeitos passivos ou aquele que consta do cadastro dos serviços da autoridade tributária e aduaneira. Se fosse, se o único relevo fosse conferido, em termos substanciais, à declaração dos contribuintes, não faria sentido o disposto no 9 do art.º 19.º da LGT, que permite à administração tributária rectificar oficiosamente o domicílio fiscal dos sujeitos passivos[2]. Esta rectificação oficiosa, note-se, permite justamente retirar aos contribuintes a possibilidade de disporem do conceito de domicílio fiscal e até do de residência habitual.

 

Dizer, como se disse, que não é razoável esperar que a administração tributária e aduaneira conheça a alteração de domicílio de um sujeito passivo que lhe não foi comunicada nos termos da lei, não equivale a sustentar que a administração tributária e aduaneira, como se procurou demostrar, está impedida de conhecer essa alteração quando ela é levada ao seu conhecimento pelos meios em direito permitidos.

 

Não há dúvidas quanto à obrigatoriedade de ser comunicada à autoridade tributária e aduaneira a alteração de domicílio fiscal por parte de um contribuinte. Contudo, as consequências desse incumprimento são, repete-se, a ineficácia e a inoponibilidade dessa alteração aos serviços tributários.

 

Como bem refere o Senhor Provedor de Justiça na sua Recomendação n.º 1/A/2013, de 11 de Janeiro, domicílio fiscal é um conceito “do qual decorrem efeitos jurídico-tributários meramente formais”, concluindo que “assente doutrinária e jurisprudencialmente que a comunicação de qualquer alteração do domicílio fiscal se reporta exclusivamente ao âmbito formal da relação jurídico-tributária, impor-se-á a conclusão de que não poderá a falta daquela comunicação ter efeitos materiais sobre a situação dos sujeitos passivos, como sejam os de impedir a aplicação de um determinado regime legal de tributação”[3].

 

Entende a Requerida que “a ineficácia da alteração [de domicílio] para efeitos fiscais” significa que “não lhe assiste, por força da lei, a possibilidade de beneficiar de regimes de tributação previsto na Lei n.º Lei 7/2001 dos unidos de facto”. Fundamenta a Requerida este entendimento na obrigação que os Requerentes tinham “de alterar o seu domicílio fiscal para que o mesmo fosse oponível à AT”.

 

Ora, o tribunal arbitral não acompanha este juízo, pelas razões já apontadas, não perfilhando a tese de que “para poder beneficiar do regime fiscal dos unidos de facto a Requerente deveria ter procedido à comunicação da alteração do seu domicílio fiscal no prazo legalmente estabelecido”.

 

A ineficácia e a inoponibilidade associadas à não apresentação de uma declaração de alteração de domicílio não podem afectar o cerne substantivo do acesso a um regime de tributação que o legislador pretendeu, mal ou bem, pouco importa, colocar à disposição dos contribuintes que se achem na situação descrita, em termos gerais e abstractos, na previsão normativa.

 

Parece claro que o legislador quis atribuir às pessoas que vivem em condições análogas às dos cônjuges o acesso ao regime de tributação destas. E viver em condições análogas às dos cônjuges é partilharem a respectiva residência habitual e não a de comunicarem ambos aos serviços tributários a mesma morada como sendo a sua. Porque a identidade do domicílio fiscal comunicado à autoridade tributária visa tão só evitar comportamentos abusivos e fraudulentos atenta a informalidade da própria situação de união de facto. Daí que a nova redacção do n.º 2 do art.º 14.º do CIRS seja sugestivamente a seguinte:

 

2 - A existência de identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante o período exigido pela lei para verificação dos pressupostos da união de facto, e durante o período de tributação, faz presumir a existência de união de facto quando esta seja invocada pelos sujeitos passivos

 

       3.3. Conclusão

 

Pelo exposto, entende o tribunal arbitral que é ilegal a decisão de indeferimento da reclamação graciosa oportunamente apresentada pelos Requerentes, pela qual demonstraram a reunião dos requisitos de que depende o pretendido acesso ao regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bem.

