Decisão Arbitral
O Árbitro, Dr. António Rocha Mendes, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o tribunal arbitral singular constituído em 10/02/2014, decide no seguinte:
I RELATÓRIO
1. A..., NIF..., (que se designará também por “Requerente”), residente na Rua…, …, …, na Figueira da Foz, veio, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 10.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”) submeter à apreciação de Tribunal Arbitral a legalidade da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), no montante final global de €29.667,86, incluindo juros compensatórios, relativa ao ano de 2009, por aplicação da cláusula geral anti-abuso (“CGAA”), prevista no artigo 38.º-2, da LGT e da norma anti-abuso prevista no n.º 10 do artigo 73.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”).
A fundamentação da liquidação impugnada é a que consta da decisão de 14 de Dezembro de 2012 de aplicação da cláusula anti-abuso, notificada à impugnante através do ofício n.º …, de 18.12.12, que constitui a fundamentação do ato tributário em causa (doc. n.º 3), constante do relatório de exame à contabilidade.
A requerente conclui pedindo a procedência da impugnação e, em consequência, determinada a anulação integral daquela liquidação de imposto.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”).
A Requerente optou pela não designação de árbitro.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram notificadas e não manifestaram vontade de recusar a designação da árbitro nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.ºe 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído em 10.02.2014.
No dia 26 de Maio de 2014 foi realizada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo os representantes da Requerente e da Requerida declarado prescindir da realização da inquirição de testemunhas bem como da produção de alegações finais, o que foi aceite pelo Tribunal.
Por deliberação do Tribunal de 27/06/2014 e de 27/08/2014 e 27/10/2014, foi prorrogado, pelos fundamentos invocados, o prazo para a decisão arbitral nos termos e pelo período de 3 meses previstos no artigo 21º-2, do RJAT.
2. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
II. FUNDAMENTAÇÃO
3. Matéria de facto
3.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) No dia 5 de Junho de 2009, a Requerente alienou à sociedade B…, S.A., com o NIF …(“B… SGPS”), 100 acções da sociedade C… S.A. (“C…S.A.); e 5000 acções da sociedade D…, S.A. (“D…S.A.”).
b) Estas transmissões foram realizadas mediante a realização em espécie do aumento do capital social da adquirente (B…SGPS), tendo a Requerente adquirido 269.288 acções da B…SGPS com valor nominal de €1.
c) O valor nominal da participação adquirida pela Requerente, i.e. € 269.288, correspondia à soma do valor dos capitais próprios da C… S.A. e da D… S.A. à data da operação.
d) À data das referidas transmissões, a B…SGPS tinha um capital social de €50,000, devidido em 50.000 acções com o valor nominal de €1, pertencentes a: 49.845 acções a E…, o pai da Requerente; 50 acções a F…; 50 acções a G…; 50 acções à requerente e 5 acções a H… .
e) No dia 15 de Junho de 2009, a Requerente alienou à B… SGPS 20 acções da sociedade I… S.A.(I... S.A.); 20 acções da sociedade J… S.A. (J… S.A.); e 20 acções da K… S.A. (G…S.A.).
f) Estas Transmissões foram realizadas mediante a realização em espécie do aumento do capital social da adquirente (B…SGPS), tendo a Requerente adquirido 646 novas acções da B…SGPS, também estas com valor nominal de €1.
g)O valor nominal da participação adquirida pela Requerente, i.e. €646, correspondia à soma do valor dos capitais próprios da K… S.A., da I… S.A. e da J… S.A. à data da operação.
h) Todas as sociedades transmitidas foram inicialmente constituídas sob a forma de sociedade por quotas, tendo a sua forma sido alterada par sociedade anónima nas seguintes datas: as sociedades D… S.A. e C… S.A., no dia 20 de Janeiro de 2009; e as sociedades K…S.A., da I… S.A., e da J… S.A. no dia 5 de Junho de 2009.
i) Todas as acções transmitidas pela Requerente, com a excepção das acções D… S.A., eram detidas, para efeitos fiscais, à data da transmissão, há menos de 12 meses.
j) As referidas transmissões foram comunicadas na declaração modelo 4, prevista no artigo 138.º do Código do IRS, mas os respectivos ganhos não foram incluídos (inicialmente) na respectiva declaração anual de rendimentos (modelo 3), em particular nos anexos G e G-1 (relativos às mais-valias e mais-valias isentas).
k) A Requerente foi notificada pelo ofício … de 26 de Julho de 2012 para proceder à substituição da declaração modelo 3 relativa ao ano de 2009, tendo em resposta informado que a transmissão de acções se realizou ao abrigo do regime da neutralidade fiscal.
l) A AT considerou que as operações de transformação da forma das sociedades acima identificadas e a subsequente transmissão para a B… SGPS, ao abrigo do regime de neutralidade fiscal. Reúnem os pressupostos de facto para aplicação da claúsula geral anti-abuso consagrada no artigo 38.º da Lei Geral Tributária (LGT) e para aplicação do n.º 10 do artigo 73.º do Código do IRC, aplicável por remissão dos n.ºs 8 e seguintes do artigo 10.º do Código do IRS.
