Decisão Arbitral
CAAD: Arbitragem Tributária
Tema: Imposto Único de Circulação – Incidência subjetiva
I – Relatório
1. No dia 19.02.2015, a Requerente, A… – … – …, Lda, pessoa coletiva nº …, com sede no Edifício …, Avenida …, lote …, …, em Lisboa, requereu ao CAAD a constituição de Tribunal Arbitral, nos termos do art. 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à anulação das seguintes liquidações de Imposto Único de Circulação, que lhe foram notificadas:
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Liquidação nº …, referente ao ano de 2013, mês de Junho e respeitante ao veículo …-…-…, no valor de 35,06 €, acrescido de juros compensatórios no valor de 1,81 €.
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Liquidação nº …, referente ao ano de 2014, mês de Junho e respeitante ao veículo …-…-… no valor de 35,41, acrescido de juros compensatórios no valor de 0,42 €.
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Liquidação nº …, referente ao ano de 2013, mês de Junho e respeitante ao veículo …-…-…, no valor de 32 €, acrescido de juros compensatórios no valor de 1,66 €.
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Liquidação nº …, referente ao ano de 2014, mês de Junho e respeitante ao veículo …-…-…, no valor de 32 €, acrescido de juros compensatórios no valor de 0,38 €.
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Liquidação nº …, referente ao ano de 2013, mês de Junho e respeitante ao veículo …-…-…, no valor de 54,76 € acrescido de juros compensatórios no valor de 2,83€.
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Liquidação nº …, referente ao ano de 2014, mês de Junho e respeitante ao veículo …-…-…, no valor de 55,31 € acrescido de juros compensatórios no valor de 0,77 €.
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Liquidação nº …, referente ao ano de 2013, mês de Junho e respeitante ao veículo …-…-…, no valor de 35,06 € acrescido de juros compensatórios no valor de 1,81€.
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Liquidação nº …, referente ao ano de 2014, mês de Junho, e respeitante ao veículo …-…-…, no valor de 35,41 € acrescido de juros compensatórios no valor de 0,49 €.
A Requerente, alegando que pagou o valor das liquidações, peticiona também a restituição dos impostos que considera ter pago indevidamente e ainda juros indemnizatórios sobre tais quantias.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do art. 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 5.05.2015.
3. Verificando-se a inexistência de qualquer situação prevista no art. 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma, com fundamento na proibição da prática de atos inúteis.
Foi ainda dispensada a realização de alegações, nos termos do art. 18º, nº 2, do RJAT, “a contrario”.
4. Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, sinteticamente, os seguintes:
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A Requerente prossegue a atividade de aluguer de automóveis e prestação de serviços associados à gestão de frotas.
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A Requerente foi notificada das liquidações objeto do presente processo, tendo pago todas as importâncias referentes aos atos em causa.
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A Requerente não é o sujeito passivo de IUC relativo aos veículos em questão, em nenhum dos anos sobre os quais incidiram as liquidações oficiosas agora objeto de pedido de pronúncia arbitral uma vez que, em todos os casos abrangidos pelo presente pedido de pronúncia arbitral, o imposto liquidado respeita a veículos já vendidos pela Requerente à data da verificação do facto tributário.
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De acordo com o art. 6º, nº 3, do Código do IUC, o Imposto considera-se exigível ao proprietário (ou outros detentores do veículo equiparáveis) no primeiro dia do período de tributação do veículo, o qual, de acordo com o art. 4º, nº 2, do mesmo Código, tem lugar na data em que a matrícula é atribuída.
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Deste modo, nos termos desse preceito, resulta que na data do vencimento do imposto, a Requerente já não era proprietária dos veículos em causa, pelo que o sujeito passivo deverá ser o novo proprietário de cada veículo, ou o detentor equiparável nos termos do art. 3º, nº 2 do Código do IUC.
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A propriedade destes veículos não terá sido inscrita no registo automóvel a favor do novo proprietário, facto que a Requerente, à luz do regime atualmente em vigor não pode remediar, na medida em que só o adquirente do veículo, munido do respetivo certificado de matrícula, tem legitimidade para requerer tal inscrição.
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O art. 3º, nº 1 do Código do IUC estabelece uma presunção, ilidível mediante prova em contrário, como resulta do art. 73º da Lei Geral Tributária.
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Interpretação diversa violaria o princípio constitucional da capacidade contributiva bem como o princípio da equivalência consagrado no art. 1º do Código do IUC.
5. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por impugnação, em síntese, com os fundamentos seguintes:
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O entendimento propugnado pela Requerente decorre não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adoção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.
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Com efeito, estabelece o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC que «São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados».
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Nestes termos, é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.
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Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efetuar uma interpretação contra legem.
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Em face desta redação não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende a Requerente.
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Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel.
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Também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei.
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Tal resulta não apenas do aludido n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, mas também de outras normas consagradas no referido Código.
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Nestes termos, e no mesmo sentido, estabelece o artigo 6.º do CIUC, sob a epígrafe “Facto Gerador e Exigibilidade”, no seu n.º 1, que: «O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional.»
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Da articulação entre o âmbito da incidência subjetiva do IUC e o facto constitutivo da correspondente obrigação de imposto decorre inequivocamente que só as situações jurídicas objeto de registo (sem prejuízo, da permanência de um veículo em território nacional por mais período superior a 183 dias, previsto no n.º 2 do artigo 6.º) geram o nascimento da obrigação de imposto.
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A acrescer a tudo quanto acima foi exposto, cabe ainda referir que a ser aceite a interpretação veiculada pela Requerente, então a mesma mostra-se contrária à Constituição, na medida em que tal interpretação traduz-se na violação do princípio da confiança, do princípio da segurança jurídica, do princípio da eficiência do sistema tributário e do princípio da proporcionalidade.
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Efetivamente, a interpretação proposta pela Requerente no fundo desvaloriza a realidade registral em detrimento de uma realidade informal e insuscetível de um controlo mínimo por parte da Requerida, é ofensiva do basilar princípio da confiança e segurança jurídica que deve enformar qualquer relação jurídica, aqui se incluindo a relação tributária.
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Em suporte da sua tese, veio a requerente a juntar segundas vias de faturas com os descritivos de “valores residuais” e “venda viatura não locada”, documentos estes que, para os devidos efeitos, desde já se impugnam.
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É patente que a Requerente nada logra provar, nem, ao menos, o tenta fazer.
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Na verdade, limita-se a proceder à junção de segunda vias de faturas, sem fazer qualquer prova ou sequer demonstrar qualquer indício do incumprimento e, sobretudo, da existência de qualquer contrato de compra e venda.
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Aliás, não junta qualquer contrato de venda, ou, a ser o caso, qualquer contrato de locação financeira.
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As faturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais documentos não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes.
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No que tange ao valor ou força probatória das faturas corporizadas no presente processo, levantam-se dúvidas face às discrepâncias evidenciadas, senão vejamos:
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As faturas juntas pela Requerente apresentam no seu descritivo menções distintas.
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Assim, existem segundas vias de faturas juntas, por exemplo relativamente às matrículas …-…-…, …-…-…e …-…-…onde se pode ler no campo da descrição a menção “Valores residuais”, sendo que a respeitante à matrícula …-…-…, já refere “Venda viatura não locada”.
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Contudo, não junta, nem sequer alega, que as viaturas cujas faturas referem “valores residuais” foram objeto de qualquer contrato de locação, pelo que se não entende o descritivo destas segundas vias de faturas.
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Ou seja, perante um suposto único tipo contratual (i.e., contrato de compra e venda de veículo automóvel) seria expectável constatar a existência de um descritivo uniforme, o que não se verifica no caso vertente, dado que diversas faturas juntas ao pedido de pronúncia arbitral incluem descritivos diferentes, pelo que forçosamente é-se levado a concluir pela existência de várias realidades distintas.
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Mostrando-se as faturas desconformes, como se mostram, então forçoso é concluir que tais documentos jamais podem beneficiar da presunção de verdade a que alude o artigo 75.º da LGT.
