Decisão Arbitral
I. - RELATÓRIO
A - PARTES
A..., LDA, contribuinte fiscal n.º..., com sede na Avenida..., n.º..., ...-... Lisboa, doravante designada por “Requerente”, apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado por “RJAT”), tendo em vista a apreciação da seguinte demanda que o opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira (que sucedeu, entre outras, à Direcção-Geral dos Impostos) a seguir designada por “Requerida” ou “AT”.
B – PEDIDO
1 - O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 13 de Março de 2015 e notificado à AT em 13 de Março de 2015.
2 - A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o signatário, em 06-05-2015, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa como árbitro de Tribunal Arbitral Singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
3 - As Partes foram, em 06-05-2015, devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do nº 1, do artigo 11.º e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
4 - Nestas circunstâncias, em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 26-05-2015.
5 - No dia 07 de Dezembro de 2015, o Tribunal Arbitral considerou dispensada a realização da reunião prevista no art.º 18.º do RJAT, tendo em conta, quer os despachos a este propósito exarados no SGP, quer a circunstância do litígio respeitar, fundamentalmente, a matéria de direito, quer a vontade das partes em dispensar a dita reunião.
6 - A ora Requerente pretende que o presente Tribunal Arbitral:
a) - Declare a ilegalidade e consequente anulação, quer dos actos de liquidação relativos ao Imposto Único de Circulação (de ora em diante designado por IUC), quer dos actos de liquidação dos juros compensatórios (JC) que lhe estão associados, inscritos nas notificações de liquidações referenciadas no processo, referentes aos anos de 2013 e 2014, tal como identificados nos autos, respeitantes aos veículos, igualmente, identificados nos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos;
b) - Condene a AT ao reembolso da quantia de € 4.293,63, correspondente ao montante total pago a título de IUC e de JC, referente aos anos e veículos atrás referenciados.
c) - Condene a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento de juros indemnizatórios pelo pagamento do IUC e dos JC, indevidamente liquidados e pagos;
C - CAUSA DE PEDIR
7 - A Requerente, na fundamentação do seu pedido de pronúncia arbitral, afirma, em resumo, o seguinte:
8 - Que é uma sociedade comercial que exerce a actividade de aluguer de veículos automóveis e a prestação de serviços conexos, procedendo, nesse quadro, à celebração de contratos de aluguer de veículos.
9 - Que os veículos identificados no pedido de pronúncia arbitral foram vendidos aos seus clientes, quer como usados, quer, noutros casos, como salvados, na vigência dos respectivos contratos de aluguer, em datas anteriores às da obrigação de liquidação do IUC.
10 - Que, na vigência desses contratos de aluguer, aconteceu, com efeito, que alguns dos veículos obejcto de contrato, tal como estão identificados nos autos, foram sinistrados por via da ocorrência de acidentes, tendo, nessas circunstâncias, sido considerados pelas seguradoras como Perda Total.
11 - Que, relativamente a esses veículos, recebeu das Seguradoras as comunicações correlacionadas com os veículos em causa e com as correspondentes indemnizações pela sua Perda Total, altura em que procedeu à entrega, às Seguradoras, de toda a documentação legal tendo em vista o cancelamento das correspondentes matrículas.
12 - Que em 2014 foi notificada pela Administração Tributária para exercer o direito de audição prévia, relativamente às liquidações de Imposto Único de Circulação (IUC), referentes aos anos de 2013 e 2014, relativamente aos quarenta e seis veículos identificados nos autos.
13 - Que, após tal procedimento, foi notificada das atrás referidas liquidações, no valor global de € 4.239,63, tendo, apesar de convicta da sua ilegalidade, procedido, oportunamente, ao pagamento do Imposto Único de Circulação e dos Juros Compensatórios liquidados.
14 - Que o fundamento das referidas liquidações reporta-se ao facto dos veículos em causa se encontrarem registados em seu nome, pelo que, face ao disposto no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, a AT considerou a Requerente como proprietária dos mencionados veículos e, como tal, sujeito passivo do correspondente IUC.
15 - Que o art.º 3.º do CIUC estabelece apenas uma presunção legal ilidível, permitindo que a pessoa inscrita no registo como proprietária do veículo possa proceder à demonstração de que alienou as viaturas em causa em data anterior à verificação do facto gerador do imposto nos anos de 2013 e 2014, circunstância em que a Requerente deixa de ser tida como sujeito passivo do imposto.
16 - Que a presunção legal estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC é necessariamente ilidível, dado que as presunções consagradas nas normas tributárias admitem sempre prova em contrário, em conformidade com o disposto no art.º 73.º da LGT.
17 - Que a transmissão da propriedade dos veículos dá-se por mero efeito do contrato, nos termos dos art.ºs 408.º e 874.º do Código Civil, não sendo o registo da sua propriedade mais do que uma presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, que sendo ilidível admite prova em contrário.
18 - Que a propriedade dos veículos em causa nos autos transferiu-se para os seus clientes por mero efeito dos respectivos contratos de compra e venda, não tendo o seu registo carácter constitutivo.
19 - Que, como prova da alienação dos veículos em questão, juntou aos autos, não só cópias das facturas de venda dos veículos, mas também facturas de venda dos “salvados” e das declarações de “Perda Total”, bem como das comunicações das respectivas seguradoras, com datas anteriores às da verificação dos factos geradores do imposto, nos anos de 2013 e 2014.