3.2. Factos não provados
- Não se provou que as operações ou negócios descritos nas alíneas a) a g) dos factos provados, tivessem dado origem a qualquer vantagem fiscal para os intervenientes nem que estejam desprovidos de qualquer racionalidade económica.
3.3. Motivação
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente, no Relatório da Inspecção Tributária e nos documentos que constam do processo instrutor, com ponderação ainda da circunstância de inexistir controvérsia entre as partes quanto ao quadro factual e objectivo constante na referida documentação.
4. Fundamentação
O Direito
No caso em apreço, a AT entendeu que as operações descritas no sobredito enquadramento, nomeadamente a transformação da forma societária das cinco sociedades acima identificadas e a sua posterior transmissão, através de uma permuta de participações sociais, visaram essencialmente evitar que as mais-valias realizadas pela Requerente na transmissão dessas participações fossem efectivamente tributadas em sede de IRS.
De facto, segundo a AT, referindo-se apenas às transformações societárias, “com esta alteração societária procurou-se a não tributação destas transmissões, por força do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do Código do IRS, que excluía de tributação as mais-valias provenientes da alienação de acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses” (cfr. página 10 do Relatório de Inspecção), isenção esta que não era aplicável às mais valias realizadas na transmissão de quotas.
A AT acrescentou ainda que “ caso a alienação das partes sociais detidas pelos sujeitos passivos não tivesse sido concretizada sem o recurso à transformação prévia da natureza jurídica das sociedades, a mais-valia obtida com a transmissão seria objecto de tributação” concluindo que “através de um conjunto de operações e actos jurídicos que conduziram à alteração do tipo societário os rendimentos obtidos nestas alienações foram excluídos de tributação, o que não aconteceria se as sociedades mantivessem o tipo societário por quotas” (cfr. página 10 do Relatório de Inspecção)
No entanto, apesar desta afirmação, logo a seguir no mesmo Relatório de Inspecção a AT nota que, à data da transmissão das participações nas cinco sociedades acima identificadas à B… SGPS, apenas as acções da D… S.A. tinham sido detidas há mais de 12 meses pela Requerente, pelo que as mais- valias realizadas na transmissão das acções das outras quatro sociedades não estavam isentas de tributação ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do Código do IRS.
De acordo com a AT, foi por essa razão que a Requerente optou por transmitir as participações nas cinco sociedades acima identificadas via o aumento do capital da adquirente (B…SGPS), realizando-o mediante entrada em espécie dessas acções, o que permitiu caracterizar essa operação com uma permuta de partes sociais abrangida pelo regime de neutralidade fiscal e assim de excluir de tributação as mais-valias realizadas na transmissão das quatro sociedades cujas acções não tinham sido detidas há mais de 12 meses (cfr. página 12 do Relatório de Inspecção)
A AT, na convicção de que as operações realizadas, no seu conjunto, são abusivas, recorreu a duas normas anti-abuso que lhe permitiram contrariar os efeitos fiscais normais da transformação da forma societária e a subsequente permuta das partes sociais realizada ao abrigo do regime de neutralidade fiscal.
Assim, em primeiro lugar, ao abrigo da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária (“LGT”), a AT desconsiderou, para efeitos fiscais, a transformação da forma jurídica das sociedades D… S.A., C… S.A., K… S.A, I… S.A e J... S.A., permitindo-lhe acrescer à base tributável da Requerente o valor da mais- valia realizada na transmissão das acções da D… S.A., ( a única que tinha sido detida há mais de 12 meses e que, portanto, beneficiou, para efeitos fiscais, da referida transformação da forma jurídica).
Em segundo lugar, ao abrigo da norma anti-abuso prevista no n.º 10 do artigo 73.º do Código do IRC, a AT afastou os efeitos do diferimento de tributação previsto para as operações de permuta de partes sociais realizadas sob o regime de neutralidade fiscal, estabelecido nos artigos 73.º e seguintes do Código do IRC (aplicável aos ganhos realizados pela Requerente na transmissão das acções das quatro sociedades detidas há menos de 12 meses, por força da remissão do n.º 8 do artigo 10.º do Código do IRS).
No presente caso, haverá que analisar a aplicação destas normas anti-abuso de forma separada. Nesta análise, tem de partir-se do pressuposto de que a fundamentação do acto que decidiu a aplicação da cláusula geral anti-abuso que se tem de apreciar é apenas a que consta do próprio acto e elementos para que remete, pois o processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por actos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário – CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele]. Por isso, os actos que são objecto do processo têm de ser apreciados tal como foram praticados, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos.