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Em suma, a Requerente não logrou provar a pretensa transmissão dos veículos aqui em causa,
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Os meros documentos unilaterais não possuem valor probatório bastante com vista a ilidir a presunção legal constante do registo.
Alega ainda a Requerida a título subsidiário:
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A transmissão da propriedade de veículos automóveis não é suscetível de ser controlada pela Requerida.
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No caso em apreço, a Requerida a limitou-se a dar cumprimento às obrigações legais a que está adstrita e, paralelamente, a seguir a informação registral que lhe foi fornecida por quem de direito, pelo que, não deverá ser condenada a pagar juros indemnizatórios, nem custas com o processo arbitral, uma vez que foi a Requerente que, ao não ter diligenciado pela feitura do registo, deu azo ao presente pedido de pronúncia arbitral.
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Com efeito, à luz dos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT, o direito a juros indemnizatórios depende da verificação dos seguintes pressupostos: (i) estar pago o imposto; (ii) ter a respetiva liquidação sido anulada, total ou parcialmente, em processo gracioso ou judicial; (iii) determinação, em processo gracioso ou judicial, que a anulação se funda em erro imputável aos serviços.
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No caso dos autos verifica-se a inexistência de erro imputável aos serviços pelo que, não estão reunidos os requisitos necessários ao direito a juros indemnizatórios.
6. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
O processo não padece de vícios que o invalidem.
7. Cumpre solucionar as seguintes questões:
1) Se são ilegais as liquidações sub judice por vício de violação de lei.
2) Se deve ser reconhecido à Requerente o direito à restituição dos impostos pagos.
3) Se deve ser reconhecido à Requerente o direito a juros indemnizatórios, sobre as quantias pagas.
II – A matéria de facto relevante
8. O Tribunal considera provados os seguintes factos:
1.A Requerida efetuou as seguintes liquidações de Imposto Único de Circulação, de que notificou a Requerente:
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Liquidação nº …, referente ao ano de 2013, mês de Junho e respeitante ao veículo …-…-…, no valor de 35,06 €, acrescido de juros compensatórios no valor de 1,81 €.
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Liquidação nº …, referente ao ano de 2014, mês de Junho e respeitante ao veículo …-…-…no valor de 35,41, acrescido de juros compensatórios no valor de 0,42 €.
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Liquidação nº …, referente ao ano de 2013, mês de Junho e respeitante ao veículo …-…-…, no valor de 32 €, acrescido de juros compensatórios no valor de 1,66 €.
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Liquidação nº …, referente ao ano de 2014, mês de Junho e respeitante ao veículo …-…-…, no valor de 32 €, acrescido de juros compensatórios no valor de 0,38 €.
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Liquidação nº …, referente ao ano de 2013, mês de Junho e respeitante ao veículo …-…-…, no valor de 54,76 € acrescido de juros compensatórios no valor de 2,83€.
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Liquidação nº …-…-…, referente ao ano de 2014, mês de Junho e respeitante ao veículo …-…-…, no valor de 55,31 € acrescido de juros compensatórios no valor de 0,77 €.
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Liquidação nº …-…-…, referente ao ano de 2013, mês de Junho e respeitante ao veículo …-…-…, no valor de 35,06 € acrescido de juros compensatórios no valor de 1,81€.
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Liquidação nº …, referente ao ano de 2014, mês de Junho, e respeitante ao veículo …-…-…, no valor de 35,41 € acrescido de juros compensatórios no valor de 0,49 €.
2.Como fundamentação destas liquidações consta das respetivas liquidações o seguinte:
“Liquidação efetuada nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 2º, conjugado com os artigos 3º, 4º, 6º e 9º, todos do Código de Imposto único de Circulação, por não ter sido liquidado nem pago, até à data da liquidação e no mês referidos no quadro o imposto referente ao veículo identificado no documento”.
3.A Requerente pagou todas as liquidações em 19 de Novembro de 2014.
