Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 173/2015-T
Data da decisão: 2015-11-04  IRS  
Valor do pedido: € 99.976,76
Tema: IRS - Retenção na fonte de IRS; Cláusula Geral Anti-Abuso
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Decisão Arbitral

 

 

Os árbitros Fernanda Maçãs (árbitro presidente), Nuno Miguel Morujão e Fernando Araújo, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 22 de Maio de 2015, acordam o seguinte:

 

 

I.                   Relatório

 

1.      A contribuinte A…, …, S.A., com o NIPC … (doravante “Requerente”), apresentou, no dia 13 de Março de 2015, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).

2.      A Requerente solicita a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade das liquidações n.ºs 2014…, relativa a retenção na fonte de IRS, e 2014…, relativa a juros compensatórios, no valor total de €99.976,76, essencialmente por alegada caducidade do direito à aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso (CGAA), ou por nulidade / ineficácia da decisão de aplicação da CGAA, ou ainda por erro de qualificação jurídica, donde retira a inaplicabilidade da CGAA. Pede, como consequência, a anulação de tais liquidações.

3.      O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, em 16 de Março de 2015.

4.      A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo os ora signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

5.      Em 6 de Maio de 2015, as partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo arguido qualquer impedimento.

6.      Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Colectivo foi constituído em 22 de Maio de 2015.

7.      Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

8.      A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alega, em síntese:

a.       A caducidade do direito à aplicação da CGA, uma vez que até à Lei nº 64-B/2011, de 30 de Dezembro, havia um prazo especial de 3 anos (art. 63.º, 3 CPPT), que depois desapareceu, sendo substituído, no seu entendimento, pelo prazo de caducidade de quatro anos que vigora para a invocação da ilicitude;

b.      Estando em causa o negócio de 30 de Dezembro de 2009, o prazo para a decisão de aplicação da CGA teria terminado em 31 de Dezembro de 2013, assim esgotado antes da instauração do procedimento inspectivo e dos actos subsequentes (todos decorridos entre Junho e Outubro de 2014);

c.       A Requerente invoca ainda que, mesmo que se entendesse não ter ocorrido a caducidade, sempre a decisão de aplicação da CGA seria nula, ou ineficaz, também por, na sua perspectiva, não serem compreensíveis, pelo destinatário, o sentido e alcance do acto administrativo em que é decidida a aplicação da CGA – essencialmente porque dele não resultaria claro se a CGA é reportada à deliberação tomada na Assembleia Geral de 28 de Junho de 2010, ou se abrange todas as deliberações do mesmo teor a serem tomadas no futuro, relativas ao reembolso das “prestações suplementares”;

d.      Tal alegada indefinição, projectando-se na liquidação ora impugnada, feriria o princípio da legalidade tributária;

e.       Sob o ponto de vista da Requerente, ocorreria ainda um erro de qualificação jurídica, deste resultando uma indevida aplicação, ao caso, da CGA, visto que, no seu entender, não teria sido feita a demonstração dos negócios que deveriam ter sido praticados em substituição daqueles que foram desconsiderados pela aplicação da CGA;

f.       Alega a Requerente que essa demonstração não ocorreu pela simples circunstância de não ter ocorrido qualquer negócio com abuso da forma jurídica. Na verdade, argumenta, estariam em causa “preços de transferência” e não o referido “abuso”: o que estaria em causa seria meramente a correcção fiscal de um elemento do negócio, não a requalificação do próprio negócio;

g.      Em sua defesa, a Requerente enuncia o que diz representarem as razões económicas do negócio realizado, que seriam a constituição de uma sociedade “de segundo nível”, a B…, S.G.P.S., S.A., atraindo novos sócios sem perda do controle por parte da A…, …, S.A., tendo em vista uma alteração da estrutura do grupo económico. Admite que o negócio foi antecipado por efeito da modificação do regime de tributação das mais-valias, mas que essa antecipação é legítima, não chegando sequer a constituir “planeamento fiscal”.

 

9.A AT ofereceu Resposta, acompanhada do Processo Administrativo, alegando, em síntese:

a.       Que as liquidações controvertidas consubstanciam uma correcta aplicação do Direito, não enfermando de qualquer vício;

b.      Retomando as conclusões alcançadas no relatório de inspecção, invoca, nomeadamente, que, através dos procedimentos descritos, os accionistas da A…, … S.A., julgaram poder receber até ao valor total de alienação da B…, S.G.P.S., S.A. (€42.000.000,00), por meios isentos de tributação, especificamente através de sucessivos “reembolsos parciais” dessas “prestações suplementares”, como aquele que teve lugar em 18 de Agosto de 2010;

c.       No entender da Requerida, esses pagamentos escondem a distribuição de dividendos da B…, S.G.P.S., S.A., sendo que a A… S.A., não tem capacidade financeira, nem actividade, susceptíveis de gerar tais rendimentos;

d.      Assim, a invocação da CGA, assente na ausência de vantagens económicas (não-fiscais) para a forma negocial adoptada, visaria desconsiderar o “reembolso” das “prestações suplementares” e requalificar o acto como distribuição de dividendos, com as correspondentes implicações tributárias;

e.       Quanto à questão da caducidade, a Requerida esclarece que o acto requalificado corresponde ao pagamento de €400.000, efectuado em 18 de Agosto de 2010, iniciando-se o prazo de caducidade, nos termos do art. 45.º, 4 da LGT, em 1 de Janeiro de 2011;

f.       Quanto à alegada nulidade por ininteligibilidade do sentido e alcance da decisão de aplicação da CGA, a Requerida diz estranhar a argumentação da Requerente no ponto em que sugere falta de fundamentação e recapitula os argumentos expendidos no seu desenho do acto elisivo;

g.      Assinala também que o Requerimento Inicial contém a confissão de que houve efectivamente um acto elisivo, na medida em que a Requerente admite que, no seu entender, haveria um problema de “preços de transferência” resultante da circunstância de uma qualificação jurídica do negócio ter obviado ao pagamento de impostos normalmente devidos;

h.      Insiste a Requerida que, da aquisição das acções da B…, S.G.P.S., S.A., não decorreu qualquer fluxo patrimonial para a A…, …, S.A., visto que aumentou, ao mesmo tempo, o activo e o passivo pelo mesmo montante de €42.000.000 (que não foi pago), faltando, portanto, uma motivação económica para essa operação;

i.        Com tal transmissão apenas se conseguiu uma participação indirecta que anteriormente era directa, gerando-se um crédito a favor dos accionistas para disfarçar os “dividendos” como “reembolsos”, não havendo mais-valia ao nível da organização ou gestão, nem alteração substancial na sua estrutura de capital. As alienações sucessivas eram, além disso, desnecessárias, alega a Requerida, na medida que a lei permite as permutas de participações sociais que gozam de neutralidade, pelo que, substancialmente, o mesmo se obteria com uma permuta das participações sociais;

j.        Por outro lado, não obstante tomar a referência da Requerente a “preços de transferência” como confissão do escopo elisivo do negócio, a Requerida esclarece que a figura de “preços de transferência” é inaplicável a uma situação em que se transformam “dividendos” em “reembolsos” - transformação operada por uma sucessão de operações que precisamente reclama, pelas suas complexidade e intenção, a figura da CGA – uma sucessão dentro da qual os “preços de transferência”, a ocorrerem, seriam meramente parcelares e instrumentais;

k.      A subsunção ao regime da CGA estaria ainda justificada, no entender da Requerida, pela circunstância de as operação em exame configurarem, pelos seus valores, negócios anormais, gerando volumes de endividamento tão insustentáveis para a sociedade como vantajosos para os accionistas – uma sobreposição dos interesses pessoais aos interesses societários que denota, no seu entender, a anomalia do instrumento elisivo que se abriga no “véu societário” (materializado, por exemplo, no extenso endividamento da A…, …, S.A., criado com o único propósito anunciado de equilibrar as participações dos dois accionistas);

l.        De tudo isto retira a Requerida a conclusão de que ocorreu planeamento fiscal ilegítimo, com abuso de figuras jurídicas subversor dos propósitos legais, justificando-se pois, no seu entender, a aplicação plena do art. 38.º, 2 da LGT.

 

10.  Por Despacho Arbitral, de 4 de Julho de 2015, designou-se, nos termos do art. 18.º do RJAT, o dia 7 de Setembro de 2015 para realização da audiência de julgamento, mais se convidando as partes para indicarem a preferência por alegações finais orais ou escritas, bem como para identificarem o objecto da prova requerida e a junção de prova documental.