4.1. Análise à luz da Cláusula Geral Antiabuso do n.º 2 do artigo 38.º da LGT
Neste âmbito, a questão a decidir é se a transformação da forma societária das cinco sociedades acima identificadas visou evitar a tributação das mais-valias realizadas pela Requerente na subsequente transmissão das respectivas participações sociais ou se, pelo contrário, não foi esse o único ou principal motivo para a referida transformação.
Na opinião da AT, a transformação da forma jurídica das cinco sociedades acima identificadas visou apenas evitar a tributação das mais-valias realizadas pela Requerente na subsequente transmissão das acções à B… SGPS, razão pela qual a AT desconsiderou a referida transformação para efeitos fiscais, ao abrigo do disposto no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, nos termos da qual « são ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abusos das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas».
A doutrina e a jurisprudência têm vindo a desconstruir a letra desta norma apontando cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um planeamento fiscal abusivo ( 1).
________________________
1 Ou seja, a uma “actuação planeada do contribuinte que se traduz num comportamento aparentemente lícito, geradora de uma vantagem fiscal não admitida pelo ordenamento tributário” (cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, Cláusula Geral Antiabuso no Direito Tributário: Contributos para a sua compreensão, Almedina, Coimbra, 2009, pp.15-17 e 163-165);
Estes elementos, em torno dos quais ambas as partes aliás constroem a sua argumentação, consistem:
- no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – acto ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de actos ou negócios jurídicos sequenciais, lógico e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal (2);
- no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos actos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente (3);
- no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja «essencial ou principalmente dirigid[a] […] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objetivamente, se o contribuinte «pretende um ato, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam» (4);
________________________
2 Como decorre da seguinte parte do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: “actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou deferimento temporal de imposto”
3 Tal decorre do seguinte segmento do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que sejam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”. Decorre ainda do artigo 63.º, n.º 3, alíneas a) e b) do CPPT, na redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que exigem que a Administração Tributária inclua na sua fundamentação, respectivamente, “a descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam” e “na demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais”.
4 Cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, Cláusula..., p. 180
- no elemento normativo, que «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela» (5)
- e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, « efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT).
Considerando os elementos da cláusula geral anti-abuso, a fundamentação da decisão, os factos provados, e a aurgumentação jurídicas das partes, não encontramos no processo elementos que nos permitam identificar três dos elementos essenciais para a aplicação da norma geral anti-abuso: o elemento resultado, o elemento intelectual, e o elemento normativo.
No que se refere ao elemento resultado, não podemos deixar de considerar, antes de mais, que a transformação da forma societária antecede uma premuta de partes sociais realizada ao abrigo do regime de neutralidade fiscal, i.e. uma operação na qual a tributação das mais-valias realizadas pela Requerente é diferida para o momento em que se realize uma futura transmissão dos títulos adquiridos na permuta (in casu uma futura alienação pela Requerente das acções da sociedade B… SGPS adquiridas na operação).
Refira-se, também, que das acções das cinco sociedades transmitidas, apenas as acções de uma dessas sociedades tinham sido detidas há mais de 12 meses, pelo que apenas as mais-valias realizadas em relação a estas poderiam beneficiar da isenção prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do Código do IRS.
_______________________
5 Cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, Cláusula..., p.211.
Refira-se ainda que a aplicação do regime de neutralidade fiscal aos ganhos realizados pela Requerente na operação de permuta realizada não dependia da transformação da forma societária das sociedades adquiridas pela B… SGPS (sociedade adquirente na permuta).
Assim sendo, é evidente que a transformação da forma societária não acarretou qualquer benefício fiscal para a Requerente, pelo que não poderá ser afirmado que a referida transformação resultou na obtenção de uma vantagem fiscal quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos actos ou negócios jurídicos «normais» (que neste caso seria não se ter deliberado a transformação da forma societária das cinco sociedades transmitidas).
Este facto prejudica necessariamente a verificação do elemento intelectual, uma vez que exige que a transformação societária tenha sido «essencial ou principalmente dirigid[a] […] à redução, eliminação, ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT). É que, perante a inexistência de uma vantagem fiscal, é impossível concluir que o contribuinte escolheu «um ato, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam»
Finalmente, no que se refere ao elemento normativo, não pode ver-se a venda das acções se sujeição a tributação (ao abrigo da alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do Código do IRS) como algo abusivo ou proibitivo: se existia essa denominada “lacuna consciente de tributação” (6), desta se aproveitou legal, compreensível e legitimamente o vendedor
Por isso, a utilização dos sobreditos e legais formas jurídicas não pode ser considerada como utilização de meios artificiosos ou fraudulentos, para efeitos do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, nem se pocde vislumbrar qualquer abuso de formas jurídicas na concretização de tais operações.
Assim, sendo cumulativos os requisitos previstos no n.º 2 do artigo 38.º da LGT para aplicação da CGAA, tem de se concluir que a actuação da Requerente não pode ser considerada como realizada com o propósito essencial de evitar a tributação das mais-valias em sede de IRS e como tal não está abrangida pela previsão da referida norma.
