Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 191/2015-T
Data da decisão: 2015-10-26  IUC  
Valor do pedido: € 15.194,38
Tema: IUC – Incidência sujetiva; Locação financeira; Presunções legais
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Decisão Arbitral

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo nº 191/2015-T

Tema: IUC

 

 

A Árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o tribunal arbitral singular constituído em 08 de junho de 2015, decide nos termos que se seguem:

 

I. RELATÓRIO

1. No dia 17.03.2015, a sociedade “A… – …, S.A.”, NIPC … apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral singular, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, doravante, “RJAT”), sendo requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 27.03.2015.

3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a ora signatária, que comunicou a aceitação do correspondente encargo no prazo aplicável.

4. Em 13.05.2015 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação da árbitro nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.ºe 7.º do Código Deontológico.

5. Assim, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído em 08.06.2015.

6. No dia 01.09.2015 realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT. A Requerente começou por responder às questões que lhe foram colocadas pelo tribunal sobre (i) tempestividade do pedido; (ii) documentos em falta e (iii) eventual contradição do pedido. Após a pronúncia da Requerente, e tendo sido ouvida a Requerida, o tribunal decidiu conceder prazo à Requerente para corrigir o pedido quanto à tempestividade do mesmo e juntar os documentos em falta; conceder prazo à Requerida para se pronunciar sobre os documentos juntos pela Requerente. O tribunal notificou ainda as Partes para apresentarem alegações escritas e informou que a decisão arbitral seria proferida 30 dias após a junção das alegações escritas pela Requerida.

7. No presente processo arbitral, pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade dos atos de liquidação oficiosa do imposto único de circulação (IUC) relativo aos períodos de tributação de 2009 a 2012, cujo montante total ascende a € 13.818,44, e, consequentemente, determine a restituição do valor total de € 15.194,38, correspondente a imposto e juros compensatórios no montante de € 1.375,94, bem como o pagamento de juros indemnizatórios nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT.

7.A. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:

- A Requerente é uma instituição financeira sujeita à supervisão do Banco de Portugal que prossegue a sua atividade no ramo do financiamento automóvel, designadamente sob a modalidade de concessão de empréstimos para a aquisição de veículos ou através de contratos de locação financeira.

 

- A Requerente recebeu várias notas de liquidação de IUC sobre veículos relacionados com a atividade supra mencionada, das quais reclamou graciosamente, tendo o processo corrido termos com o n.º …2014….

 

- A reclamação graciosa apresentada pela Requerente foi indeferida pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) através de despacho notificado à Requerente no dia 05.01.2015.

 

- A Requerente entende que não é sujeito passivo de IUC relativamente aos veículos com as matrículas em questão em nenhum dos exercícios sobre os quais incidiram as liquidações oficiosas que são objeto do pedido de pronúncia arbitral, em concreto porque:

(i) Em 52 casos, o veículo objeto de tributação já tinha sido alienado pela Requerente em data anterior à da ocorrência do facto gerador de IUC;

(ii) Em 55 casos, o veículo foi objeto de um contrato de leasing que se encontrava em vigor à data em que se gerou o facto tributável;

(iii) Em 3 casos os veículos objeto de tributação não estavam na disposição da Requerente à data de vencimento do IUC na medida em que se encontravam cedidos ao abrigo de contratos de locação financeira a clientes da Requerente;

(iv) Em 4 casos os veículos objeto de tributação foram adquiridos pela Requerente em data posterior à do facto gerador do imposto.

 

- Quanto ao primeiro grupo de situações, entende a Requerente que o facto de o veículo em causa ter sido vendido por si em momento anterior ao da ocorrência do IUC consubstancia uma causa de exclusão de incidência do imposto que deveria ter sido atendida pela AT, na medida em que, nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 3, do CIUC, o imposto se considera exigível ao proprietário (ou a outros detentores do veículo que sejam equiparáveis) no primeiro dia do período de tributação do veículo, o qual, de acordo com o artigo 4.º, n.º 2, do mesmo Código, tem lugar na data em que a matrícula é atribuída. O facto de a propriedade dos veículos não ter sido inscrita no registo automóvel a favor do novo proprietário não pode ser imputado à Requerente, que não tinha legitimidade para requerer tal inscrição. Por outro lado, entende a Requerente que, embora o artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, preveja que são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados, a expressão “considerando-se” deve ser entendida como uma presunção legal ilidível mediante prova em contrário por parte do transmitente do veículo. Assim, à luz do artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, o imposto deve incidir sobre os novos proprietários dos veículos.

 

- Quanto ao segundo grupo de situações, entende a Requerente que, tendo sido celebrados contratos de locação financeira que estavam em vigor à data em que o facto tributário se gerou e que o imposto se tornou exigível, o sujeito passivo do IUC é, em exclusivo, o locatário financeiro.

 

- Quanto ao terceiro grupo de situações, entende a Requerente que deve ser imputado aos detentores dos veículos/locatários o IUC devido por referência às viaturas em causa, já que, relativamente à Requerente, o “pressuposto económico selecionado para objeto do imposto” não se verifica.

 

- No que respeita às quatro últimas situações indicadas pela Requerente ao tribunal, a mesma alega que, à data de vencimento do imposto, ainda não era proprietária dos veículos em questão, pelo que o sujeito passivo deverá ser, em cada caso, o anterior proprietário ou outro detentor equiparável existente em data anterior à da venda.