D - RESPOSTA DA REQUERIDA
20 - A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira, (doravante designada por AT), apresentou a sua Resposta, em 07-07-2015, na qual entende que as alegações da Requerente não podem, de todo, proceder, porquanto fazem uma interpretação e aplicação das normas legais, aplicáveis ao caso, notoriamente errada, na medida em que, desde logo,
21 - Traduzem um entendimento que incorre, não só numa leitura enviesada da letra da lei, mas também numa interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal, decorrendo ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC. (Cfr. art.º 7.º da Resposta)
22 - Refere que o legislador tributário ao estabelecer, no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC, quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2 as pessoas aí mencionadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados. (Cfr. art.º 16.º da Resposta)
23 - Salienta que o legislador não usou a expressão “presume-se” como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”. (Cfr. art.º 17.º da Resposta)
24 - Considera que a redacção do art.º 3.º do CIUC corresponde a uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, pelo que entender que aí se consagra uma presunção seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem. (Cfr. art.ºs 26.º e 28.º da Resposta)
25 - Refere que o mencionado entendimento já foi adoptado pela Jurisprudência dos nossos tribunais, transcrevendo, para tanto, parte da sentença do tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, proferida no Processo nº 210/13.OBEPNF. (Cfr. art.º 30.º da Resposta)
26 - Sobre o elemento sistemático de interpretação, considera que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio legal. (Cfr. art.º 32.º da Resposta)
27 - Sobre a ignorância da “ratio” do regime, a AT considera que, à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrada em todo o Código do IUC, a interpretação propugnada pela Requerente, no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário efetivo independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada, na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo, tal como consta do registo automóvel. (Cfr. art.ºs 55.º e 56.º da Resposta)
28 - Acrescenta que o CIUC procedeu a uma reforma do regime de tributação dos veículos em Portugal, alterando de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando os sujeitos passivos do imposto a ser os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública. (Cfr. art.º 58.º da Resposta)
29 - A interpretação veiculada pela Requerente evidencia que se está a violar a Constituição, na medida em que a mesma se traduz na violação dos princípios constitucionais da confiança e da segurança jurídica, da eficiência do sistema tributário e da proporcionalidade. (Cfr. art.º 95.º da Resposta)
30 - Acrescenta que, quer as facturas, quer as notificações emitidas pelas entidades seguradoras, apresentados pela Requerente, como prova de venda dos veículos, não são aptos a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda. (Cfr. art.º 75.º da Resposta)
31 - Refere, também, que a Requerente não juntou cópias do modelo oficial para registo da propriedade automóvel, o que devia ter feito, sendo que as facturas apresentadas não podem substituir esse documento. (Cfr. art.ºs 80.º e 84.º da Resposta)
32 - Por fim, refere não ter sido a Requerida quem deu azo à dedução do pedido de pronúncia arbitral, mas sim a Requerente, devendo, consequentemente, ser a Requerente condenada nas custas arbitrais “nos termos do art.º 527.º/1 do Novo Código de Processo Civil ex vi do art.º 29.º/1-e) do RJAT”, salientando, também, não se encontrarem reunidos os pressupostos legais que permitam considerar ilegal a liquidação de juros indemnizatórios, cujo pedido foi formulado pela Requerente.
33 - Considera, a terminar, que, face a toda a argumentação exposta, os actos tributários em crise são válidos e legais, devendo o pedido de pronúncia arbitral subjacente ao presente processo ser julgado improcedente, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados, absolvendo-se, em conformidade, a entidade Requerida do pedido.
E - QUESTÕES DECIDENDAS
34 - Cumpre, pois, apreciar e decidir.
35 - Face ao exposto, relativamente às posições das Partes e aos argumentos apresentados, as principais questões a decidir são as de saber:
a) - Se a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção.
b) - Qual o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, particularmente para efeitos da incidência subjectiva deste imposto.
c) Se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado, embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário, para efeitos do disposto no artigo 3.º, nº. 1, do CIUC, sujeito passivo do IUC é o anterior proprietário ou o novo proprietário.
F - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
36 - O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
37 - As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).
38 - O processo não enferma de vícios que o invalidem.
39 - Tendo em conta a informação inscrita no processo administrativo, e a prova documental junta aos autos, cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, tal como se fixa nos termos abaixo mencionados.
II - FUNDAMENTAÇÃO
G - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
40 - Em matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:
41 - A Requerente é uma sociedade comercial que exerce a actividade de aluguer de veículos automóveis e a prestação de serviços conexos, procedendo, nesse quadro, à celebração de contratos de aluguer de veículos.
42 - Os quarenta e seis veículos identificados no pedido de pronúncia arbitral foram vendidos pela Requerente aos seus clientes, quer como usados, em número de trinta e quatro, quer, noutros casos, em número de doze, como salvados, todos eles em datas anteriores às da exigibilidade do IUC.
43 - Na vigência dos contratos de aluguer, aconteceu, com efeito, que os doze veículos atrás mencionados, tal como estão identificados nos autos, foram sinistrados, tendo, nessas circunstâncias, sido considerados pelas seguradoras como Perda Total.
44 - Relativamente a tais veículos, a Requerente recebeu das Seguradoras as comunicações correlacionadas com os veículos em causa e com as correspondentes indemnizações pela sua Perda Total, altura em que procedeu à entrega, às Seguradoras, de toda a documentação legal tendo em vista o cancelamento das correspondentes matrículas.
45 - A Requerente foi notificada pela Administração Tributária para exercer o direito de audição prévia, no respeitante às liquidações de Imposto Único de Circulação (IUC), referentes aos anos de 2013 e 2014, relativamente aos quarenta e seis veículos identificados nos autos.
46 - Após tal procedimento, a Requerente foi notificada das atrás referidas liquidações, no valor global de € 4.239,63, tendo procedido ao pagamento do Imposto Único de Circulação e dos Juros Compensatórios liquidados.
47 - O fundamento das referidas liquidações assenta no facto dos veículos em causa se encontrarem registados em nome da Requerente, considerando a AT que a mesma era proprietária dos mencionados veículos e, como tal, sujeito passivo do correspondente IUC.
48 - Aquando dos factos geradores do imposto e da sua exigibilidade, com referência aos anos de 2013 e 2014 e aos veículos identificados nos autos, a Requerente já não era proprietária desses veículos.
49 - Como prova da alienação dos veículos em questão, a Requerente juntou aos autos, não só cópias das facturas de venda dos veículos, mas também facturas de venda dos “salvados” e das declarações de “Perda Total”, bem como das comunicações das respectivas seguradoras, com datas anteriores às da exigibilidade dos factos geradores do imposto, nos anos de 2013 e 2014.
FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
50 - Os factos dados como provados estão baseados nos documentos mencionados, relativamente a cada um deles, na medida em que a sua adesão à realidade não foi questionada.
FACTOS NÃO PROVADOS
51 - Em matéria de facto, com relevância para a decisão, o presente tribunal considera como não provada a venda, antes da exigibilidade do imposto, dos veículos com as matrículas ...-...-... e ...-...-....
H - FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO
52 - A matéria de facto está fixada, importando agora proceder à sua subsunção jurídica e determinar o Direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões decidendas enunciadas no n.º 35.
53 - A questão decisiva nos presentes autos, relativamente à qual existem entendimentos absolutamente opostos entre a Requerente e a AT traduz-se em saber se a norma de incidência subjectiva constante do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC estabelece ou não uma presunção ilidível.
54 - As posições das partes são conhecidas. Com efeito, para a Requerente o art.º 3.º do CIUC estabelece apenas uma presunção legal ilidível, permitindo que a pessoa inscrita no registo como proprietária do veículo possa proceder à demonstração de que tal propriedade está inserida na esfera jurídica de outra pessoa, para quem tal propriedade foi transferida, a qual passará, assim, a ser sujeito passivo do imposto.