_______________________
6 SALDANHA SANCHES, J.L., Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p.21
4.2. Análise à luz da norma anti abuso do n.º 10 do artigo 73.º do Código do IRC
Neste âmbito, a questão que se coloca é se a operação de permuta de partes sociais, realizada ao abrigo do regime de neutralidade fiscal, teve subjacente razões económicas válidas qie permitam aplicação desse regime, conforne argumenta a Requerente, ou se, pelo contrário, como sustenta a AT, as “operações de transferência de partes sociais para outra sociedade (…) não tiveram por objecto razões económicas válidas, tais como a racionalização ou reestruturação das actividades”, caso em que a aplicação do referido regime poderá ser negada, nos termos do n.º 10 do artigo 73.º do CIRC.
Este artigo, que contém a cláusula antiabuso destinada especificamente às operações realizadas ao abrigo do regime de neutralidade fiscal, dispõe que : “O regime especial estabelecido na presente subsecção não se aplica, total ou parcialmente, quando se conclua que as operações abrangidas pelo mesmo tiveram como principal objetivo ou como um dos principais objetivos a evasão fiscal, o que pode considerar-se verificado, nomeadamente, nos casos em que as sociedades intervenientes não tenham a totalidade dos seus rendimentos sujeitos ao mesmo regime de tributação em IRC ou quando as operações não tenham sido realizadas por razões económicas válidas, tais como a reestruturação ou a racionalização das atividades das sociedades que nelas participam, procedendo-se então, se for caso disso, às correspondentes liquidações adicionais de imposto.”
Antes de mais, cumpre clarificar que para que seja negada a aplicação do regime de neutralidade fiscal, ao abrigo do n.º 10 do artigo 73.º do CIRC, não é suficiente a mera alegação, pela AT, de que as operações em causa “ não tiveram como objetivo razões económicas válidas, tais como a racionalização ou reestruturação das atividades” (cfr. Página 11 do Relatório de Inspecção).
Na verdade, mesmo que o n.º 10 do artigo 73.º do CIRC, estabelecesse uma presunção legal (7), no sentido de que verificada a ausência de razões económicas válidas se presumiria que o principal objetivo da operação, ou um dos seus principais objetivos, foi a evasão fiscal, ainda assim competiria à AT demonstrar que a operação carece dessas razões económicas.
É que, a demonstração da existência de pressupostos dessa presunção (i.e. a ausência de razões económicas válidas) compete a quem o invoca (8). Só então, caso esse pressuposto seja demonstrado com sucesso, passará a competir ao sujeito passivo o ónus da prova de que o principal objetivo da operação, ou um dos seus principais objetivos, não foi a evasão fiscal.
Ora, no caso sub judice, a AT limitou-se a indicar como indícios de ausência de razões económicas válidas que “ da análise das demonstrações financeiras não ressalta que desta operação tenham resultado para as empresas envolvidas alterações significativas no seu funcionamento, nomeadamente aumentando a sua produtividade e reforçando a sua posição concorrencial” e que a B... SGPS “ à data em que se realizou este negócio jurídico (permuta das partes sociais e aumento do capital) não detinha quaisquer outras participações financeiras”(cfr. Página 14 do Relatório de Inspecção).
Estes indícios são claramente insuficientes para que se possa concluir que a operação realizada pela Requerente carece de racionalidade económica. É que, por um lado, a operação de permuta de partes sociais, visando uma alteração na estrutura de detenção das “sociedades adquiridas”, dificilmente implicará uma alteração a nível da atividade económica de cada uma delas individualmente consideradas. As alterações visadas neste tipo de reestruturação estão essencialmente dirigidas a melhorar o governo dessas sociedades e as relações do grupo societário com terceiros, nomeadamente bancos e novos investidores.
______________________
7 Questão que levanta algumas dúvidas, mas que face às conclusões da presente decisão não é fundamental analisar.
8 Cfr. Artigo 74.º da LGT
Por outro lado, o facto da B... SGPS não ter quaisquer outras participações à data da operação, conforme indica a AT, mas ser actualmente a sociedade holding que encabeça um grupo formado por mais de uma dezena de entidades, fragiliza o segundo indício de ausência de razões económicas apontado pela AT. É que, claramente, essa sociedade tem sido utilizada para, conforme aponta a Requerente, centralizar as participações de todos os negócios detidos pela sua família.
Pelo que, concluímos que os elementos aportados ao processo pela AT não são suficientes para inferir que a operação de permuta de partes sociais realizada pela Requerente carece de razões económicas válidas, pelo que os pressupostos da mencionada presunção não foram demonstrados.
Assim sendo, haverá que analisar a operação à luz dos demais elementos constantes da disposição vertida no n.º 10 do artigo 73.º do CIRC.