9. Factos não provados
O Tribunal considera não provado que os veículos automóvel a que respeitam as liquidações tenham sido vendidos pela Requerente em data anterior à da verificação do facto tributário.
10. Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto
A decisão sobre a matéria de facto dada como provada funda-se nos documentos constantes do processo, não impugnados pelas partes, sendo de salientar que, sobre esta matéria, as partes não manifestaram qualquer discordância.
Relativamente aos factos dados como não provados, com potencial relevância para a prova dos mesmos apenas constam dos autos quatro documentos designados por “2ª via” [de fatura] (uma por cada veículo).
Destes documentos constam as datas de 23.11.2003 (veículo …-…-…); 23.07.2007 (veículo …-…-…); 23.06.2003 (veículo …-…-…) e 26.05.2009 (veículo …-…-…) não resultando expresso dos mesmos se tais datas são as datas da emissão das faturas ou a data da emissão das segundas vias das mesmas. No entanto, como em todas as faturas as datas nelas inseridas correspondem ao do início do período a que as faturas respeitam, de acordo com o que consta das mesmas, é de concluir que as datas em causa são as da emissão das faturas e não das segundas vias das mesmas.
Em reforço desta conclusão é de assinalar que todos estes documentos contêm a seguinte menção, “-Processado por programa certificado n. 580/AT”. Daqui resulta que as datas das emissões das segundas vias em causa não poderia ser as datas indicadas, uma vez que, ao tempo, não estava em vigor no ordenamento jurídico português qualquer regime de certificação de programas de faturação.
Assim sendo, os documentos em causa (“segundas vias”) carecem de datação.
Por outro lado, nem dos documentos em causa nem do pedido de pronúncia arbitral resulta qualquer justificação para a emissão de segundas vias de faturas, designadamente extravio do duplicado ou cópia destinado ao arquivo do fornecedor, ou outra razão justificativa.
Nestas circunstâncias, não se podem ter por validamente reformadas as alegadas faturas em causa e, consequentemente, os documentos juntos não são idóneos a provar as invocadas vendas.
Ademais, outra razão levaria à não consideração dos factos em causa como provados.
Com efeito, todas as alegadas segundas vias de fatura contém a menção de: “-Válido após boa cobrança.” Acontece que a Requerente não provou e nem sequer alegou, que tenha ocorrido tal cobrança pelo que, mesmo que as faturas se pudessem haver como validamente substituídas pelas segundas vias, do seu teor, desacompanhado da alegação e prova de tal cobrança, não resultaria a prova dos factos em causa.
-III- O Direito aplicável
11. Nos termos do artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC, “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”[1]
A questão que se coloca face a este preceito, prende-se com a questão de saber se a pessoa em nome de quem está registada a propriedade dos veículos, poderá provar, apesar de tal circunstância, que não era proprietária do mesmo à data do facto tributário, para efeitos de afastar a qualidade de sujeito passivo do imposto.
12. A fim de dar resposta ao problema em questão, afigura-se-nos pertinente indagar se o art. 3º, nº 1, do CIUC consagra uma presunção, posição sustentada pela Requerente ou se, diferentemente, se trata meramente da configuração do tipo legal de imposto, no âmbito da liberdade de conformação legislativa, conforme defende a Requerida sendo que, de acordo com o art. 73º da Lei Geral Tributária “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”.
13. Na doutrina tem sido analisada a distinção entre as ficções e as presunções, na perspetiva do direito fiscal.
Assim, ANA PAULA DOURADO, (O Princípio Da Legalidade Fiscal: Tipicidade, Conceitos Jurídicos Indeterminados e Margem de Livre Apreciação”, Editora Almedina, coleção Teses, 2007) escreve:
“No que diz respeito às ficções, enquanto técnica utilizada nas leis fiscais, e à sua função, diz-nos Karl Larenz que “as ficções legais têm normalmente por fim a aplicação da regra dada para um facto previsto (F1) a outro facto previsto (F2)... a lei “finge” que F2 é um caso de F1” (p. 603).
“A ficção distingue-se da presunção simples e da presunção absoluta por não se basear “numa probabilidade que normalmente se transforma em verdade”, pois “deforma («uma verdade legal») conscientemente” (p. 604).