 

11.  Na referida audiência, a Requerente procedeu à rectificação de um lapso no seu pedido de pronúncia arbitral, tendo a Requerida desistido da inquirição da testemunha por si arrolada. Para além disso, houve lugar à produção da prova testemunhal oferecida pela Requerente e foi designado prazo para apresentação das alegações escritas e sucessivas, conforme acordo das partes, bem como fixado o dia 20 de Novembro de 2015 como data limite para a prolação da Decisão Arbitral.

 

12.  As partes apresentaram alegações escritas no prazo legal, pugnando, no essencial, pelas posições inicialmente defendidas.

 

 

II.                Saneamento

 

13. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, bem como beneficiárias de legitimidade processual (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

14. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e o Requerente juntou procuração, encontrando-se, assim, as Partes devidamente representadas.

 

15. Em conformidade com o preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, do RJAT (com a redacção introduzida pelo art. 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro), o tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

 

16.O processo não enferma de nulidades.

 

17. Não foram suscitadas questões, prévias ou subsequentes, prejudiciais ou de excepção, que obstem à apreciação do mérito da causa, mostrando-se reunidas as condições para ser proferida decisão final.

 

 

III.             Mérito

 

III.1. Matéria de facto

 

18.Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas quanto ao mérito, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

a)       Em 23 de Outubro de 2014, a Requerente foi notificada das liquidações n.º s 2014… (relativa a retenção na fonte de IRS) e 2014… (relativa a juros compensatórios), no valor total de €99.976,76, a serem pagas até ao dia 19 de Dezembro de 2014;

b)       A B…, S.G.P.S., S.A., de que eram sócios C e D (detentores, respectivamente, de 56% e 44% do capital), detinha a totalidade do capital da A…S.A.;

c)       Em 16 de Outubro de 2009, a B…, S.G.P.S., S.A. alienou a totalidade do capital da A…, S.A. a C e D (10.000 acções, na proporção de 50% a cada um), por €472.877,39 (assim se tornando, cada sócio, devedor de €236.438,70), sem que tivesse havido lugar a qualquer pagamento imediato (a B…, S.G.P.S., S.A. limitou-se a registar a dívida na conta 2781 – Outros devedores e credores);

d)       Em 30 de Dezembro de 2009, C e D venderam, por sua vez, a B…, S.G.P.S., S.A. à A…, …, S.A., por €42.000.000,00, sem que, novamente, houvesse lugar a qualquer pagamento pelas 5.700.000 acções alienadas (a A…, …, S.A. limitou-se a registar, como passivo no seu balanço, uma dívida para com os seus accionistas);

e)       O valor assim atribuído às acções transmitidas representa a duplicação do valor de tais activos, quando se tome por referência o preço de transmissão fixado, entre entidades independentes, no âmbito de contratos de alienação de acções celebrados entre 2007e 2008;

f)        Não foram entregues declarações fiscais de alienação onerosa das acções relativas ao negócio de 16 de Outubro de 2009, nem ao negócio de 30 de Dezembro de 2009, em violação do disposto nos arts. 10.º, 11.º e 138.º, n.º 1 do Código do IRS (“CIRS”) e na Portaria n.º 694/2002, de 22 de Junho;

g)       A gestão de participações sociais não faz parte do objecto social da A…, … S.A. e não foi efectuada qualquer alteração ao seu pacto social no sentido de nele incluir esse objecto;

h)       Em Assembleia Geral de 28 de Maio de 2010 (Acta n.º 21), o crédito dos sócios da B…, S.G.P.S., S.A., no valor de €42.000.000,00, foi transformado em prestações acessórias, com características de “prestações suplementares”;

i)         Em Assembleia Geral de 28 de Junho de 2010 (Acta n.º 22), foi deliberado pagar €200.000 a cada um dos sócios (num total de €400.000), a título de reembolso parcial dessas “prestações suplementares”, sendo, esse pagamento, efectuado em 18 de Agosto de 2010;

j)        Em 9 de Agosto de 2010, a B…, S.G.P.S., S.A. procedeu à transmissão de €400.000 para a A… S.A., com boa cobrança em 10 de Agosto de 2010;

k)       Em Junho e Julho de 2014, a A…, …, S.A. foi sujeita a uma acção inspectiva, de que resultou, em 30 de Julho de 2014, um projecto de relatório de inspecção e, em 15 de Outubro de 2014, um relatório definitivo de inspecção, no qual se apontava para a aplicação da CGA, entendendo-se que dos factos apurados resultava a intenção de geração artificial de uma mais-valia, excluída de tributação à data, bem como a criação de um crédito artificial, de forma a proceder a pagamentos não-tributados, em substituição de uma distribuição de dividendos sobre a qual é devido tributo – sendo que, no entendimento exposto no relatório, era de uma verdadeira distribuição de dividendos (da B…, S.G.P.S., S.A.) que se tratava, já que a pretensa amortização de um crédito pela alienação de participações sociais não tinha substância económica;

l)         As partes intervenientes nos actos e negócios jurídicos celebrados agiram com plena e dominante consciência das vantagens fiscais que daqueles decorreriam;

m)     O procedimento de inspecção teve início em 25-06-2014;

n)       Em 30-07-2014 a A…, …, S.A., foi notificada do projecto de relatório de inspecção, no qual constava a intenção de aplicação da norma anti-abuso;

o)       A Requerente não exerceu o direito de audição prévia relativamente ao referido projecto de relatório de inspecção;

p)       A liquidação, notificada, em 23 de Outubro de 2014, à Requerente, assenta, segundo o relatório definitivo de inspecção tributária, na convicção, da entidade autuante, de que os valores pagos em 18 de Agosto de 2010 são rendimentos de capitais sujeitos a IRS e ao regime de retenção na fonte, e de que tem pleno cabimento a aplicação da CGA, desta decorrendo a desconsideração das vantagens fiscais pretendidas cujo alcance determinou a prática dos actos e negócios jurídicos por que as partes enveredaram;

q)       Em 13 de Março de 2015, a Requerente submeteu pedido de constituição de Tribunal Arbitral para apreciação da legalidade da liquidação de IRS e respectivos juros compensatórios (cfr. o requerimento electrónico no sistema do CAAD). 

 

25.2. Fundamentação da matéria de facto

 

 A factualidade provada teve por base a apreciação crítica da posição assumida por cada uma das partes, bem como a análise crítica dos documentos juntos aos autos, cuja autenticidade e veracidade não foram impugnadas por nenhuma das partes.

Assentou, por outro lado, na ponderada apreciação do teor dos depoimentos testemunhais produzidos em julgamento, sendo que um dos depoentes (E), embora prestando esclarecimentos de modo assertivo, referiu ter conhecimento puramente indirecto dos factos; os demais depoentes (2) expuseram, quanto a diversos aspectos (designadamente no que diz respeito às verdadeiras razões determinantes do encadeamento negocial operado), raciocínio insuficientemente sustentado. Estas circunstâncias foram tidas em consideração pelo Tribunal em sede de julgamento da matéria de facto.

 

25.3. Inexistem outros factos, com relevo para apreciação do mérito da causa, que não se tenham provado.

 

 

 III.2. Matéria de Direito

 

A questão central a decidir gira em torno de apurar se as liquidações de IRS (n.º 2014… - por retenção na fonte) e relativa a juros compensatórios (n.º 2014…) são ou não ilegais, com fundamento em ilegalidades consequenciais decorrentes da:

 

III.2.1.Caducidade do direito à aplicação da cláusula-geral anti-abuso

III.2.2. Incompreensibilidade da decisão aplicativa da cláusula anti-abuso

III.2.3. Não verificação dos pressupostos de aplicação da cláusula anti-abuso

 

III.2.1.Caducidade do direito à aplicação da cláusula-geral anti-abuso

 

Alega, a Requerente, que a decisão de aplicação da cláusula-geral anti-abuso teve lugar quando já se encontrava esgotado o respectivo prazo, o que a tornaria manifestamente ilegal, porque ferida de caducidade.

A proceder este fundamento do pedido, verificar-se-ia um vício que determinaria a ilegalidade da liquidação subsequentemente operada, o que, por seu turno, prejudicaria o conhecimento dos demais fundamentos de ilegalidade alegados, considerando a ordem de conhecimento dos vícios imputados ao acto recebida no art. 124.º do CPPT, aqui aplicável, subsidiariamente, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

Cumpre apreciar.