Para o efeito, há que chamar a atenção para o facto de que esta norma transpõe para o ordenamento jurídico português a disposição constante do artigo 15(1)(a) da Directiva 2009/133/CE, do Conselho, de 19 de Outubro, relativa ao regime fiscal comum aplicável às fusões, cisões, cisões parciais, entradas de activos e permutas de acções entre sociedades de Estados Membros diferentes e à transferência da sede de uma Sociedade Europeia (SE) ou de uma Sociedade Cooperativa Europeia (SCE) de um Estado Membro para o outro (“Directiva das Fusões”).
Assim, o disposto no n.º 10 do artigo 73.º do CIRC deverá, em resultado dos princípios de primazia e efeito directo das normas de direito comunitário, ser interpretado à luz do princípio desse ordenamento jurídico, já que o uso do mecanismo de combate anti-abuso previsto na Directiva das Fusões visa garantir, em última instância, a correcta aplicação do próprio direto comunitário, mesmo naquelas operações entre entidades residentes num só Estado-Membro(9).
Por esta razão, os critérios de aplicação desta norma anti-abuso não são absolutamente coincidentes com aqueles anteriormente descritos no contexto da CGAA, uma vez que deverá levar em conta o ordenamento comunitário em que se insere, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) e a própria finalidade específica do regime de neutralidade fiscal (10).
No que se refere à sua finalidade específica, note-se que o regime de neutralidade fiscal tem subjacente o reconhecimento de que a maximização da eficiência organizacional das empresas é um valor (extrafiscal) superior aos interesses creditícios dos Estados-membros, pelo que estes, através do regime de neutralidade fiscal, prescindem de receita fiscal com o único propósito de não dificultar as reorganizações empresariais que visem essa eficiência (11).
Sucede, porém, que a aplicação do regime de neutralidade gera assimetria no sistema fiscal, susceptível de incentivar os agentes económicos à adopção de comportamentos de substituição (12), que, no caso que nos ocupa, consistirão na implementação de transacções substitutas destinadas a permitir a aplicação do regime de neutralidade fiscal a reorganizações que, substancialmente, não visam a obtenção dessas eficiências.
___________________________
9 Cfr. Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de Julho de 1997, Leur-Bloem, C-28/95.
10 Apesar de em ambos os casos estarmos perante o mesmo fenómeno jurídico – a fraude à lei.
11 Esta hierarquia de valores encontra-se expressa no ponto 11. Do preâmbulo do CIRC, onde se estabelece que a reorganização e o fortalecimento do tecido empresarial não devem ser dificultados, mas antes incentivados, pelo que se criam condições para que aquelas operações não encontrem qualquer obstáculo fiscal à sua efetivação, desde que, pela forma como se processam, esteja garantido que apenas visam um adequado redimensionamento das unidades económicas. Encontramos esse mesmo reconhecimento no preâmbulo da Directiva, em particular no esclarecimento de que o principal objetivo do regime de neutralidade aí consagrado é a eliminação dos obstáculos fiscais às reorganizações empresariais, permitindo, dessa forma, que as empresas. “se adaptem às exigências do mercado comum; aumentem a sua produtividade e reforcem a sua posição concorrencial no plano internacional”.
12 A propósito dos efeitos das assimetrias e a respectiva indução à adopção de comportamentos de substituição, veja-se CORREIA, M., Taxation of Corporate Groups, Kluver Law International, 2014, p. 41-48 e ROCHA MENDES, A. e CORREIA M., As alterações aos Mecanismos para evitar a Dupla Tributação Económica de Lucros, fiscalidade, Abril-Junho de 2011, p. 88 e 89
A necessidade de evitar esses comportamentos (em fraude à lei, ou em abuso de direito, conforme a terminologia adoptada pelo TJUE) (13) tem sido analisada pelo TJUE sob dois prismas distintos: (i) enquanto requisito de interesse público, susceptível de restringir a aplicação das liberdades fundamentais; e (ii) enquanto manifestação de um princípio geral de Direito Comunitário, que permite negar os efeitos do exercício de direitos consagrados nesse ordenamento em situações nas quais os agentes actuam de forma abusiva (i.e. em fraude à lei) (14).
Apesar de se manifestar de forma distinta, para o Tribunal é claro que em ambos os casos estamos perante o mesmo conceito. Na verdade, a fraude à lei que se pretende evitar ao permitir que os legisladores nacionais criem normas restritivas das liberdades fundamentais, é exatamente o mesmo conceito que permite negar o exercício de direitos de fonte comunitária realizados de forma abusiva (em fraude à lei) (15).
Por esse motivo, em ambos os contextos, o Tribunal aplica o mesmo teste para identificar situações abusivas, formulando-os nos seguintes termos: “a verificação da existência de uma prática abusiva exige, por um lado, que as operações em causa, apesar da aplicação formal das condições previstas nas disposições pertinentes da Sexta Directiva e da legislação nacional que transponha essa directiva, tenham por resultado a obtenção de uma vantagem fiscal cuja concessão seja contrária ao objetivo prosseguido por essas disposições.
______________________
13 A fraude à lei fiscal é denominada na doutrina internacional como “elisão fiscal” (tax avoidance) ou, sobretudo na jurisprudência do TJUE, como “abuso de direito”. Estamos inteiramente de acordo com SALDANHA SANCHES na sua construção da elisão fiscal como fraude à lei fiscal, não abuso de direito. Conforme indica, por um lado, a doutrina do abuso de direito no Direito Civil foi já ultrapassada por uma ideia mais ampla de exercício inadmissível de posições jurídicas e, por outro, nem sempre é possível encontrar nas situações em causa um direito subjectivo que tenha sido exercido abusivamente. Apesar da fraude à lei e o abuso de direito não serem instituídos idênticos, para facilitar a exposição na presente decisão utilizá-los-emos como tal.
14 TERRA J.M.B., WATTEL, P.J., European Tax, Kluver Law International, 2008, p.363
15 TERRA J.M.B., WATTEL, P.J., European Tax, Kluver Law International, 2008, p.363
Por outro lado, deve igualmente resultar de um conjunto de elementos objetivos que a finalidade essencial das operações em causa é a obtenção de uma vantagem fiscal. Com efeito, (...) a proibição de práticas abusivas não é relevante nos casos em que as operações em causa possam ter alguma explicação para além da mera obtenção de vantagens fiscais” (16)
O TJUE teve também a oportunidade de analisar o conceito de abuso de direito no âmbito da aplicação da Directiva das Fusões (17). A conjugação da doutrina geral anti-abuso desenvolvida pelo Tribunal e a sua jurisprudência nos casos específicos em que a analisou no contexto das reorganizações permite-nos concluir que se devem considerar abusivas todas as operações que, efectuadas ao abrigo do regime de neutralidade fiscal, sejam: (i) principalmente motivadas por “razões fiscais”; e (ii) cujos resultados contrariem o objeto e o propósito da Directiva das Fusões.
Interpretando a disposição do n.º 10 do artigo 73.º do CIRC à luz do direito comunitário, da jurisprudência do TJUE e da finalidade própria do regime de neutralidade fiscal acima descrita, identificamos os seguintes três elementos essenciais para que possa ser recusada a aplicação do regime de neutralidade fiscal a uma determinada operação: (i) que essa operação resulte na obtenção de vantagens fiscais (18); (ii) que a intenção primordial para realizar a referida operação tenha sido a obtenção dessas vantagens fiscais (19); e
_____________________
16 Cfr. Parágrafo 74 e 75 do acórdão do TJUE de 21 de Fevereiro de 2006, Halifax, C-255/02.
17 Acórdãos do TJUE de 17 de Julho de 1997, Leur-Bloem, C-28/95, de 15 de Janeiro de 2002, Andersen og Jensen, C- 43/00, de 20 de Maio de 2010, Modehuis A. Zwijnenburg, C-352/08, de 10 de Novembro de 2011, Foggia SGPS C- 126/10.
18 Encontramos a expressão deste elemento da norma anti-abuso na referência aos “objetivos de evasão fiscal” expressa no n.º 10 do artigo 73.º do CIRC. Esta referência implica necessariamente que apenas estão sujeitas ao escrutínio desta norma anti-abuso as operações em que os agentes económicos adoptam comportamentos de substituição que se traduzam em vantagens fiscais. A contrario, concluímos que a norma anti-abuso não é aplicável na ausência de vantagens fiscais, uma vez que a falta destas implica necessariamente a inexistência de evasão “fiscal”.
19 Encontramos o segundo elemento na menção, no n.º 10 do artigo 73.º do CIRC, de que o regime não será aplicável “quando se conclua que as operações abrangidas pelo mesmo tiveram como principal objetivo ou como um dos principais objetivos a evasão fiscal”. Conclui-se, necessariamente, que apenas podem ser negados os efeitos da neutralidade fiscal aos comportamentos de substituição cuja principal motivação tenha sido a obtenção das vantagens fiscais acima descritas.
(iii) que o resultado concreto da operação viole os princípios normativos subjacentes ao regime de neutralidade fiscal, ou seja, na prática, que a operação realizada não seja susceptível de gerar as eficiências organizacionais que justificam o diferimento da tributação concedido pelos Estados-membros (20).
A aplicação desta norma anti-abuso pressupõe a verificação cumulativa dos três elementos acima descritos.
Sucede, porém, que considerando os factos provados e a argumentação jurídica das partes, não encontramos no processo elementos que nos permitam identificar, na operação de permuta de participações sociais realizada pela Requerente, qualquer um destes três elementos.
Por outro lado, não consta do processo qualquer elemento que nos permita apontar qual a vantagem fiscal obtida pela Requerente na operação de permuta de partes sociais realizada. A única referência a vantagens fiscais aportada pela AT ao processo refere-se ao próprio efeito de diferimento da tributação das mais-valias realizadas na operação de permuta de participações sociais, que, em si mesmo, não pode ser considerado como uma vantagem fiscal para efeitos da aplicação da norma anti-abuso em apreço.
É que, a realização de uma operação abusiva pressupõe uma dualidade de normas jurídicas: uma, a “norma defraudada”, que dá origem a uma obrigação tributária; e outra, a “norma cobertura”, que estabelece uma menor tributação, uma isenção ou a ausência de uma norma de incidência numa determinada situação, à qual o agente económico acede através de um comportamento de substituição, com vista à obtenção de uma vantagem fiscal.
________________________
20 O terceiro elemento fundamental na aplicação do n.º10 do artigo 73.º do CIRC resulta do teste concebido pelo TJUE para definir operações abusivas, o qual exige que “as operações em causa, apesar da aplicação formal das consições previstas nas disposições pertinentes (...) Directiva e da legislação nacional que transponha essa directiva, tenham por resultado a obtenção de uma vantagem fiscal cuja concessão seja contrária ao objetivo prosseguido por essas disposições”. Ou seja, para que uma operação possa ser considerada abusiva, deve produzir efeitos que sejam incompatíveis com o propósito e os princípios subjacentes ao regime de neutralidade fiscal, que, como vimos, consiste na desoneração das operações que resultem na obtenção de eficiências organizacionais.
No contexto específico do regime de neutralidade fiscal, as normas defraudadas são as normas de incidência sobre ganhos realizados na alienação onerosa de activos (no caso em apreço a alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS), que impedem (ou dificultam) que o agente económico aceda às vantagens fiscais pretendidas. A norma de cobertura é a norma do regime de neutralidade fiscal que permite ao agente atingir o resultado pretendido (i.e. atingir a vantagem fiscal pretendida) sem sofrer o impacto fiscal da norma defraudada.
Ou seja, os agentes adoptam transacções (substitutas), formalmente elegíveis para o regime de neutralidade fiscal (norma de cobertura), com vista à obtenção de um objetivo (a vantagem fiscal) alheio ao propósito do regime, de forma a evitar a tributação incidente (norma defraudada) sobre a transacção (substituída) que normalmente conduziria à realização desse objetivo.
Assim sendo, conclui-se que o deferimento da tributação previsto no regime de neutralidade fiscal não é o objetivo do agente (i.e. não é a vantagem fiscal pretendida), mas apenas o meio utilizado para evitar os obstáculos fiscais que o impedem de aceder a esse objetivo (i.e. às vantagens fiscais pretendidas).
Ora, no caso sub judice, não foram trazidos ao processo quaisquer elementos que permitam identificar a vantagem fiscal a que a Requerente alegadamente pretendeu aceder através da realização da operação de permuta de participações sociais.
Pelo contrário, a AT refere como fundamento para aplicação da norma anti-abuso apenas que a Requerente, com a referida operação, procurou “a não tributação, por força do n.º 8 do artigo 10.º do CIRS”. Ora, esta é justamente a norma que estabelece o diferimento de tributação no contexto de operações realizadas ao abrigo do regime de neutralidade fiscal.
Ou seja, no processo de aplicação da norma anti-abuso, a AT confundiu a norma de cobertura alegadamente utilizada com a vantagem fiscal alegadamente pretendida pela Requerente, não identificando, por esse motivo, qual entende ter sido esta última (21).
Este facto tem um impacto directo também na apreciação do segundo elemento da norma anti-abuso do n.º 10 do artigo 73.º do CIRC, uma vez que a operação teve “como principal objetivo ou como um dos principais objectivos a evasão fiscal”. É que a evasão “fiscal” pressupõe a existência de uma vantagem “fiscal” para o agente.
Imaginemos, por exemplo, que a permuta realizada tinha como único intuito tornar possível a compensação dos prejuízos fiscais de uma sociedade com os lucros da outra sociedade, apesar do facto dessa estrutura ser ineficiente do ponto de vista económico. Num mundo sem impostos essa estrutura nunca seria implementada por causa dos custos inerentes à própria transacção e às ineficiências da estrutura pós-reorganização. No mundo real, no entanto, essas ineficiências seriam compensadas pela vantagem fiscal inerente à possibilidade de compensação dos prejuízos fiscais.
Neste hipotético caso, seriamos forçados a concluir que a motivação essencial para a realização da permuta das partes sociais era de natureza fiscal, porque na ausência de impostos essa operação (que resulta numa estrutura ineficiente) não se realizaria.
Assim, podemos concluir que são motivadas principalmente por razões fiscais aquelas operações que, não obstante poderem ter subjacente uma vantagem não fiscal, não seriam realizadas se delas não resultassem vantagens fiscais (i.e., as vantagens fiscais continuam a ser a componente determinante para a realização da operação).
