Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 36/2015-T
Data da decisão: 2015-11-25  IVA  
Valor do pedido: € 7.957,76
Tema: IVA - isenção do artigo 9º/1 do CIVA, serviços de psicologia
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Decisão Arbitral

 

I.RELATÓRIO

 

1. A…, (doravante designada por Requerente) contribuinte fiscal nº …, residente na Rua …, Lote …, …, … Coimbra, apresentou em 21-01-2015, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 2º e artigo 10º, nº 1, alínea a) do Decreto – Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante referido por RJAT (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária), um pedido de constituição de Tribunal Arbitral, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por AT ou Requerida), com vista à pronúncia sobre a ilegalidade dos actos de liquidação de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) nºs 2014 …, referente ao período 201112T, no valor de 4.780,86 €, nº 2014 …, respeitante ao período 201203T, no valor de 41,40 €, e nº 2014 …, relativa ao período de 201206T, no valor de 3.135,50 €.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 23-01-2015 e, de imediato, notificado à Requerida nos termos legais.

 

3. Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 6º do RJAT por decisão do Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicado às partes, nos prazos previstos, foi designado como árbitro José Coutinho Pires, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo estipulado no artigo 4º do Código Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa.

 

4. O Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 31-03-2015, em consonância com a prescrição da alínea c) do nº 1 do artigo 11º do RJAT.

 

5. Em 01-09-2015, foi realizada a reunião a que se reporta o artigo 18º do RJAT, onde foram ouvidas as testemunhas B… e C…, arroladas pela Requerente tendo também sido prestadas declarações de parte, tendo a Requerente prescindido da audição das testemunhas D… e E…,

 

6. Através do requerimento de 2015-09-07 a Requerente prescindiu da audição da testemunha F…

 

7. Por despacho de 2015-09-08 foram as partes convidadas a apresentar alegações por escrito,

 

8. Tendo as mesmas sido juntas aos autos pela Requerente e Requerida, respectivamente em 2015-09-18 e 2015-10-01, onde fundamentalmente reiteram e defendem as posições que haviam já evidenciado nos seus articulados, enfatizando ainda a Requerida que a apreciação da liquidação nº 2014 … está vedada a este tribunal.

 

9. A fundamentar o seu pedido, a Requerente alegou, em síntese e com relevo:

 

i. a impugnante exerce a actividade profissional de psicóloga, estando inscrita na Ordem dos Psicólogos Portugueses (cfr. artigo 2 do pedido de pronúncia arbitral);

 

ii. (…) nos anos de 2011 e 2012 prestou consulta clínica ao G… (Instituto  …) (cfr. artigo 3º do pedido de pronúncia arbitral);

 

iii. entre 2010 e 2013 o G… desenvolveu em Portugal um projecto designado , co-  financiado pela Comissão Europeia, coordenado pela … (LWL) e monitorizado pela Universidade de ... (cfr. artigo 8º do pedido de pronúncia arbitral);

 

iv. o projecto teve por objectivo a criação e o desenvolvimento de estratégias concertadas entre os diversos países europeus participantes no sentido de obter uma redução efectiva do consumo do álcool em populações jovens em risco (cfr. artigo 9º do pedido de pronúncia arbitral);

 

v. o G… contratou os serviços da impugnante para que esta colaborasse nalgumas actividades do projecto … (cfr. artigo 12º do pedido de pronúncia arbitral);

 

vi. algumas fases do projecto visavam actos exclusivos da Psicologia, como a avaliação e a intervenção psicológica (cfr. artigo 13º do pedido de pronúncia arbitral):

 

vii. a actividade da impugnante incidiu justamente na prestação profissional de avaliação e intervenção psicológicas e de terapia ocupacional da população de risco identificada pelo G… (cfr. artigo 14º do pedido de pronúncia arbitral);

 

viii- a avaliação e intervenção psicológica decorreu no Centro de Saúde de …, na Escola Superior de Enfermagem de … e na Quinta …, recaindo sobre uma população de cerda de 40 jovens, entre os 12 e os 21 anos (cfr. artigo 15º do pedido de pronúncia arbitral);