 

       3.4. Dos juros indemnizatórios

 

A alínea b) do n.º 1 do art.º 24.º do RJAT dispõe que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.

 

Não se ignora que a autorização legislativa concedida ao Governo pelo art.º 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, na base da qual foi aprovado o RJAT, determina que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária. Ainda que as alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT fundem a competência dos tribunais arbitrais em “declarações de ilegalidade”, parece razoável o entendimento segundo o qual se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo certo que nos processos de impugnação judicial, para além da anulação de actos tributários, podem ser apreciados pedidos de indemnização, desde logo relativos a juros indemnizatórios.

 

Com efeito, o princípio da cognoscibilidade dos pedidos de indemnização, em reclamação graciosa ou em processo judicial, justifica-se sempre que o dano que se pretende ver ressarcido resulte de facto imputável à administração tributária e aduaneira. Manifestações desse princípio encontramo-las no n.º 1 do art.º 43.º da LGT e no art.º 61.º do CPPT.

 

O direito à percepção de juros indemnizatórios por parte do Requerente depende da verificação dos seguintes pressupostos: a) erro imputável aos serviços; b) que do referido erro resulte o pagamento de imposto em montante superior ao legalmente devido; c) que o erro dos serviços, seja analisado em sede de reclamação graciosa ou de impugnação judicial.

 

Sentindo-se os Requerentes lesados pela decisão de não poderem ser tributados segundo o regime aplicável aos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, como era sua pretensão, uma vez que a informação cadastral disponível nos serviços tributários sugeria uma diversidade de domicílios fiscais, entenderam lançar mão dos mecanismos que a lei coloca ao seu dispor para assegurar os seus direitos. Um desses mecanismos é, justamente, a reclamação graciosa.    

 

No caso vertente, o erro imputável aos serviços existe e reside na recusa da Requerida em reparar o que carecia de evidente remédio. Da análise do processo administrativo verifica-se que a Requerida, na fase da reclamação graciosa, poderia e deveria ter dado provimento ao pedido dos Requerentes, por ter sido por eles transmitidos os elementos necessários e suficientes à indispensável reparação da situação. Errou a Requerida quando entendeu não acatar a pretensão dos Requerentes, erro que merece ser censurado nos termos da lei, desde logo à luz do que dispõem o art.º 43.º e o art.º 100.º da LGT. Consequentemente, entende o tribunal arbitral que, em tese, tem o Requerente direito a juros indemnizatórios.

 

Problema diverso consiste em saber qual o prazo a partir do qual devem ser contados esses juros. Sobre essa matéria os Requerentes guardam silêncio. Limitam-se a pedir, em termos que se julgam adequados, os juros indemnizatórios a que tiverem direito. Caberá, pois, ao tribunal arbitral, sempre que possível, dilucidar essa questão.

 

Como se disse, o erro imputável aos serviços, como ficou expresso, consiste, no entender deste tribunal arbitral, na decisão de indeferimento da reclamação graciosa oportunamente apresentada pelos Requerentes, sendo esse o meio processualmente adequado à reparação por eles pretendida.

 

Convém não perder de vista que o direito à percepção de juros indemnizatórios corresponde, no fundo, à concretização de um direito de indemnização genérico.

 

No caso submetido à apreciação deste tribunal arbitral, forçoso é reconhecer que por reacção dos contribuintes, como sucedeu com a reclamação graciosa oportunamente apresentada, poderia a Requerida dar-se conta da ilegalidade da liquidação posta em crise. Portanto, não pode, para estes efeitos, conceder-se relevância ao período anterior ao pedido de reclamação graciosa. Contudo, com uma decisão indevida, ilegal e lesiva do património dos Requerentes, constitui-se a Requerida no dever de reparar a lesão por si criada em esfera patrimonial alheia.