_____________________
21 A título meramente exemplificativo, poderíamos considerar que uma possível vantagem fiscal, neste tipo de operações realizada ao abrigo do regime de neutralidade fiscal (norma de cobertura), seria a intenção de aplicar a participation exemption numa subsequente venda de acções pela sociedade adquirente, diferindo-se a tributação das mais-valias incidentes sobre essa venda na esfera individual (vantagem fiscal pretendida) até que o resultado dessa venda fosse distribuído via dividendos. Ou então, como sucedeu no caso do acórdão Leur-Bloem, realizar a permuta de acções ao abrigo do regime de neutralidade fiscal (norma cobertura), para que uma das sociedades passe a deter a totalidade da outra, permitindo-lhe que os prejuízos fiscais desta sejam compensados, no futuro, com os lucros da outra através de um mecanismo de consolidação fiscal (vantagem fiscal pretendida). Em ambos os casos, a substituição do comportamento é a realização da própria reorganização, que não seria efectuada na ausência das vantagens fiscais pretendidas.
Segundo a jurisprudência do TJUE, a análise deste aspecto deve ser realizada de forma totalmente objectiva, devendo “resultar de um conjunto de elementos objectivos que a finalidade essencial das operações em causa é a obtenção de uma vantagem fiscal”. Para esse efeito, o juízo quanto à motivação “pode ter em consideração o carácter puramente artificial das operações, bem como as relações de natureza jurídica, económica e/ou pessoal entre os operadores em causa, uma vez que esses elementos são susceptíveis de demonstrar que a obtenção da vantagem fiscal constitui o objectivo essencial prosseguido, sem prejuízo da eventual existência, para além deste, de objectivos económicos inspirados em considerações, por exemplo, de marketing, de organização e de garantia”.
Sucede, porém, que no caso sub judice não foram trazidos ao processo elementos que permitam avaliar se esta operação se teria realizado num “mundo sem impostos”, uma vez que não foi sequer identificada qualquer vantagem fiscal que tenha servido de motivo à realização da operação de permuta de participações sociais realizada pela Requerente nem foram apresentados elementos relacionados com potenciais ineficiências inerentes à nova estrutura.
Por esse motivo, torna-se impossível também avaliar o terceiro elemento da norma anti-abuso, ou seja, avaliar se a operação em causa aporta eficiências organizacionais às empresas reorganizadas, que justifiquem aplicação do regime de neutralidade e a consequente abdicação de receita fiscal pelo Estado, ou se, pelo contrário, a operação realizada não é susceptível de aportar eficiências económicas ao grupo empresarial reorganizado, situação em que os resultados concretos da operação não estariam alinhados com o propósito do regime de neutralidade fiscal.
Como referimos anteriormente, a AT limitou-se a indicar que “da análise das demonstrações financeiras não ressalta que desta operação tenham resultado para as empresas envolvidas alterações significativas no seu funcionamento, nomeadamente aumentando a sua produtividade e reforçando a sua posição concorrencial” e que a sociedade adquirente “ à data em que se realizou este negócio jurídico (permuta de partes sociais e aumento de capital) não detinha quaisquer outras participações financeiras noutras sociedades” (cfr. Página 14 do Relatório de Inspecção), alegações que são manifestamente insuficientes para demonstrar que a operação em causa não trouxe qualquer eficiência económica para o grupo empresarial em causa e que, como tal, produz efeitos contrários ao propósito do regime de neutralidade ao abrigo do qual a operação se realizou.
Refira-se finalmente que, nos termos do disposto no artigo 74.º da LGT, não só o ónus da prova dos três elementos acima descritos compete à AT, como, de acordo com o artigo 100.º do CPPT, suscitando-se dúvidas quanto à presença de qualquer desses elementos, essa dúvida terá de ser valorada a favor do sujeito passivo.
5. Conclusão
Conclui-se, assim, que não se verificam os pressupostos de facto de que dependa a aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT nem da norma anti-abuso prevista no n.º 10 do artigo 73.º do CIRC.
Em ambos os casos, quando essas normas referem que, para a respectiva aplicação, os negócios devem ser principalmente dirigidos à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos, torna-se necessário demonstrar, entre outros factos, que na operação em apreço foram obtidas vantagens fiscais e que a obtenção destas foi objectivo essencial ou principal visado pelo contribuinte.
Ora é a prova da existência dessas vantagens e da motivação fiscal que, no caso, não se afigura, pelo menos, evidente.
E, ainda que se pudessem suscitar algumas dúvidas quanto a ter sido essa ou não, a finalidade essencial ou principal das operações comerciais objectivamente efectuadas, a verdade é que sempre essa dúvida teria de ser valorada a favor do sujeito passivo à luz do disposto nos artigos 74.º da LGT e 100.º do CPPT.
Por isso, tem de ser julgado procedente o pedido de anulação dos actos de liquidação do IRS do ano de 2009 e juros compensatórios objecto deste processo.
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º - A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 29.667,86.
III. Decisão
8. De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e determinar a anulação da liquidação de imposto objecto dos autos e demais acréscimos (juros compensatórios) e
7. Custas
Fica a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira o pagamento das custas, fixando-se o respectivo montante em € 1.530,00 (mil quinhentos e trinta euros), nos termos do artigo 22º- 4, do RJAT e da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Lisboa, 06/02/2015
O Árbitro,
António Rocha Mendes