Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 215/2015-T
Data da decisão: 2015-10-26  IRS  
Valor do pedido: € 140.102,84
Tema: IRS - Mais-valia resultante do trespasse de farmácia
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Decisão Arbitral

 

Os árbitros Fernanda Maçãs (árbitro presidente), Hélder Faustino e Armindo Fernandes Costa (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 01-06-2015, acordam no seguinte:

 

I.                   Relatório

 

1. Os Requerentes A… e B…, casados, contribuintes n.º… e n.º …, respectivamente, com domicílio fiscal na Avenida …, …, …, em Lisboa, tendo sido notificados do acto de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2014 …, no valor de € 314.465,29, do acto de liquidação de juros compensatórios n.º 2014 …, no valor de € 18.027,74 (valor incluído na liquidação de imposto) e da demonstração de acerto de contas n.º 2014 …, da qual resultou imposto e juros compensatórios a pagar no valor total de € 140.102,84, vieram apresentar, ao abrigo da alínea a), do n.º 1 do artigo 2.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, doravante “RJAT”) pedido de pronúncia arbitral com vista à anulação daqueles actos.

 

2. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

 

3. A pretensão objeto do pedido de pronúncia arbitral consiste na anulação daqueles actos, a par da condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) ao pagamento dos respectivos juros indemnizatórios.

 

3.1. Os Requerentes peticionam:

a)      a declaração de ilegalidade das liquidações de IRS e de juros compensatórios identificadas em 1. por violação do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro;

b)      a declaração de ilegalidade do enquadramento das mais-valias decorrentes do trespasse como rendimento da Categoria B do IRS, por violação dos princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança;

c)      subsidiariamente, a declaração de ilegalidade da liquidação de juros compensatórios, por preterição do direito de audição prévia; e

d)     ainda subsidiariamente, a declaração de ilegalidade da liquidação de juros compensatórios, por falta de fundamentação;

e)      a condenação da AT ao reembolso do imposto indevidamente pago; e

f)       a condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

4. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.

 

4.1.Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, os quais comunicaram a aceitação da designação dentro do prazo.

4.2. Em 15-05-2015, as partes foram notificadas da designação dos árbitros não tendo arguido qualquer impedimento.

4.2. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 01-06-2015.

4.3.Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

 

5. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral os Requerentes alegam, em síntese, o seguinte:

a)      O artigo 5.º/1 do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, estabelece que os ganhos que não eram sujeitos a Imposto de Mais-Valias só ficam sujeitos a IRS se a aquisição ocorrer depois da entrada em vigor do Código do IRS (“CIRS”), ou seja, a 1989-01-01;

b)      A “Farmácia …” foi adquirida pela 2.ª Requerente em 1961;

c)      O artigo 3.º/1 do Código do Imposto de Mais-Valias dispõe que este imposto incide sobre os ganhos realizados com os trespasses de locais ocupados por escritório ou consultórios afectos ao exercício das profissões constantes da tabela anexa ao Código do Imposto Profissional;

d)     A actividade farmacêutica da 2.ª Requerente não constava da tabela anexa ao Código do Imposto Profissional; e

e)      Consequentemente, os ganhos derivados do trespasse da “Farmácia …” não eram sujeitos a Imposto de Mais-Valias e, por conseguinte, a IRS;

f)       Mais, nos termos do artigo 10.º/1-d) do CIRS, eram considerados rendimentos da Categoria G do IRS (Mais-Valias) os rendimentos resultantes da cessão onerosa de arrendamento e de outros direitos e bens afetos, de modo duradouro, ao exercício de actividades profissionais independentes, incluindo a afetação permanente daqueles bens a fins alheios à atividade exercida;

g)      Apenas com a Lei n.º 30-G/00, de 29 de Dezembro, é que os rendimentos resultantes da cessão onerosa de arrendamento e de outros direitos e bens afetos, de modo duradouro, ao exercício de actividades profissionais independentes deixaram de estar enquadrados na Categoria G do IRS para passarem a estar enquadrados na Categoria B (Rendimentos do Trabalho Independente);