Também sobre esta questão, em termos convergentes com ANA PAULA DOURADO, JOÃO SÉRGIO RIBEIRO, (“TRIBUTAÇÃO PRESUNTIVA DO RENDIMENTO, Um Contributo para Reequacionar os Métodos Indirectos de Determinação da Matéria Tributável, Almedina, Teses, 2010, pp. 48-49) considera que o critério de distinção entre a duas realidades deve ser “eminentemente jurídico” e que “À luz desse critério a diferença essencial entre presunção e ficção legal passa a residir no facto de a primeira ter como ponto de partida a verdade de um facto, ou seja, uma ligação à ordem natural das coisas, dado que de um facto conhecido se infere um facto desconhecido provável; enquanto a ficção, contrariamente, nasce de uma falsidade ou de algo irreal, desligado da ordem natural das coisas. Isto é, na ficção cria-se uma verdade jurídica distinta da real; na presunção cria-se uma relação causal entre duas realidades ou factos naturais.(…).
A despeito de tanto a presunção como a ficção constituírem o resultado de técnicas legislativas, através das quais se depreendem consequências de factos jurídicos tomados como verdadeiros, o que verdadeiramente as distingue é a circunstância de, na presunção legal, o facto presumido ter um alto grau de probabilidade de existir, e de, na ficção, o facto presumido ser muito improvável. “
CASALTA NABAIS, também se debruçou sobre esta questão (“O dever fundamental de pagar impostos”, Almedina, 2004, p. 500-501) escrevendo que “(...) há que separar as situações em que estamos face a presunções legais, em que de um facto conhecido (real ou até jurídico) se infere um facto jurídico naturalmente provável, caso em que se há-de admitir prova em contrário, para as compatibilizar com o princípio da capacidade contributiva, das situações em que nos deparamos com a assunção de regras da experiência comum como regras de tributação, verificando-se assim a construção de normas jurídicas (ou de tipos legais) com o (eventual) recurso a ficções legais. Nestas, o princípio da capacidade contributiva sofre o natural embate dos princípios da praticabilidade e da eficaz luta contra a evasão fiscal, havendo de contentar-se com uma válvula de segurança relativamente aqueles casos que, por atingirem tais rigores de iniquidade, não podem deixar de permitir o afastamento das referidas regras da experiência”.
14. No caso em apreço, e à luz da autorizada doutrina citada, afigura-se claro que, no art. 3º, nº 1, do CIUC, estamos perante uma presunção, na medida em que resulta (muito) provável do facto duma pessoa ter um veículo registado em seu nome, que ela seja, efetivamente, proprietária da mesma.
É esta mesma probabilidade que está na base da presunção derivada do registo consignada no art. 7º do Código de Registo Predial, aplicável por remissão do art. 29º do Regulamento do Registo automóvel.
É certo que a lei não usa a expressão “presumindo-se como tais, até prova em contrário”, que constava do art. 3.º, n.º 1 do Regulamento do Imposto Municipal Sobre Veículos[2], mas tal não se afigura impeditivo de estarmos materialmente perante uma presunção.
Como se escreveu na decisão proferida no processo arbitral nº 286/2013-T[3], “tal como já se encontra assinalado em outras decisões arbitrais proferidas neste CAAD em relação à mesma matéria (cfr. as decisões proferidas nos processos n.ºs 14/2013-T, 27/2013-T, 73/2013-T, 170/2013-T, nas quais é possível encontrar exemplos de disposições legislativas, distintas das acima invocadas, em que igualmente ocorre o uso da expressão “considerando-se” ou “considera-se” com o significado de presunção), não só não se pode dizer, de modo algum, que a atribuição de um significado presuntivo à expressão “considerando-se” não possui “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (n.º 2 do art. 9.º do Cód. Civil), como, mais do que isso, deve mesmo reconhecer-se a tal vocábulo uma correspondência corrente e normal a esse sentido presuntivo.
