Decisão Arbitral
CAAD: Arbitragem Tributária
Processo nº 217/2015-T
I. Relatório
1. A… - …, Ldª, pessoa colectiva n.º …, representada pelo sócio gerente B…, residente na Rua …, Lote …, … …, requereu a constituição do tribunal arbitral em matéria tributária suscitando pedido de pronúncia arbitral contra o indeferimento silente de recurso hierárquico interposto de decisão de indeferimento expresso de reclamação graciosa e, consequentemente, contra os actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC), acrescidos de juros compensatórios, relativos aos anos de 2009 a 2012 e aos veículos automóveis que, na petição, identifica pelo respectivo número de matrícula.
2. Como fundamento do pedido, a Requerente alega, em síntese, que, embora os veículos em causa se encontrassem registados em seu nome à data a que se reportam os factos tributários a que respeitam as questionadas liquidações, eram os mesmos propriedade de terceiros a quem haviam sido transmitidos por contrato de compra e venda.
3. Em resposta ao solicitado, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) pronunciou-se no sentido da improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários impugnados e, em conformidade, pela absolvição da entidade requerida.
4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
5. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
6. Devidamente notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro. nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
7. Regularmente constituído, o tribunal arbitral é materialmente competente, face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
8. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03).
9. Atento o conhecimento que decorre das peças processuais, julgado suficiente, foi dispensada, com anuência das partes, a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT., bem como a apresentação de alegações.
II. Questões prévias
10.A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), na sua resposta, suscita questões prévias relativas à falta de apresentação pela Requerente de documentos comprovativos do pagamento do imposto, que na parte em que esta reconhece ser devido, com referência a um dos veículos e períodos identificados na reclamação graciosa e recurso hierárquico subsequente. Sustenta, ainda, não ter a Requerente junto "os actos de liquidação que vem agora impugnar, impossibilitando assim a verificação do valor económico que vem impugnar."
11. Consideradas as questões prévias suscitadas pela Requerida, o Tribunal decidiu pelo seu imediato conhecimento, antes de proceder a quaisquer diligências instrutórias.
12. Desde logo, verifica-se tanto da petição como dos demais documentos que integram o presente processo, designadamente o processo administrativo, que a Requerente identifica com precisão os actos tributários que constituem o objecto mediato do seu pedido, deixando claro que se trata de IUC relativo a vários anos, que especifica, e a veículos que identifica pela indicação do respectivo número de matrícula.
13. Precisa, ainda, a Requerente que, relativamente a um dos veículos que identifica e com referência a períodos de imposto, igualmente especificados, cuja liquidação tinha anteriormente contestado em sede de reclamação administrativa e recurso hierárquico, havia reconhecido ser responsável pelo pagamento do imposto, tendo já procedido ao respectivo pagamento.
14. Do exposto resulta, pois, considerar-se inconsistentes as questões prévias suscitadas pela Requerida, reconhecendo-se estarem identificados com precisão os actos tributários impugnados e, por recurso aos elementos do processo, designadamente do processo administrativo, ser facilmente quantificável o valor económico impugnado.
15. Pelo que, consequentemente, o tribunal considera improcedentes as questões prévias suscitadas pela Requerida.
III. Matéria de facto
16. Com relevância para a apreciação das questões suscitadas, destacam-se os seguintes elementos factuais que, com base na prova documental junta aos autos, se consideram provados:
16.1. A Requerente foi notificada de actos de liquidação oficiosa de IUC e respectivos juros compensatórios relativas aos períodos de imposto, veículos e montantes, a seguir identificados:
Veículo
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Período
|
Imposto
|
Juros
|
Total
|
Nota de liquidação
|
…-…-…
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2009
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461,00
|
86,59
|
547,59
|
2009 …
|
|
2010
|
465,00
|
68,79
|
533,79
|
2010 …
|
|
2011
|
475,00
|
51,33
|
526,33
|
2011 …
|
|
2012
|
486,00
|
33,07
|
519,07
|
2012 …
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…-…-…
|
2011
|
521,00
|
45,91
|
566,91
|
2011 …
|
|
2012
|
533,00
|
25,64
|
558,64
|
2012 …
|
|
|
2941,00
|
311,33
|
3 252,33
|
|
Obs. Não são aqui consideradas as liquidações relativas ao veículo com a matrícula …-…-… e aos períodos de 2009 e 2010 que a Requerente reconhece serem devidas e ter já oportunamente pago, por ela excluídas do âmbito do presente pedido de pronúncia.