h)      A Lei n.º 30-G/00, de 29 de Dezembro, estabeleceu uma regra transitória nos termos da qual as alterações ao artigo 10.º do CIRS apenas se aplicariam a participações sociais e valores mobiliários adquiridos após 2001-01-01, o que indicia que o legislador fiscal pretendeu proteger as legítimas expectativas dos contribuintes relativamente às situações que vigoravam até às alterações provocadas por aquele diploma legal;

i)        Ao adquirir a “Farmácia …” em 1961, a 2.ª Requerente conformou-se com a legislação então em vigor que excluía de tributação os futuros rendimentos resultantes do trespasse do estabelecimento farmacêutico;

j)        Desta forma, o novo enquadramento das mais-valias operado por via da Lei n.º 30-
-G/00, de 29 de Dezembro, viola o princípio da proteção da confiança e, como tal, devem ser excluídas de tributação por força do artigo 5.º/1 do Decreto-Lei n.º 442-
-A/88, de 30 de Novembro.

 

6. A AT apresentou resposta e juntou processo instrutor, invocando em síntese, o seguinte:

a)      “(…) até à entrada em vigor do CIRS a atividade desenvolvida pela 2.ª Requerente encontrava-se sujeita a Contribuição Industrial e não a Imposto Profissional.”;

b)      Relativamente à questão do “(…) trespasse do estabelecimento farmacêutico, este facto não estava sujeito a Contribuição Industrial (cfr 25.º do Código da Contribuição Industrial), mas sim sujeito a Imposto de Mais-Valias.” [sublinhado nosso];

c)      A opção legislativa adoptada “(…) residia na circunstância de o trespasse ser um elemento do ativo imobilizado [artigo 1.º, ponto 2.º, e artigo 3.º, § 1, alíneas a) e e) do Código do Imposto de Mais-Valias]” [sublinhado nosso];

d)     Demonstrado que fica “(…) o errado entendimento veiculado pelos Requerentes que o trespasse não estava sujeito a Imposto de Mais-Valias (na medida em que este apenas incidia sobre os ganhos realizados com os trespasses de locais ocupados por escritório ou consultórios afectos ao exercício das profissões constantes da tabela anexa ao Código do Imposto Profissional).”;

e)      Assim,“(…) forçoso se torna concluir que a liquidação adicional de IRS ora colocada em crise pelos Requerentes não padece de qualquer ilegalidade.”;

f)       Por outro lado, “(…) o conceito de trespasse não se subsume na previsão da norma legal transitória invocada (i.e., o artigo 3.º/5 da Lei 30-G/00), pois que esta última se refere clara e inequivocamente a “partes sociais” e a “outros valores mobiliários”;

 

g)      De facto, “(…) a legislação em vigor em 1961 não excluía de tributação os ganhos resultantes do trespasse do estabelecimento farmacêutico [cfr. artigo 1.º, ponto 2.º, e artigo 3.º, § 1, alíneas a) e e) do Código do Imposto de Mais-Valias e respetivo preâmbulo]”;

h)      “Pelo contrário, aquele facto SEMPRE foi objeto de tributação [cfr. artigo 1.º, ponto 2.º, e artigo 3.º, § 1, alíneas a) e e) do Código do Imposto de Mais-Valias e respetivo preâmbulo, artigo 4.º/2-d) do original CIRS e artigo 3.º/1 do CIRS na versão da Lei 30-G/00]”;

i)        “Aos Requerentes foi conferida a possibilidade de participação mediante notificação para o exercício do direito de audição prévia aquando da notificação do projeto de relatório de inspeção tributária” [sublinhado nosso];

j)        “Contudo, os Requerentes optaram por ali não tecer quaisquer considerandos sobre a questão dos juros compensatórios”;

k)      Entende, ainda, a AT que “(…) a notificação de juros compensatórios em causa foi efetuada e devidamente fundamentada de acordo com a lei, esclarecendo o sujeito passivo das razões de facto e de direito que determinaram a liquidação.”;

l)        Por último, conclui a AT, a propósito da possibilidade de apresentação de resposta ao pedido de pronúncia arbitral, que “(…) o objetivo do legislador não foi apenas permitir à Requerida melhorar o estilo literário ou narrativo constante do referido relatório, mas sim o mero reforço dos argumentos-base constantes da fundamentação, como in casu sucedeu”.