 

7.B. Na sua Resposta, a AT invocou, resumidamente, o seguinte:

 

7.B.1 Questões prévias

 

- Em primeiro lugar, a AT argumenta que a Requerente, contrariamente ao que estava obrigada, não fez qualquer prova da data em que teria sido notificada do indeferimento da reclamação graciosa, assim impedindo o controlo sobre a tempestividade do pedido de pronúncia arbitral.

 

- Em segundo lugar, a AT questiona o facto de a Requerente não juntar documentos que poderiam sustentar a tese por si defendida, designadamente os documentos comprovativos da situações alegadas de “IUC na vigência do contrato”, de “IUC após o contrato estar em dívida” e de “retoma IUC com vencimento anterior à A… adquirir o veículo”. Entende a Requerida que, nos termos do disposto no artigo 423.º do CPC, os documentos deveriam ter sido juntos com o articulado em que foram alegados os factos a que os mesmos respeitam e que, após a dedução do pedido de pronúncia arbitral, ficou precludida da possibilidade de apresentação de prova documental.

 

- Em terceiro lugar, a Requerida invoca que a Requerente fez prova de um único pagamento de imposto (IUC de 2011 da viatura com a matrícula …-…-…) e, mesmo quanto a essa, está em falta o pagamento de juros compensatórios no valor de € 5,43.

 

- Como quarta questão prévia, a AT sustenta a tese da ineptidão do pedido por o objeto do pedido de pronúncia arbitral conter em si uma insanável contradição ao não permitir perceber quais as liquidações cuja legalidade a Requerente questiona.

 

7.B.2 Quanto ao mérito do pedido, a AT invoca os seguintes argumentos:

 

•          O legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.

•          Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção seria inequivocamente efetuar uma interpretação contra legem; trata-se, isso sim, de uma opção clara de política legislativa cuja intenção foi a de que, para efeitos de IUC, fossem considerados proprietários aqueles que como tal constem do registo automóvel.

•          A seguir-se a tese defendida pela Requerente quanto ao facto de o artigo 3.º do CIUC consagrar uma presunção ilidível, então a ilisão da presunção depende do cumprimento do estatuído no artigo 19.º do CIUC; não tendo a Requerente cumprido o ónus probatório que se lhe impunha, e constatando-se o incumprimento da obrigação declarativa prevista naquela disposição legal, duas consequências devem retirar-se: (i) a responsabilidade da Requerente pelas custas arbitrais relativas ao presente pedido de pronúncia arbitral dado que aquele incumprimento deu azo à emissão de parte das liquidações em causa; (ii) o apuramento da sua responsabilidade em termos contra-ordenacionais à luz do artigo 117.º, conjugado com o artigo 26.º, n.º 4, do RGIT;

•          A interpretação dada pela Requerente traduz-se num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português;

•          A argumentação apresentada pela Requerente de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efetivo, independentemente de não figurar no registo automóvel nessa qualidade, é errada à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado no CIUC na medida em que o legislador pretendeu criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel.

•          Quanto aos documentos juntos pela Requerente para prova do primeiro conjunto de situações apresentado ao tribunal, entende a AT que os mesmos, por se tratarem de faturas, não são aptos a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte do pretenso adquirente.

•          Quanto ao segundo conjunto de situações, a Requerida faz notar que a Requerente não juntou nenhum dos contratos de leasing que alega terem sido celebrados previamente à data de verificação dos factos tributários;

•          Quanto ao terceiro conjunto de situações, a Requerida entende que a AT nada tem que ver com as relações contratuais entre a Requerente e os seus clientes e que, novamente, a Requerente não faz prova do que alega, designadamente, da existência de um contrato de locação; do incumprimento desse contrato; do cancelamento do registo de locação financeira; do cumprimento do disposto no artigo 19.º do CIUC.

•          Relativamente ao último conjunto de situações identificado pela Requerente, a Requerida novamente invoca a ausência de prova pela Requerente do alegado.

•          Por fim, a Requerida sustenta que, a ser aceite a interpretação veiculada pela Requerente, então a mesma mostra-se contrária à Constituição, na medida em que se traduz na violação do princípio da confiança, do princípio da segurança jurídica, do princípio da eficiência do sistema tributário e do princípio da proporcionalidade.

 

II. DAS QUESTÕES PRÉVIAS INVOCADAS PELA REQUERIDA

A primeira questão prévia que a AT invoca é relativa ao cumprimento do prazo legalmente fixado para o pedido de constituição do tribunal arbitral. Com efeito, não resulta claro do pedido de pronúncia arbitral tal como ele foi inicialmente formulado pela Requerente o cumprimento do mencionado prazo, porquanto a Requerente não alega – nem prova – a data em que foi notificada da decisão de indeferimento do processo de reclamação graciosa formulado com referência às liquidações que são objeto do presente processo arbitral.

 

Contudo, depois de ter sido notificada para o fazer na reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, veio a Requerente apresentar prova de ter sido notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa no dia 05.01.2015, e alterar o pedido de pronúncia arbitral em conformidade.

 

Ora, o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 17.03.2015, ou seja, dentro do prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. Assim, quanto a esta questão, não assiste razão à AT.