55 - A Requerida, por seu lado, considera que o legislador tributário ao estabelecer, no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC, quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2 as pessoas aí mencionadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
I - INTERPRETAÇÃO DA NORMA DE INCIDÊNCIA SUBJECTIVA CONSTANTE DO N.º 1 DO ARTIGO 3.º DO CIUC
56 - Sobre esta questão, ou seja, a de saber se a norma de incidência subjectiva constante do n.º 1, do art.º 3.º do CIUC, consagra uma presunção, deve notar-se que a jurisprudência firmada no CAAD aponta no sentido de que a dita norma consagra uma presunção legal. Com efeito, desde as primeiras Decisões, proferidas sobre esta matéria, no ano de 2013, entre as quais se podem, nomeadamente, referir as proferidas no quadro dos Processos n.ºs 14/2013-T, 26/2013-T e 27/2013-T, até às mais recentes de que se podem indicar as Decisões proferidas no âmbito dos Processos n.º 69/2015-T e do n.º 79/2015-T, passando por inúmeras Decisões proferidas no ano de 2014, de que se mencionam, a título de mero exemplo, as Decisões proferidas nos Processos n.ºs 34/2014-T, 120/2014-T e 456/2014 - T, todas apontam para o entendimento de que o n.º 1, do art.º 3.º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível.
A este propósito, deve ainda considerar-se o entendimento inscrito no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 19-03-2015, Processo 08300/14, disponível em: www.dgsi.pt, que secunda a referida jurisprudência, quando nele vem expressamente referido que o art.º 3.º, n.º 1 do CIUC “[…] consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível por força do art.º 73.º da LGT”.
Trata-se de um entendimento em que, de todo, nos louvamos e que se dá, sem mais, como válido e aplicável no presente caso, não se considerando, por conseguinte, necessário outros desenvolvimentos, face à abundante fundamentação vertida nas mencionadas Decisões e no referido Acórdão.
57 - Sendo este o entendimento que, no referente ao art.º 3.º, n.º 1 do CIUC, é, de todo, perfilhado por este tribunal, importa, todavia, ainda assinalar a falta de razão que assiste à Requerida, quando, nos artigos 95.º e 96.º da sua resposta, alega que a interpretação que vai no sentido de entender estar consagrada uma presunção legal ilidível no n.º 1, do art.º 3.º do CIUC viola os princípios constitucionais da confiança e da segurança jurídica, da eficiência do sistema tributário e da proporcionalidade.
Apreciemos, então, essa questão.
Vejamos,
- Sobre o princípio da proporcionalidade cabe, antes de mais, salientar que o mesmo, na medida em que é materialmente inerente ao regime dos direitos liberdades e garantias, inscrevendo-se na sua defesa, visa, no essencial, disciplinar a actuação da Administração Pública em ordem a que a sua actividade no relacionamento com os particulares seja pautada pela escolha das medidas mais equilibradamente adequadas à prossecução do interesse público.
Como ensina o Prof. Freitas do Amaral, in Curso de Direito Administrativo, Vol II, Almedina, 2002, pp. 127/128 e segs, o “princípio da proporcionalidade constitui uma manifestação constitutiva do princípio do Estado de Direito”, estando “[…] fortemente ancorada a ideia de que, num Estado de Direito democrático, as medidas dos poderes públicos não devem exceder o estritamente necessário para a realização do interesse público”.
O princípio da proporcionalidade, acrescenta o referido Professor, ibidem, p.129, significa que “[…] a limitação de bens ou interesses privados por actos dos poderes públicos deve ser adequada e necessária aos fins concretos que tais actos prosseguem, bem como tolerável quando confrontada com aqueles fins”.
A propósito do princípio da proporcionalidade cabe, também, notar, o que nos dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, ANOTADA, VOLUME I, 4.ª Edição, 2007, Coimbra Editora, pp. 392/393, quando consideram que o referido princípio é desdobrável em três subprincípios, quais sejam: “[…] a) princípio da adequação (também designado por princípio da idoneidade); b) princípio da exigibilidade (também chamado princípio da necessidade ou da indispensabilidade); c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa “justa medida”, impedindo-se a adopção de medidas legais restritas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos […]”.
Os referidos subprincípios têm, todos eles, um denominador comum, qual seja o do justo equilíbrio e permanente coerência entre as finalidades da lei e os meios adoptados para atingir tais finalidades, o que, na circunstância e tentando a transposição do dito princípio para o caso dos autos, implicará responder à questão de saber qual a interpretação adequada do n.º 1 do art.º 3.º, tendo em vista a prossecução dos fins legais previstos no art.º 1.º do CIUC, que se traduzem na oneração fiscal dos efectivos proprietários dos veículos automóveis (e não, necessariamente, dos constantes do registo) na medida do custo ambiental e viário que provoquem.
Como refere o Prof. J. J. Gomes Canotilho in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina - Coimbra, 1998, pp. 264 e segs, o campo de aplicação mais importante do princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que tem assento constitucional nos art.ºs 18.º, n.º 2 e 266.º, n.º 2 da CRP, “[…] é o da restrição dos direitos, liberdades e garantias por actos dos poderes públicos. No entanto, o domínio lógico de aplicação do princípio da proporcionalidade, estende-se aos conflitos de bens jurídicos de qualquer espécie.” A administração, acrescenta o referido autor, idem, “[…] deve observar sempre, em cada caso concreto, as exigências da proibição do excesso […]”.
Neste mesmo sentido aponta a jurisprudência, designadamente o acórdão do STA de 01-07-1997, Processo n.º 041177, disponível em: www.dgsi.pt, quando considera que o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, compreende a congruência, a adequação ou a idoneidade do meio ou da medida para lograr o fim legalmente proposto e, em sentido estrito, engloba a proibição do excesso.
O princípio da proporcionalidade é um corolário do princípio da justiça, o qual significa e implica que na sua actuação a Administração Pública deve harmonizar o interesse público específico que lhe cabe prosseguir com os direitos e interesses legítimos dos particulares eventualmente afectados pelos seus actos, interesses e direitos estes que, no caso em apreço, se reconduzem à não tributação em IUC das pessoas que já não são proprietários dos veículos e que, consequentemente, em nada contribuem para a efectivação de qualquer custo viário e ambiental.
O que importa é balancear as finalidades legais e os meios para as prosseguir, e, no quadro de um juízo de ponderação, identificar os meios mais adequados para esse efeito, que, no caso, se traduzem na interpretação perfilhada pelo tribunal arbitral.
Dir-se-á, aliás, que o entendimento de que o referido n.º 1 do at.º 3.º do CIUC estabelece uma presunção legal ilidível corresponde à única interpretação que coerentemente se compagina com o dito princípio da equivalência, e que se mostra em linha com os princípios da justiça e da proporcionalidade.