 

ix. a impugnante recorreu a metodologias clínicas amplamente utilizadas pela Psicologia para a redução de comportamentos aditivos, como a técnicas de entrevista motivacional, e de auto – reflexão (dinâmicas de grupos) (cfr. artigo 16º do pedido de pronúncia arbitral);

 

x. a administração tributária entendeu (….) que os serviços que a impugnante forneceu ao G…  consubstanciam  “estudos de casos… tendo em vista a elaboração de um manual” que ultrapassariam por isso o âmbito de isenção do nº1 do artigo 9º (cfr. artigo 20º do pedido de pronúncia arbitral);

 

xi. (…) a impugnante  não  elaborou qualquer manual nem conduziu qualquer “estudo de casos” tendo em vista produzir um manual (cfr. artigo 21º do pedido de pronúncia arbitral);

 

xii. a actividade da impugnante radicou em atenuar ou reduzir a dependência do álcool de um grupo de jovens, através de um processo de avaliação e intervenção associados a um exercício cientificamente informado, rigoroso e responsável da Psicologia (cfr. artigo 23º do pedido de pronúncia arbitral);

 

xiii. o contributo da impugnante esgotou-se no exercício da actividade clínica de Psicóloga, actividade essa cuja importância o manual da LWL, como o Relatório de ... reconheceram (cfr. artigo 32º do pedido de pronúncia arbitral);

 

xiv. a Requerente, em defesa da sua posição, cita vários acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), convocando igualmente legislação interna, relacionada com o tema central dos presentes autos;

 

xv. concluindo conforme se extrai do seu pedido que sejam “declarados ilegais e anulados os actos de liquidação adicional de IVA e os correspondentes de juros compensatórios, com todas as consequências de lei – designadamente a condenação da Fazenda Pública na restituição à impugnante do valor do imposto pago acrescido de juros, à taxa legal, vencidos desde a data do pagamento do indevido, a que acrescerão os que se vencerem até integral restituição”,

 

xv. a título subsidiário, equaciona a hipótese, se disso for caso, o Tribunal Arbitral promover o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia quanto à questão que suscita no quadro das isenções de IVA previstas no nº 1 do artigo 9º do CIVA e sua compatibilidade com a Directiva IVA.

 

10. A AT, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta, sustentando, em breve síntese, posição contrária à apresentada pela Requerente, em consonância com a posição por si já assumida em sede de Relatório de Inspecção Tributária, suscitando uma questão prévia (que densifica em sede de alegações) e que se reconduz ao seguinte:

 

i. que as liquidações a que se reporta a Requerente têm fundamentos distintos, designadamente a liquidação nº 2014 …, respeitante ao período 201203T, no valor de 41,40 €, e que não partilha do fundamento que esteve na origem das outras duas liquidações,

 

ii. pelo que o tribunal arbitral da mesma não poderá conhecer;

 

Sustenta a Requerida, sinteticamente e com relevo para a questão central dos presentes autos o seguinte:

 

iii. que a Requerente encontra-se inscrita no cadastro da AT para o exercício da atividade principal da “Psicólogos” e da actividade secundária de “Formadores”, enquadrando-se em de IRS, no regime simplificado (cfr. relatório da inspecção tributária (RIT) e artigo 9º da resposta);

 

iii. no decurso do ano de 2011, a Requerente emitiu apenas um recibo datado de 30-12-2011, no montante de € 20.786,34, isento de IVA nos termos do artigo 9º do CIVA, pela prestação de serviços ao G…, cuja descrição consiste em “Trabalho de Investigação em Psicologia Clínica” (cfr. PA anexo, RIT e artigo 16º da resposta);

 

iv. no ano de 2012 (15-4-2012) emitiu a favor do G… recibo de 13.632,63 €, com a descrição “ Trabalho em Psicologia Clínica” , igualmente isento de IVA, nos termos do artigo 9º do CIVA (cfr. RIT e artigo 17º da oposição);

 

v. no que respeita à actividade de Psicóloga, designadamente aos serviços prestados ao G…, refere o RIT a fls. 6, que se tratou de um projecto de investigação, tendo em vista a elaboração de um manual sobre uma metodologia de tratamento alternativo para jovens com consumos abusivos de álcool, não consistindo tal actividade na prática de actos clínicos (cfr. RIT e artigo 21º da oposição);

 

vi. reafirma em consonância com as conclusões do relatório inspectivo que  os serviços prestados pela Requerente (ao G…) “extravasam o âmbito objectivo da aplicação da isenção prevista no nº 1 do artigo 9º do CIVA, a qual deve ser objecto de interpretação estrita, na medida em que aqueles não consistiram em qualquer actividade de diagnóstico, tratamento de doenças ou de qualquer anomalia da saúde” (cfr. artigo 49º da resposta);

 

vii.  concluindo a AT pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral com as devidas e legais consequências.