16.2.Tempestivamente, a Requerente reagiu contra os referidos actos de liquidação através de reclamação graciosa em que, no essencial, alega não ser o sujeito passivo da obrigação de imposto porquanto, à data da ocorrência do respectivo facto gerador, os veículos a que aqueles respeitam terem já passado à propriedade de terceiros, por contratos de compra e venda.
16.3. Para comprovar o alegado, a reclamante - ora Requerente - juntou à reclamação, cópias autenticadas das faturas de venda, que identificam, além da data da venda, o veículo transacionado e o respectivo adquirente.
16.4. Por despacho de 13 de Agosto de 2014, a reclamação foi totalmente indeferida com o fundamento de, à data da exigibilidade do imposto, os veículos a que a mesma respeita se encontrarem registados em nome da Requerente, pelo que era esta o sujeito passivo do imposto, nos termos do artigo 3.º do CIUC.
16.5. Da referida decisão de indeferimento a Requerente, tempestivamente, interpôs recurso hierárquico que, até à data de entrega do presente pedido, não havia sido objecto de decisão, presumindo-se, assim, o seu indeferimento tácito.
16.6. No presente pedido de pronúncia arbitral, a Requerente manifesta a sua discordância relativamente aos mencionados actos de liquidação, com os fundamentos já expostos em sede de reclamação graciosa, acima sumariados.
16.7. Exclui, contudo, do âmbito do pedido, as liquidações respeitantes aos anos de 2009 e de 2010 e ao veículo com a matrícula …-…-…, cujo pagamento, que já efectuou, considera ser da sua responsabilidade.
17. Não existem factos relevantes para a decisão que não se tenham provado.
IV. Cumulação de pedidos
18. O presente pedido de pronúncia arbitral reporta-se a diversas liquidações de IUC. Todavia, atendendo à identidade dos factos tributários, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, o tribunal considera que, face ao disposto nos artigos 3.º do RJAT e 104.º do CPPT, nada obsta à cumulação de pedidos.
V. Matéria de direito
19. No pedido de pronúncia arbitral a Requerente submete à apreciação deste tribunal o acto de indeferimento tácito de recurso hierárquico, tempestivamente apresentado na sequência de indeferimento expresso de reclamação graciosa e, em consequência, a legalidade dos actos de liquidação de IUC, relativos aos períodos de 2009 a 2012 e aos veículos que identifica no quadro supra, invocando a circunstância de, à data a que se reportam os factos tributários que as originaram, os mesmos serem já propriedade de terceiros e, consequentemente, não assumir a qualidade de sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado.
20. Está, pois, em causa determinar se a Requerente deve ou não ser considerado sujeito passivo de IUC quanto aos veículos e períodos a que o tributo respeita, devidamente identificados no pedido, inscritos em seu nome na Conservatória do Registo Automóvel, mas que, à data em que o imposto se tornou devido, não constituíam sua propriedade por terem sido já objecto de venda a terceiros.
21. Assim, sobre a qualidade de sujeito passivo da obrigação de imposto que lhe é imputada, alega a Requerente que, à data da ocorrência dos factos tributários, não era proprietária dos veículos a que a que se reportam as questionadas liquidações, pois que já então tinham os mesmos sido vendidos a terceiros: em 9 de Junho 2007, o veículo com a matrícula …-…-…; e em 13 de Julho de 2011 o veículo com a matrícula …-…-….
22. Todavia, não sendo actualizado o registo dos referidos veículos, nele continuou a constar, como proprietária, a Requerente, situação que se viria a manter até, pelo menos, à data em que foram emitidas as questionadas liquidações.
23. Segundo entendimento da AT, proferido em sede de reclamação graciosa interposta pelo Requerente, basta que se verifique a inscrição registral do veículo em nome de uma determinada pessoa para que esta se qualifique como sujeito passivo da obrigação tributária do IUC.
24. A questão a apreciar e decidir no presente processo centra-se, pois, na interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, no sentido de se determinar se a norma de incidência subjectiva nela inscrita admite, ou não, que a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado na Conservatória do Registo Automóvel possa demonstrar, através dos meios de prova admitidos em direito, que não obstante tal facto, não é proprietário do veículo no período a que o tributo respeita e afastar assim a obrigação de imposto que sobre ela recai.