A aplicação da cláusula anti-abuso, prevista no art. 38.º da LGT, obedecia, antes das alterações de redacção criadas pela Lei n,º 64-B/2011, de 30 de Dezembro (Lei de Orçamento de Estado para 2012) a uma determinada tramitação (de natureza procedimental) plasmada no artigo 63.º do CPPT, que dispunha, entre o mais, que a decisão administrativa (praticada pelo dirigente máximo) de aplicação daquela podia ser sindicada judicialmente, de forma autónoma (como acto destacável do procedimento de liquidação), através de acção administrativa especial (nº 10 daquele preceito do CPPT).

Por outro lado, originariamente, o procedimento de aplicação de uma cláusula anti-abuso apenas podia ser aberto “no prazo de três anos após a realização do acto ou da celebração do negócio jurídico objecto da aplicação das disposições antiabuso” (n.º 3 do art. 63.º do CPPT). Com a redacção introduzida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, que entrou em vigor em 1/1/209, acrescentou-se que o procedimento podia ser aberto no prazo de três anos “a contar do início do ano civil seguinte ao da realização do negócio jurídico objecto das disposições antiabuso”.

Pela referida Lei do Orçamento de Estado para 2012 (Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro) introduziu-se uma mudança de paradigma. O art. 153.º do mencionado diploma revogou o n.º 10 do art. 63.º do CPPT, passando a aplicar-se o regime de impugnação unitária (previsto nos arts. 54.º do CPPT e art. 66.º da LGT), segundo o qual os administrados podem impugnar a decisão final do procedimento tributário com fundamento em qualquer ilegalidade, incluindo a referente a qualquer acto interlocutório do procedimento.

Com efeito, a partir de 1/1/2012, deixou de haver a possibilidade de impugnação autónoma da decisão administrativa de aplicação da cláusula geral anti-abuso, por parte do dirigente máximo dos serviços ou de funcionário com competências delegadas, passando a ser judicialmente sindicável, através da impugnação do acto final do procedimento de liquidação. Outra novidade foi a revogação do prazo de três anos para dar início ao procedimento de aplicação da referida cláusula, tendo o legislador deixado de fixar prazo para o efeito.

Segundo o art. 63.º do CPPT, a “liquidação de tributos com base na disposição antiabuso constante do n.º 2 do art. 38.º da lei geral tributária”, segue os trâmites aí previstos, limitando-se o n.º 7 do preceito a estabelecer que a “aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 é prévia e obrigatoriamente autorizada, após a audição prévia do contribuinte prevista no n.º 5, pelo dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em que ele tiver delegado essa competência”.   

Constitui jurisprudência reiterada e uniforme que, estando em causa normas de cariz processual, as mesmas são de aplicação imediata, nos termos do disposto no n.º 3 do art. 12.º da LGT (cfr., entre outros, o Acórdão do STA, 26/2/2014, processo n.º 1088/2013 e Acórdão Arbitral n.º 258/2013-T, de 14 de Junho de 2014).

Por aplicação da mencionada jurisprudência, a referida norma do n.º 10 do art. 63.º considera-se revogada com efeitos a partir de 1/1/2012, por força da Lei do Orçamento e é de aplicação imediata às situações em curso.    

No caso dos autos, a Requerente não põe em causa o regime acabado de expor, em especial no que se refere à sua aplicabilidade imediata.

Sob o ponto de vista da Requerente, a decisão de aplicação da cláusula anti-abuso encontra-se ferida de caducidade, porquanto: i) “O negócio (ou negócios jurídicos, se se quiser incluir a compra das ações da A… S.A., ” - A venda à A… S.A., por C e D, das ações que detinham na B…, S.G.P.S., S.A., -) que se pretende «requalificar», por se ter considerado abusivo, teve lugar em 2009”; ii) “(…) o prazo para a instauração e decisão de aplicação da C.G.A terminou em 31 de Dezembro de 2013 (quatro anos após em que foram praticados o(s) negócios( ) considerado(s) abusivo(s))” (ponto 8 do Pedido arbitral); iii) “(…) a decisão fiscal que conclui pela aplicação da C.G.A foi notificada à Requerente em 15/10/2014” (ponto 7 do Pedido arbitral).

A Requerente faz assentar a alegada “caducidade” (decurso do prazo) do procedimento de aplicação da cláusula anti-abuso em dois pressupostos essenciais, dizendo que:

a)      existe “um prazo, contado da prática do ato ou negócio abusivo, para a AT decidir pela aplicação da C.G.A” e que o mesmo corresponde, por razões de certeza e segurança jurídicas, ao prazo normal de quatro anos, a contar do ato ou negócio jurídico abusivo;

b)      o termo inicial do prazo para a abertura do procedimento de aplicação da cláusula anti-abuso corresponde, no caso, ao negócio abusivo que se traduz na “venda à A… S.A., por C e D das ações representativas do capital social da B…, S.G.P.S., S.A.”.

 

Vejamos se procedem estes argumentos.

Embora o legislador da Lei do Orçamento de 2012 tenha deixado, como vimos, de estabelecer um prazo para a aplicação da cláusula anti-abuso, pode entender-se que tal circunstância (a não previsão de um prazo) afecte, como refere a Requerente, princípios jurídicos fundamentais da nossa ordem jurídica, tais como, o da certeza e da segurança jurídicas. Nesse sentido, Diogo Leite de Campos e outros (Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª ed., encontro da escrita editora, 2012, pp. 306) ponderam que tais princípios “(…) levam a que a Administração fiscal não disponha de todo o tempo para invocar” a ineficácia dos negócios  objecto de aplicação de uma cláusula anti-abuso, assim como “não dispõe de um período ilimitado para invocar a ilicitude dos negócios jurídicos.”

Segundo os mencionados autores, a “regra geral prevista na Lei Geral Tributária quanto à invocação pela AT da ilicitude” dos negócios jurídicos “é de 4 anos a contar do facto tributário” e o “mesmo devia suceder com a aplicação da cláusula anti-abuso”. “Só que”, concluem, “aqui o legislador entendeu que, dada a maior incerteza da norma o prazo devia ser mais curto. E assim, estabeleceu o art. 63.º do CPPT o prazo de três anos”.

Transpondo este raciocínio para o regime introduzido com a Lei do Orçamento de 2012, a entender-se que os princípios da certeza e da segurança jurídicas se opõem a que a Administração Tributária e Aduaneira disponha de período ilimitado para iniciar o procedimento tendente a fazer aplicação do mecanismo do n.º 2 do art. 38.º da LGT (cláusula geral anti-abuso), impondo-se uma limitação quanto ao prazo de exercício daquela competência, essa limitação não tem necessariamente de coincidir com o prazo de 4 anos, como pretende a Requerente.

De qualquer modo, mesmo admitindo que o exercício da competência administrativa de abertura do procedimento próprio estabelecido na lei para a aplicação de normas anti-abuso, apenas possa ter lugar dentro de determinado prazo, a verdade é que não haverá lugar à ilegalidade da liquidação se o procedimento se iniciar dentro daquele prazo (neste sentido, cfr. a doutrina vazada no Acórdão Arbitral, de 23 de Outubro de 2013, processo n.º 34/2013-T, fazendo, aliás, aplicação estrita do critério adoptado pelo legislador quando estabelecia prazo para o efeito). 

Ainda que se siga a orientação da Requerente quanto ao primeiro pressuposto de que parte, não procedem, contudo, as razões que invoca.

Com efeito, para determinar qual o negócio considerado abusivo (que marcará o termo inicial do prazo do procedimento de aplicação da cláusula abusiva) importa atentar no conjunto complexo de actos e negócios jurídicos integradores dos vários passos do esquema elisivo. Este deve ser analisado no seu todo, uma vez que somente na sua visão completa se pode detectar aquele esquema.

Segundo este modo de ver as coisas, perante um conjunto complexo de actos sujeitos a arquitectura global (compreendendo actos preparatórios e actos finais), o termo inicial do prazo do procedimento não começará a correr a partir da prática de actos preparatórios, mas sim com o último passo de todo o esquema desencadeado. Neste sentido, veja-se a jurisprudência do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do SUL, no processo n.º 4255/10, em 15/2/2011, onde ficou consignado o seguinte:

 “Estamos aqui perante as denominadas “step by step transactions” nas quais se encontra uma “facti species”, complexa, envolvendo uma sucessão de actos/negócios coordenados entre si, embora possam ocorrer em momentos temporais diversos, e com o objectivo comum de conseguir uma vantagem fiscal. Face a esta espécie de operações, deve o aplicador da lei operar um tratamento integrado visualizando-as como uma única transação, propendendo para um único e final resultado. Trata-se da “step transaction doctrine”, a qual se deve aplicar ao caso dos autos, daí decorrendo que a disposição anti-abuso pode e deve aplicar-se ao momento decisivo e final (…)”.