 

11. Nas alegações apresentadas, as partes, fundamentalmente, reiteram e defendem as posições que haviam já evidenciado nos seus articulados.

 

12. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2º nº 1, alínea a), 5º e 6º nº 1 do RJAT.

 

13. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4º e 10º do RJAT e artigo 1º da Portaria nº 112-A/ 2011, de 22 de Março.

 

14. O processo não enferma de nulidades, tendo a Requerida, no seu articulado de resposta, invocado uma excepção, que densifica em sede de alegações escritas, relativamente à liquidação nº 2014 … que será infra objecto de apreciação.

 

 

II- FUNDAMENTAÇÃO

 

A.MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados 

 

1.A Requerente encontra-se colectada pela actividade principal de “psicólogos” CIRS 1010 e secundária de “formadores” CIRS 8011, enquadrada em sede de IRS no regime simplificado de tributação do artigo 31º do CIRS e, em sede de IVA, enquadrada no regime misto de afectação real (isenções do artº 9º e do artª 53 do CIVA – face à tipicidade dos serviços prestados ou ao volume de negócios) desde o início de actividade em 15-01-2009 a 01-02-2011, dispensada da entrega das declarações periódicas de IVA face ao enquadramento do artº 53º do CIVA e posteriormente a esta data e até 01-01-2013, enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral.

 

2.A ora Requerente foi alvo de um procedimento inspectivo efectuado ao abrigo das Ordens de Serviços OI 2013…/…, em resultado do qual foram efectuadas liquidações de IVA nos montantes de 4.780.86 €, 3.176,90 € e 41.40 € referentes aos exercícios de 2011 e 2012.

 

3. Entre 2010 e 2013 o G… (Instituto …) desenvolveu um projecto designado “…”,

 

4. Para o qual contratou os serviços da Requerente pelos menos nos anos de 2011 e 2012,

 

5. No âmbito de serviços por si prestadas emitiu a favor do G… dois recibos, um em 30-12-2011, no valor de 20.780,34 €, com a seguinte descrição “trabalho em investigação de psicologia clínica” e outro em 15-04-2012, no valor de 13.632,63 € com a descrição de “trabalho em psicologia clínica” (cfr. processo administrativo anexo).

 

6. Em ambos os recibos não foi liquidado IVA.

 

7.Em 21 de Janeiro de 2015, a Requerente apresentou o seu requerimento de pedido de pronúncia arbitral junto do CAAD, que deu origem ao presente processo.

*

 

Do relatório de inspecção tributária consta, para além do mais, e com relevo que:

 

“No ano de 2011: [a Requerente] apenas emitiu um recibo (verde electrónico nº 1) ao G…, datado de 30-12-2011, pela actividade de “psicólogos”, tendo descrito a mesma como “Trabalho de Investigação em Psicologia Clínica”, no montante de € 20.786,34, isento de IVA nos termos do artº 9º do CIVA”;

 

“No ano de 2012: emitiu […] o recibo electrónico nº 4, ao “G…” datado de 15-04-2012 no montante de 13.632,63 €, tendo descrito a actividade como “Trabalho em Psicologia Clínica”, isento de IVA nos termos do artº 9º do CIVA”;

 