25. Em suma, trata-se de saber se tal norma consagra uma presunção legal de incidência tributária, susceptível de elisão, nos termos gerais, como pretende a Requerente ou se, diversamente, como entende a AT, "o legislador tributário quis intencional expressamente, que fossem considerados como proprietários as pessoas em nome das quais(os veículos) se encontrem registados."
26. Ao alegado pela Requerente, responde a AT no sentido de que tais alegações não podem de todo proceder, sendo que estabelece o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC que "São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados."
27. Desenvolvendo a sua posição, diz a requerida, em síntese, que "O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, nº1, quem são os sujeitos passivos do IUC, determinou expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (...) considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados."
28. Em defesa deste ponto de vista, acentua a Requerida que "o legislador não usou a expressão "presumem-se" como poderia ter feito". Assinala, ainda, a circunstância de " o normativo fiscal estar repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, de residência e de localização, entre muitos outros."
29. Depois de citar diversos exemplos do que afirma, conclui a Requerida ser " imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários...) as pessoas em nome das quais os mesmos (os veículos) se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. Pelo que, "entender que o legislador consagrou aqui uma presunção seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem.”
30. Expostas, em síntese e com parcial transcrição, as posições da Requerente e da Requerida, estarão claramente definidas:
- para a Requerente, a incidência subjectiva do IUC assenta numa presunção de propriedade, derivada do registo automóvel, susceptível de elisão nos termos legais; e
- para a Requerida, a norma do CIUC não estabelece qualquer presunção, expressando entendimento no sentido de que o legislador definiu como sujeito passivo deste tributo, expressa e intencionalmente, o proprietário do veículo identificado no respectivo registo.
Da Incidência subjectiva do IUC.
31. Com ressalva do disposto no n.º 2, relativamente a situações de venda com reserva de propriedade e locações que assumam natureza de financiamento, estabelece o artigo 3.º do CIUC, que são sujeitos passivos deste imposto os proprietários dos veículos, sendo como tal consideradas as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.
32. O recurso ao registo automóvel como elemento estruturante do sistema de liquidação deste tributo evidencia-se ao longo de todo o respectivo Código. Refira-se, designadamente, o seu artigo 6.º relativo à definição do facto gerador da obrigação de imposto, cujo n.º 1 prevê ser constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional. Deste preceito decorre que os veículos automóveis que não estejam, nem devam estar, registados em território português, apenas ficam abrangidos pela incidência objectiva deste tributo se no mesmo permanecerem por período superior a 183 dias, conforme dispõe o n.º 2 do mesmo artigo. É, pois, uma norma que, recorrendo ao elemento registral, estabelece, simultaneamente, o facto gerador do imposto e a respectiva conexão fiscal. É, também, dos elementos do registo automóvel que se extrai o momento do início do período de tributação e constituição da obrigação tributária e, de uma maneira geral, todos os elementos necessários à liquidação do imposto em causa, como, de resto, bem acentuado vem na resposta elaborada pela AT.
33. Todavia, da dependência do regime de tributação do IUC em relação ao registo automóvel não se pode extrair, como imediata conclusão, que a norma de incidência subjectiva, no segmento em que considera como proprietário a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado, não constitua um presunção de incidência. Haverá, pois, que recorrer a outros elementos interpretativos, com a especial relevância da noção legal de presunção vertida no artigo 349.º do Código Civil.
Presunções explícitas e implícitas.
34. Sustenta a Requerida que o legislador fiscal, "dentro da sua liberdade de conformação legislativa" expressa e intencionalmente determina que se considerem como proprietários as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, não utilizando a expressão "presumem-se" como tal, como poderia ter feito.
35. Com efeito, na definição da incidência subjectiva do ICI, do ICA e do IMV, impostos que o actual IUC veio substituir, foi essa a expressão utilizada pelo legislador. No âmbito dos impostos abolidos, estabelece-se que "o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados" [3]
36. No mesmo sentido, estabelece o artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento dos Impostos de Circulação e Camionagem, aprovado pelo DL n.º 116/94, de 3/05, que são sujeitos passivos destes tributos "os proprietários dos veículos presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou colectivas em nome das quais os mesmos se encontrem registados."