Por aplicação desta jurisprudência, o negócio ou acto requalificado corresponde, no caso, ao pagamento de € 200.000 a cada um dos accionistas da A,,, S.A.; pagamento que ocorreu em 18/8/2010. O que significa que, servindo este acto jurídico de referência para o início da contagem do prazo para a abertura do procedimento de aplicação da cláusula geral anti-abuso, os 4 anos se completaram em 18/8/2014 e não em 2013, como pretende a Requerente.

Assim sendo, decorrendo dos factos por si admitidos que “a ação inspetiva visando a aplicação da C.G.A (ou seja o procedimento que conclui pela decisão da sua aplicação) iniciou-se em 25-06-2014)” e que “a notificação do Projecto de Relatório de Inspeção (através do qual a ora Requerente teve conhecimento de estar em causa a aplicação da C-G.A) aconteceu a 30-07-2014” [ponto 7 do Requerimento arbitral], a instauração do procedimento de aplicação da cláusula geral anti-abuso ocorreu dentro do prazo de caducidade de quatro anos que a Requerente defende ser aplicável.

Improcede, pois, a alegada caducidade da decisão de aplicação da cláusula geral anti-abuso.  

 

 

III.2.2. Incompreensibilidade da decisão aplicativa da cláusula anti-abuso

 

Alega, a Requerente, entre o mais, que “o ato administrativo que deu causa à liquidação ora impugnada (decisão de aplicação da cláusula geral anti-abuso) é incompreensível quanto ao seu sentido e alcance …” (ponto 16 do Pedido arbitral), na medida em que não são minimamente claras as consequência fiscais da liquidação. Pode entender-se que “a decisão de aplicação da CGA se reduz a constituir pressuposto e fundamento” da mesma, mas também que se projecta em sucessivas liquidações futuras (pontos 18 e 20 do Pedido arbitral).

Em suma, para a Requerente, por não serem minimamente claras “as consequências fiscais que, no futuro (…) resultarão para a A... S.A., desta decisão de aplicação da CGA” (pontos 19 e 20 do Pedido arbitral), a mesma enferma de nulidade, porque não estão cumpridas as exigências quanto à compreensibilidade do acto administrativo.

Cumpre apreciar.

É dentro dos requisitos relativos ao conteúdo do acto que Vieira de Andrade[1]  insere o requisito da compreensibilidade, referindo que o acto administrativo é compreensível quando não seja “contraditório, vago ou ininteligível”[2].

Para se poder avaliar se o conteúdo do acto administrativo é compreensível ou não, tem de se verificar, primeiro, qual é, nos termos da lei, o conteúdo próprio do acto em causa, ou seja, o conteúdo principal (conteúdo legal típico), pois só relativamente a esse conteúdo é exigível que se reúna o requisito da inteligibilidade.

Cabe, assim, apurar qual o conteúdo legal típico do acto de aplicação da cláusula geral anti-abuso.

O legislador é muito claro, no art. 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, quando distingue o acto administrativo de aplicação da cláusula geral anti-abuso dos actos administrativos de liquidação posteriores àquela primeira decisão. Refere-se à cláusula anti-abuso na primeira parte da norma (“São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos…”) e, aos actos subsequentes, na segunda parte do mesmo preceito (“…efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”).

Essa distinção encontra-se também patente no artigo 63.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quando se menciona a “liquidação de tributos com base na disposição antiabuso” (sublinhado nosso). Também aqui o legislador autonomiza, assim, a aplicação da cláusula anti-abuso dos posteriores actos de liquidação.

De resto, esta autonomia não é desconhecida da Requerente que, por várias vezes, a refere na petição inicial. Fá-lo no ponto 2 do Requerimento quando escreve: “Os actos administrativos de decisão de aplicação da C.G.A. e os relativos às decisões de proceder a liquidações adicionais (consequências daquela decisão) não se confundem. Tais decisões correspondem a atos administrativos diferentes, autónomos, não obstante a dependência sequencial dos segundos da prática do primeiro”. E, no ponto 4, assinala, ainda, que, apesar da alteração legislativa introduzida pela Lei de Orçamento de Estado de 2012, “o procedimento e a decisão de aplicação da C.G.A. mantiveram a sua autonomia relativamente às (eventuais) liquidações delas decorrentes, desde logo porquanto a aplicação da disposição antiabuso tem que ser autorizada, após a audição prévia do contribuinte, pelo dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em que estiver delegado essa competência (art. 63.º, n.º 7, do CPPT), autorização essa que não é necessária para as liquidações adicionais consequentes”.

É de concluir, com efeito, que o acto de aplicação da cláusula anti-abuso e os actos de liquidação posteriores ao primeiro são distintos.

Cabe, agora, verificar qual o “conteúdo legal típico” do acto que a Requerente invoca ser incompreensível (acto administrativo de aplicação da cláusula anti-abuso).

Nos termos da lei (artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária), esse acto tem por conteúdo ou objecto imediato[3] a declaração de ineficácia, no âmbito tributário, de “atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”.

É, em consequência, quanto a este conteúdo, que se avalia a compreensibilidade do acto. Conteúdo de que não faz parte, assim, a referência aos subsequentes actos administrativos de liquidação. Estes são, como se verificou, mera consequência, a definir posteriormente (de acordo com procedimento e critérios próprios), da aplicação do instituto da cláusula anti-abuso.

A Requerente invoca, porém, na presente acção, a incompreensibilidade do acto administrativo de aplicação da cláusula anti-abuso, alegando que dele não constam as consequências que dessa aplicação resultarão quanto a eventuais liquidações futuras e que, por isso, ficariam, quanto a esse aspecto, várias hipóteses em aberto.

Ora, essa menção (quanto aos sucessivos e particulares actos de liquidação posteriores que a Administração possa vir a praticar) não consta, no caso concreto, do acto de aplicação da cláusula anti-abuso, nem dela tinha de constar, já que (como acima se concluiu) não faz parte do seu conteúdo legal típico. Este tem por objecto actos ou negócios jurídicos e não liquidações.

A incompreensibilidade que a Requerente invoca respeita, assim, a um conteúdo que não faz parte integrante do acto cuja validade põe em crise. Por outro lado, o sujeito passivo não questiona a inteligibilidade do verdadeiro conteúdo do acto de aplicação da cláusula anti-abuso, não pondo em causa (nem agora, nem aquando do direito de audição prévia, que não exerceu) que esse acto é, para si, compreensível quanto à identificação dos atos ou negócios jurídicos declarados ineficazes ou quanto à fundamentação dessa declaração de ineficácia.

 

            Pelas razões expostas, improcede a alegação, feita pela Requerente, do vício de incompreensibilidade do acto de aplicação da cláusula anti-abuso.

 

 III.2.3. Não verificação dos pressupostos de aplicação da cláusula anti-abuso

 

            A apreciação sobre a válida aplicação, ou não, pela Administração Tributária e Aduaneira, da cláusula geral anti-abuso, pressupõe a verificação dos pressupostos para tanto legalmente previstos.

            Nos termos do previsto no art. 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária:

“São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.

A norma em análise é, assim, constituída por duas partes: uma, primeira, relativa aos requisitos de aplicação da cláusula e outra, segunda, relativa às consequências de aplicação da cláusula.

 

A-    No que diz respeito à primeira parte do preceito, distinguem-se, nela, quatro condições:

 

a) que tenha havido lugar à celebração de actos ou negócios jurídicos;

b) que de tal celebração tenha resultado um ganho fiscal (redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico ou a obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios);

c) que essa celebração tenha ocorrido com o intuito essencial ou principal de obter tal ganho; e

d) que os referidos actos ou negócios  tenham sido celebrados por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas.

Os referidos requisitos assumem natureza cumulativa e permitem aferir – como se de um teste se tratasse – da verificação de uma actividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo[4].

A análise, porém, não pode ser estanque, pois, como realça COURINHA, “a fixação de um elemento pode, na prática, depender de um outro”, pelo que estes “não deixarão com frequência [...] de auxiliar-se mutuamente”[5].