“ Os serviços de psicóloga efetuados ao G…, têm subjacente a aplicação de um projecto europeu, o qual prevê a aplicação de técnicas previamente estudadas/seleccionadas (“O Projecto iniciou-se e desenvolveu-se no seu todo no ano de 2010 (desenho de projecto, planeamento das actividades e escolha da comunidade). A intervenção psicológica foi realizada a nível individual e em grupo, bem como foi efetuado acompanhamento a alguns familiares, e outras pessoas – chave relacionadas com estes jovens no sentido de reduzir os seus comportamentos de risco e consequência associadas” – com mencionado pela contribuinte), com intuito de reduzir o consumo de álcool em jovens de uma determinada comunidade, e tendo em vista “… avaliação e elaboração de um manual para intervenção multinivel para jovens com consumos abusivos de álcool”;

 

“ De harmonia com entendimento superiormente sancionado pela Direcção de Serviços do IVA, a actividade de psicólogo, enquanto orientada para prestações de serviços que se consubstanciam na elaboração de diagnósticos (por solicitação médica) ou na aplicação de tratamentos, está isenta de IVA, de acordo com o normativo anteriormente mencionado.

A isenção abrange assim (e apenas), os actos praticados por psicólogos no âmbito da psicologia clínica. Contudo, sempre que a actividade de psicologia se encontre ligada a actos relacionados com o ensino, orientação escolar e vocacional, estudos de casos tendo em vista a elaboração de manuais (ainda que exercida por psicólogos clínicos), porque extravasam o âmbito de aplicação do nº1 do artº 9 do Código do IVA, são consideradas operações sujeitas a imposto e dela não isentas”.

 

A.2. Factos dados como não provados

 

Com relevo para a decisão da causa, não existem factos que devem considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto dada como provada e não provada

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que pronunciar-se sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada [(cfr. art.123º nº2 do CPPT e artigos 607º do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 29º nº1, alínea a) e e) do RJAT)].

Deste modo os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito. (cfr. artigo 596º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 29º, nº 1, alínea a) do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental juntas aos autos, o PA anexo, a prova testemunhal e por declarações de parte produzidas, consideram-se provados, com relevo para a decisão os factos supra elencados, reconhecidos e aceites pelas partes.

As testemunhas aparentaram depor com isenção e com conhecimento dos factos sobre os quais depuseram, tendo-se tido igualmente em consideração as declarações de parte prestadas pela Requerente.

 

B. DO DIREITO

 

- Questão preliminar

 

Impor-se-á antes de se afrontar o thema decidendum, e tendo em conta a excepção suscitada pela AT, que dela se conheça desde já, em resultado do disposto nos artigos 124º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e artigo 608º do Código de Processo Civil.

 

Na sua resposta ao pedido de pronúncia arbitral, reiterado e densificado, nas alegações escritas que produziu, invoca a Autoridade Tributária e Aduaneira, em síntese o seguinte:

 

(i)                             a liquidação nº 2014 …, respeitante ao período 201203T no valor de 41.40 € não partilha do fundamento que esteve na origem das outras duas liquidações,

(ii)                           esta liquidação teve origem num recibo emitido pela Requerente em 01 de Março de 2012 à “H…” no valor de 180,00 €,

(iii)                         a respeito desta liquidação a Requerente não apresentou “qualquer argumento tendente a assacar-lhe qualquer vício”, culminando no sentido de que não foi dado cumprimento por banda da Requerente ao disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 552º do Código de Processo Civil estando-se perante uma excepção dilatória insuprível, com  consequente absolvição da instância como remata.

 

A Requerente, não se pronunciou sobre a excepção invocada pela Requerida.

 

Sem necessidade de outras considerações, dir-se-á desde já que assiste razão à Requerida uma vez que, relativamente à liquidação de IVA assinalada, que teve origem na emissão de um recibo no valor de 180,00 € inexiste por parte da Requerente a exposição de quaisquer factos relacionados com o pedido ou causa de pedir, (a não ser a consideração do seu montante para efeitos de indicação do valor do pedido) o que determina nesta segmento a ineptidão do seu pedido, ditando como consequência a absolvição da instância, face às previsões dos artigos 186º, nº 2 alínea a), 576ºnº 2 e alínea b) do artigo 577º, ex vi do artigo 29º, nº 1 alínea e).

Pelo que face ao que vem de dizer-se, absolve-se a Requerida da instância no que concerne à liquidação de IVA nº 2014 …, respeitante ao período 201203T no valor de 41,40 €.