37. No que ao IUC diz respeito, o legislador optou por utilizar uma formulação diversa da norma de incidência subjectiva. Tal como nos impostos abolidos, continua a atribuir aos proprietários dos veículos a qualidade de sujeitos passivos. Porém, abandona a expressão "presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome quem os mesmos se encontrem registados" em favor de "considerando-se como tais as pessoas (...) em nome das quais os mesmos se encontrem registados".
38. Diversamente da posição expressa pela AT, entendemos que se está perante uma mera questão semântica, que não altera minimamente o conteúdo da norma em questão e por duas ordens de razões: Para que se esteja perante uma presunção legal, é necessário que a norma que a estabelece se amolde ao respectivo conceito legal, vertido no artigo 349.º do C. Civil, sendo para tal irrelevante que a mesma seja explícita, revelada pela utilização da expressão "presumem-se" ou apenas implícita[1]; por outro lado, a liberdade de conformação do legislador está limitada por princípios fundamentais consagrados na Constituição da República, de que, com relevância para o presente caso, avulta o princípio da igualdade. No plano tributário, este princípio traduz-se na generalidade e abstracção da norma que cria os elementos essenciais do tributo, de acordo com a capacidade contributiva de cada um. Segundo se extrai do acórdão do TC n.º 343/97, de 29-04-97 " A tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado para objecto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo".
39. É no sentido do conceito legal de presunção e no respeito dos princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva que o legislador atribui plena eficácia à presunção derivada do registo automóvel acolhendo-a, como tal, na definição da incidência subjectiva deste tributo estabelecida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC.
40. Acresce que o Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, que disciplina o registo de veículos automóveis, não prevendo qualquer norma acerca do carácter constitutivo do registo da propriedade automóvel, estabelece, no n.º 1 do seu artigo 1.º que o registo automóvel visa apenas dar publicidade à situação jurídica dos bens. De acordo com o artigo 7.º do Código do Registo Predial, supletivamente aplicável ao registo automóvel, por remissão do artigo 29.º daquele diploma, determina que o registo apenas "(...) constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define."
41. Pronunciando-se sobre esta matéria, o STJ, em acórdão de 19 de Fevereiro de 2004, proferido no processo n.º 3B4369, conclui que "(...) o registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível (presunção "juristantum") da existência do direito (arts- 1.º, n.º 1, e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º2, do C-Civil) bem como da respectiva titularidade, nos termos dele constantes (...)".
42. Assim, acompanhando-se a reiterada jurisprudência arbitral relativa a situações idênticas, não pode deixar de se entender que a expressão "considerando-se como tais" constante da referida norma, configura uma presunção legal, e que esta é ilidível, nos termos gerais, e, em especial, por força do disposto no artigo 73.º da LGT que determina que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.[2]
Elisão de presunções
43. As presunções de incidência tributária podem ser ilididas através do procedimento contraditório próprio previsto no artigo 64.º do CPPT ou, em alternativa, pela via de reclamação graciosa ou de impugnação judicial dos actos tributários que nelas se baseiem.
44. No presente caso, a Requerente não utilizou aquele procedimento próprio, tendo antes optado pelo via da reclamação graciosa e, subsequentemente, pelo presente pedido de decisão arbitral que, assim, constitui meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjectiva do IUC em que se suportam as liquidações tributárias cuja anulação constitui o seu objecto, pois que se trata de matéria que se situa no âmbito da competência material deste tribunal arbitral (arts. 2.º e 4.º do DL 10/2011).
45. Para ilidir a presunção derivada da inscrição do registo automóvel, a Requerente oferece, como meio de prova, cópia das faturas emitidas com referência à transmissão dos veículos a que respeitam as liquidações questionadas (Docs.3e4).
46. Pronunciando-se sobre a prova documental apresentada, alega a Requerida que as faturas" ...(por si só) não constituem documento idóneo para comprovar a venda do veículo em causa, uma vez que os mesmos não são mais do que um documento unilateralmente emitido pelo proprietário do veículo pelo que " ...(por si só) não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois aquele documento não revela por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e, a aceitação) por parte do pretenso adquirente."
47. Alega, ainda, a Requerida que " Com efeito, não faltam casos de emissão de faturas referentes a transmissões de bens e/ou de prestações de serviços que nunca chegaram a concretizar-se... As regras do registo automóvel (ainda) não chegaram o ponto de uma fatura unilateralmente emitida pela Requerente poder substituir o Requerimento de Registo Automóvel, aliás documento aprovado por modelo oficial.