 

Quanto à questão da não junção atempada de suporte documental ao alegado no pedido de pronúncia arbitral, assiste, de facto, alguma razão à AT. Efetivamente, verifica-se que a Requerente só através do requerimento apresentado no dia 08.09.2015 é que veio apresentar (i) notas de liquidação identificadas na tabela anexa ao pedido de pronúncia arbitral; (ii) contratos referentes às situações de IUC vencido na vigência dos contratos; (iii) faturas referentes às situações de IUC com vencimento após a venda do veículo – todos estes documentos de prova dos factos alegados aquando da apresentação do pedido. Por outro lado, nas alegações apresentadas no dia 28.09.2015 veio a Requerente defender que qualquer vício que pudesse existir em virtude da não junção, com o pedido de pronúncia arbitral, dos documentos de prova do alegado, teria ficado sanado com a respetiva junção através de requerimento apresentado no dia 07.09.2015. Porém, nas mesmas alegações, acaba por admitir que, “por lapso, não foram juntas as notas de liquidação referentes aos veículos com as matrículas …-…-… (2009) e …-…-… (2009), lapso que desde já se retifica através da junção das mencionadas notas de liquidação” e que, “no que diz respeito às faturas juntas ao processo referentes às matrículas …-…-… e …-…-…, refira-se que as mesmas, igualmente por lapso, não correspondiam ao veículo em questão, motivo pelo qual se juntam ao processo as faturas corretas.”

 

Assiste, portanto, razão à AT quando questiona o facto de a Requerente não ter procedido à junção da documentação de prova dos factos alegados no momento processualmente adequado para o efeito, ou seja, no momento em que apresenta o pedido de pronúncia arbitral, sem que sobre o assunto fosse apresentada qualquer justificação ou explicação, nesse momento ou em momento posterior. Na verdade, não é despiciendo o facto de não serem apresentadas as provas no momento em que se alegam os factos a que as mesmas se referem, pois é da apreciação conjunta de alegação e prova que há-de resultar o exercício do contraditório pela parte contrária.

 

Contudo, também é verdade que à parte contrária – a AT – foi dada, neste processo, oportunidade para se pronunciar sobre toda a documentação efetivamente junta pela Requerente após o pedido de pronúncia arbitral, quer através do requerimento apresentado a 14.09.2015, quer através das alegações apresentadas no dia 07.10.2015. Por essa via permitiu-se à Requerida o exercício pleno do contraditório sobre a documentação apresentada, razão pela qual este tribunal entende não ser de retirar outras consequências do comportamento processual da Requerente.

 

Relativamente à questão prévia 3, será a mesma analisada mais à frente nesta decisão, nomeadamente na fundamentação de facto da decisão.

 

Quanto à questão prévia 4, sobre a alegada contradição insanável do pedido de pronúncia arbitral, entende este tribunal não assistir razão à AT. Com efeito, resulta da tabela anexa ao pedido, do pedido formulado e do valor que lhe é atribuído que o que está em causa são as 114 liquidações de IUC no valor de € 13.818,44.

 

Assim, verificando-se que nenhuma das questões prévias impede a apreciação do mérito do pedido, prossigamos para esta.

 

III. SANEAMENTO

 

1. O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

 

2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

3. O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

4. Pretende-se a apreciação conjunta da legalidade de 114 liquidações de IUC, relativas aos anos de 2009 a 2012. Assim, verificam-se os pressupostos previstos no n.º 1 do artigo 3.º do RJAT e no artigo 104.º do CPPT, sendo de admitir a cumulação em virtude da identidade do imposto e da circunstância de a análise dos atos tributários em causa depender da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da aplicação das mesmas regras de direito.

 

IV. MATÉRIA DE FACTO

 

IV.1. Factos provados

 

Antes de entrar na apreciação das questões, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e o processo administrativo (PA) junto aos autos e tendo ainda em conta os factos alegados, se fixa como segue:

 

1.         A Requerente é uma Instituição Financeira de Crédito sujeita à supervisão do Banco de Portugal, que se dedica ao financiamento automóvel, designadamente sob a modalidade de concessão de empréstimos para a aquisição dos veículos ou da celebração de contratos de locação financeira;

2.         A Requerente recebeu 114 notas de liquidação de IUC sobre veículos relacionados com a atividade supra mencionada, todas identificadas na Tabela Anexa ao pedido arbitral, que aqui se dá por integralmente reproduzida;

3.         A Requerente efetuou o pagamento de todas as notas de liquidação de IUC objeto do pedido de pronúncia arbitral, conforme resulta da tabela constante de pp. 9 e ss. do  PA;

4.         A Requerente apresentou reclamação graciosa, que correu termos sob o número …2014…, a qual foi indeferida a 05.01.2015, como consta do PA e do documento junto pela Requerente, que aqui se dá por integralmente reproduzido;

5.         A propriedade destes veículos encontrava-se à data dos factos tributários inscrita no registo automóvel a favor da Requerente;

6.         A Requerente emitiu os seguintes documentos denominados “2.ªs vias de fatura”, respeitantes às viaturas e com as datas que se indicam de seguida:

a.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.02.2009;

b.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.03.2010;

c.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 30.11.2008;

d.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 20.08.2005;

e.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.02.2008;

f.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.09.2010;

g.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.04.2010;

h.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.02.2008;

i.          Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 30.11.2010;

j.          Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 01.03.2009;

k.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.11.2009;

l.          Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 10.12.2008;

m.        Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 30.11.2009;

n.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 20.08.2005;

o.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.04.2009;

p.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.06.2009;

q.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.07.2010;

r.          Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 20.09.2006;

s.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 29.07.2010;

t.          Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.04.2011;

u.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.08.2009;

v.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 01.08.2010;

w.        Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 12.10.2010;

x.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.12.2009;

y.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.07.2010;

z.         Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 01.08.2009;

aa.       Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 11.03.2009;

bb.       Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.09.2008;

cc.       Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.07.2011;

dd.      Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.09.2010;

ee.       Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 24.07.2009;

ff.        Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 28.04.2005.

 

7.         Em todos os casos indicados no ponto anterior, o facto gerador da liquidação impugnada ocorreu antes da data da fatura emitida relativamente à mesma viatura.

 

8.         As seguintes viaturas têm as datas de matrícula que se seguem (cf. pp. 9 a 12 do PA) e, relativamente às mesmas, foram emitidas as faturas que se seguem:

 

Viatura

Data da matrícula

Data da fatura

…-…-…

14.07.2008

19.07.2012

…-…-…

22.01.2008

27.01.2011

…-…-…

26.04.2005

24.04.2011

…-…-…

10.04.2008

28.04.2011

…-…-…

24.08.2006

27.04.2011

…-…-…

28.09.2006

01.06.2010

…-…-…

30.07.2004

24.05.2010

…-…-…

31.05.2005

12.10.2010

…-…-…

22.01.2008

27.01.2011

 

9.         Nos casos das viaturas com as matrículas …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-… e …-…-…, o aniversário da matrícula ocorre antes da data de emissão da fatura.

 

10.       Nos casos das viaturas com as matrículas …-…-…, …-…-…, …-…-… e …-…-…, o aniversário da matrícula ocorre depois da data de emissão da fatura.

 

11.       A Requerente celebrou os contratos de locação financeira referentes às viaturas e pelos períodos de seguida identificados:

a.         …-…-…, de 01.09.2009 a 01.09.2016;

b.         …-…-…, de 24.07.2004 a 24.07.2009;

c.         …-…-…, celebrado a 21.09.2009, pelo período de 84 meses;

d.         …-…-…, de 01.01.2007 a 01.12.2010;

e.         …-…-…, de 01.07.2007 a 01.07.2013;

f.         …-…-…, de 24.07.2007 a 24.07.2014;

g.         …-…-…, de 24.05.2005 a 24.05.2015;

h.         …-…-…, celebrado a 30.04.2009, pelo período de 120 meses;

i.          …-…-…, de 01.06.2009 a 01.06.2014;

j.          …-…-…, de 01.01.2008 a 01.01.2012;

k.         …-…-…, de 24.12.2010 a 24.12.2014;

l.          …-…-…, celebrado a 27.01.2010, pelo período de 48 meses;

m.        …-…-…, celebrado a 03.12.2010, pelo período de 60 meses;

n.         …-…-…, de 05.12.2007 a 05.12.2014;

o.         …-…-…, de 01.07.2011 a 01.07.2015;

p.         …-…-…, de 01.07.2011 a 01.07.2015;

q.         …-…-…, de 24.07.2007 a 24.05.2014;

r.          …-…-…, de 24.11.2010 a 24.11.2015;

s.         …-…-…, de 31.05.2011, pelo período de 48 meses;

t.          …-…-…, de 24.06.2008 a 24.06.2015;

u.         …-…-…, de 29.12.2009, pelo período de 48 meses;

v.         …-…-…, de 24.05.2011 a 24.05.2015;

w.        …-…-…, de 24.06.2007 a 24.05.2013;

x.         …-…-…, de 28.12.2011, pelo período de 24 meses;

y.         …-…-…, de 01.06.2007 a 01.06.2013;

z.         …-…-…, de 24.05.2009 a 24.06.2011;

aa.       …-…-…, de 01.05.2007 a 01.05.2012.

 

12.       As seguintes viaturas têm as datas de matrícula que se seguem (cf. pp. 9 a 12 do PA):

Viatura

Data da matrícula

Prazo do contrato de leasing

…-…-…

24.06.2004

24.07.2004 a 24.07.2009

…-…-…

22.04.2009

24.05.2009 a 24.06.2011

…-…-…

30.03.2007

01.05.2007 a 01.05.2012

 

13.       Em todos os casos indicados no ponto 11, o facto gerador ocorreu durante o prazo de vigência do contrato de locação financeira.

 

14.       A Requerente enviou uma carta, datada de 09.02.2009, ao locatário do contrato de locação financeira referente à viatura de matrícula …-…-… nos termos da qual o informava de que se encontrava vencida e não liquidada a quantia de € 1.277,33 referente ao contrato mencionado, concedendo-lhe um prazo suplementar de 8 dias para proceder ao pagamento e avisando-o de que, findo esse prazo sem se verificar o pagamento, considerariam o contrato definitivamente incumprido.

 

IV.2. Factos não provados

a.         O cancelamento do registo de locação financeira em relação à viatura de matrícula …-…-…;

b.         Que tenha sido celebrado um contrato de locação financeira relativo ao veículo de matrícula …-…-…;

c.         Que o veículo de matrícula …-…-… tenha sido adquirido pela Requerente posteriormente à data de vencimento do imposto liquidado por referência ao mesmo veículo (referente aos anos de 2010, 2011 e 2012);

d.         Que a Requerente tenha efetuado a comunicação prevista no artigo 19.º do CIUC em relação a qualquer das viaturas em causa no presente processo.

e.         Que a viatura de matrícula …-…-… estivesse cedida em locação financeira na data em que ocorreu o facto gerador relativo ao ano de 2011.

 

 

V. THEMA DECIDENDUM

 

A questão de fundo em causa nos presentes autos consiste em saber se os factos alegados pela Requerente consubstanciam motivos de exclusão de incidência subjetiva de imposto e se, em consequência, se deve considerar que os atos impugnados enfermam de erro sobre os pressupostos do facto tributário, o que consubstanciaria um vício de violação de lei determinante da respetiva anulação, com as devidas consequências legais.

 

VI. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

A Requerente fundamenta o seu pedido em quatro tipos de argumentos distintos, conforme a situação de facto que invoca:

1)         Viaturas cuja propriedade foi transmitida previamente ao facto gerador;

2)         Viaturas com contrato de leasing vigente à data do facto gerador;

3)         Uma viatura cujo contrato de leasing estava em incumprimento no momento em que ocorreu o facto gerador;

4)         Uma viatura que foi adquirida pela Requerente depois do momento em que ocorreram os factos geradores.

 

1)         Quanto ao primeiro conjunto de situações:

Invoca a Requerente que, com referência aos atos de liquidação cuja propriedade foi transmitida previamente ao facto gerador, não se encontram preenchidos os pressupostos de incidência subjetiva previstos no artigo 3.º do CIUC, não sendo, por isso, sujeito passivo de IUC. Invoca que, à data dos factos tributários, já não era proprietária das referidas viaturas (no caso as identificadas no mapa anexo como primeiras 52 situações) e, em consequência, as liquidações devem ser anuladas por manifesta falta de responsabilidade subjetiva pelo seu pagamento.

 

Invoca o disposto no artigo 3.º do CIUC, o qual, em seu entender, estabelece uma presunção implícita de propriedade dos veículos a favor de quem os mesmos se encontrem registados, presunção essa que, por força da aplicação da regra geral prevista no artigo 73º da Lei Geral Tributária, é ilidível mediante prova em contrário. Já para a Requerida, o artigo 3.º do CIUC não estabelece qualquer presunção implícita, mas uma verdadeira ficção legal, inilidível.

 

Esta questão tem sido abundantemente tratada pela jurisprudência arbitral ao longo dos últimos anos (cf. as decisões proferidas nos processos 286/2013-T, de 2 de maio de 2014, 293/2013-T, de 9 de junho de 2014, 46/2014-T de 5 de setembro, 246 e 247/2014 T, de 10 de outubro, entre outros), tendo ainda sido objeto do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido em 19-03-2015, processo n.º 08300/14. Seguindo este tribunal de perto a linha jurisprudencial delineada nos processos acima indicados, indicar-se-ão aqui apenas os seus traços mais significativos.

 

Assim, o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC estabelece que:

“São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.“ 

A questão que se discute a propósito desta norma é a seguinte: deverá entender-se que o legislador utilizou a palavra “considerando-se” como poderia ter utilizado a palavra “presumindo-se” ou, pelo contrário, que o legislador quis estabelecer uma ficção legal, vedando a possibilidade de se realizar prova em contrário?

 

Nos termos do disposto no artigo 349.º do Código Civil, “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.” Por outro lado, o n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil esclarece que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, salvo nos casos em que a lei o proibir.

 

No que diz respeito às presunções de incidência tributária, determina o artigo 73.º da Lei Geral Tributária que estas admitem sempre prova em contrário.

 

As “ficções legais” consistem, diferentemente, “num processo jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir consequências jurídicas” .

 

Ora, contrariamente ao que defende a Requerida e como já foi reconhecido nas decisões arbitrais e judiciais referidas, a análise do elemento literal, bem como dos elementos histórico e teleológico presentes na norma em questão conduzem à conclusão de que o legislador não pretendeu estabelecer qualquer ficção legal mas apenas e só uma presunção, ilidível mediante prova em contrário nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária. Tratando-se a norma de incidência prevista no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC de uma norma de incidência tributária, outro entendimento seria claramente contrário aos princípios que regem a relação jurídica fiscal.

 

Quanto ao elemento histórico, importa referir que o CIUC teve a sua génese na criação, através do DL 599/72, de 30 de Dezembro, do imposto sobre veículos, o qual já consagrava expressamente que o imposto era devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados. Por outro lado, o artigo 2.º do Regulamento dos Impostos de Circulação e de Camionagem (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 116/94) estabelecia que: “são sujeitos passivos do imposto de circulação e do imposto de camionagem os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou coletivas em nome das quais os mesmos se encontram registados”. 

É certo que, no CIUC, o legislador substituiu a expressão “presumindo-se” pela expressão “considerando-se”, o que, na perspetiva da Requerida, traduziu a consagração de uma ficção legal, inilidível. Não consideramos, no entanto, que assim seja. A mudança de verbo não consubstancia uma alteração de fundo na norma de incidência, que, a nosso ver, continua a estabelecer uma presunção ilidível mediante prova em contrário – em conformidade, aliás, com o disposto no artigo 73.º da LGT.

Como afirmam DIOGO LEITE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES E JORGE LOPES DE SOUSA, na anotação ao n.º 3 do artigo 73.º da LGT, “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objetiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”.

 

Em suma, em matéria de incidência tributária, as presunções podem ser reveladas pela expressão “presume-se” ou por expressão semelhante. A título de exemplo, refere JORGE LOPES DE SOUSA que no artigo 40.º, n.º 1, do CIRS, se utiliza a expressão “presume-se”, ao passo que no artigo 46.º, n.º 2 do mesmo Código se faz uso da expressão “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal.

 

Quanto ao elemento teleológico, importa referir que o princípio estruturante da reforma da tributação automóvel é justamente o da incidência da tributação sobre o verdadeiro utilizador do veículo, não se coadunando este princípio com a leitura “cega” da letra da lei, que poderia levar, afinal, a tributar quem não fosse proprietário e, dessa forma, quem não fosse o sujeito causador do “custo ambiental e viário” provocado pelo veículo, a que alude o artigo 1.º do CIUC.