 

- As isenções no IVA

 

Afigura-se relevante sublinhar, que o conceito de isenção não sendo alheio a dificuldades interpretativas de vária e complexa ordem, é distinto do de não incidência de imposto, perfilhando-se da conceptualização proposta por Alberto Xavier no sentido que a não incidência “decorre da não verificação de um elemento positivo do tipo legal do facto tributário ou da verificação de um seu elemento negativo”, enquanto na isenção “não obstante se ter verificado o facto tributário em todos os seus elementos, a eficácia constitutiva deste é paralisada originariamente pela ocorrência de um outro facto a que a lei atribui assim eficácia impeditiva”.

 

No quadro legal doméstico o artigo 9º do CIVA estatui o elenco das “isenções nas operações internas” e perante a proposta sistemática e normativa usuais, isenções na modalidade de incompletas, simples ou parciais, (em contraponto com as isenções completas ou totais), nos termos das quais não é conferido o direito à dedução do IVA suportado, valendo por dizer que nestas isenções o sujeito passivo beneficiário não liquida imposto nas suas operações activas, mas não tem o direito a deduzir o IVA suportado para a respectiva realização.

Neste tipo de isenções poder-se-á afirmar que se quebra a cadeia de deduções, já que o operador isento não pode deduzir o imposto suportado a montante, podendo falar-se de um “imposto oculto” significando-se com isto que o imposto suportado pelo operador para a realização da sua actividade (inputs), não podendo ser deduzido, tenderá a incorporar-se, tendencialmente no valor dos bens ou serviços, colocando assim em crise a neutralidade do imposto sobre o valor acrescentado, como uma das suas características fundamentais e distintivas dos demais impostos.

As isenções nas operações internas previstas no artigo 9º do CIVA, e para o que aqui releva, transpõem o artigo 132º do Directiva 2006/112/CE do Conselho de 28 de Novembro de 2006, na medida em que “ Os Estados-Membros isentam as seguintes operações”;

 

“b) a hospitalização e a assistência médica, e bem assim as operações com elas estreitamente relacionadas, asseguradas por organismos de direito público ou, em condições sociais análogas às que vigoram para estes últimos, por estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos”;

 

“c) As prestações de serviços de assistência efectuadas no âmbito do exercício de profissões médicas e paramédicas, tal como definidas pelo Estado-Membro em causa”.

 

Os fundamentos das isenções, que algumas das previstas no artigo 9º do CIVA perfilham, têm a ver com “certas actividades de interesse geral”, tendo subjacente “um conjunto de isenções internas que são motivadas por razões de ordem económica e social, tendo em vista promover o acesso e consumo daquilo que se costuma designar bens de mérito (merit goods)”[1], com particular relevância, e para o que nos importa, de significativa relevância social, as isenções relativas ao exercício de funções de “médico, odontologista, parteiro, enfermeiro e outras profissões paramédicas”, sejam elas praticadas por “estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares” (nº 2 do artigo 9º), ou fora deles.

Tais isenções reportam-se a “actividades que tenham por objectivo diagnosticar, tratar e se possível curar doenças ou anomalias de saúde”.[2].

Importa ainda referir na sinopse do quadro normativo, que o Código do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (CIVA) que entrou em vigor em 01 de Janeiro de 1986 corresponde nas suas regras à transposição da vulgarmente designada Sexta Directiva CEE (Directiva 77/388/CEE) do Conselho, de 17 de Maio de 1977, directiva essa entretanto revogada pela Directiva 2006/112/CE, usualmente designada por Directiva IVA (DIVA), de 28/11/2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, que veio reformular o texto da Sexta Directiva em termos essencialmente formais.

Revelar-se-á deste modo, de central relevância convocar à luz da Directiva IVA, e ainda que perfunctóriamente, alguns aspectos relacionados com as isenções, seu carácter objectivo e da sua interpretação que têm vindo a ser levadas a cabo, na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

Para tanto, perfilhamos, seguindo de perto a laboriosa e exaustiva análise efectuada por Sérgio Vasques, (no seu recente trabalho já citado), partindo, desde logo, do princípio “de que as regras de isenção possuem carácter excepcional no contexto do IVA, devendo por isso ser interpretadas de modo estrito i.e., de modo literal, ficando vedada a interpretação extensiva ou por analogia.”