48. Se bem se extrai da posição da Requerida quanto à prova produzida, esta seria insuficiente para afastar a incidência tributária definida com base da propriedade, tal como consta do registo que, em coerência com a posição de fundo por ela assumida, apenas seria afastada em função de actualização, atempada, do próprio registo.
49. Não sendo esse o entendimento do tribunal, importa avaliar a prova produzida pela Requerente no sentido de se determinar se é esta bastante para ilidir a presunção derivada do registo automóvel que, no plano da incidência subjectiva, é acolhida para efeitos do IUC.
50. Para tanto, Importa ter-se presente que, na situação em análise, se está perante contratos de compra e venda que, relativos a coisa móveis e não estando sujeitos a qualquer formalismo especial (C.Civil, art. 219.º), operam a correspondente transferência de direitos reais (C.Civil, art. 408.º, n.º 1).
51. Tratando-se de contratos que envolvem a transmissão da propriedade de bens móveis, mediante o pagamento de um preço, têm aqueles, como efeitos essenciais, entre outros, o de entregar a coisa (C.Civil, arts. 874.º e 879.º).
52. No entanto, estando em causa um contrato de compra e venda que tem por objeto um veículo automóvel, em que o registo é obrigatório, o seu cumprimento pontual pressupõe a emissão da declaração de venda necessária à inscrição no registo da corresponde aquisição a favor do comprador, conforme vem sendo entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores.[3] Tal declaração, relevante para efeitos de registo, poderá constituir prova da transacção, mas não constitui o único ou exclusivo meio de prova da transacção.
53. Para efeitos registrais, também não é exigível qualquer formalismo especial, bastando a apresentação à entidade competente de requerimento subscrito pelo comprador e confirmado pelo vendedor, que, através de declaração de venda confirma que a propriedade do veículo foi por aquele adquirida por contrato verbal de compra e venda (vd. Regulamento do Registo Automóvel, art. 25.º, n.º 1, alínea a).
54. Não obstante serem estas as regras decorrentes das disposições da lei civil, relativas ao informalismo da transmissão de coisas móveis e, sendo o caso, do respectivo registo, não pode deixar de ter-se também presente que, na situação em análise, estamos perante transacções comerciais, efectuadas por uma entidade empresarial sujeita, em matéria tributária, a determinadas obrigações.
55. Nesse âmbito, a empresa está vinculada ao cumprimento de normas contabilísticas e fiscais específicas, em que a faturação assume especial relevância.
56. Desde logo, por força de normas fiscais, a entidade transmitente dos bens está obrigada a emitir uma fatura relativamente a cada transmissão de bens, qualquer que seja a qualidade do respetivo adquirente (CIVA, art. 29.º, n.º 1, alínea b).
57. Também de acordo com o disposto em normas tributárias, a fatura deve obedecer a determinada forma, detalhadamente regulada nos artigos 36.º do Código do IVA e artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 198/90, de 19 de Junho.
58. Desde que emitidas na forma legal e constituam elementos de suporte dos lançamentos contabilísticos em contabilidade organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal, os dados que delas constem são abrangidos pela presunção de veracidade a que se refere o artigo 75.º, n.º 1, da LGT.
59. Com efeito, a referida presunção abrange não só os livros e registos contabilísticos, mas também os respectivos documentos justificativos, conforme, de resto, constitui entendimento pacífico da própria administração tributária [4]e da jurisprudência firmada dos tribunais superiores [5]
60. A presunção de veracidade das faturas comerciais emitidas nos termos legais pode, porém, ser afastada sempre que as operações a que se referem não correspondam à realidade, bastando, para tanto, que a Administração Tributária recolha e demonstre indícios fundados desse facto (LGT, art. 75.º, n.º 2, al. a). [6]
61. No presente caso, ainda que a Requerida afirme, generalizando, não faltarem casos de faturas referentes a operações que nunca ocorreram, não suscita qualquer dúvida quanto às operações tituladas pelas facturas apresentadas pela Requerente, limitando-se à afirmação de que " ... os documentos a que nos vimos a referir são cópias de faturas, em que a cópia que constitui o Doc.3 se encontra completamente ilegível, não se vislumbrando sequer o IVA liquidado e a cópia que constitui o Doc. 4 menciona apenas "Camion Scania 48-53-FL".