Por isso, não assume peso decisivo o facto de, diferentemente do que sucedia com a enunciação literal “presumindo-se” que antes se encontrava no artigo 3.º do Regulamento do Imposto Sobre Veículos, o legislador ter passado a usar no CIUC a fórmula “considerando-se” que consta do atual art. 3.º desse Código, porquanto esta expressão tem perfeita virtualidade semântica para envolver a consagração de uma presunção”. [4]
15. O acórdão do STA de 4-11-2009, proferido no processo 0553/09, aplicando o art. 73.º da Lei Geral Tributária em sede de imposto sobre o rendimento, vai ainda mais longe considerando que esta regra “não parece aplicável apenas as normas de incidência tributária em sentido próprio, mas também a todas as normas que estabelecem ficções que influenciam a determinação da matéria colectável (quer directamente, através de valores ficcionados para a matéria colectável, quer indirectamente, ao fixarem ficcionadamente os valores dos rendimentos relevantes para a sua determinação). É este, parece, o alcance do advérbio «sempre» utilizado no artigo 73.º da Lei Geral Tributária, que arvora esta regra em princípio basilar da globalidade do ordenamento jurídico tributário, corolário do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, assente no princípio da capacidade contributiva”.
É certo que o IUC não está, essencialmente, subordinado ao princípio da capacidade contributiva, mas sim ao princípio da equivalência. Todavia, tal não parece impor soluções diferentes na medida em que ambos os princípios estão intrinsecamente ligados ao princípio geral da igualdade tributária, onde encontram o seu fundamento.
Na verdade, “O princípio da capacidade contributiva representa o critério material de igualdade adequado aos impostos”[5], ao passo que “O princípio da equivalência representa o critério material de igualdade adequado às taxas e contribuições”.[6]
16. De referir ainda que, para além do art 1.º do Código do IUC dispor que “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”, outras normas reforçam e concretizam o peso deste princípio no sistema interno deste imposto.
Desde logo, o art. 3º, nº 1, da Lei que aprovou o CIUC (Lei nº 22-A/2007, de 29 de Junho), concretizando esta ideia de equivalência determina que: “ É da titularidade do município de residência do sujeito passivo ou equiparado a receita gerada pelo IUC incidente sobre os veículos da categoria A, E, F e G, bem como 70 % da componente relativa à cilindrada incidente sobre os veículos da categoria B, salvo se essa receita for incidente sobre veículos objecto de aluguer de longa duração ou de locação operacional, caso em que deve ser afecta ao município de residência do respectivo utilizador.”
E, para efeitos de concretização efetiva desta intenção legislativa dispõe o art. 19º, do CIUC que: “Para efeitos do disposto no artigo 3.º do presente código, bem como no n.º 1 do artigo 3.º da lei da respectiva aprovação, ficam as entidades que procedam à locação financeira, à locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados.”
Por outro lado, concretiza ainda este princípio da equivalência o nº 2, do art. 3º do mesmo Código ao dispor que “São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.
17. Fica assim bem clara a importância decisiva conferida pela Lei ao princípio da equivalência, quer do lado do causador do custo ambiental e viário, quer do lado do Município que tendencialmente suporta tais custos e que, por essa razão, é o beneficiário da receita do imposto.
Como salienta Sérgio Vasques: “É claramente comutativa também a estrutura do novo imposto único de circulação, que desde 2007 oneram os automóveis em função dos níveis de emissão de CO2, apelando abertamente ao princípio da equivalência e a uma relação de troca com os contribuintes”[7].
Caso não fosse possível à pessoa inscrita como proprietário no registo automóvel afastar a qualidade de sujeito passivo, mediante a prova de que não era ele o proprietário à data do facto tributário, esta ideia de equivalência poderia ser decisivamente posta em causa, tributando-se quem não causou o custo ambiental e viário e podendo não se afetar a receita ao Município que tendencialmente suportou aqueles custos.
18. A Requerida sustenta que a interpretação proposta pela Requerente do art. 3º, nº 1 do CIUC é contrária à Constituição da Republica Portuguesa na medida em que desvaloriza a realidade registal face a uma “realidade informal”,[8] violando o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.