 

7.Não tendo sido invocadas excepções nem requerida a produção de prova constituenda, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido designado o dia 30 de Outubro como data limite para a prolação da decisão arbitral.

 

8. Foi ainda decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas sucessivas.

 

9. Os Requerentes e a Requerida apresentaram alegações escritas, mantendo, no essencial, o constante dos articulados.

 

II.                Saneamento

 

10.1. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

10.2.O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

10.3.O processo não enferma de nulidades.

10.4. Não foram suscitadas excepções.

10.5.Não se verificam quaisquer outras circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

III.             Mérito

 

III.1. Matéria de facto

 

11. Factos provados

 

11.1.Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

a)      No exercício da sua actividade profissional, a Requerente B… explorou a «Farmácia …», enquanto empresária e nome individual, no regime de contabilidade organizada, estando enquadrada na actividade de «Comércio a Retalho de Produtos Farmacêuticos»;

b)      A Requerente B… possuía o alvará da «Farmácia …» desde 1961;

c)      Em 16-07-2009, a Requerente B… constituiu a sociedade «C… – …, S.A.» com um capital social de 50.000 euros, representado por 50.000 acções com o valor nominal de 1 euro cada, com a seguinte estrutura accionista:

                                i.            B… – 49.996 acções, no valor de 49.966 euros, a que corresponde 99,992% do respectivo capital social;

                              ii.            A… – 1 acção, no valor de 1 euro, a que corresponde 0.002% do respectivo capital social;

                            iii.            D… – 1 acção, no valor de 1 euro, a que corresponde 0.002% do respectivo capital social;

                            iv.            E… – 1 acção, no valor de 1 euro, a que corresponde 0.002% do respectivo capital social;

                              v.            F… – 1 acção, no valor de 1 euro, a que corresponde 0.002% do respectivo capital social.

d)     Em 02-11-2009, a Requerente B… cedeu, através de escritura pública, a exploração do estabelecimento da «Farmácia …» à sociedade «C… – …, S.A.» pelo valor anual de 48.000 euros;

e)      Por sua vez, em 02-11-2009, a sociedade «C… – …, S.A.» celebrou um contrato de sub-cessão de exploração de estabelecimento comercial da «Farmácia …» com a sociedade «G… Unipessoal, Lda.», na qualidade de promitente-compradora, pelo valor de 6.000 euros;

f)       Em 09-12-2010, a Requerente B… celebrou um contrato de trespasse do estabelecimento da «Farmácia …», respectivo imobilizado corpóreo e existências que lhe estavam afectos, pelo valor de 326.000 euros;

g)      Em 02-04-2014, teve início uma acção inspectiva nos termos que constam da Ordem de Serviço n.º OI2014…, em sede de IRS e de IVA, ao exercício de 2010;

h)      Posteriormente, através do Ofício n.º …, de 20-10-2014, da AT, os Requerentes foram notificados do projecto de relatório de inspecção tributária, do qual resultavam as seguintes correcções:

IRS

2010

Acréscimo de rendimento da Categoria B – Cedência Exploração

€ 48.000,00

Acréscimo de rendimentos da Categoria B – Mais-Valia Trespasse

€ 286.670,08

Acréscimo de rendimentos da Categoria G – Mais-Valia Imóvel

€ 1.000,00

Total

€ 335.670,08

 

IVA

2010

IVA Liquidado – Regularização Voluntária – Cedência de Exploração

€ 10.080,00

 

i)        Os Requerentes exerceram o respetivo direito de audição prévia, tendo apenas contestado a correcção relativa à mais-valia resultante do trespasse da «Farmácia …» para a sociedade «C… – …, S.A.»;

j)        Através do Ofício n.º …, de 17-11-2014, da AT, os Requerentes foram notificados do relatório final de inspecção tributária, o qual, manteve contudo a correcção proposta;

k)      Em 01-12-2014, os Requerentes foram notificados no acto de liquidação adicional de IRS n.º 2014 …, dos correspondentes juros compensatórios n.º 2014 … e da demonstração de acerto de contas n.º 2014 … no valor total de € 140.102,84;

l)        Em 26-03-2015, os Requerentes apresentaram o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

11.2. Fundamentação da matéria de facto

 

A factualidade provada teve por base os documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e no processo administrativo, não havendo controvérsia sobre eles.

