CAAD: Arbitragem Tributária
Processo n.º: 24/ 2011-T
Tema: Derrama. Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedade
ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA
(DL 10/2011, de 20/01 – RJ - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA)
P. N.º 24/2011 – T
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1 . ..., pessoa colectiva n.º…, com sede na Rua…, … Lisboa (de ora em diante, a Requerente), apresentou, em … .12.2011, invocando o disposto no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e nos artigos 1.º e 2.º da portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Singular, com vista à declaração da ilegalidade parcial do acto tributário de liquidação IRC de 2010 emitido pela liquidação n.º … de … de Julho de 2010, sendo Requerida a Direcção-Geral dos Impostos.
2. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (de ora em diante designado Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT), por decisão do Presidente do Conselho Deontológico de 22.12.2011 foi designado como árbitro único, o signatário Tiago Caiado Guerreiro, que aceitou o cargo no prazo legalmente estipulado.
3. O tribunal arbitral foi constituído a 4 de Janeiro de 2012, na sede do CAAD (cfr. acta de constituição do tribunal arbitral).
4. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente alegou, em resumo, o seguinte:
4.1. No âmbito do acto de autoliquidação de IRC respeitante o exercício de 2010, foi emitida a nota de liquidação com o n.º…, revelando um apuramento da correspondente derrama municipal ao nível dos Grupos de Sociedades sujeitos ao RETGS, nos termos do Ofício-circulado n.º 20132, da Direcção de Serviços do IRC, de 14.04.2008.
4.2. Após entrada em vigor do artigo 14.º da lei n.º 2/2007 de 15 de Janeiro (seguidamente “Lei das Finanças Locais”) a forma de cálculo da derrama municipal foi alterada – anteriormente a derrama municipal era apurada em função da colecta dos sujeitos passivos - incidindo agora sobre o lucro tributável.
4.3. Face à existência de dúvidas quanto à aplicação prática desta norma, no âmbito do regime das sociedades sujeitas a regimes especiais de tributação, a Direcção de Serviços de IRC emitiu o mencionado Ofício-circulado, nos termos do qual se retira que “a derrama deverá ser calculada e indicada individualmente por cada uma sociedades na sua declaração, sendo preenchido, também individualmente, o Anexo A, se for caso disso.”
4.4.Tal entendimento constitui uma novidade face a este regime, pois teria como base de cálculo o lucro tributável de cada uma das sociedades.
4.5. Neste sentido, o entendimento da Autoridade Tributária é contrário ao legislado na Lei das Finanças Locais, porquanto o mesmo contraria a base sobre a qual assenta o apuramento da base tributável de IRC, incluindo a derrama municipal, ao nível dos Grupos sujeitos ao REGTS.
4.6. Tendo sido solicitado consequentemente que se profira uma decisão relativamente à ilegalidade parcial do acto de liquidação de IRC por errónea quantificação do tributo, na parte respeitante à derrama municipal, requerendo, consequentemente, o reembolso do montante de €18.134,23, pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios.
5. No pedido de pronúncia arbitral a Requente juntou 9 (nove) documentos.
6. Em 26 de Janeiro, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou Resposta na qual, em síntese, alegou o seguinte:
6.1. A derrama municipal apenas encontra assento legal na supra mencionada Lei das Finanças Locais.
6.2. A derrama constitui um imposto geral, ordinário, directo, real, periódico e não estadual.
6.3. O sujeito activo do imposto é o Município enquanto pessoa colectiva de direito público – a derrama é um verdadeiro imposto autárquico, que nasce, enquanto receita, na esfera do próprio Município, sendo este, enquanto pessoa colectiva de direito público, o sujeito activo do imposto.
6.4. A Autoridade Tributária apenas se substitui ao Município no exercício dos poderes instrumentais, tendo apenas meras funções de arrecadamento de receitas.
6.5. Concluindo assim a Requerida pela ilegitimidade passiva da Autoridade Tributária e consequentemente pela Incompetência do Tribunal Arbitral, pois o Município não está vinculado à arbitragem em matéria tributária e à consequente jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD).
6.6. Sustenta ainda que a derrama é um imposto autónomo do IRC, não sendo pois influenciados pelas especificidades de tributação em sede de IRC, nomeadamente as que resultam do REGTS.
6.7. Pelo que, o facto de as sociedades estarem abrangidas por tal regime, em sede de IRC, não altera a base tributável da derrama que, nos termos do artigo 14° da Lei das Finanças Locais, continua a ser o lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC, ou seja de cada uma das sociedades individualmente consideradas.
6.9. Terminado a Requerida por solicitar a procedência das excepções dilatórias invocadas bem como a sua absolvição.
7. No dia seguinte a Requerida procedeu à junção do Processo Administrativo Tributário.
8. Realizou-se, de seguida, em 8 de Março de 2012, a Primeira Reunião do Tribunal Arbitral, nos termos e com os objectivos previstos no artigo 18.º do RJAT.
As partes foram ouvidas quanto as excepções tendo a decisão sido consignada em acta nos termos seguintes:
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A Requerida tem legitimidade passiva;
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Por conseguinte o Tribunal é competente.
As partes não apresentaram correcções às peças processuais.
Nos termos do artigo 18.º n.º 1 alínea a) do RJAT o Árbitro decidiu o prosseguimento do processo dispensando a apresentação de alegações orais (cfr., acta da Primeira Reunião do Tribunal Arbitral).
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Cumpre pois apreciar e decidir.
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II. QUESTÕES DECIDENDAS
Em face do exposto nos números anteriores, as principais questões a decidir são a seguintes:
a) as excepções processuais de incompetência do Tribunal Arbitral e da ilegitimidade processual da Autoridade Tributária invocadas pela Requerida;
b) a alegada ilegalidade do acto de liquidação da derrama municipal relativa ao exercício de 2010;
c) a atribuição de juros indemnizatórios, a acrescer ao montante a restituir do tributo indevidamente liquidado e pago.
III - DAS EXCEPÇÕES DILATÓRIAS
Cumpre desde já adiantar que não existem quaisquer dúvidas de que as Partes têm legitimidade e o Tribunal é competente, conforme decidido em sede de Primeira Reunião do Tribunal Arbitral e que se expõe infra:
Sustenta a Requerida não ser parte na relação jurídico-tributária controvertida pelo facto do sujeito activo no caso da derrama municipal ser o Município.
Adiante-se desde já que de tal se discorda inteiramente.
Senão Vejamos:
Várias têm sido as classificações que a doutrina nacional tem proposto quanto à natureza dos impostos: impostos estaduais e não estaduais centrais e locais estaduais e autárquico; estaduais, locais e parafiscais; estaduais ou centrais e locais;
A titularidade aqui tida em conta é a capacidade tributária activa, isto é, a qualidade do sujeito activo ou do credor da relação jurídico fiscal, e não o poder tributário (poder de instituir o imposto) de que dispõem o Estado, as Regiões Autónomas e os Municípios. Também não está aqui incluída a competência tributária (competência para administrar ou gerir o imposto) ou a titularidade (constitucional ou legal) da receita do imposto;
Efectivamente o Município tem a titularidade activa no que respeita à derrama, ainda que dentro dos limites impostos pela Lei das Finanças Locais;
De resto, resulta do disposto na Lei das Finanças Locais, nos nºs 9 a 11 do seu artigo 14.°, (anteriormente a 2012, nºs 8 a 10), que a administração da derrama é feita pela DGCI (à qual sucedeu a Autoridade Tributária), cabendo tão-somente aos Municípios a comunicação da intenção do lançamento da derrama no considerado exercício, bem como o recebimento da transferência do montante correspondente à receita obtida com a aplicação da mesma;
Não existe pois a correspondente relação jurídica fiscal entre o contribuinte e o correspondente Município;
O Município é um mero pretenso sujeito activo;
O Município só intervém quando os impostos já foram pagos e as respectivas obrigações fiscais já foram cumpridas;
O Município apenas poderá ser considerado sujeito processual activo quando se verificar a municipalização da liquidação e cobrança desses impostos, ou seja, se os Municípios assumissem a liquidação e cobrança dos impostos municipais. Só perante este cenário o Município assumiria a posição de sujeito activo;
Quem apura a derrama é a Autoridade Tributária e apenas posteriormente o valor é transferido para o Município;
O Município não figura na relação jurídico tributária;
O Município é o mero destino da derrama;
O Município é titular da relação obrigacional, porém é a Autoridade Tributária que é titular da relação jurídica instrumental;
O Município tem a capacidade tributária (capacidade de gozo), mas quem tem a competência tributária é a Autoridade Tributária (poderes instrumentais de aplicação da norma);
Em suma, a Autoridade Tributária é o verdadeiro credor do imposto, improcedendo a excepção de ilegitimidade passiva.
Quanto à incompetência do Tribunal Arbitral, suscitou a Requerida a questão da incompetência material do tribunal arbitral, argumentando não ser a Autoridade Tributária, mas sim os Municípios, o sujeito activo na relação jurídico tributária em virtude de se tratar de um tributo municipal.
A incompetência do tribunal arbitral decorreria do facto de os Municípios não se encontrarem submetidos à jurisdição arbitral, por falta de vinculação.
A este respeito, cumpre referir que a competência dos tribunais arbitrais se encontra definida no artigo 2.° do RJAT, de cujo n.º 1, alínea a), do qual decorre deterem os tribunais arbitrais competência para a apreciação da pretensão de declaração de ilegalidade de actos de liquidação e de autoliquidação de tributos.
Dispõe, por seu turno, o mesmo RJAT, no n.º 1 do seu artigo 4.º, que a vinculação da Autoridade Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais depende de portaria conjunta dos ministros das Finanças e da Justiça.
Essa vinculação foi estabelecida pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em cujo artigo 1.º postula a vinculação à jurisdição arbitral dos serviços - DGCI e DGAIEC - que administram e controlam os impostos em Portugal, sendo certo que a matéria em litígio não se enquadra em nenhuma das situações excludentes contempladas no respectivo artigo 2.°.
Conclui-se assim pela competência deste tribunal arbitral, com a consequente vinculação da Autoridade Tributária à presente arbitragem.
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SANEAMENTO
O Tribunal é competente.
O processo não enferma de vícios que o invalidem na totalidade.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se legítimas.
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IV. FUNDAMENTOS DE FACTO
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A Requerente é a sociedade dominante de um grupo de sociedades sujeito ao Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (adiante designado por RETGS).
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Em … .05.2011 procedeu à entrega da declaração de rendimentos modelo 22, referente ao exercício de 2010, tendo sido apurada derrama municipal no valor de €354.534,68.
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A referida autoliquidação deu origem à liquidação nº …, notificada à Requerente por carta registada de … .07.2011.
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A Requerente apresentou em … .08.2011, no Serviço de Finanças de … Reclamação Graciosa que viria a ser indeferida por despacho do Chefe da Divisão de Justiça Autoridade Administração Tributária da Direcção de Finanças de …, emitido em … .09.2011 e notificado à Requerente em … .09.2011.
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V. FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Da Ilegalidade da Liquidação
No que diz respeito ao mérito do pedido, a questão central respeita verificar se padece de ilegalidade o acto de liquidação da derrama municipal relativa ao exercício de 2010, cujo sujeito passivo é o Grupo, uma vez que a supra mencionada liquidação teve em conta o lucro tributável individual de cada uma das sociedades que integravam o aludido Grupo, sujeito ao RETGS.
O artigo 14. °, n.º 1 da Lei das Finanças Locais estipula que a derrama municipal incide, até ao limite de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC.
No que respeita à tributação no âmbito do RETGS, estabelece o n.º 1 do actual artigo 69° do Código do IRC que “existindo um grupo de sociedades, a sociedade dominante pode optar pela aplicação do regime especial de determinação da matéria colectável em relação a todas as sociedades do grupo”.
Sendo que, nos termos do artigo 70.º n.º 1 do mesmo código se estipula que “(...) o lucro tributável do grupo é calculado pela sociedade dominante, através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo”.
No que se refere a esta questão, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) já se pronunciou sobre esta questão no Acórdão de 2 de Fevereiro de 2011 (Processo nº 909/2010) entendendo que “prevendo o CIRC, nos seus artigo 69.º a 71º, um regime especial de tributação dos grupos de sociedades, situação em que se encontra a impugnante, ora recorrida, e tendo esta optado, como a lei lhe faculta, pela aplicação desse regime para determinação da matéria colectável em relação a todas as sociedades do grupo, a determinação do lucro tributável, para efeitos de IRC, é apurada através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações individuais das sociedades que pertencem ao grupo. E, assim determinado o lucro tributável para efeitos de IRC, está necessariamente encontrada a base de incidência da derrama”.