 

Assim, quanto à incidência subjetiva do imposto, é de concluir que não se verificam alterações relativamente à situação anteriormente em vigor no âmbito do Imposto Municipal sobre Veículos, Imposto de circulação e Imposto de Camionagem, como aliás é amplamente reconhecido pela doutrina, continuando a valer uma presunção ilidível nesta matéria. Este entendimento é, ainda, o único que se afigura adequado e conforme ao princípio da verdade material e da justiça, subjacentes às relações fiscais, com o objetivo de tributar o real e efetivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário, por constar do registo automóvel. 

Nesta conformidade, considerando os elementos de interpretação da lei referidos, somos conduzidos à conclusão de que a expressão “considerando-se” tem exatamente o mesmo sentido que a expressão “presumindo-se”, devendo, desta forma, entender-se que o artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma verdadeira presunção de propriedade e não qualquer ficção, sendo, por isso, tal presunção ilidível. Por ser assim, tem de se permitir ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo.

 

Por último, cumpre atender, na presente análise, ao valor jurídico do registo automóvel. Assim, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 1.º do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, que instituiu o Registo da Propriedade Automóvel, “o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. Acrescenta ainda o artigo 7.º do Código do Registo Predial que “o registo definitivo constituiu presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. O registo de propriedade automóvel não tem, portanto, natureza constitutiva, mas meramente declarativa, permitindo apenas a inscrição no registo presumir a existência do direito e a sua titularidade. Logo, a presunção resultante do registo pode ser ilidida mediante prova em contrário. E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408.º do Código Civil, salvas as exceções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente da inscrição no registo. Em suma, o registo automóvel, na economia do CIUC, representa mera presunção ilidível dos sujeitos passivos do imposto. No caso de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, não prevendo a lei qualquer exceção para o mesmo, o contrato tem eficácia real, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo; do mesmo modo, o titular inscrito no registo deixará de ser o proprietário, pese embora ainda possa constar, por algum tempo ou mesmo muito, do registo como tal.

 

De notar ainda que as transmissões efetuadas são oponíveis à Requerida, apesar do disposto no n.º 1 do artigo 5.º do Código do Registo Predial, que dispõe: “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros quando registados.” A noção de terceiros para efeitos de registo está consagrada no n.º 4 do mesmo artigo 5.º: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, o que, manifestamente não é o caso da AT. Assim, a AT não é terceiro para efeitos de registo.

 

Em consequência do que antecede, o proprietário registado de um automóvel pode fazer prova, para efeitos de tributação em sede de IUC, de que já não é o proprietário efetivo do veículo em causa, nomeadamente por ter procedido à respetiva venda. E a prova da existência de um contrato de compra e venda pode ser efetuada por qualquer meio, sendo a fatura um documento contabilístico idóneo para este efeito, como para muitos outros, nomeadamente fiscais. As faturas titulam vendas, transações ou prestações de serviços que se presumem verdadeiras por força da presunção de veracidade instituída no artigo 75.º da LGT. Neste sentido, não se aceita que se questione a sua força probatória apenas para o fim da prova da transmissão da propriedade do veículo, sob pena de cairmos no absurdo jurídico de, a partir do mesmo documento, se reconhecer que a transação existiu para efeitos de incidência de imposto sobre o rendimento, mas não existiu para efeitos de IUC. Mas, tratando-se de uma presunção, nada impede a demonstração da sua falsidade ou inadequação face aos requisitos legais estabelecidos no artigo 36.º do CIVA. Trata-se, também neste caso, de uma presunção ilidível, sendo que o ónus da prova cabe à AT.

 

Alega a Requerente que, à data em que ocorreram os factos tributários, já havia transmitido a propriedade das viaturas para terceiros adquirentes. Para prova disso junta as segundas vias de faturas, nas quais se mencionam, entre outros elementos, a matrícula da viatura, o número de cliente, a identificação do destinatário, o valor, uma descrição variável – por exemplo, “RESCISÃO”, VENDA NÃO LOCADO”, “PERCA TOTAL SEGURADORA”, “VALOR RESIDUAL”, “VENDA DE BEM EM CRÉDITO” -, assim como a menção “Válido após boa cobrança.”

 

As faturas apresentadas pela Requerente beneficiam, como se disse, da presunção de veracidade contida no artigo 75.º da LGT, desde que cumpram os requisitos legais e demonstrem a correspondência à realidade de facto que a Requerente pretende demonstrar nos autos: a transmissão da propriedade das viaturas. 

 

Porém, a AT questiona a “própria validade de todas as alegadas 2.ºas vias das faturas de alienação dos veículos, e por várias ordens de razão. Na verdade, relativamente a todas as faturas identificadas como 2.ª vias, é absolutamente relevante o já decidido na decisão arbitral de 30.07.2015, proferida no Processo n.º 79/2015-T CAAD, do mesmo Requerente, no que se refere à menção, constante de todas as faturas, da menção “válido após boa cobrança” (…). Ou seja, e de uma forma liminar e sintética: se as todas faturas apenas são válidas após a demonstração da sua boa cobrança, e se esta prova não foi feita, então todas as faturas são inválidas para o efeito pretendido.” (…) As faturas juntas pelo Requerente apresentam no seu descritivo menções distintas. Assim, em algumas faturas juntas pode-se ler no campo da descrição a menção “VENDA NÃO LOCADO”, “PERCA TOTAL SEGURADORA”, “VALOR RESIDUAL”, “RESCISÃO”, e “VENDA DE BEM EM CRÉDITO”. Ou seja, perante um suposto único tipo contratual (i.e., contrato de compra e venda de veículo automóvel) seria expectável constatar a existência de um descritivo uniforme, o que não se verifica no caso vertente, dado que diversas faturas juntas ao pedido de pronúncia arbitral incluem descritivos diferentes, pelo que forçosamente é-se levado a concluir pela existência de várias realidades distintas.”