 

11.3.Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

III.2. Matéria de Direito

 

A questão central a decidir gira em torno de saber se os rendimentos resultantes do trespasse da «Farmácia …» estão, ou não, sujeitos a IRS, senão vejamos.

 

A)    Da ilegalidade dos actos de liquidação de IRS e juros compensatórios por violação do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro[1].

 

Antes de mais, importa esclarecer que os Requerentes fazem uma errada interpretação e aplicação do quadro normativo aplicável ao caso em apreço, porque confundem a actividade exercida a título de profissão liberal por farmacêutico com a actividade de exploração de uma farmácia, que é uma actividade comercial.

 

Até à entrada em vigor do Código do IRS[2], a actividade desenvolvida pela Requerente B… (de exploração de uma farmácia),  encontrava-se sujeita a Contribuição Industrial.

 

Ora, de acordo com o artigo 1.º § único do Código da Contribuição Industrial[3], “A contribuição industrial incide sobre os lucros imputáveis, nos termos deste código ao exercício embora acidental de qualquer actividade de natureza comercial ou industrial. (…) O exercício, por conta própria, de actividades não sujeitas a imposto profissional é sempre considerado de natureza comercial ou industrial (…)” [sublinhado nosso].

 

Já o artigo 2.º c) do Código do Imposto Profissional[4] estabelecia que “Os rendimentos mencionados no artigo anterior são sujeitos a imposto quando auferidos por pessoas singulares, nacionais ou estrangeiras, que no continente ou ilhas adjacentes: (…) c) Exerçam por conta própria algumas das actividades constantes da tabela anexa.”[sublinhado nosso].

 

Ou seja, a contrario sensu, não assumiam natureza comercial as actividades sujeitas a Imposto Profissional exercidas por conta própria, o que não sucede, contudo, no caso em apreço, porquanto a actividade farmacêutica não integrava o elenco das actividades constantes da tabela anexa ao Código do Imposto Profissional.

 

Assim, sendo, a actividade desenvolvida pela Requerente B… encontrava-se sujeita a Contribuição Industrial e não a Imposto Profissional.

 

Já o trespasse[5]de um estabelecimento comercial não se encontrava sujeito a Contribuição Industrial[6], mas antes a Imposto de Mais-Valias [7] por se tratar do trespasse de um elemento do activo imobilizado.

 

Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 1.º, ponto 3.º do Código de Imposto de Mais-Valias, “O imposto de mais-valias incide sobre os ganhos realizados através dos actos que a seguir se enumeram: (…) Transmissão onerosa, qualquer que seja o titulo por que se opere, de elementos do activo imobilizado e de bens ou valores mantidos como reserva ou para fruição das empresas, incluindo as não sujeitas a contribuição industrial ou ao imposto sobre a indústria agrícola ou isenta destes impostos.” [sublinhados nossos].

 

A reforçar esta ideia, atente-se, ainda, ao próprio preâmbulo do Código do Imposto de Mais-Valias, nos termos do qual, “A ideia de que se partiu para traçar os limites do imposto foi a de considerar mais-valias os aumentos de valor dos bens que os contribuintes não produziam nem adquiriram para venda. É uma ideia decerto sujeita a reparos sob o ponto de vista teórico, mas que tem a vantagem de poder ser utilizada na prática. No entanto, resolveu-se aplicá-la, não a todos os bens naquelas condições, e sim apenas aos bens cujas mais-valias se verificam com maior frequência, são de maior vulto ou não oferecem dificuldades sérias de determinação. É o que acontece, sem dúvida, com os terrenos para construção; com os elementos do activo imobilizado das empresas (entre eles os trespasses e os alvarás) e os bens de rendimento; com o direito ao arrendamento dos escritórios e consultórios; com as quotas em sociedade e as acções. Caem precisamente sob a alçada do imposto as mais-valias desses quatro grupos de bens.” [sublinhados nossos].