Não se vislumbra, salvo o devido respeito, como é que a posição que sustenta estarmos, no art. 3º, nº 1, do CIUC, perante uma presunção ilidível, poderá pôr em causa os princípios da confiança e da segurança jurídica, sendo que os mesmos impõem deveres e restrições da atuação jurídico-pública[9].
O mesmo se poderá dizer, no essencial, do princípio da proporcionalidade.[10]
Aliás, relativamente a este princípio, diríamos, até, que a questão que se poderia colocar seria se tal princípio não seria violado com a interpretação preconizada pela Requerida na medida em que, se se admitisse que o cidadão poderia ficar impedido, para efeitos de tributação, de provar que apesar do registo não é o efetivo proprietário do veículo, tal equivaleria sofrer a consequência da omissão dum ato (o registo automóvel) cujo interessado em termos em termos de segurança jurídica, na perspetiva jurídico-civil é outra pessoa (o comprador).
Na verdade, mesmo que se admita que tal solução seja idónea a alcançar o fim público em vista, não resulta clara a ausência de medidas alternativas igualmente aptas.
Por outro lado, do ponto de vista do equilíbrio ou da proporcionalidade em sentido estrito, entende-se que uma regra com a interpretação sustentada pela requerida, teria custos excessivos, do ponto de vista dos direitos e interesses dos particulares (nestes caso dos antigos proprietários do veículos) face aos benefícios que se visam alcançar com o interesse público, considerando-se não verificada esta exigência fundamental do princípio da proporcionalidade.
Na realidade, o benefício alcançado, na perspetiva da gestão do imposto, com a presunção ilidível já é significativa, sendo os casos de ausência de registo pelos compradores seguramente situações em número certamente pouco relevante no universo das transações de veículos, atento a natural motivação dos compradores em realizar o registo, uma vez que tal é do seu próprio interesse.
Note-se, também, que a presunção ilidível já representa algum sacrifício para os legítimos interesses do vendedor, na medida em que para se eximir a uma tributação ofensiva do princípio da equivalência, tem o ónus de ilidir a mesma.
No entanto, ponderando, designadamente, as exigências de praticabilidade da gestão fiscal, considera-se que a mesma é apta, necessária e razoável do ponto de vista do princípio da proporcionalidade, o que já não sucederia com uma presunção absoluta, explícita ou implícita, que não permitisse, sequer, que ao cidadão fosse permitido fazer a prova contrária à presunção.
19. A Requerida invocou, ainda, que a regra em causa, na interpretação sustentada pela Requerente, violaria o princípio da eficiência do sistema tributário.
Afigura-se-nos que a Requerida terá em mente a ideia de eficiência no direito fiscal, relacionada com a eficiência administrativa[11]. Há que observar, contudo, que a relevância dum princípio na solução dum caso concreto não deve ser operar isoladamente mas em ponderação conjunta com os demais princípios e, na sequência do que acima foi dito, a propósito dos princípios da igualdade, da equivalência e da proporcionalidade, a ideia de eficiência não é suficiente para postergar a possibilidade do contribuinte afastar a presunção resultante do registo automóvel. Acresce que a eficiência e a praticabilidade são suficientemente salvaguardadas pela existência duma presunção ilidível, nos termos acima referidos.
20. Assim sendo, conclui-se que o art. 3º, nº 1, do CIUC, consagra uma presunção ilidível tendo o interessado, para afastar a mesma, de provar que, apesar do registo, não era o real proprietário, por entretanto o ter vendido.
Neste sentido, entre outras, foram as decisões proferidas nos processo arbitrais números 26/2013-T, 27/2013-T, 14/2013-T, 170/2013-T, 256/2013-T, 286/2013-T e 289/2013-T, 140/2014-T, 228/2014-T, 230/2014-T, 333/2014-T, 366/2014-T, 350/2014-T e 680/2014-T, [12], cujo entendimento, assim, se sufraga.
21.No caso em apreço, a Requerida, alicerçando-se no facto base da presunção, procedeu à liquidação.