Tal interpretação das normas de isenção, reiterada por diversas vezes na jurisprudência do TJUE, tem em consideração a circunstância de que sendo o IVA um imposto geral sobre o consumo “ está subordinado a um princípio de generalidade, devendo tendencialmente aplicar-se a todos os bens e serviços razão pela qual as regras de isenção, entorse que são à generalidade do imposto, devem ser “expressas e precisas”[3].

Não obstante a reiterada reafirmação do TJUE quanto à qualificação das normas de isenção, como de carácter excepcional, excluindo a sua interpretação extensiva ou a analogia,[4] a verdade é que o TJUE tem “temperado” tal interpretação no sentido de que “ esta interpretação estrita não se confunde com uma interpretação restritiva e que as regras de isenção da Directiva IVA não devem ser interpretadas de maneira a “privá-las dos seus efeitos”[5], valendo por dizer que o elemento finalístico tem servido, para que o TJUE fixe o sentido das normas de isenção do IVA, observados que sejam os limites determinados pelo seu elemento literal.

Além dos elementos literal e finalístico e como nos dá conta Sérgio Vasques (obra e local citados) “o tribunal [TJUE] tem também atendido, em maior ou menor medida, ao elemento histórico, procurando em muitos casos olhar à origem e evolução das normas de isenção para lhes fixar o sentido”, concluindo ainda o autor que “também o elemento sistemático tem servido em muitos casos para que o TJUE fixe o sentido das normas de isenção previstas na Directiva IVA”.

 

Definida sumariamente a metodologia interpretativa que deverá ter-se em consideração na interpretação das regras de isenção que constituem, ainda assim, para a jurisprudência do TJUE “conceitos autónomos do direito europeu” e respigadas algumas das razões que lhe subjazem, estamos em condições de afrontar o caso concreto.

 

*

A questão decidenda

 

No quadro das isenções ditas incompletas, de carácter taxativo e sem necessidade de qualquer reconhecimento por parte da administração fiscal, e para o que nos importa, temos desde logo as relacionadas com actividades e áreas da saúde, com enfoque, no nº 1 do artigo 9º do CIVA;

 

Artigo 9º - Isenções nas operações internas

Estão isentas do imposto:

 

1).As prestações de serviços efectuadas no exercício das profissões de médico, odontologista, parteiro, enfermeiro e outras profissões paramédicas”.

 

As partes parecem não questionar que a isenção opera indistintamente da natureza jurídica do prestador dos serviços, nomeadamente do facto de se tratar de uma pessoa singular ou colectiva, posição de resto vertida no Acórdão de 10 de Setembro de 2002, do então Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias[6], como parece não dissentirem quanto ao carácter objectivo da isenção em causa, e da necessidade da prática dos serviços que subjazem do nº 1 do artigo 9º do CIVA terem de ser exercidos por profissionais habilitados e credenciados para o efeito.

A questão central dirimenda reconduz-se pois, em saber-se se a actividade prestada pela Requerente ao Instituto … (G…) no período compreendido entre 2011 e 2012 está ou não isenta de imposto sobre o valor acrescentado.

Vejamos pois;

A posição da Requerente, conforme já supra exposto estriba-se, muito sinteticamente, nos seguintes factos;

-que a Requerente nos anos de 2011 e 2012 prestou serviços ao G…, no quadro de um projecto designado por , co-financiado pela Comissão Europeia, coordenado pela .. (LWL) e monitorizado pela Universidade de ..., cujo objectivo era a “criação e o desenvolvimento de estratégias concertadas […] no sentido de obter uma redução efectiva do consumo de álcool em populações jovens em risco”.

 Os serviços prestados pela Requerente, na sua qualidade de psicóloga clínica, terão segundo esta, [incidido] “na prestação profissional de avaliação e intervenção psicológicas e de terapia ocupacional da população jovem de Eiras identificada com problemas patológicos relacionados com o consumo excessivo do álcool, o que incluiu, designadamente, metodologias amplamente utilizadas na psicologias clínica para a redução de comportamento de risco, como são as técnicas de entrevista motivacional e de auto – reflexão individual ou em grupo”.