A interpretação que entende estar consagrada uma presunção legal ilidível no n.º 1, do art.º 3.º do CIUC é, pois, a única que permite assegurar a prossecução dos fins visados pela lei - onerar os proprietários dos veículos automóveis na medida do custo ambiental e viário que provocam, - tal como estatuído no art.º 1.º do CIUC, o que significa que os sujeitos passivos do IUC são, presumivelmente, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, ou seja, os referidos sujeitos passivos são, em princípio, e apenas em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados, não havendo, pois, outra interpretação capaz de alcançar as referidas finalidades legais, só assim, reafirma-se, se mostram cumpridos os referidos princípios da proporcionalidade e da justiça.
O entendimento contrário, ou seja, o considerado pela AT, que interpreta o n.º 1, do art.º 3.º do CIUC como não consagrando uma presunção legal ilidível, entendendo que os sujeitos passivos do IUC são, em definitivo, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, na justa medida em que conduz à imposição de um encargo fiscal a quem poderá já não ser o proprietário do veículo em causa e que, deste modo, não polui, afastando da sujeição fiscal quem, na realidade, é o efectivo causador dos danos ambientais e viários, decorrentes da utilização dos veículos de que são os reais proprietários, evidência que as finalidades legalmente prescritas não seriam, de todo, alcançadas, não se respeitando, assim, o princípio da equivalência que, no quadro do CIUC, tem uma função absolutamente estruturante. Tal entendimento, esse sim, não se mostra, nestas circunstâncias, em sintonia com o princípio da proporcionalidade.
A interpretação feita pelo tribunal, na decisão que ora se reforma, teve exactamente em conta o princípio da proporcionalidade quando, ao arrepio do que a Requerida pretendia, tem, na devida conta, que o registo definitivo não surte eficácia constitutiva por se destinar a dar publicidade ao acto registado, funcionando apenas como mera presunção ilidível da existência do direito e quando, em homenagem àquele princípio, atende ao princípio da equivalência, enquanto elemento fundamental do CIUC.
- Quanto à eficiência do sistema tributário, dir-se-á que a eficiência da Administração em geral, ou da AT em particular, em sentido corrente, corresponderá à capacidade/metodologia de trabalho orientada para a optimização do trabalho executado ou dos serviços prestados, o que significa produzir o máximo, em quantidade e qualidade, com o mínimo de custos e meios, nada tendo a ver com a observância de princípios legalmente consagrados e com o respeito pelos direitos dos cidadãos, seja na qualidade de contribuintes ou não.
Em sentido técnico, dir-se-á que o princípio da eficiência do sistema tributário, é, comummente tido, no domínio do procedimento tributário, como corolário do princípio da proporcionalidade, o qual como é sabido, impõe uma adequada proporção entre as finalidades legais e os meios escolhidos para alcançar esses fins, ou, como referem Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488, nas anotações ao artigo 55.º da LGT, trata-se de um princípio que obriga “[…] a administração tributária a abster-se da imposição aos contribuintes de obrigações que sejam desnecessárias à satisfação dos fins que aquela visa prosseguir”.
Neste quadro, o referido princípio da eficiência do sistema tributário significará a capacidade de alcançar os objectivos legalmente fixados com o mínimo de meios, o que nada terá também a ver com o respeito pelos direitos dos cidadãos, nem com a necessidade de observância de outros princípios a que a administração tributária deve subordinar a sua actividade, designadamente o do inquisitório e o da descoberta da verdade material, não podendo, obviamente, a aplicação do mencionado princípio da eficiência ser feita, quer com prejuízo dos direitos dos cidadãos, quer pela ausência de observação das finalidades legais. [1]
- Quanto ao princípio da segurança jurídica e da confiança deve notar-se, antes de mais, que este último princípio, o da confiança, é uma concretização do princípio da boa-fé, o qual, tendo consagração no nosso ordenamento jurídico, desde 1996, veio a ter expressa inscrição constitucional, como consta do n.º 2 do art.º 266.º da CRP, onde se estabelece que “Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé”. (sublinhado nosso)
A propósito da boa-fé cabe notar o que refere o Prof. Freitas do Amaral quando, in Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 2002, pp. 135/136, citando o Prof. V. Fausto de Quadros, nos diz que “[…] a Administração Pública está obrigada a obedecer à bona fide nas relações com os particulares. Mais: ela deve mesmo dar, também aí, o exemplo aos particulares da observância da boa fé, em todas as suas manifestações, como núcleo essencial do seu comportamento ético. Sem isso, nunca de poderá afirmar que o Estado (e com ele outras entidades públicas) é pessoa de bem”.
Por outro lado, o princípio da confiança é também tido como uma decorrência do princípio da segurança jurídica, indissociável do Estado de Direito, que tendo de garantir um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas jurídicas que lhes forem criadas, é geradora de confiança dos cidadãos na tutela jurídica da Administração Pública.
Relativamente aos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, diz-nos o Prof. J. J. Gomes Canotilho in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina - Coimbra, 1998, p. 250 e segs, que os referidos princípios andam estreitamente associados, considerando-se que “[…] a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica - garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito - enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos”. Em qualquer caso, acrescenta o referido Professor, idem, que o “[…] princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de protecção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos por essas mesmas normas”.
Decorre desta doutrina, que as pessoas ao alienarem os seus veículos hão-de estar seguras de que, caso procedam à venda dos veículos de que são proprietários, e não sendo os mesmos registados em nome dos adquirentes, os efeitos jurídicos daí resultantes serão os previstos e decorrentes das normas legais em vigor e da sua adequada interpretação, face às finalidades legais dessas mesmas normas, o que, in casu, levou a que o tribunal arbitral considerasse o registo como presunção ilidível da existência do direito e que só as pessoas que provocam custos viários e ambientais devam ser tributadas.
A melhor forma de, no caso dos autos, se garantir a segurança jurídica, em sentido amplo, é, assim, a concretizada por via da interpretação feita pelo tribunal arbitral, quando considera estar consagrada no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, uma presunção legal ilidível, permitindo a qualquer cidadão, que proceda à venda, a uma terceira pessoa, de um veículo automóvel, a possibilidade de demonstrar que, aquando da exigibilidade do IUC, já não era seu proprietário nem responsável pelo pagamento desse imposto.
- Para além do que atrás fica referido, importará ainda saber se a interpretação perfilhada pelo tribunal arbitral, para além de não conflituar com qualquer dos referenciados princípios, se inscreve directa e substantivamente no contexto da ordem constitucional.