 

Acrescenta, também, Saldanha Sanches[8]que, “Um outro tipo particularmente acentuado de mais-valias, são as que resultam da actividade comercial e que se traduzem não apenas em ganhos presentes, mas numa expectativa dotada de um grau razoável de probabilidade em relação a ganhos futuros. É o caso do goodwill ou "aviamento" do estabelecimento comercial enquanto complexo da organização comercial do comerciante ou de uma empresa, sob a forma de um aumento do seu valor potencial, que pode ser realizado através da sua alienação. Este aumento de valor, substancialmente com as características essenciais da mais-valia, é em princípio, o resultado normal da actividade comercial. O valor total de uma empresa está normalmente acima do valor do património constante do balanço num determinado momento temporal, pois consubstancia-se numa expectativa sobre receitas futuras que dependem do nome da empresa, da sua clientela, da sua organização ou das tecnologias de que dispõe. E da sua actividade resultam por isso hipóteses de lucro futuro ou o domínio sobre certos bens susceptíveis de um aumento sustentado de valor. E se esta situação é susceptível de garantir no futuro um grau razoável de probabilidade, fluxos permanentes e estáveis de rendimento, pode proporcionar no presente, mediante a alienação da fonte produtiva, um ganho imediato, correspondendo este ganho ao conceito da mais-valia. O que se tem traduzido no direito fiscal português na tradicional tributação do trespasse como uma operação apta a produzir uma mais-valia, embora aqui haja a distinguir entre as potencialidades específicas da empresa e a possibilidade de existência de uma renda de situação, como as que estão ligadas à legislação actual sobre arrendamentos.” [sublinhados nossos].

 

Conclui o autor que A posição actual é de tributar os ganhos resultantes do trespasse como uma mais-valia comercial e industrial. É uma solução equilibrada no que diz respeito aos seus resultados, quando permite a dedução dos custos de aquisição.” [sublinhado nosso].

 

Por todo o exposto, resulta claro que, contrariamente ao sustentado pelos Requerentes, os ganhos resultantes do trespasse do estabelecimento farmacêutico da Requerente B… encontravam-se efectivamente sujeitos a Imposto de Mais-Valias, pelo que a liquidação adicional em análise não viola o mencionado n.º 1 do artigo 5.º do Código do IRS.

 

 

B)    Da violação dos princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança

 

Também nesta matéria os Requerentes fazem uma errada interpretação e aplicação do quadro normativo aplicável ao caso em apreço.

 

De facto, pese embora os Requerentes invoquem, sem contudo concretizar, uma regra transitória consagrada na Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, “(…) nos termos da qual as alterações ao artigo 10.º do CIRS apenas se aplicariam a partipações sociais e valores mobiliários adquiridos após 2011-01-01,o que indicia que o legislador fiscal pretendeu proteger as legitimas expectativas dos contribuintes relativamente às situações que vigoravam até às alterações provocadas por aquele diploma legal.”, a referida norma reporta-se apenas a participações sociais e a outros valores mobiliários, não referindo em parte alguma o conceito de trespasse.

 

Ora, se o legislador fiscal tivesse pretendido proteger as legítimas expectativas dos sujeitos passivos relativamente aos trespasses poderia tê-lo feito, consagrando de forma expressa e inequívoca semelhante desiderato na letra da lei.

 

Não o tendo feito, não poderão certamente os Requerentes ler na referida regra transitória algo que não encontra na letra da lei o mínimo suporte legal.