Ou seja,

A Requerente, em suma, sustenta que os serviços por si prestados no âmbito do projecto “…”, consubstanciaram-se em diagnósticos e terapias do foro da psicologia clínica, e, como tal isentos de IVA.

 

A posição e entendimento da AT são opostos dos apresentados pela Requerente, pugnando, essencialmente que o desempenho profissional desta no âmbito da sua contratação pelo G… teve por objecto o estudo de casos e como fundamento ultimo a elaboração de um manual.

Pois bem,

É convicção deste tribunal face ao juízo efectuado do acervo probatório que as actividades profissionais levadas a cabo pela Requerente no quadro já referido, se recortam no desempenho de actividades próprias da terapia ocupacional, vocacionada, no caso concreto, a ser dirigida aos jovens em ordem a contribuir para melhoria da sua qualidade de vida, ou dito de outra forma “tratar e se possível curar doenças ou anomalias de saúde”, reconhecendo-se, como não poderia deixar de ser, que o uso abusivo de álcool pelas jovens é uma questão de saúde pública.

Não nos revemos na perspectiva da AT quanto à desqualificação das actividades da Requerente como psicóloga clínica enquanto prestadora dos seus serviços profissionais junto do G…, no âmbito do assinalado projecto e sua finalidade, e quanto sua à exclusão das isenções previstas no nº 1 do artigo 9º do CIVA.

Convocando aqui o conceito de prestações de serviços médicos (ou paramédicos, acrescentaríamos nós) que a informação vinculativa exarada no processo nº …, por despacho do SDG dos impostos em 2012-01-02 traz à colação ao invocar o acórdão do então Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia de 14 de Setembro de 2000 (Processo 384/98), no sentido seguinte: “Quanto ao conceito de prestação de serviços médicos, previsto no nº 1 do artigo 9º do CIVA, importa referir o Acórdão do então Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia (agora TJUE), de 14 de Setembro de 2000, Processo 384/98, que considera como tais, as que consistam em prestar assistência a pessoas, diagnosticando e tratando doença ou qualquer anomalia de saúde”. (destaque e sublinhados nossos)

 

Os actos praticados junto da comunidade seleccionada com os objectivos já referidos, que se corporizaram em diagnósticos, processos de avaliação e intervenção integrar-se-ão, a nosso ver, na perspectiva de actos clínicos de psicologia clínica, com o objectivo (para além de outros) de promover a melhoria da saúde e bem estar da comunidade visada com tal intervenção.

Tal convicção não é abalada pelas menções (aparentemente contraditórias) quanto às actividades inscritas nos recibos em causa “trabalhos em investigação em psicologia clínica” e “trabalhos em psicologia clínica”, nem também pelo facto de acessoriamente as actividades profissionais da Requerente se terem integrado num quadro mais amplo, que terá contribuído para a elaboração de um “manual para intervenção multinível junto de jovens com consumos abusivos de álcool”.

De igual forma revela-se, quanto a nós, perfeitamente irrelevante a circunstância de a Requerente em sede administrativa, nomeadamente aquando notificada para o exercício do direito de audição, não ter, como refere a AT “sequer carreado elementos probatórios para o procedimento inspectivo que permitissem concluir de forma distinta”, e ter vindo em sede de pedido de pronúncia arbitral pôr em causa as liquidações de IVA, recordando-se a respeito deste segmento, que o processo impugnatório é um processo de apreciação da legalidade de actos praticados pela administração fiscal, com produção de efeitos condenatórios ou constitutivos.

 

Tendo-se em consideração as regras interpretativas que regem o IVA de que supra e sinteticamente se deu conta, em resultado do probatório, e do juízo que incidiu sobre a prova documental, testemunhal e de declaração da parte produzidas, não olvidando a interpretação estrita a que deverá proceder-se quanto à alínea c) do artigo 132º da DIVA, no sentido de que os Estados Membros isentam de IVA “as prestações de serviços de assistência no âmbito do exercício de profissões médicas e paramédicas, tal como definidas pelo Estado – Membro em causa”, é convicção deste Tribunal que será de aplicar a isenção prevista no nº 1 do artigo 9º do CIVA, assistindo razão à Requerente no pedido que formula. 

 

C. QUESTÃO DO REENVIO PREJUDICIAL

 

A Requerente formula, a título subsidiário, um pedido de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, de conformidade às previsões dos artigos 19º, nº 3, alínea b) e 267º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia, pese embora não tenha alegado ao longo do seu argumentário de pedido de pronúncia arbitral quaisquer factos que para tal pudessem concorrer, que não seja em sede de pedido, onde pugna por ver: “declarados ilegais e anulados os actos de liquidação adicional de IVA e os correspondentes juros compensatórios, com todas as consequências de lei – designadamente a condenação da Fazenda Pública na restituição à impugnante do valor do imposto pago acrescido de juros, à taxa legal vencidos desde a data do pagamento do indevido, a que acrescerão os que se venceram até integral pagamento – se necessário após pedido ao Tribunal de Justiça da União Europeia para decidir a título prejudicial sobre a compatibilidade com a Directiva 2006/112/CE, de 28 de Novembro, nos termos do artigo 267º do TFUE” .

Relativamente a este segmento, e sem necessidade de quaisquer outras considerações, sempre se dirá, sinteticamente, que (i) os tribunais arbitrais integram o conjunto dos tribunais nacionais como decorre do artigo 209º da Constituição da República Portuguesa (CRP), (ii) o preâmbulo do Decreto Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, deixou expresso que “ (…) nos casos em que o tribunal arbitral seja a última instância de decisão de litígios tributários, a decisão é susceptível de reenvio prejudicial em cumprimento do § 3 do artigo 267do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”, (iii) em caso de dúvida interpretativa de normas de direito europeu o tribunal arbitral pode recorrer ao reenvio prejudicial, (iv) a Requerente não indicou as questões concretas que eventualmente pretenderia ver colocados junto do TJUE, (iv) no caso em apreço não subsistem para o tribunal arbitral dúvidas sobre a interpretação do(s) normativo(s) em causa, pelo que, e consequentemente, este tribunal decide rejeitar o pedido de reenvio prejudicial ao TJUE.

 

D. DECISÃO

 

Termos em que decide este Tribunal Arbitral:

 

a. julgar parcialmente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular os actos  tributários de liquidação nºs 2014 …, no valor de 4.780,86 €, e liquidação nº 2014 … no valor de 3.135,50 €, com excepção da liquidação nº 2014 …, no valor de 41.40 €, e,

 

b. em consequência condenar-se a Autoridade Tributária e Aduaneira a restituir o imposto e juros compensatórios, correspondentes às liquidações de IVA declaradas ilegais na mesma proporção.

 

E. VALOR DO PROCESSO

 

De conformidade com o disposto nos artigo 306º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 47/2013, de 26 de Junho, 97º- A) nº 1, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário e artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 7.957,76 €.

 

 

E. CUSTAS

 

Nos termos dos artigos 12º, nº 2, 22º nº 4 do RJAT, e artigos 2º e 4º do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária, e Tabela I a este anexo, fixa-se o montante das custas em 612,00 €, a cargo de ambas as partes, na proporção do seu decaimento, fixando-se em 3,18 € a parte a cargo da Requerente e em 608,82 € a parte da Requerida.

 

NOTIFIQUE-SE

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no artigo 131º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29º nº 1 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, com versos em branco e revisto pelo árbitro.

 

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

 

Lisboa, 25 de Novembro de 2015

 

 

O árbitro

 

 

(José Coutinho Pires)

 

 

 



[1] Sérgio Vasques, O Imposto Sobre o Valor Acrescentado”, Almedina, 2015, páginas 316 e seguintes.

[2] Rui Laires, AAVV, Código do IVA e RITI, Notas e Comentários, coordenação de Clotilde Celorico Palma e António Carlos dos Santos, Almedina, 2014, página 124.

[3] Acórdão TJUE, Comissão vs. Países Baixos, C-235/85,26.03.1987

[4] Acórdão Copygene, de 13 de Junho de 2008, processo C-262/08.

[5] Sérgio Vasques, obra citada, página 327 e seguintes

[6] Processo C- 141/00 (Caso Kugler, Colect. P. I-6833, nº 26)