 

O problema agora é o de saber se há-de interessar a data da decisão da reclamação graciosa ou qualquer outro momento que não se ache na dependência da actuação da Requerida. É que não deixa de impressionar a admissão da possibilidade de a Requerida ser prejudicada em função da sua diligência. Quando alguém reclama graciosamente de um acto tributário espera que a administração tributária e aduaneira aprecie a sua pretensão com a maior celeridade possível, oferecendo o legislador mecanismos que visam acautelar os direitos e expectativas do reclamante nos casos em que ele, em vez da diligência desejada, se vê confrontado com a inércia do decisor. Ora, na generalidade dos casos, esta inércia não prejudica o reclamante. Ou melhor, na generalidade dos casos, a lei prevê a remoção do dano que o reclamante sofra com a inércia da administração. Dizemos na generalidade dos casos, porque a regra é justamente a de que os juros indemnizatórios começam a ser calculados desde a data em que o contribuinte se vê desapossado das quantias que afinal se devem considerar suas.

 

Como vimos, o caso presente assume características diversas. Poderá o momento temporal relevante ser o da decisão da administração? Se fosse, sempre se diria que, independentemente do resultado da reclamação, nenhum interesse teria a administração em despachá-la antes do termo do prazo de que dispusesse para o efeito. Não fará sentido, no ver deste tribunal arbitral, castigar a administração por decidir, ainda que erradamente, antes do termo do prazo de que disporia para fazê-lo. Portanto, o momento a eleger para efeitos do início da contagem de juros não pode estar ligado à conduta da administração. Tem de ser um momento independente dessa conduta.

 

Como se demonstrou, a Requerida, uma vez alertada, pelos meios processualmente adequados, como seja a reclamação graciosa, para a existência de uma ilegalidade, deve proceder “à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade” (art.º 100.º da LGT). Contudo, nos casos em que a ilegalidade não é imputável à administração, é da mas elementar razoabilidade admitir-se um prazo adequado para que a administração, depois de tomar conhecimento da ilegalidade, proceda à plena reconstituição da situação que existiria caso ela não tivesse existido.

 

O legislador entendeu que um ano é um prazo adequado para que a administração restitua ao contribuinte o que lhe foi pago em excesso. Foi este o lapso temporal acolhido pela alínea c) do n.º 3 do art.º 43.º da LGT. Entendeu o legislador que desde a tomada de conhecimento da pretensão do contribuinte, é razoável a administração levar um ano a apreciar o seu pedido, despachá-lo e, no caso de assistir razão ao contribuinte, devolver-lhe o que dele recebeu em excesso. Portanto, entende o tribunal arbitral que os juros indemnizatórios só começam a contar um ano após a data do pedido de reclamação graciosa.  

 

 

4.      Decisão

 

Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:

 

a)      Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarando-se a ilegalidade da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ... 14/...;

b)      Consequentemente, anular o acto tributário de liquidação de IRS n.º 2014..., de 01.03.2014, no montante de € 3.606,47 (três mil seiscentos e seis euros e quarenta e sete cêntimos).

c)      Julgar procedente o pedido de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, condenando a Requerida a pagá-los ao Requerente, sendo eles contados a partir de um ano após a apresentação da reclamação graciosa.

 

 

5.      Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no n.º 2 do art.º 306.º do CPC, na alínea a) do n.º1 do art.º 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 3.606,47 (três mil seiscentos e seis euros e quarenta e sete cêntimos).

 

 

6.      Custas

 

Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12 e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 4 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerida.

 

 

Lisboa, 14 de Janeiro de 2016

 

 

 

O Árbitro

 

(Nuno Pombo)

 



[1] Texto elaborado em computador nos termos do disposto no artigo 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do artigo 29.º do RJAT. A redacção da presente decisão arbitral obedece à ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

[2] O acórdão n.º 4550/11, de 7 de Abril, do Tribunal Central Administrativo Sul qualifica-o como um “poder-dever, destinado antes do mais a proteger a verdade tributária em concretização também do princípio da colaboração consagrado no art.º 59º da LGT”.

 

[3] Entendimento que viria a ser reiterado pelo Senhor Provedor de Justiça na sua Recomendação n.º 13/A/2013, de 4 de Julho.