A Requerente admitindo o facto base da presunção, propôs-se ilidir a mesma, com a demonstração de que teria vendido os veículos automóveis em causa em data anterior à dos factos tributários.Acontece, porém, que tal prova não foi feita, como resulta da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Assim sendo, não tendo sido ilidida a presunção, estabelecida no art. 3º, nº 1, do CIUC, inexiste o fundamento invocado no pedido de pronúncia arbitral para a anulação do ato de liquidação em causa, o que acarreta, necessariamente, a improcedência das demais pretensões da requerente.
-IV- Decisão
Assim, decide o Tribunal arbitral não decretar a anulação das liquidações ajuizadas e, em consequência, julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral.
Valor da ação: 341,35 € (trezentos e quarenta e um euros e tinta e cinco cêntimos) nos termos do disposto no art. 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A,n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas pela Requerente, no valor de 306 € (trezentos e seis euros) nos termos do nº 4 do art. 22º do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, CAAD, 31.08.2015.
O Árbitro
Marcolino Pisão Pedreiro
[1] Dispõe, ainda, o nº 2 do mesmo artigo que “São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.
[2] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho e revogado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho. Esta norma tinha a seguinte redação: “o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados”.
[3] Disponível in “https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?s_processo=286%2F2013&s_data_ini=&s_data_fim=&s_resumo=&s_artigos=&s_texto=&id=341”
[4] Acresce que, como sustentam Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação ao artigo 73.º, n.º 3 da Lei Geral Tributária (“LGT”) “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, revelada pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real” (Cfr. “Lei Geral Tributária Comentada e Anotada”, Encontros da Escrita, 4ª Edição, 2012, pág. 651).
[5] Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pág. 251.
[6] Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pág. 260.
Como nota ainda este autor na pág. 227 da mesma obra “Até final do séc. XX, os impostos especiais sobre o álcool, tabaco, produtos petrolíferos ou automóveis não tinham outro objectivo se não o da angariação de receita, mostrando os contornos unilaterais típicos de qualquer imposto.
A partir dos anos 80 e 90 (…), no entanto, estas figuras tributárias passaram a ser instrumentalizadas à compensação dos custos que o consumos destes traz à saúde pública e ao meio ambiente, com o que os impostos especiais de consumo têm vindo a ganhar a natureza para comutativa que é típica das contribuições”.
[7] Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pág. 229.
[8] De notar, porém, que vigora no direito português o princípio da liberdade da forma ou da consensualidade (art. 219º do Código Civil). Salvo quando a lei o exigir, a validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial. A “realidade informal” que alude a requerente é na verdade a realidade material que resulta das normas do direito civil.
[9] Jorge Bacelar Gouveia refere que o princípio da segurança jurídica exige “a publicidade dos actos do poder público, assim como a clareza e a determinabilidade das fontes de direito” e que o princípio da proteção da confiança requer “que o quadro normativo vigente não mude de modo a frustrar as expectativas geradas nos cidadãos acerca da sua continuidade, com a proibição de uma intolerável retroactividade das leis, assim como a necessidade da sua alteração em conformidade com as expectativas que sejam constitucionalmente tuteladas” (Manual de Direito Constitucional, Almedina, 4ª Ed., Vol. II, pág. 821)
[10] Segundo o mesmo autor, a configuração deste princípio “assenta numa limitação material interna à actuação jurídico-pública de carácter discricionário, contendo os efeitos excessivos que eventualmente se apresentem na edição das providências de poder público de cariz ablatório para os respetivos destinatários” (ob. Cit. págs. 839-840).
[11] E não, manifestamente, o princípio da eficiência do direito fiscal pois, como escrevem Jónatas E.M. Machado e Paulo Nogueira da Costa “Do princípio da Eficiência decorre que o sistema tributário não deve ter efeitos distorcionários e não deve interferir com o funcionamento dos mercados, salvo quando, devido à existência de falhas de mercado, os mesmos não funcionam eficientemente.” (Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora, 2009, pág. 28.)