A propósito da interpretação da lei em face da Constituição, ou da interpretação conforme à Constituição, diz-nos o Prof. Jorge Miranda, in Manual de Direito Constitucional, TOMO II, Introdução à Teoria da Constituição, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1987, p. 232 e segs, que do que se trata, antes de mais, é de “[…] levar em conta, dentro do elemento sistemático da interpretação, aquilo que se reporta à Constituição. Com efeito, cada disposição legal não tem somente de ser captada no conjunto das disposições da mesma lei e cada lei no conjunto da ordem legislativa; tem outrossim de se considerar no contexto da ordem constitucional [..]”. (sublinhado nosso)
O entendimento que considera estar consagrada no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC uma presunção legal ilidível suporta-se em diversos elementos de interpretação, entre os quais cabe referir o elemento sistemático, na medida em que a interpretação conforme à Constituição implica que dentro do elemento sistemático da interpretação, se leve em conta aquilo que se reporta à Constituição.
Sobre o mencionado elemento sistemático cabe referir o seguinte:
a) No entendimento de BAPTISTA MACHADO, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183, o elemento sistemático “[…] compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico”.
b) É sabido que um princípio jurídico, no caso o princípio da equivalência, não existe isoladamente, antes está ligado por um nexo íntimo com outros princípios que integram, ao nível mais global, o respectivo ordenamento jurídico, no caso, com os demais princípios corporizados no sistema inscrito no CIUC, e com outros princípios constitucionalmente consagrados. Nesse sentido, cada artigo de um dado diploma legal, no caso o CIUC, só será compreensível se o situarmos, quer perante os demais artigos que o seguem ou antecedem, quer perante a ordem constitucional.
c) No que à sistematização do CIUC diz respeito, as preocupações de ordem ambiental foram determinantes para que o mencionado princípio da equivalência fosse, desde logo, inscrito no primeiro artigo do referido Código, o que, necessariamente conduz a que os artigos subsequentes, na medida em que têm assentamento em tal princípio, sejam por ele influenciados. Foi o que ocorreu, designadamente, com a base tributável, que passou a ser constituída por diversos elementos, particularmente pelos respeitantes aos níveis de poluição, e com as taxas do imposto, estabelecidas nos artigos 9.º a 15.º, que foram influenciadas pela componente ambiental, e, naturalmente, também com a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º do CIUC, que não poderá furtar-se à influência referida.
d) O referido princípio da equivalência, como assinala Sérgio Vasques, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, 2001, p. 122 e segs, implica que “[…] o imposto deve corresponder ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública; ou ao custo que o contribuinte imputa à colectividade pela sua própria actividade”. Acrescenta o referido autor, idem, que “Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também.” Por isso, como também refere o citado autor, idem, a concretização do princípio da equivalência dita especiais exigências “[…] no tocante à incidência subjectiva do imposto [..].”
O mencionado princípio que informa o actual Imposto Único de Circulação, inscreve-se nas preocupações ambientais estatuídas no n.º 2, alínea a) do art.º 66.º da CRP e na necessidade de - tendo em vista assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável - se “Prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão”, preocupações estas, que são, manifestamente, consideradas na interpretação defendida pelo tribunal arbitral.
Por outro lado, o disposto na alínea h) do n.º 2 do art.º 66.º da Constituição, quando estatuí que, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado “assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com protecção do ambiente e qualidade de vida”, comporta como corolário o princípio do poluidor - pagador, que concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar, estando, assim, a interpretação defendida pelo tribunal arbitral, em perfeita concordância com a ordem constitucional.
e) Cabe ainda deixar uma breve nota, apenas para suscitar a questão de saber por que razão as regras constantes do art.º 9.º do Código Civil obrigam o intérprete da legislação ordinária, quando é certo que o dito Código não ocupa qualquer lugar proeminente no sistema jurídico.
A esta questão responde o Prof. Jorge Miranda, ibidem, p. 230, quando considera que a “[…] conclusão para a qual se propende é que regras como estas são válidas e eficazes, não por constarem do Código Civil - pois este não ocupa nenhum lugar proeminente no sistema jurídico - mas, directamente, enquanto tais, por traduzirem uma vontade legislativa, não contrariada por nenhumas outras disposições, a respeito do problema da interpretação (que não são apenas técnico-jurídicos) de que curam.”
Acrescenta o referido autor, idem, que “regras sobre estas matérias podem considerar-se substancialmente constitucionais e não repugnaria mesmo vê-las alçadas à Constituição em sentido formal.”
A propósito da problemática da interpretação e das suas regras, como se retira do Prof. José de Oliveira Ascensão, in O Direito, Introdução e Teoria Geral, 2.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, pp. 352/353, deve sublinhar-se o carácter imperativo dessas regras, e a sua natureza vinculativa para o intérprete.
A interpretação que o tribunal arbitral faz do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC e os critérios que, para esse efeito, considerou, como expressamente se mencionam na Decisão proferida no âmbito do Proc. N.º 196/2014-T, desde o elemento literal, até ao elemento sistemático, passando pelo elemento histórico e racional (ou teleológico), não colidem, assim, com quaisquer princípios constitucionais.
O n.º 1 do art.º 9.º do CC dispõe que a procura do pensamento legislativo deverá ter “[…] sobretudo em conta […] a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, circunstâncias e condições essas, que, hoje mais do que nunca, são de sensibilidade pelo ambiente e de respeito pelas questões com ele relacionadas, e que se mostram inscritas no ordenamento constitucional.
Assim, face ao que se deixa referido, não parece, salvo o devido respeito, assistir razão à AT, na medida em que a interpretação considerada pelo tribunal arbitral, como sendo a única capaz de respeitar as finalidades legais, não viola qualquer dos princípios em questão, ou seja, os princípios da confiança e da segurança jurídica, da eficiência do sistema tributário e da proporcionalidade, sendo que, por outro lado, tal interpretação está expressa e substantivamente conforme aos princípios inscritos na Constituição.
Assim, não se vislumbra que a interpretação feita pelo tribunal, sobre o n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, contenda com quaisquer normas ou princípios constitucionais em vigor. ~
J - DA AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE DO VEÍCULO E DO VALOR DO REGISTO
58 - Antes de mais, deve acrescentar-se, face ao que adiante, explicitamente, se dirá sobre o valor do registo, que os adquirentes dos veículos tornam-se proprietários desses mesmos veículos por via da transmissão da respectiva propriedade, com registo ou sem ele.
59 - São três os artigos do Código Civil que importa ter em conta, a propósito da aquisição da propriedade de um veículo automóvel. São eles, desde logo, o art.º 874.º, que estabelece a noção de contrato de compra e venda, como sendo “[…] o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”; o art.º 879.º, em cuja alínea a) se estatui, como efeitos essenciais do contrato de compra e venda, “a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito” e o art.º 408.º, que tem por epígrafe os contratos com eficácia real, e estabelece no seu n.º 1, que “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”. (sublinhado nosso)
Estamos, com efeito, no domínio dos contratos com eficácia real, o que significa que a sua celebração provoca a transmissão de direitos reais, no caso, veículos automóveis, determinada por mero efeito do contrato, como decorre expressamente da norma anteriormente mencionada.
60 - A propósito dos referidos contratos com eficácia real, cabe notar os ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela, quando, em anotações ao art.º 408.º do CC, nos dizem que “Destes contratos ditos reais (quoad effectum), por terem como efeito imediato a constituição, modificação ou extinção dum direito real (e não apenas as obrigações tendentes a esse resultado) distinguem-se os chamados contratos reais (quoad constitutionem), que exigem a entrega da coisa como elemento da sua formação (cfr. arts. 1129.º, 1142.º e 1185.º) ”.
Estamos, assim, perante contratos em que a propriedade da coisa vendida se transfere, sem mais, do vendedor para o comprador, tendo, como causa, o próprio contrato.
61 - Também da jurisprudência, designadamente do Acórdão do STJ n.º 03B4369 de 19/02/2004, disponível em: www.dgsi.pt, se retira que, face ao disposto no art.º 408.º, n.º 1, do C. Civil, "a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei". É o caso do contrato de compra e venda de veículo automóvel (art.ºs 874.° e 879.º al. a) do C. Civil), o qual não depende de qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal - conf. Ac do STJ de 3-3-98, in CJSTJ, 1998, ano VI, Tomo I, pág. 117”. (sublinhado nosso)
62 - Tendo o contrato de compra e venda, face ao que se deixa referido, natureza real, com as mencionadas consequências, há que considerar, também, o valor jurídico do registo automóvel objecto desse contrato, na medida em que a transação do referido bem está sujeita a registo público.
63 - Estabelece, com efeito, o n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, relativo ao registo de veículos automóveis, que “O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. (sublinhado nosso)
64 - Ficando claro, face à referida norma, qual a finalidade do registo, não há, porém, clareza, no âmbito do referido Decreto-lei, sobre o valor jurídico desse registo, importando considerar o artigo 29.º do mencionado diploma legal, relativo ao registo de propriedade automóvel, quando aí se dispõe que “São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, […]”. (sublinhado nosso)
65 - Neste quadro, para que possamos alcançar o procurado conhecimento sobre o valor jurídico do registo de propriedade automóvel, importa ter em conta o que se estabelece no Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 06 de Julho, quando dispõe no seu artigo 7.º que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define”. (sublinhado nosso)
66 - A conjugação do disposto nos artigos atrás mencionados, particularmente o estabelecido no n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e no art.º 7.º do Código do Registo Predial, permite considerar, por um lado, que a função fundamental do registo é a de dar publicidade à situação jurídica dos veículos, permitindo, por outro lado, presumir que o direito existe e que tal direito pertence ao titular a favor de quem o mesmo está registado, nos precisos termos em que está definido no registo.
67 - Assim, o registo definitivo mais não constitui do que a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos exactos termos do registo, mas presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo, a este propósito, ver-se, entre outros, os Acórdãos do STJ nºs 03B4369 e 07B4528, respectivamente, de 19/02/2004 e 29/01/2008, disponíveis em: www.dgsi.pt.
68 - A função legalmente reservada ao registo é, assim, por um lado, a de publicitar a situação jurídica dos bens, no caso, dos veículos e, por outro lado, permitir-nos presumir que existe o direito sobre esses veículos e que o mesmo pertence ao titular, como tal inscrito no registo, o que significa que o registo não tem uma natureza constitutiva do direito de propriedade, mas apenas declarativa, daí que o registo não constitua condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador.
69 - Assim, se os adquirentes dos veículos, enquanto seus “novos” proprietários, não promoverem, desde logo, o adequado registo do seu direito, presume-se, para efeitos do art.º 7.º do Código do Registo Predial e do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC e que os veículos continuam a ser propriedade da pessoa que no registo se mantém seu proprietário, sendo essa pessoa o sujeito passivo do imposto, na certeza, porém, que tais presunções são ilidíveis, seja por força do estabelecido no n.º 2 do art.º 350.º do CC, seja à luz do disposto no art.º 73.º da LGT. Daí que, a partir do momento em que se afastem as presunções em causa, mediante prova da respectiva transmissão, a AT não poderá persistir em considerar como sujeito passivo do IUC o transmitente do veículo, que, no registo, continua a constar como seu proprietário.
L - DOS MEIOS DE PROVA APRESENTADOS
70 - Não sendo legalmente exigível a forma escrita para a transmissão da propriedade de veículos automóveis, a prova dessa transmissão poderá fazer-se por qualquer meio, nomeadamente por via testemunhal ou documental, nesta se incluindo, designadamente, as facturas-recibo relativas às vendas dos veículos.
SOBRE A VENDA DOS VEÍCULOS COMO SALVADOS
71 - Como meio de prova de que os doze veículos vendidos como salvados, (ou seja, os dez veículos identificados no Quadro II do pedido de pronúncia arbitral, mais os veículos com as matrículas ...-...-... e ...-...-..., identificados no Quadro I do referido pedido), não eram sua propriedade na data da exigibilidade do imposto, a Requerente juntou “Comunicações” das Seguradoras correlacionadas com os veículos em causa e com as correspondentes indemnizações pela sua Perda Total.
72 - Sobre as referidas “Comunicações” deve salientar-se que todas elas exibem idênticas informações, que se corporizam, nomeadamente, no seguinte: identificação do veículo; montante relativo ao valor do Salvado e ao valor da indemnização por Perda Total; identificação da empresa seguradora e da Requerente; IVA incidente sobre o valor do Salvado.
73 - As empresas de seguros, de harmonia com o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 94-B/98 de 17.04, «[…] são instituições financeiras que têm por objecto exclusivo o exercício da actividade de seguro directo e ou de resseguro, salvo naqueles ramos ou modalidades que se encontrem legalmente reservados a determinados tipos de seguradoras, podendo ainda exercer actividades conexas ou complementares de seguro ou resseguro, nomeadamente no que respeita a actos e contratos relativos a salvados […]»; (sublinhado nosso)
74 - A aquisição de salvados pelas empresas seguradoras e a sua subsequente alienação, normalmente a sucateiros, é uma actividade complementar das operações de seguro, como resulta da norma anteriormente mencionada, na medida em que o que está em causa é que no quadro de situações resultantes de sinistros, em que se verifique a Perda Total dos veículos, tais empresas são obrigadas a indemnizar os lesados, monetariamente, nos termos do contrato de seguro que com estes celebraram, quando o veículo é tido como não reparável, tomando, por outro lado, os veículos sinistrados e procedendo, posteriormente, à venda dos mesmos no estado em que os adquiriram.