            De salientar, por outro lado, que, em conformidade com o previsto no artigo 74.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, incumbe à Administração Tributária e Aduaneira o ónus de provar os factos constitutivos do seu direito. Sobre a AT impende, assim, não apenas o ónus de alegar, como também o ónus de demonstrar a verificação dos requisitos de facto acima enunciados.

Do art. 63.º, n.º 3, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, extrai-se, ainda, que os mencionados elementos devem constar do projecto e da decisão de aplicação da disposição anti-abuso.

Cumpre avaliar se tais ónus se encontram cumpridos no caso em apreço.

 

a) Elemento-meio- o requisito acima mencionado sob a alínea a) corresponde à via livremente escolhida pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal[6], sendo que tal via coincidirá com a prática de actos ou negócios jurídicos - isolados ou enquanto partes de uma estrutura de actos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário.

No presente caso, está em causa um encadeamento de negócios jurídicos, o que conduz que se chame à colação, na presente situação, a já referida e denominada “step-by-step transaction doctrine”.

Trata-se de teoria que está subjacente à argumentação da entidade Requerida e que, tendo sido construída nos ordenamentos anglo-saxónicos, conduz a que se considere, como ficou dito, o conjunto complexo de actos ou negócios jurídicos, assim tomados sob a sua arquitectura global, planeada, composta por actos ou negócios jurídicos preparatórios e complementares, e não apenas pelo acto ou negócio jurídico que é objectivamente censurado, na medida em que somente através da adopção dessa perspectiva completa se detecta, com clareza, o desenho elisivo[7].

O referido encadeamento de negócios foi, no caso em apreço, no essencial, o seguinte:

1.º- Compra, em 16 de Outubro de 2009, da totalidade das acções da A…, …, S.A., por C e D (50%  cada um), à B…, S.G.P.S., S.A., por €472.877,40;

2.º- Venda da totalidade das acções da B…, S.G.P.S., S.A., em 30 de Dezembro de 2009, por C e D, à A…, …, S.A., por €42.000.000;

3.º- Deliberação, pela assembleia geral da A…, …, S.A., em 28 de Maio de 2010, de constituição de prestações acessórias, pelos sócios, consubstanciadas em crédito (dos sócios sobre tal sociedade) de valor correspondente ao preço da venda mencionada no ponto anterior (€42.000.000);

4.º- Recebimento, pela A…, …, S.A., da B…, S.G.P.S., S.A., do valor correspondente a €400.000, mediante cheque passado, em 9 de Agosto de 2010, pela primeira sociedade à segunda;

5.º- Transferência bancária, realizada, em 18 de Agosto de 2010, pela A…, …, S.A., para cada um dos sócios, do valor correspondente a €200.000, a título de reembolso de prestações acessórias (assim no valor total de €400.000).

 

b)- Elemento-resultado - o elemento supra enunciado na alínea b) contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, na sequência da adopção do elemento meio; vantagem que se afere considerando a carga tributária que se verificaria caso tivessem sido praticados actos ou negócios jurídicos de efeito económico equivalente[8] e não passíveis de gerar a aplicação da cláusula anti-abuso.

Comparando, no caso em apreço, a carga fiscal decorrente dos negócios e actos jurídicos acima mencionados como elementos-meio, com a carga fiscal que, em alternativa, resultaria da ausência de prática de tais actos, ou seja, da não alteração da configuração original do grupo B…, S.G.P.S., S.A. e da distribuição de dividendos (pelo valor correspondente ao que, no quadro das operações formalizadas, correspondeu ao valor de reembolso das prestações acessórias) aos sócios (C e D), torna-se inequívoco que a primeira situação proporcionou um regime legal de tributação mais vantajoso que aquele que a segunda geraria, tanto no que se refere ao momento da prática dos actos, como a períodos futuros.

Na verdade, e por um lado, no quadro das operações acima identificadas, houve lugar a pagamento de €400.000, pela B…, S.G.P.S., S.A., à A…, …, S.A., que não foi objecto de tributação, em virtude da anulação da dupla tributação económica em I.R.C..

Por outro lado, os contratos de compra e venda de acções da B…, S.G.P.S., S.A., em que C e D figuraram como transmitentes, geraram um crédito a favor destes sócios pela aquisição das acções, sem que as mais-valias geradas na esfera dos alienantes tenham sido tributadas em sede de I.R.S., por força da exclusão de tributação prevista na alínea a) do nº. 2 do artigo 10.º do CIRS, na versão anterior à Lei  n.º 15/2010, de 26 de Julho.

A tanto acresce que o aumento do custo de aquisição das acções da B…, S.G.P.S., S.A., levará a que, aquando da venda dessas acções, o valor devido a título de mais-valias seja inferior àquele que seria devido se, mantendo-se estas na titularidade dos sócios C e D, fosse considerado o seu anterior custo de aquisição. 

De notar, ainda, que a criação de um saldo de €42.000.000, a título de realização de prestações acessórias, permitiu a realização de pagamentos aos accionistas mediante qualificação de tais pagamentos como reembolsos dessas prestações e não como distribuição de dividendos e, assim, sem que houvesse lugar a qualquer tributação em sede de IRS, nem retenção na fonte do valor legalmente devido.

Diferentemente, a não terem sido praticados os referidos actos jurídicos, haveria lugar a tributação, em sede de IRS, do rendimento de capitais inerente à distribuição de lucros/adiantamento por conta de lucros, nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS; rendimento esse sujeito a retenção na fonte a uma taxa liberatória de 21,5%, como previsto na alínea c) do n.º 3 do artigo 71.º do CIRS (na redacção dada pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho), a efectuar pela entidade devedora dos rendimentos (cfr. alínea a) do n.º 2 do artigo 101.º C.I.R.S.).

Verificando-se, nestes termos, que da prática dos actos e negócios jurídicos praticados decorreu a obtenção de vantagem fiscal, conclui-se que também o elemento resultado se encontra, no presente caso, preenchido.

 

c) Elemento intelectual- o elemento acima identificado sob a alínea c) considera-se cumprido quando a escolha do elemento meio seja “essencial ou principalmente dirigido” à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos” ou à obtenção de outras vantagens fiscais (artigo 38.º, n.º 2, da L.G.T.).

Exige-se, assim, não apenas a verificação de um mais vantajoso tratamento fiscal, como ainda que se apure que o contribuinte “pretende um acto, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam”[9].

Importa, nestes termos, que o meio utilizado tenha sido escolhido com a finalidade principal de “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos”, pois apenas devem ser havidas como elisivas as transacções em que o objectivo de economia fiscal seja manifestamente o principal (“tax driven transaction”).    

Existem, é certo, determinadas motivações que podem ter relevância em mais do que um quadrante.

A demonstração deste intuito principal (fiscal) pode, por isso, revelar-se complexa, e, na maioria das vezes, sê-lo-á, considerando as dificuldades inerentes à prova da vertente subjectiva (isto é, das motivações do sujeito passivo), o que, no limite, conduziria a uma “prova diabólica” ou impossível.

Nestes termos, estando em causa o terreno movediço das intenções, não se poderá impor que, de modo directo, se demonstre o estado psicológico e emocional dos agentes no momento da prática dos actos ou da celebração dos negócios, pois a ele se não tem acesso.

Antes, relevará a motivação desses sujeitos, tal como é revelada em factos objectiva e concretamente apreensíveis, sem que tanto se confunda, obviamente, com a mera corporização, em documentos, de declarações de intenção. Ou seja, a prova do fim fiscal assentará, em conformidade com a concepção objectiva abraçada pelo artigo 63.º do C.P.P.T., em elementos de facto, objectivos, dos quais se retira ilação relativa à intenção do contribuinte.

Alega, a Requerente, quanto a este aspecto, que as motivações que a orientaram não foram fiscais, mas económicas, enunciando as seguintes: i) a vontade de nivelar (assim o atribuindo em termos iguais) o poder sobre o grupo, entre os sócios C (detentor de 56% do capital da B…, S.G.P.S., S.A.) e D (detentor de 44% do capital), ii) a busca de novos accionistas para o grupo, por via da B…, S.G.P.S., S.A., para suprir as suas necessidades financeiras, e iii) reconfigurar o grupo para, em cenário de entrada de novos accionistas, se preservar um sentido de voto único por parte dos referidos dois accionistas, de forma a evitar que novos sócios se pudessem aliar a um dos sócios originais, formando uma maioria capaz de impor a sua vontade ao outro.

No que diz respeito à intenção de nivelar o exercício do poder social e de evitar coligações futuras que se pudessem afigurar prejudiciais para um dos sócios, a admitir ter sido esse um objectivo que moveu as partes, é manifesto que recorreram estas a uma via deveras complexa para prossecução desse fim.

A requerente afasta a solução alternativa do acordo parassocial entre C e D, invocando não ser este oponível aos novos sócios. Parte do pressuposto, portanto, de que os novos sócios não seriam, eles próprios, parte outorgante desse acordo parassocial. Poderiam, contudo, as partes, condicionar as vendas das acções à adesão, pelo(s) novo(s) sócio(s), a tal acordo. E, nem tal circunstância tornaria a venda das acções menos atractiva, já que se produziriam os mesmos efeitos de controlo que foram implementados com a solução adoptada.

Poderiam também as partes alterar o contrato de sociedade da B…, S.G.P.S., S.A., de forma a diferenciar categorias de acções (as detidas por C e D, relativamente às dos novos sócios), atribuindo às acções dos sócios originais direitos especiais de veto nas deliberações sociais[10]. Também contra esta via se não pode alegar a circunstância de criar situações de impasse, já que geraria os mesmos efeitos de bloqueio que foram implementados com a solução adoptada.

Não assiste, assim, razão à Requerente quando sustenta que “nenhuma outra solução permitiria alcançar, com igual eficácia, este resultado.”[11]

 Não existe, contudo, qua tale, a obrigação legal de recurso ao meio juridicamente mais expedito e simples de realização de um certo objectivo de índole económica.

A considerar-se, porém, que um dos objectivos a atingir era, como invoca a Requerente, a atracção de novos sócios para a B…, S.G.P.S., S.A., não poderia (contrariamente ao aduzido pela AT) redundar contra a Requerente a circunstância de, até à data correspondente ao encerramento da discussão nesta instância, não terem entrado novos accionistas no capital do grupo, já que, por variadas razões, nem sempre os objectivos de gestão são alcançados de imediato ou no prazo desejado.

De destacar, contudo, uma circunstância especialmente saliente: o que distingue, a via complexa, por que as partes optaram, relativamente a todas as demais vias (mais simples), enunciadas como alternativas, é o facto de, estas últimas, não propiciarem as vantagens fiscais que a adoptada facultou. Aquilo em que, estas, diferem da labiríntica via seleccionada, consiste, assim, em não criarem créditos em benefício de C e D, e como tal, não permitirem a vantagem fiscal, por este meio alcançada, em sede de IRS. Ou seja, a solução adoptada criou, para os sujeitos intervenientes, vantagens que nenhuma das outras vias permitiria.

Perante o exposto, considerando a natureza frágil das motivações económicas alegadas, o carácter manifesto e notório da vantagem fiscal e a grandeza ou relevo desta última, conclui-se não poder ter, tal vantagem, passado despercebida às partes e sido por estas apreendida, ponderada e desejada, se não a título exclusivo, pelo menos, a título principal.

Tanto mais quanto, como a Requerente refere, os sujeitos negociais estavam atentos e eram conhecedores do regime fiscal, sendo este um factor tido em consideração ao nível do planeamento negocial em causa, sendo que a operação foi “antecipada pela previsão da alteração da lei fiscal (abolição da não sujeição a IRS das mais valias obtidas na venda de acções” (como referido pela requerente na petição inicial)[12].

A vantagem fiscal almejada assume-se, assim, como proeminente, em termos de se poder dizer que a mesma representou um impulso decisivo para a concretização da operação em que se traduz o elemento meio.

 

d)                Elemento abusivo (dito normativo) - consubstancia-se, este elemento, no requisito acima enunciado sob a al. d), por força do qual se exige que os actos ou negócios tenham sido celebrados por meios artificiosos ou fraudulentos, com abuso das formas jurídicas.

Embora as constatações antecedentes bastem para se considerarem preenchidos os requisitos correspondentes, estes são, por si sós, insuficientes para a aplicação da cláusula geral anti-abuso. Com efeito, e no que se refere, por exemplo, ao elemento resultado, “em caso algum, uma vantagem ou um benefício fiscal indiciarão por si só qualquer ideia de abuso jurídico”[13], pois, em princípio, os sujeitos passivos são livres de escolher os meios para atingir os seus objectivos, no âmbito da sua liberdade de gestão ou planeamento fiscal.

            Ultrapassa-se, porém, o limiar do legítimo planeamento fiscal quando, para obtenção de vantagens de índole tributária, se recorre a meios artificiosos, à fraude ou, em termos gerais, ao abuso de formas. A aplicação da cláusula anti-abuso, nestas circunstâncias, não fere, por isso, os princípios da liberdade negocial, da liberdade de gestão e de escolha de formas organizativas, nem a liberdade de “planeamento fiscal lícito”.

            Assim, só quando aos requisitos vindos de referir, se associar aquele que agora se considera, a aplicação da cláusula anti-abuso se afigurará legítima, na medida em que é este último requisito que justifica a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida, tendo “por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela”.[14]

            No caso em apreço, o abuso de forma manifesta-se, de modo central, num particular ponto, que se passa a explicitar. Tal manifestação, porém, revela-se de harmonia e é corroborada, acrescidamente, por outros elementos (que identicamente se enunciarão), indicativos ou indiciadores do recurso a artifício e abuso de formas.

O primeiro e cardial elemento, a que nos referimos, consiste no facto de, em virtude da nova arquitectura do grupo social, engendrada pelas partes, através do conjunto de operações acima explicitado, o grupo empresarial ter passado a ser encabeçado por uma sociedade cujo objecto jurídico consiste na “prestação de serviços de consultadoria de marketing, design industrial, elaboração, organização e desenvolvimento de protótipos, seleção de materiais, automatização e medidas de precisão, bem como consultadoria em outras áreas de gestão”[15]. Representa, assim, pessoa colectiva manifestamente não vocacionada para a gestão de participação sociais, não sendo esse o seu objecto social. Diferentemente da actividade associada a este (ao objecto social da sociedade em causa), aquela actividade (de gestão de participações) envolve uma série integrada e coordenada de actos, projectados sobre um conjunto de participações sociais, que têm como objectivo o lucro e que “(…) não pode nem deve equivaler a uma atividade inexoravelmente estática de simples colheita de dividendos”[16].

Se nada exige que um grupo empresarial seja encabeçado por uma sociedade gestora de participações sociais, altamente duvidosa é a apetência de uma sociedade de prestação de marketing e consultoria fabril para assumir o controlo de sociedade gestora de participações sociais. Anti-natura se revela, na verdade, no caso em análise, que o papel de cada uma das empresas em causa se tenha invertido, passando, o papel de empresa-mãe do grupo, da empresa gestora de participações, para a empresa de prestação de serviços de marketing e consultoria fabril, assim inusitadamente se transformando, sob o ponto de vista prático, esta última (não obstante a especificidade do seu objecto), em “gestora da empresa de gestão”.

A este elemento de anormalidade somam-se, porém, como acima referimos, diversos outros, que corroboram a imagem global de artificiosidade, denunciando a natureza ilícita da arquitectura empresarial reconstruída pelas partes. Elementos que, se, por si sós, individualmente considerados, poderiam não ser de ordem a, de modo absolutamente sólido, permitir concluir pela verificação do elemento em análise, são-no quando considerados de modo conjunto ou coordenado, como, na realidade, tiveram lugar.

Assim, por exemplo, com o facto de todos os negócios em causa terem sido sempre celebrados entre os accionistas e as sociedades de que eram os únicos titulares de acções. Note-se, designadamente, que, por via da referida sequência de actos, os sócios venderam uma sociedade que já detinham, a uma sociedade que haviam adquirido, tão só dois meses antes, à sociedade depois transmitida.

Assim também, por outro lado, com a circunstância de nunca ter havido efectivo fluxo financeiro a título de contraprestação pelas transmissões efectuadas, nem ter sido definido plano de pagamento, nem juros para o capital em dívida, nem cláusula penal em caso de incumprimento. Tanto, contrariamente ao que sucedera em contratos, anteriores, mediante os quais C e D haviam adquirido as acções da B…, S.G.P.S., S.A., entre 2007 e 2008, no âmbito dos quais foi definido plano de pagamento do preço, juros para o capital em dívida e cláusula penal para o incumprimento.

Acresce que, na esfera da B…, S.G.P.S., S.A., o valor a receber, relativo a esta transacção, foi contabilizado como movimento a débito em “Outros devedores e credores” e não em “Accionistas”, como deveria ter sido e, na esfera da A…, … S.A., a conta a pagar, relativa a esta transacção, foi contabilizada no passivo em “Outros devedores e credores” e não em “Accionistas”, como cabia. Em ambas as situações os intervenientes recorreram, assim, artificiosamente, a conduta pouco transparente, camuflando as transacções com os accionistas e reduzindo a capacidade de a Autoridade Tributária e Aduaneira escrutinar o respectivo tratamento fiscal.

Releva, ainda, a desmesura comparativa do valor atribuído às acções, nas transacções efectuadas. Com efeito, o preço de venda das acções representativas do capital da B…, S.G.P.S., S.A., em Dezembro de 2009, entre C e D, por um lado, e a A…, …, S.A., por outro, foi significativamente superior ao praticado entre entidades independentes em 2007 e 2008, aquando da aquisição, por aqueles sócios, do capital da B…, S.G.P.S., S.A.. De facto, quando, entre 2007 e 2008, os sócios adquiriram 70% desse capital, fizeram-no por um valor total de €12.474.276 €, o que tem implícita uma valorização média de 17.820.394 €. Já em Dezembro de 2009, o valor atribuído às acções transaccionadas, entre as entidades relacionadas, foi de €42.000.000, o que significa que, entre 2007/2008 e 2009, o valor mais do que duplicou. O preço estipulado para a aquisição da B…, S.G.P.S., S.A. pela A… S.A. representou, nestes termos mais do dobro daquele que fora atribuído aos mesmos activos dois anos antes, sem que qualquer avaliação independente o apoiasse e com a questionabilidade decorrente do facto de, do lado vendedor e comprador, se encontrarem os mesmos sujeitos.

O preço atribuído ao objecto desta transacção assentou numa avaliação, feita pela requerente[17], de acordo com o “método dos múltiplos”.

Apesar de o método de avaliação adoptado ser comum na prática da avaliação de empresas, i) o facto de essa avaliação não ter sido feita por entidade independente, ii) a circunstância de não serem justificados os múltiplos utilizados quanto às empresas comparáveis tidas em conta e iii) o facto de não se ter deduzido à avaliação dos activos[18] a dívida financeira que, em 31 de Dezembro de 2009, inclui, pelo menos, €13.000.000, relativos à aquisição, a C, da participação social na I[19], debilitam fortemente a credibilidade da avaliação em causa.

Com efeito, quanto maior fosse o preço desta transacção, maiores seriam as vantagens fiscais potenciais inerentes ao crédito assim gerado a favor dos sócios (em cenário de distribuição de fundos) e à revalorização da participação financeira (em cenário de futuro apuramento de mais-valias).

A relevância do acto de avaliação emerge, portanto, na arquitectura global, quando se considera o potencial de vantagem, em sede de apuramento de mais-valias, em caso de alienação.

Não obstante não se pôr em causa a validade civil do negócio jurídico, visto que podem, por regra, os outorgantes, de acordo com a sua vontade real, determinar o valor do objecto negocial, apura-se que, no caso presente, esse valor é exuberantemente superior às condições praticadas entre entidades independentes em período temporal muito próximo, o que não pode deixar de assumir relevo no contexto global que ora se considera: o do conjunto dos actos jurídicos praticados, perspectivados sob o enquadramento relevante no âmbito da figura jurídica que a Requerida mobiliza - cláusula geral anti-abuso (que não a cláusula especial anti-abuso de preços de transferência, ao contrário do que a requerente sugere)[20].

Nesse domínio, “(…) o que está em causa é a requalificação de dividendos e não a venda das participações sociais em sede de mais-valias, que no caso concreto é meramente instrumental relativamente ao acto final do circuito que é o reembolso das prestações suplementares”[21].

O inflacionamento do preço representa, assim, um outro indício de recurso, pelas partes, a um meio artificioso de criação de vantagens fiscais.

De realçar, por outro lado - e tanto torna particularmente nítido o objectivo abusivamente elisivo que moveu as partes-, que o valor pago, em 18 de Agosto de 2010, pela A…, …, S.A. a C e a D (€200.000 a cada um destes), é precisamente o mesmo (€400.000) que, escassos dias antes (a 10 de Agosto de 2010), tinha sido transmitido, pela B…, S.G.P.S., S.A. à A… S.A.. Valor não tributado em sede de IRC (em conformidade com o previsto no art. 51.º do CIRC, relativo à eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos). Assim, e por força da prática de tais actos, o pagamento do valor fiscal, legalmente devido, acabaria por não suceder se, caso não se aplicasse a cláusula anti-abuso, subsistisse a aparência (criada pelo encadeamento negocial montado pelas partes) dos “reembolsos” aos sócios.

Assim se torna transparente o esquema elisivo que está na base de todo o encadeamento negocial: o preço não-pago no âmbito da aquisição da B…, S.G.P.S., S.A. pela A… S.A., foi contabilizado como crédito de C e D relativamente à própria A… S.A.[22] e convertido em prestações acessórias, realizadas por estes, para permitir configurar como “reembolsos” (e não, como deveria, enquanto distribuição de dividendos) os fluxos financeiros que circulassem da A…, S.A.,  para esses sócios, provenientes do valor consignado sob a designação de prestações acessórias.  Assim se subtrairia à tributação aquilo que são, materialmente, rendimentos de capital correspondentes a distribuições de lucros ou a adiantamentos por conta de lucros.

Revela-se, assim, de modo completo, a imagem global do meio “artificioso” ou “fraudulento” de elidir a tributação de rendimentos que deveria ter lugar (resultante, como acima referido, da aplicação da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, com sujeição a retenção na fonte a uma taxa liberatória de 21,5%, nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 71.º do CIRS, na redacção dada pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, a efectuar pela entidade devedora dos rendimentos - cfr. alínea a) do n.º 2 do artigo 101.º CIRS).

Só com a prática desses “reembolsos” se consuma, assim, o esquema elisivo que se iniciara, uns anos antes, com o complexo encadeamento negocial acima explicitado.

Apenas então transparece, de modo claro, a razão dominante da insólita venda de uma sociedade (a B…, S.G.P.S., S.A.) a uma sua ex-participada (a A…, …, S.A.), quando esta não tem as características nem o objecto de uma sociedade gestora de participações sociais[23], nem as adquiriu entretanto, não podendo retirar, por isso, as vantagens financeiras e fiscais de uma verdadeira sociedade com essa natureza.

Só então se percebe a razão principal da fixação de um preço tão elevado para a transmissão de acções; apenas então se compreende, em plenitude, o motivo que conduziu os sócios a celebrarem negócios que, na prática, quase representam contratos consigo próprios (embora por interpostas pessoas colectivas), na medida em que neles não intervêm quaisquer outras pessoas que não os próprios sócios; só então se alcança por que razão as transacções não deram origem a qualquer efectivo pagamento; apenas então se torna claro por que razão se omitiu a fixação de prazos, garantias ou sanções relativos ao pagamento do preço.

Se acto a acto, o escopo elisivo não é facilmente discernível[24], não obstante causar estranheza a natureza pouco usual de cada um desses actos praticados, aquele escopo torna-se, no fim, claro, permitindo compreender, de modo particularmente nítido, o fio intencional que unifica o esquema, considerado na sua globalidade, no momento em que este se consuma[25].

O objectivo elisivo fica, assim, a descoberto: o pesado endividamento da A…, …, S.A., serviria, em última análise, para a conversão  em “reembolsos aos sócios” de todos os fluxos financeiros, gerados em favor destes, por intermédio daquela: “reembolsos” que, dado o montante da dívida, recobririam, por muitos anos, as distribuições de lucros e adiantamentos por conta de lucros gerados pelo grupo empresarial encabeçado pela A…, sem que houvesse lugar ao cumprimento das correspondentes obrigações fiscais, dado que os “reembolsos” (ao contrário das referidas distribuições de lucros e dos adiantamentos por conta de lucros) não são objecto de tributação.

Verifica-se ocorrer, em suma:

a)      um encadeamento de negócios jurídicos de anómala e escusada complexidade, bem como de duvidosa eficácia relativamente aos fins enunciados pelos contratantes e às alternativas disponíveis (requisito meio de aplicação da CGA);

b)      desenvolvido com o intuito, (se não exclusivo) pelo menos dominante,  de obtenção de um resultado fiscal diverso daquele que corresponderia à “normalidade” negocial, gerando o sobreendividamento artificial de uma empresa, sem qualquer explicação congruente e sólida,  que não seja a de gerar um crédito “empolado” a favor dos sócios, sob a veste de direito a reembolso de prestações acessórias (requisito intelectual de aplicação da CGA);

c)      assim conduzindo (mediante aparente conversão de “dividendos” tributáveis em “reembolsos” não-tributáveis) à consequência da elisão dos correspondentes deveres fiscais (requisito resultado de aplicação da CGA);

d)     mediante recurso a meios cujo carácter artificioso ou fraudulento resulta manifesto (requisito abusivo – dito normativo- de aplicação da CGA).

Tais requisitos, além de processualmente demonstrados, encontram-se fundamentadamente reflectidos no âmbito do processo administrativo de decisão aplicativa da cláusula geral anti-abuso, não padecendo esta, em consequência, da invalidade alegada pela Requerente.

 

B- Concluída (em A) a análise, no caso concreto, dos diversos pressupostos de válida aplicação da cláusula anti-abuso, constantes no n.º 2 do art. 38.º da Lei Geral Tributária, cabe passar a considerar a segunda parte de tal norma, referente às ilações a retirar da verificação de tais pressupostos, em sede de determinação da sanção a aplicar ao sujeito passivo.

De acordo com o contemplado na estatuição do mencionado preceito, o preenchimento dos indicados requisitos e a associada aplicação da cláusula anti-abuso conduz (no exclusivo âmbito tributário) à ineficácia dos actos ou negócios jurídicos tidos por abusivos e, consequentemente, “a tributação de acordo com as normas aplicáveis”, o que determina a não-produção das “vantagens fiscais” pretendidas pelo sujeito passivo[26], “efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas” (parte final do artigo 38.º, n.º 2 da LGT).

Ou seja, sendo legítima e devida, no presente caso, a aplicação da CGAA, há que reconstituir a situação que, para efeitos tributários, se verificaria, caso a entidade requerente não tivesse praticado a operação desconstruída pela aplicação da cláusula anti-abuso e, como consequência desta, considerada ope iuris ineficaz.

Tanto significa, no caso vertente, recusar-se a obtenção das vantagens fiscais auferidas pela Requerente, devendo considerar-se esta (entidade devedora dos rendimentos, de acordo com a alínea a) do n.º 2 do artigo 101.º CIRS), sujeita a retenção na fonte, a uma taxa liberatória de 21,5%, nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 71.º do CIRS (na redacção dada pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho) cabendo, em consequência, ser à mesma comunicada a nota de liquidação correspondente ao valor de retenção devido e não entregue.

O que conduz, justamente, a que os actos de liquidação objecto de impugnação na presente acção, não padeçam de qualquer invalidade com base nos argumentos aduzidos pela Requerente e supra analisados (no ponto II.2.3).

Nestes termos, improcede o pedido da Requerente quando sustenta a ilegalidade dos actos de liquidação na alegada circunstância de não se verificarem os pressupostos de aplicação da cláusula anti-abuso.

 

 

IV.             Decisão

 

Considerando as diversas razões vindas de expor em sede de fundamentação, decide o Tribunal julgar improcedente o pedido de anulação dos actos de liquidação objecto da presente acção, com a consequente manutenção, na ordem jurídica, das liquidações efectuadas.

 

V.                Valor do Processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do C.P.C., do art.  97.º-A, n.º 1, al. a), do C.P.P.T. e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €99.976,76.

 

VI.             Custas

 

De acordo com o previsto nos artigos 22.º, n.º 4, e 12.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem, no artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma, fixa-se o valor global das custas, a cargo da Requerente, em € 2.754,00.

 

Lisboa, 4 de Novembro de 2015

 

O Árbitro-Presidente,

 

Fernanda Maçãs

 

Os Co-Árbitros,

 

Nuno Miguel Morujão

 

Fernando Araújo



[1]Lições de Direito Administrativo, 2.ª Edição, Coimbra, 2011, pp. 165 e 166.

[2] Ob. cit., p. 168.

[3] A equiparação entre conteúdo e objecto imediato do acto é referida por Vieira de Andrade, ob. cit., p. 168.

[4] Ou seja, de uma “actuação planeada do contribuinte que se traduz num comportamento aparentemente lícito, geradora de uma vantagem fiscal não admitida pelo ordenamento tributário” (cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito Tributário – Contributos para a sua Compreensão, Almedina, 2009, pp.15-17 e 163-165; bem como Ac. TCA de 15/02/2011, proc. n.º 04255/10, conclusões XIII e XIV).

[5] Cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, A Cláusula..., cit, p. 165. Identicamente, SALDANHA SANCHES, J.L., Os Limites..., p. 170, que refere uma “relação de conexão e interdependência em relação aos requisitos exigidos pela lei”.

[6] Como decorre da seguinte parte do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: “actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos”.

[7] “Quer os actos jurídicos, quer os negócios jurídicos, podem surgir isolados (adaptados à obtenção da utilidade económica e da vantagem fiscal), ou, naquela que é a hipótese porventura mais comum, formar um conjunto – conjunto de actos ou conjunto de negócios. Para tal, deverão formar uma unidade lógica, sequencial e indivisível a tal dirigida – uma estrutura [...]. A doutrina e a jurisprudência britânica [...] apurou a verificação dessa unidade quando – step-by-step doctrine – no momento da realização do primeiro acto, será pouco razoável admitir que outros não se lhe seguirão forçosamente, de modo a completá-lo, e assim obtendo a vantagem fiscal visada e o fim económico acautelado” (cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, A Cláusula…, cit, pp. 166-167).

[8] Tal decorre do seguinte segmento do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”.

[9] Cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, A Cláusula..,cit.,  p. 180.

[10] Cfr. art. 24.º do CSC.

[11] Cfr. alínea e) do art. 33.º da PI.

[12] Cfr. art. 33 da PI.

[13] Cfr. LEITE DE CAMPOS, DIOGO, e COSTA ANDRADE, JOÃO, Autonomia Contratual e Direito Tributário, A norma geral anti-elisão, Almedina, Coimbra, 2008, p. 82.

[14] Cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, A Cláusula..., cit., p. 211.

[15] Cfr. certidão permanente da A…, in anexo 4 ao RPI.

[16] Cfr. Santos, Hugo M., SGPS: gestão de participações sociais como forma indireta de exercício de atividades económicas, Direito dos Valores Mobiliários – Vol. III, 2008, p. 362.

[17] Cfr. anexo 11 ao RPI.

[18] Participações sociais na F…, G… e H….

[19] Cfr. anexo 10 ao RPI.

[20] Cfr. art. 28.º da PI.

[21] Cfr. art. 108.º da resposta da requerida.

[22] A tanto acresce a dívida de C e D à B… SGPS pela aquisição, a esta, da A…, …, S.A.,por  €472.877, 39, pois, recorde-se, também esta transacção não foi paga.

[23] Para lá do formalismo, a própria materialidade das “participações sociais” não pode resumir-se a uma estática “colheita de dividendos”, como parece ser o caso com a actual A… relativamente ao grupo societário que encabeça. Cfr. Santos, Hugo M., SGPS: gestão de participações sociais como forma indireta de exercício de atividades económicas, Direito dos Valores Mobiliários – Vol. III, 2008, p. 362.

[24] Dificilmente se admitiria a existência de “abuso” olhando-se apenas para um só actos, ou para uma só vantagem fiscal resultante de um acto. Cfr. LEITE DE CAMPOS, DIOGO, e COSTA ANDRADE, JOÃO, Autonomia Contratual e Direito Tributário, A norma geral anti-elisão, Almedina, Coimbra, 2008, p. 82.

[25] “Quer os actos jurídicos, quer os negócios jurídicos, podem surgir isolados (adaptados à obtenção da utilidade económica e da vantagem fiscal), ou, naquela que é a hipótese porventura mais comum, formar um conjunto – conjunto de actos ou conjunto de negócios. Para tal, deverão formar uma unidade lógica, sequencial e indivisível a tal dirigida – uma estrutura [...]. A doutrina e a jurisprudência britânica [...] apurou a verificação dessa unidade quando – step-by-step doctrine – no momento da realização do primeiro acto, será pouco razoável admitir que outros não se lhe seguirão forçosamente, de modo a completá-lo, e assim obtendo a vantagem fiscal visada e o fim económico acautelado” (cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, A Cláusula…, cit., pp. 166-167).

[26] Cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, A Cláusula …cit., pp.15-17 e 163-165; bem como o Ac. TCA de 15/02/2011, proc. n.º 04255/10, conclusões XIII e  XIV.