62. Todavia, da análise das referidas cópias verifica-se que, não sendo perfeita a digitalização realizada, delas se extraem - com algum esforço, é certo - os elementos relevantes para o fim que as mesmas visam atingir. Com efeito, é perfeitamente legível a data de emissão de cada fatura, a identificação do vendedor e do adquirente e a matrícula de cada um dos veículos que constituem o objecto da transação a que se referem.
63. Considerada, pois, a relevância atribuída pela legislação tributária às faturas emitidas, nos termos legais, pelas empresas comerciais no âmbito da sua actividade empresarial e a presunção de veracidade das operações por elas tituladas, não pode deixar de considerar-se que as mesmas constituem, só por si, prova bastante das transmissões invocadas pela Requerente.
64. Considerando-se, assim, provada documentalmente a transmissão do direito de propriedade dos veículos em causa, há apenas que determinar, caso a caso, a data em que, segundo a respectiva fatura, a mesma se terá verificado, atendendo a que a exigibilidade do imposto ocorre em cada um dos aniversários da data da matrícula, conforme prevê o artigo 6.º, n.º3, do CIUC, sendo esse o momento em que se define a relação jurídica tributária.
65. Com base nos documentos que integram o presente processo - designadamente o respectivo processo administrativo e faturação emitida pela Requerente - verifica-se que, à data da exigibilidade do imposto relativo aos períodos de 2009 a 2012, o veículo com o número de matrícula …-…-… havia sido já objecto de venda. Quanto ao veículo com a matrícula …-…-…, atribuída em 3 de Julho de 1995, verifica-se que tendo o mesmo sido objecto de venda em 13 de Julho de 2011, era o mesmo propriedade da Requerente no momento em que, nos termos do artigo 6.º, n.º 3, do CIUC, se verificou a exigibilidade do IUC com referência ao período de 2011.
66. Nestes termos, considera-se ilidida a presunção de propriedade derivada do registo automóvel acolhida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, relativamente ao veículo com a matrícula …-…-… e períodos a que se reportam as liquidações questionadas e com referência ao veículo com a matricula …-…-…, relativamente ao período de 2012, dispensando-se, por desnecessária, a prova testemunhal.
VI. Decisão
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, no que concerne à elisão da presunção de incidência subjectiva do IUC, relativamente ao veiculo com o número de matrícula …-…-… e períodos de 2009 a 2012, e relativamente ao veículo com o número de matrícula …-…-… e período de 2012, a que se referem as liquidações de imposto e juros compensatórios identificadas no quadro inserto no ponto 16.1 da presente decisão, determinando-se a sua anulação com as legais consequências;
b) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, no que respeita elisão da presunção de incidência subjectiva do IUC, relativamente ao veiculo com o número de matrícula …-…-… e ao período de 2011.
Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em € 3 252,33, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n,º1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 612,00, a cargo da Requerente e da Requerida (AT), na proporção do respectivo vencimento.
Lisboa, 26 de Outubro de 2015
O árbitro, Álvaro Caneira.
[1]Vd. Jorge de Sousa, CPPT, 6.ª Edição, Áreas Editora. Lisboa, 2011, pags. 586 e STA, Acs. de 29.2.2012 e de 2.5.2012, Procs. 441/11 e 381/12.
[2]Vd., designadamente, Decisões Arbitrais de 19.7.2013, 10.9.2013,15.10.2013,5.12.2013 e 14.2.2014, proferidas, respectivamente, nos Processos 26/2013-T, 27/2013-T, 14/2013-T, 73/2013-T e 170/2013-T. No mesmo sentido, TCAS, Ac. de 19.3.2015-Proc. 08300/14.
[3]Cfr. STJ, Acs. de 23.3.2006 e de 12.10.2006, Procs. 06B722 e 06B2620.
[4]Cfr. Parecer do Centro de Estudos Fiscais, homologado por despacho do Director-Geral dos Impostos, de 2 de Janeiro de 1992, publicado em Ciência e Técnica Fiscal n.º 365.
[5]Cfr. STA, Ac. de 27.10.2004, Proc. 0810/04, TCAS, Ac. de 4.6.2013, Proc. 6478/13 e TCAN, Ac. de 15.11.2013, Proc. 00201/06.8BEPNF, entre outros.
[6]Cfr. STA, Acs. de 24.4.2002, Proc. 102/02, de 23.10.2002, Proc. 1152/02, de 9.10.2002, Proc. 871/02, de 20.11.2002, Proc. 1428/02, de 14.1.2004, Proc. 1480/03, entre muitos outros.