 

Efetivamente, os documentos juntos pela Requerente para prova da transmissão de propriedade levantam algumas dúvidas quanto à efetiva ocorrência da transmissão que pretendem titular. Em primeiro lugar, os descritivos não permitem concluir, sem mais, pela existência de compras e vendas subjacentes, dada a diversidade de situações descritas. Em segundo lugar, a indicação de “válido após boa cobrança” retira à fatura a capacidade para, por si só, demonstrar a efetiva conclusão da venda. Claro que o cenário poderia ser diferente se a Requerente juntasse aos autos as cópias das declarações de venda relativas a cada um dos veículos em questão, as quais certamente foram emitidas e entregues aos respetivos compradores para a conclusão do negócio e posterior alteração do registo de propriedade. Contudo, não o fez. E, assim, não pode este tribunal considerar provadas as transmissões de veículos que a Requerente pretendeu provar através da junção das faturas, mas apenas a emissão destas. Portanto, quanto às primeiras 52 situações constantes da tabela anexa ao pedido de pronúncia arbitral, bem como à situação do veículo de matrícula …-…-…, que consta da tabela anexa ao pedido como situação de “IUC na vigência do contrato”, mas em relação à qual foi junta uma fatura e não um contrato de locação financeira, este tribunal não considera provada a transmissão de propriedade que poderia levar à exclusão de incidência subjetiva por insuficiência da prova documental apresentada.

2)         Quanto ao segundo conjunto de situações:

 

Quanto a segundo grupo de liquidações impugnadas, invoca a Requerente a existência de contratos de leasing em vigor nas datas em que ocorreram os factos geradores do CIUC. A questão que se coloca é, portanto, a seguinte: se, na data da ocorrência do facto gerador do IUC, vigorar um contrato de locação financeira que tem por objeto o automóvel sobre o qual incide a tributação, para efeitos do disposto no artigo 3.º, nºs. 1 e 2 do CIUC, o sujeito passivo do IUC é o locatário ou a entidade locadora, proprietária do veículo, em nome da qual o registo do direito de propriedade se encontra feito?

 

Para estes casos, o legislador instituiu uma regra explícita, no n.º 2 do artigo 3.º do CIUC, segundo a qual, na vigência do contrato de locação, são os locatários os sujeitos passivos de imposto. Esta regra está, aliás, em consonância com o regime legal da locação financeira, estabelecido no Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho, do qual resulta que, na vigência de um contrato de locação financeira, embora o locador continue proprietário do bem em causa, só o locatário tem o gozo exclusivo do bem locado, usando-o como se fosse ele o verdadeiro proprietário.

 

Com efeito, não dispondo o locador, por imposição legal e contratual, do potencial de utilização do veículo e tendo o locatário o gozo exclusivo do automóvel, é coerente que seja o locatário o responsável pelo pagamento do imposto, uma vez que é ele que tem o potencial de utilização do veículo e que provoca os custos viários e ambientais a ele inerentes. 

Contudo, é necessário atender ao disposto no artigo 19.º do CIUC, que prescreve o seguinte:

“Para efeitos do disposto no artigo 3.º do presente código, bem como no n.º 1 do artigo 3.º da lei da respetiva aprovação, ficam as entidades que procedam à locação financeira, à locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados.”

 

Nos termos do disposto neste artigo, as entidades que procedam, designadamente, à locação financeira de veículos, ficam obrigadas a fornecer à AT a identidade fiscal dos utilizadores dos veículos locados para efeitos do disposto no artigo 3.º do CIUC. Assim, para que a locadora ou financeira não seja considerada sujeito passivo do IUC, com referência às viaturas tituladas nos respetivos contratos, o CIUC obriga à comunicação prevista no artigo 19.º. Na verdade, o ónus de saber se existe ou não contrato de leasing em vigor à data dos factos tributários, qual o seu início e qual o seu termo, cabe à Requerente e não à ATA. Se esta não receber a informação em tempo útil sobre a existência e condições do contrato, apenas pode orientar-se pelas informações de que dispõe, consultadas as bases registrais e/ou do IMTT. No presente caso, a Requerente não procedeu à comunicação prevista no artigo 19.º do CIUC – portanto, a AT não tinha outra alternativa senão a de emitir as liquidações de imposto em seu nome.

 

Contudo, a Requerente apresentou, no âmbito do presente processo, os contratos de leasing celebrados com referência a vários dos veículos objeto das liquidações impugnadas. Através desses contratos é possível (i) constatar que, efetivamente, foram celebrados contratos de locação financeira relativamente aos veículos em questão pelos períodos de tempo constantes dos contratos e (ii) saber quais os locatários respetivos, que serão os sujeitos passivos do CIUC. Nestes casos, existindo contratos de locação financeira vigentes nas datas em que ocorreram os factos geradores, serão os respetivos locatários, e não a locadora, os responsáveis pelo pagamento do imposto.