75 - De facto, no quadro do Sistema Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, constante do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto, entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de Perda Total, como se dispõe no n.º 1 do art.º 41.º do referido diploma legal, quando a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, sempre que se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável.
76 - No caso dos autos foi o que aconteceu, na medida em que, por um lado, as Seguradoras após as correspondentes peritagens entenderam regularizar a situação dos veículos sinistrados como Perda Total e, por outro, tal como, designadamente, resulta da documentação junta aos autos relativa à troca de informações/ofícios entre as Seguradoras e a Requerente, os Salvados em questão, por força do contrato de seguro automóvel, entraram na esfera patrimonial das empresas seguradoras, tendo a Requerente, enquanto lesada, sido indemnizada.
77 - A propósito do pagamento dos montantes inscritos nas “Comunicações” das Seguradoras, referentes aos veículos em causa, tendo em conta que os “veículos” não permaneceram na posse do seu proprietário, importa salientar que tais montantes são integrados por duas componentes, quais sejam: o valor do Salvado e o valor da indemnização pela Perda Total, o que não deixa dúvidas, sobre a transferência da titularidade dos Salvados, da Requerente para as empresas seguradoras.
78 - As transferências da titularidade dos Salvados para as empresas seguradoras, relativamente aos doze mencionados veículos, situaram-se entre 24-02-2002 e 12-11-2012, sendo que a exigibilidade do correspondente IUC respeita aos anos de 2013 e 2014.
79 - Sobre os factos inscritos nas aludidas “Comunicações”, importa também notar que, face à presunção de veracidade que no n.º 1 do art.º 75.º da LGT lhes é conferida, caberia à AT, atento o disposto no art.º 75.º, n.º 2 da LGT, no quadro das fundadas e objectivas razões que tivesse, demonstrar que as informações inscritas nessas “Comunicações” não correspondem à realidade.
80 - Nestas circunstâncias, estando a AT a exigir o IUC referente aos anos de 2013 e 2014, e não sendo a Requerente, nestes anos, proprietária dos referidos veículos, considera-se que as mencionadas “Comunicações” das Empresas Seguradoras, conjugadas com as informações/ofícios constantes dos autos, são prova adequada e capaz para ilidir as presunções em causa nos autos, ou seja, a presunção estabelecida no art.º 7.º do Código do Registo Predial e a consagrada no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, o que significa que, na altura em que o imposto era exigível, em todos estes casos, a Requerente não era sujeito passivo do IUC.
SOBRE A VENDA DOS VEÍCULOS COMO USADOS
81 - Como atrás já se referiu, a prova da venda de veículos automóveis poderá fazer-se por qualquer meio, nomeadamente por via de facturas - recibo.
82 - A Requerente, como meio de prova de que procedeu à venda dos demais veículos, como usados, em número de trinta e quatro, tal como identificados no presente processo, em data anterior à da exigibilidade do imposto, juntou cópias das facturas referentes a essas alegadas vendas.
83 - Deve, aliás, salientar-se que nada permite considerar que as facturas apresentadas, como suporte das vendas dos veículos em causa nos autos, não tenham correspondência com as vendas que, alegadamente, foram concretizadas.
84 - As facturas juntas aos autos, como prova da alienação dos veículos, tendo em conta o objecto social da Requerente e a sua actividade empresarial, traduzida, nomeadamente, na celebração de contratos de locação financeira e de contratos de aluguer operacional de veículos automóveis, mostram-se totalmente ajustadas à mencionada realidade empresarial, sendo absolutamente verosímil a venda dos veículos que as facturas apresentadas visam provar, não se identificando, de todo, elementos que corporizem qualquer contrato simulado, antes permitem concluir estarmos perante facturas que reproduzem a real e verdadeira venda dos veículos às pessoas nelas indicadas.
85 - Dir-se-á, mesmo, que, no caso dos autos, face à actividade económica da Requerente, tal como já foi referida, não será de estranhar, bem pelo contrário, a transferência da propriedade dos veículos identificados nos autos.
86 - Tendo, todavia, em conta a necessidade de proceder ao apuramento da verdade material relativamente aos factos, e considerando, designadamente o disposto no art.º 13.º do CPPT e no art.º 99.º da LGT, o tribunal arbitral promoveu diligências no sentido de que os documentos atrás referenciados e apresentados como prova das vendas em causa, fossem complementados com outras informações, visando, nomeadamente, a comprovação do efectivo recebimento dos valores referentes às vendas dos veículos em questão.
87 - A propósito do disposto no último dos mencionados artigos, ou seja, no art.º 99.º da LGT, cabe notar o que, em anotações a este artigo, vem assinalado por Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 859, quando, a propósito do princípio do inquisitório e do referido artigo referem que o mesmo afirma “[…] sem margem para dúvidas, o princípio do inquisitório pleno do tribunal tributário no domínio do processo tributário […]. O princípio do inquisitório vale para todos os tribunais fiscais que conheçam da matéria de facto, justificando a rejeição de aplicação daquelas normas do processo civil que estabelecem certos momentos para a apresentação dos documentos (cf. Arts. 523.º, 524.º e 706.º do CPC […]”, artigos estes, que correspondem, respectivamente, aos actuais artigos 423.º e 425.º do CPC, sendo que o artigo 706.º foi revogado.
88 - Neste quadro, convém lembrar os ensinamentos de Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, Volume I, 6.ª Edição, Áreas Editora, SA, Lisboa, 2011, p. 174, quando, em anotações ao art.º 13.º do mencionado Código, refere que “A limitação dos poderes de cognição aos factos alegados, para além dos de conhecimento oficioso, não tem clara justificação no processo tributário nem pode ser entendida em termos absolutos. Com efeito, embora seja inegável que há algumas semelhanças entre o processo declaratório civil e os processos de impugnação judicial […] é também patente que há diferenças substanciais […]”, o que “revela não se estar perante um processo em que vigore integralmente o princípio dispositivo”.
89 - A Requerente, dentro dos prazos concedidos, para o efeito, veio complementar as ditas facturas, o que vale, aliás, para os documentos relativos à venda dos veículos como salvados, com outros elementos aperfeiçoadores da prova, nomeadamente com os correlativos extractos contabilísticos, reforçados com a junção dos mapas de mais-valias e menos-valias, capazes de comprovar que os valores referentes às vendas dos ditos veículos foram, por si, efectivamente, recebidos, o que demonstra as transferências da propriedade desses bens, ocorridas em datas anteriores às da exigibilidade do IUC.
90 - Os referidos documentos, tal como, aliás, as facturas que complementam, referentes à venda dos veículos, na medida em que gozam da presunção de veracidade que no n.º 1 do art.º 75.º da LGT lhes é conferida, cabendo à AT, atento o disposto no art.º 75.º, n.º 2 da LGT, no quadro das fundadas e objectivas razões que tivesse, demonstrar que as informações neles inscritas não correspondem à realidade, permitem considerar que tal documentação constitui meio de prova suficiente para ilidir as presunções em causa nos autos, ou seja, a presunção estabelecida no art.º 7.º do Código do Registo Predial e a consagrada no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, o que significa que, na altura em que o imposto era exigível, a Requerente não era proprietária dos veículos em questão, ao tempo a que dizem respeito as liquidações desse imposto.
91 - Aqui chegados, importa referir que o mencionado entendimento não é válido para os veículos com as matrículas ...-...-... e ...-...-..., para os quais não foram apresentados, nem “Documento Extracto Contabilístico”, nem “Documento Complementar Modelo 31”, não se fazendo prova capaz sobre a transferência da propriedade desses veículos, em momento anterior às datas da exigibilidade do correspondente IUC.
92 - A AT, quando entende não haver cobertura legal para que os ditos documentos tivessem sido solicitados, não devendo os mesmos ser considerados, como consta do Requerimento, por si, apresentado em 10/12/2015, designadamente por violação do que se determina no art.º 423.º do CPC, onde se dispõe que a apresentação dos documentos deve ocorrer com o articulado respectivo, não considera, de todo, o entendimento vertido nos anteriores artigos 87.º e 88.º, ou seja, que o princípio do inquisitório vale para todos os tribunais fiscais que conheçam da matéria de facto, justificando a rejeição de aplicação daquelas normas do processo civil que estabelecem certos momentos para a apresentação dos documentos, e que existem substanciais diferenças entre o processo declaratório civil e os processos de impugnação judicial.
93 - O montante total resultante das liquidações associadas aos dois mencionados veículos, ou seja, aos veículos com as matrículas ...-...-... e ...-...-..., perfaz o montante de € 138,52.
94 - Nestas circunstâncias, e em suma, tendo em conta que a presunção consagrada no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC foi ilidida, quer no que concerne aos veículos salvados, referenciados no presente processo, os quais foram alienados em datas anteriores às da exigibilidade do imposto, ou seja, ao momento em que a Administração Tributária pode exigir a prestação tributária, quer no que se refere aos demais veículos vendidos como usados, excepção feita aos dois veículos atrás mencionados, deve considerar-se que a Requerente, relativamente aos aludidos veículos, não era, à data a que dizem respeito as liquidações em causa, sujeito passivo do imposto em questão.
95 - A AT, quando entende que os sujeitos passivos do IUC são, em definitivo, as pessoas em nome de quem os veículos automóveis se encontram registados, sem considerar que o art.º 3.º, n.º 1 do CIUC consubstancia uma presunção, nem tendo em conta os elementos probatórios que lhe foram apresentados, como resulta, designadamente, do processo administrativo tributário, está a proceder à liquidação ilegal do IUC, relativamente aos veículos identificados nos autos, assente na errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjectiva do Imposto Único de Circulação, constantes do referido art.º 3.º do CIUC, o que configura a prática de actos tributários falhos de legalidade por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, determinantes da anulação dos correspondentes actos tributários, por violação de lei.
M - REEMBOLSO DO MONTANTE PAGO E JUROS INDEMNIZATÓRIOS
96 - Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 24º do RJAT, e em conformidade com o que aí se estabelece, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - “Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.” (sublinhado nosso)
97 - Trata-se de comandos legais que se encontram em total sintonia com o disposto no art.º 100.º da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT, no qual se estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.” (sublinhado nosso)
98 - O caso constante nos presentes autos, suscita a manifesta aplicação das mencionadas normas, posto que na sequência da ilegalidade dos actos de liquidação, referenciados neste processo, terá, por força dessas normas, de haver lugar ao reembolso dos montantes pagos, quer a título de imposto, quer de juros compensatórios, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, montantes esses que no caso dos autos totalizam € 4.101,11, resultantes do montante total € 4.239,63, que foi pago, deduzido da quantia de € 138,52 associada às liquidações referentes aos veículos com as matrículas ...-...-... e ...-...-....
99 - Quanto aos juros indemnizatórios, afigura-se manifesto, que, face ao estabelecido no artigo 61.º do CPPT e preenchidos que estão os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no n.º 1 do art.º 43.º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de € 4.101,11.
CONCLUSÃO
100 - No quadro circunstancial que se tem vindo a referir, a AT, ao praticar os actos de liquidação em causa no presente processo, fundados na ideia de que o artigo 3.º, nº.1, do CIUC não consagra uma presunção ilidível, faz errada interpretação e aplicação desta norma, cometendo um erro sobre os pressupostos de direito, o que constitui violação de lei.
101 - Por outro lado, porque a AT, à data da ocorrência dos factos tributários, considerou a Requerente proprietário dos veículos referenciados no presente processo, considerando-a, como tal, sujeito passivo do imposto, quando tal propriedade, relativamente aos veículos em questão, já não estava inscrita na sua esfera jurídica, baseando-se, assim, em matéria de facto divergente da efectiva realidade, comete um erro sobre os pressupostos de facto, e portanto de violação de lei.
III - DECISÃO
102 - Destarte, atento a todo o exposto, este Tribunal Arbitral decide:
- Julgar parcialmente procedente, por provado, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de pronúncia arbitral no que concerne à anulação dos actos de liquidação de IUC referentes aos anos de 2013 e 2014, respeitantes aos veículos identificados nos autos;
- Anular, consequentemente, os actos de liquidação de IUC, referentes aos anos de 2013 e 2014, referentes aos veículos atrás mencionados;
- Condenar a AT ao reembolso da quantia de € 4.101,11, obtida nos termos que atrás se indicam, no artigo 98.º, referente ao IUC e aos juros compensatórios que foram pagos, respeitantes aos anos de 2013 e 2014, e ao pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde a data do pagamento da referida quantia, até ao integral reembolso da mesma;
- Condenar a Requerente e a Requerida em custas, que se fixam, para cada uma, na proporção de 3% para a Requerente e de 97% para a Requerida.
VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC (ex-315.º, n.º 2) e 97.º - A, n.º 1 do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 4.239,63.
CUSTAS
De harmonia com o disposto no artigo 12.º, n.º 2, in fine, no art.º 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da tabela I, que a este está anexa, fixa-se o montante das custas totais em € 612,00.
Notifique-se.
Lisboa, 01 de Janeiro de 2016
O Árbitro
António Correia Valente
(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (ex-138.º, n.º 5), aplicável por remissão do artigo 29.º n.º 1 alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)
[1] Veja-se o estudo sobre a matéria, elaborado pelo Prof. Carlos Pestana Barros, in Ciência e Técnica Fiscal, 2005, n.º 416, pp. 105-126