Neste esteira e continuando o Douto Tribunal, “circunstância de, relativamente às sociedades que integrem um grupo de empresas e que optem pelo regime especial de tributação previsto nos artigos 69º a 71º do CIRC, se determinar o lucro tributável do grupo, em vez do lucro tributável de cada uma das sociedades individualmente, e, dessa forma, se encontrar a base de incidência da derrama devida globalmente, em vez de se apurar uma pluralidade de derramas individuais” - sublinhado nosso.
No seguimento desta jurisprudência o Acórdão de 22 de Junho de 2011 (Processo nº 309/2011) conclui que “de acordo com o actual regime da derrama que resulta da Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei 2/2007, de 15 de Janeiro, a derrama passou a incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC. Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a derrama deve incidir sobre o lucro tributável do grupo e não sobre o lucro individual de cada uma das sociedades” – sublinhado nosso.
Verifica-se pois que a Derrama não pode ser dissociada do IRC, pelo que não poderá ter outra forma de apuramento do imposto.
Assim sendo, a derrama municipal deve incidir, no caso de aplicação do regime especial de tributação dos grupos de sociedades, sobre o “lucro tributável do grupo” e não sobre o “lucro individual de cada uma das sociedades”.
Apesar da Lei das Finanças Locais ter sido objecto de uma recente modificação através da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2012), que veio a alterar a redacção do n.º 8 do artigo 14.º, da Lei das Finanças Locais, passando esta a estipular que “quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a derrama incide sobre o lucro tributável individual de cada uma das sociedades do grupo, sem prejuízo do disposto no artigo 115.º do Código do IRC”. Esta redacção não poderá ser tida em conta no presente caso, uma vez que à data do apuramento do imposto a mesma ainda não estava em vigor, sobre pena de violação do princípio constitucional da não retroactividade da lei fiscal.
Nesta senda, o artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa estatui que “Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei”.
Daqui se extrai a proibição da retroactividade da lei fiscal, não se podendo concluir senão que o regime actualmente previsto no n.º 8 do artigo 14.º, da Lei das Finanças Locais, cuja entrada em vigor ocorreu a 1 de Janeiro de 2012, deve vigorar apenas para o futuro, sendo apenas aplicável aos exercícios de 2012 e seguintes - em nada afectando a aplicação à liquidação de derrama municipal do exercício de 2010 da lei em vigor à data.
A liquidação ora em crise encontra-se pois em vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito, enfermado por isso de manifesta ilegalidade.
2. Dos juros indemnizatórios
A Requerente solicita o pagamento de juros indemnizatórios.
Nos termos do disposto nos artigo 61.º do CPPT e 43.º da LGT, são devidos juros indemnizatórios, a serem contabilizados desde a data do pagamento do imposto indevido (anulado) até à data da emissão da respectiva nota de crédito, contando-se o prazo para esse pagamento do início do prazo para a execução espontânea da presente decisão (artigo 61.º, nºs 2 a 5, do CPPTRIB), cuja taxa deve ser apurada de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 43.º da LGT.
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VI. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se:
(i) julgar procedente e provado o pedido;
(ii) anular o acto de liquidação e cobrança da derrama municipal relativa ao exercício de 2010, de que foi sujeito passivo a ora Requerente na parte correspondente ao montante de € 18.134,23 com base em vício de violação de lei;
(iii) condenar a Requerida a devolver à Requerente a quantia indevidamente liquidada e paga, acrescida do pagamento de juros indemnizatórios já vencidos relativos ao período que mediou entre a data do pagamento do imposto anulando até data da instauração do presente processo, bem como no pagamento dos juros indemnizatórios vincendos a contar desta última data até ao integral reembolso, nos termos dos nºs 2 a 5 do artigo 61.º do CPPT e à taxa apurada de harmonia com o disposto no n.º 4 do artigo 43.º da LGT.
Custas a cargo da Requerida.
Notifique.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa Tributária, 4 de Abril de 2012
O Árbitro
Tiago Caiado Guerreiro