 

Perguntar-se-á ainda: e quanto à comunicação prevista no artigo 19.º do CIUC? O seu incumprimento contende com a conclusão constante do parágrafo anterior quanto ao responsável pelo pagamento do imposto? A resposta é, em nosso entender, negativa. Efetivamente, a consequência que decorre do incumprimento dessa obrigação acessória é aquela a que assistimos: a AT emite as notas de liquidação em nome do proprietário do veículo, por desconhecer que foi celebrado o contrato de locação financeira. Contudo, isso não impede esse mesmo proprietário / locador de fazer prova da celebração do contrato e do prazo pelo qual o mesmo foi celebrado e, assim, obstar ao pagamento do imposto. E o certo é que, no presente processo, a Requerente juntou prova documental que comprova a existência de contratos de locação financeira que estavam em vigor na data em que ocorreram os factos tributários relativos às viaturas referidas no ponto 11 dos factos provados.

 

A este propósito, a AT vem dizer que, em função do incumprimento do artigo 19.º do CIUC, “não foi a Requerida quem deu azo à dedução do pedido de pronúncia arbitral, mas sim a própria Requerente” e que, “consequentemente, deverá a Requerente ser condenada ao pagamento das custas arbitrais decorrentes do presente pedido de pronúncia arbitral”. Entende este tribunal que não lhe assiste razão. Por um lado, o presente pedido de pronúncia arbitral não diz respeito apenas às liquidações em que estava em causa a celebração de contratos de locação financeira cujo prazo compreende as datas em que ocorreram os factos geradores do imposto liquidado. Portanto, ainda que a AT tivesse razão, essa razão seria sempre parcial, não podendo aplicar-se a todos os casos a que se refere o pedido de pronúncia arbitral. Em segundo lugar, a lógica da AT não leva em linha de conta que houve um processo administrativo prévio ao presente processo arbitral no âmbito do qual a AT poderia ter anulado as liquidações em questão. Importa ainda não esquecer que a falta da Requerente é passível de responsabilidade contra-ordenacional à luz do artigo 117.º, conjugado com o artigo 26.º n.º 4, ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias, punível com coima de € 300,00 a € 7.500,00 por cada um dos contratos de locação financeira. Essa é a forma encontrada pelo legislador para penalizar quem incumpre com o dever informativo para com a AT.

 

3)         e 4) Quanto ao terceiro e quarto conjunto de situações suscitado pela Requerente no pedido, a saber (3) as situações em que, alegadamente, a viatura não estava na disposição da Requerente apesar de esta ter posto termo ao contrato de locação financeira que a abrangia, e (4) as situações em que os veículos foram, alegadamente, adquiridos pela Requerente posteriormente à data de ocorrência do facto gerador, a Requerente não fez prova dos factos alegados, pelo que a apreciação de direito fica prejudicada. Note-se, contudo, que, quanto à viatura de matrícula …-…-…, ficou provada a celebração de um contrato de locação financeira com prazo de validade de 01.05.2007 a 01.05.2012, período em que se encontram abrangidas as liquidações impugnadas quanto a este veículo (correspondentes aos exercícios de 2009, 2010, 2011 e 2012).

 

Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, entende-se não ser o mesmo procedente, pelas seguintes razões:

(i)        Quanto ao primeiro, terceiro e quarto conjuntos de situações elencados no pedido de pronúncia arbitral, porque não assiste razão à Requerente, sendo as liquidações devidas;

(ii)       Quanto ao segundo conjunto de situações elencado no pedido de pronúncia arbitral, porque a anulação não se funda em erro imputável aos serviços, já que a Requerida emitiu as liquidações tendo em conta as informações de que dispunha, em virtude de a informação sobre a celebração dos contratos de locação financeira não ter sido prestada pela Requerente. Assim, não se encontram reunidos os pressupostos elencados no artigo 43.º da LGT.

 

VII. DECISÃO

Em conformidade com que fica exposto supra, decide-se:

(i)        Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral no que respeita ao primeiro conjunto de situações elencado no pedido de pronúncia arbitral (correspondente às primeiras 52 liquidações constantes da tabela anexa ao pedido de pronúncia arbitral e ainda ao veículo de matrícula …-…-…), bem como às liquidações referentes aos veículos de matrícula …-…-… (referente ao ano de 2012), …-…-… (referentes aos anos de 2010, 2011 e 2012), …-…-… (referentes aos anos de 2010, 2011 e 2012) e …-…-… (referente ao ano de 2011).

(ii)       Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral no que respeita às liquidações referentes aos seguintes veículos:

a.         …-…-…;

b.         …-…-…;

c.         …-…-…;

d.         …-…-…;

e.         …-…-…;

f.         …-…-…;

g.         …-…-…;

h.         …-…-…;

i.          …-…-…;

j.          …-…-…;

k.         …-…-…;

l.          …-…-…;

m.        …-…-…;

n.         …-…-…;

o.         …-…-…;

p.         …-…-…;

q.         …-…-…;

r.          …-…-…;

s.         …-…-…;

t.          …-…-…;

u.         …-…-…;

v.         …-…-…;

w.        …-…-…;

x.         …-…-…;

y.         …-…-…;

z.         …-…-…;

aa.       …-…-….

(iii)    Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios.

 

Valor: em conformidade com o disposto nos artigos artigo 97.º - A, n.º 1, alínea a), do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 15.194,38.

 

Custas: nos termos do disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 918,00, a pagar pela Requerente e pela Requerida na proporção, respetivamente, de 53% e de 47%, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Registe-se e notifique-se.

Lisboa, 26 de outubro de 2015

A Árbitro,

Raquel Franco