 

Por outro lado, e conforme demonstrado anteriormente, os ganhos resultantes do trespasse do estabelecimento farmacêutico da Requerente B… encontravam-se efectivamente sujeitos a Imposto de Mais-Valias, pelo que não é legítimo concluir que o novo enquadramento das mais-valias efectuado pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro viola o princípio da protecção da confiança.

 

De facto, já na versão inicial do Código do IRS[9], o rendimento em apreço era tributado enquanto rendimento da Categoria C[10], tendo assim permanecido mesmo após a publicação da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, reenquadrando os rendimentos daquela na nova Categoria B[11].

 

Ora, não só o reenquadramento efectuado pelo legislador não se traduziu em passar a tributar um facto que anteriormente não era sujeito a tributação, como também não foi alterado o tratamento fiscal conferido às mais-valias, mantendo-se o respectivo apuramento de acordo com as regras previstas no Código do Imposto sobre o rendimento da Pessoas Colectivas (“IRC”).

 

Por todo o exposto, o acto tributário de liquidação de IRS em apreço não viola os princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança.

 

Improcedendo o pedido de anulação da liquidação de IRS n.º 2014…, e respectivos juros compensatórios, improcedem, consequente e necessariamente, os demais pedidos, assim se julgando improcedente toda a acção. 

 

 

 

IV.             Decisão

 

Termos em que acorda o presente Tribunal Arbitral em julgar totalmente improcedente a presente acção e, em consequência, manter os actos tributários de liquidação de IRS n.º 2014 … e respectivos juros compensatórios, absolvendo a Administração Tributária e Aduaneira de todos os pedidos contra ela formulados.

 

V.                Valor do Processo

 

De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 306.º e no n.º 2 do artigo 297.º, ambos do Código do Processo Civil, da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-Ado Código de Procedimento e de Processo Tributário e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 140.102,84 (cento e quarenta mil, cento e dois euros e oitenta e quatro cêntimos).

 

V.                Custas

 

De acordo com o previsto no n.º 4 do artigo 22.º, no n.º 2 do artigo 12.º, ambos do RJAT, no artigo2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.ºdo Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma, fixa-se o valor global das custas em € 3.060,00 (três mil e sessenta euros), a cargo dos Requerentes.

 

 

Lisboa, 26 de Outubro de 2015.

 

Os árbitros,

 

Fernanda Maçãs

(Árbitro Presidente)

 

 

Hélder Faustino (Relator)

(Árbitro Vogal)

 

 

Armindo Fernandes Costa

(Árbitro Vogal)

 

 

 

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 131.º, do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

 



[1] De acordo com o regime transitório consagrado, “Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46673, de 9 de Junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma actividade agrícola ou da afectação destes a uma actividade comercial ou industrial, exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código.”[sublinhado nosso].

[2] Por força do disposto no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, que aprovou o Código do IRS, este diploma entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1989.

[3] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 45.103, de 1 de Julho de 1963.

[4] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44.305, de 27 de Abril de 1962.

[5] Sobre o conceito de trespasse, esclarece Saldanha Sanches que, “Pode, assim, concluir-se que o trespasse, enquanto negócio jurídico, se define como a transmissão de um estabelecimento, entendido este como um conjunto de bens e direitos organizado para a prática de um comércio ou indústria. Nos casos em que entre esses direitos se inclui o direito ao arrendamento, este deverá naturalmente integrar o objecto da transmissão, para que se possa falar em trespasse. Nos demais casos, o trespasse não depende da existência nem, por conseguinte, da transmissão desse direito.”, J. L. Saldanha Sanches / Manuel Anselmo Torres, “A incidência do Selo sobre o trespasse de estabelecimento”, Fiscalidade 32 (2008), pág. 8.

[6] Por força do disposto no artigo 25.º do Código da Contribuição Industrial.

[7] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46.373, de 9 de Junho de 1965.

[8]J. L. Saldanha Sanches, “Ainda sobre o conceito de Mais-Valias”, Fisco, 65-66 (1994), pág. 8.

[9] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro.

[10]Cfr. a alínea d) do n.º 2 do artigo 4.º do Código do IRS.

[11]Cfr. n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro.