Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 157/2015-T
Data da decisão: 2015-08-10  IUC  
Valor do pedido: € 430,67
Tema: IUC – Incidência subjetiva; Presunções legais
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Decisão Arbitral

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo nº 157/2015-T

Tema: IUC

 

 

REQUERENTE: A…

REQUERIDA: AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA

 

 

I – RELATÓRIO

 

A)        AS PARTES E A CONSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL

 

1.         A…, maior, solteiro, contribuinte Fiscal nº …, residente na Rua …, nº … – …, Urbanização …, …, … – …, doravante designado por “Requerente, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral singular, ao abrigo do disposto no artigo 2º, nº 1, a alínea a) e 10º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante designado por “RJAT” e da Portaria nº 112 – A/2011, de 22 de Março, relativamente à decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa proferida pela Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA), pretendendo a declaração de ilegalidade das liquidações de Imposto Único de Circulação (IUC) relativo à viatura automóvel com a matrícula …-…-…, referentes aos períodos de tributação de 2013 e 2014, identificadas com os números de documentos únicos de cobrança (DUC) … e …, respetivamente, juntas aos autos em anexo ao pedido arbitral, que se dão por integralmente reproduzidos, no montante global a pagar de €430,67.

 

2.         O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, foi apresentado pela Requerente em 05-03-2015, foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e imediatamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

3.         A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no nº1 do artigo 6º do RJAT, foi designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa a ora signatária como árbitro singular e as partes notificadas dessa designação em 23-04-2015. A nomeação foi aceite e as partes notificadas da designação do árbitro, não tendo manifestado a vontade de recusar a designação.

 

4.         Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c), do nº 1, do artigo 11º, do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro (RJAT), o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 11-05-2015. Em 21-05-2015 foi a ATA notificada, nos termos e para os efeitos do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 17º do RJAT, para apresentar resposta, a qual foi apresentada nos autos em 15-06-2015.

 

5.         Em 16-06-2015 foi proferido despacho arbitral de junção aos autos da resposta da ATA e notificação do Requerente para se pronunciar sobre a alegada desnecessidade de realização da reunião a que alude o art. 18º do RJAT e da produção de prova testemunhal. O Requerente pronunciou-se por Requerimento junto aos autos em 21-06-2015, fundamentando a necessidade de realização da reunião para produção da prova testemunhal. Arguiu, ainda, as falhas e incompletudes do processo administrativo junto aos autos pela ATA, porquanto do mesmo não constam todos os elementos que deviam integrar o PA. Não sendo este facto impeditivo do prosseguimento dos autos, veio o Requerente invocar, como consequência da falta do envio de todos os elementos do processo administrativo onde forma praticados os atos cuja ilegalidade se suscita, que se considerem provados os factos alegados pelo Requerente, nos termos do disposto no artigo 84º, nº 5 do CPTA, aplicável ex vi artigo 29º, nº1, da alínea c), do RJAT.

 

6.         No dia 10-07-2015, pelas 10 horas, realizou-se a reunião prevista no artigo 18º do RJAT, na qual se procedeu à produção de prova testemunhal, inquirindo as testemunhas apresentadas pelo Requerente, B… e C…. O Requerente prescindiu da inquirição da terceira testemunha indicada, D…. A produção de prova testemunhal foi gravada como consta da respetiva ata.

O Requerente requereu, ainda, a junção aos autos de cópia do cheque comprovativo do pagamento do preço do automóvel sinistrado, à qual a ATA não se opôs e que o Tribunal, de imediato, decidiu admitir a sua junção, conforme documento que consta como anexo à ata da reunião.

Foram, seguidamente, apresentadas pelas partes as correspondentes alegações orais. O Tribunal fixou data para prolação da decisão arbitral até 30-10- 2015.

 

B) DO PEDIDO FORMULADO PELA REQUERENTE:

 

7.         O Requerente, formula o presente pedido de pronúncia arbitral pugnando pela ilegalidade, com a consequente anulação, das liquidações de Imposto Único de Circulação, referentes aos períodos de tributação de 2013 e 2014, relativos à viatura automóvel com a …-…-…, a seguir discriminadas:

a)         DUC n.º …, respeitante ao ano de 2013, no valor de €197,46, acrescido de juros no montante de €10,62;

b)         DUC nº…, respeitante ao ano de 2014, no valor de €219,56, acrescido de juros no montante de €3,03,

Tudo no valor global de €430,67.

 

8.         Estas liquidações encontram-se juntas aos autos, como documento nº 1 – Demonstração de Liquidação- que aqui se dá por integralmente reproduzido.

 

9.         Em síntese, fundamenta o seu pedido, alegando o seguinte:

 

a)         O Requerente não é proprietário da viatura supra identificada, desde 23-12-2011, pelo que não pode ser considerado sujeito passivo deste imposto, com referência aos anos em causa, ou seja, 2013 e 2014;

b)         Alega que após o acidente de viação sofrido em 16-11-2011, a viatura identificada nos autos sofreu danos irreversíveis, tendo a seguradora decidido pela perda total e contratado com uma empresa especializada a negociação dos salvados, após consulta da cotação de mercado para o veículo acidentado;

c)         Foi celebrado contrato de compra e venda em 23-12-2011, pelo qual se transferiu a propriedade para a empresa adquirente, a E…, Unipessoal Lda, contra o pagamento ao Requerente da quantia de €1999,00;

d)        Alega ainda que desde 12-09-2012 foi desencadeado o processo de cancelamento da matrícula junto do IMTT;

e)         Nesta conformidade conclui o Requerente que foi totalmente diligente no tratamento e assinatura de toda a documentação necessária entre as partes para efetivar a transmissão do veículo, bem assim como o cancelamento da matrícula do mesmo, ao que acresce ser obrigação do comprador promover o registo do mesmo em seu nome;

f)         Assim, considerou o Requerente que o procedimento ficou devidamente concluído à data da concretização do contrato de compra e venda, desde a qual não teve qualquer outro contacto com a identificada viatura ou com o então adquirente;

g)         Apesar de ter fornecido todos os elementos à ATA em sede de exercício de recurso hierárquico, convolado em reclamação graciosa, o Requerente foi surpreendido com a notificação para proceder à liquidação do Imposto Único de Circulação, referente àquele veículo, relativamente aos anos de 2013 e 2014;

h)         Quanto à fundamentação de direito alega o Requerente que o contrato de compra e venda obedece aos princípios da autonomia privada, da liberdade contratual e da consensualidade; pelo que é válido o contrato verbal pelo qual uma parte vende a outra uma viatura automóvel, sendo o registo apenas uma condição de publicidade;

i)          Do art. 3.º do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), resulta a presunção de que o sujeito passivo deste imposto é o proprietário do veículo que se encontra inscrito na Conservatória do Registo Automóvel, no entanto, esta presunção é ilidível, uma vez que o registo da aquisição não é condição para a transmissão da propriedade e não afeta a sua validade. A obrigação de proceder ao registo cabe ao proprietário e tem como fim dar publicidade, não mais do que isso; o adquirente aquando da aquisição do veículo, tinha plena consciência desta obrigação, tanto mais que se trata de uma empresa do setor de atividade;

j)          À data da exigibilidade do imposto a que respeitam as liquidações questionadas não era esta o proprietário do veículo em apreço, por se ter já anteriormente operado a respetiva transferência, nos termos da lei civil. Sendo que, os meios de prova documental apresentados pelo Requerente, bem assim como a prova testemunhal arrolada são meios idóneos para a ilisão da presunção, nos termos do disposto no artigo 350º, nº2 do CC e do artigo 73º da LGT; ilidida a presunção em que se suportam aquelas liquidações, devem estas ser anuladas, com as consequências legais;

k)         Conclui peticionando a declaração de ilegalidade destas liquidações de IUC, no montante global de €430,67, bem como ao reembolso das importâncias indevidamente pagas a esse título (imposto e juros compensatórios), que seja ordenada a extinção dos processos de contraordenação em curso e a condenação da ATA no pagamento das custas do processo.

 

 

C – A RESPOSTA DA REQUERIDA

 

10.       A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou Resposta nos presentes autos, na qual, por impugnação, alega em síntese o seguinte: 

a)         Quanto à questão da incidência subjetiva do IUC, considera que o disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 3.º do CIUC configura uma verdadeira norma de incidência e não uma mera presunção, salientando que o legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, aliás à semelhança do que sucede em outros normativos legais;

b)         Entende, por isso, que nos casos em que o legislador fiscal utiliza a expressão “considera-se”, não está a estabelecer uma presunção, mas sim uma opção legislativa de considerar como proprietários aqueles que figurem como tal no registo; entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efetuar uma interpretação contra legem;

c)         O legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal e que outra interpretação seria ignorar o elemento teleológico de interpretação da lei: a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC; reforça esta alegação invocando que este é o entendimento seguido pela jurisprudência dos nossos tribunais expressa na sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, no âmbito do Processo n.º 210/13.0BEPNF;

d)        Conclui, que o artigo 3º do CIUC não comporta qualquer presunção legal, e pela improcedência do pedido arbitral, porquanto os atos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC, tal como atesta a Informação relativa ao histórico da propriedade dos veículos em causa, emitida pela Conservatória do Registo Automóvel;

e)         Segundo a ATA o Código de registo predial aplica-se subsidiariamente ao Regulamento do Registo Automóvel, porém, o Código de Registo predial não é legislação subsidiária do Código do IUC, pelo que o IUC passou, nos termos do disposto no artigo 3º do CIUC, a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos; outra interpretação seria ignorar o elemento teleológico de interpretação da lei, o elemento sistemático, violando a unidade do regime e seria, ainda, uma interpretação desconforme à Constituição;

f)         Alega a AT que, caso assim não se entenda, sempre se teria de considerar que os documentos probatórios juntos pela Requerente não são suscetíveis de ilidir a presunção do registo, dado o caráter unilateral da fatura; invoca a este propósito a jurisprudência arbitral vertida nas decisões proferidas nos processos nºs 63/2014-T, 130/29014-T; 150/2014 – T, 220/2014T e 339/2014 T, entre outros;

g)         Conclui pugnando pela legalidade dos atos impugnados, pelo que deve o pedido arbitral ser julgado improcedente, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários de liquidação impugnados, absolvendo-se a Requerida do pedido.

 

II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

11.       O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído. É materialmente competente, nos termos do artigo 2º, nº1, alínea a) do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

12.       As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (Cfr. 4º e 10º nº2 do DL nº 10/2011 e art. 1º da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março).

 

13.       Pretende o Requerente suscitar a apreciação conjunta da legalidade das duas liquidações de IUC, relativas aos anos de 2013 e 2014, apesar de constituírem atos autónomos, verificam-se os pressupostos exigidos pelo disposto no nº 1, do artigo 3º, do RJAT e artigo 104º do CPPT, é de admitir a cumulação, dada a identidade do imposto e a apreciação dos atos tributários em causa depender da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da aplicação das mesmas regras de direito.

 

14.       O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

15.       Tendo as posições assumidas pelas partes e já supra expostas, a prova documental junta aos autos pelo Requerente e a constante do Processo Administrativo (PA) junto pela ATA, bem assim como a prova testemunhal produzida nos presentes autos, cumpre fixar a matéria de facto relevante para a decisão.

 

 

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

A)        Factos Provados

 

16.       Como matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:

a)         As liquidações de IUC em causa nos autos respeitam à viatura de marca BMW 320 (ligeiro de passageiros), com o número de matrícula …-…-…, do qual foi proprietário o Requerente A…;

b)         Esta viatura sofreu um acidente de viação, no dia 16-11-2011, pelas 6horas e 45minutos, na IC17, do qual resultaram danos irreversíveis, que determinaram, em sede pericial, a determinação de perda total do veículo, conforme resulta do documento nº2, junto aos autos e do depoimento das testemunhas B… e C…;

c)         A seguradora, no seguimento do resultado da peritagem realizada, contactou uma empresa do ramo, sociedade comercial F…, Lda, com o NIPC …, para proceder à cotação da viatura sinistrada (salvados) no mercado, como resultou do depoimento da testemunha B…, a qual revelou um conhecimento preciso da situação de facto em discussão, por ser então funcionária da empresa;

d)        Foi precisamente através desta testemunha, B…, que a empresa contactou o ora Requerente para lhe comunicar a cotação do veículo e propor a sua colocação em venda no mercado, ao que o Requerente acedeu;

e)         No seguimento dos factos supra descritos surgiu uma interessada na compra da viatura sinistrada, pelo valor de €1.999,00, a sociedade comercial E… unipessoal Lda, com o NIPC …, com sede na Rua …, nº…, … …;

f)         Ainda segundo a mesma testemunha, com o acordo do Requerente, foi celebrado o respetivo contrato de compra e venda, em 23-12-2011, o que deu origem à emissão do respetivo recibo de quitação, junto aos autos como documento nº 3, ao qual veio a ser exibido e junto aos autos, também, a cópia do cheque, no valor de €1.999,00, pago pela aquisição da viatura, documento que foi junto aos autos na reunião já supra referida;

g)         Ainda segundo o depoimento da testemunha C…, gestora de processo que conduziu o procedimento relativo ao Requerente e à viatura dos autos, na mesma data da celebração do contrato de compra e venda o Requerente entregou as chaves da viatura e todos os documentos da mesma; nomeadamente para os efeitos legalmente previstos de alteração de registo e/ou de cancelamento de matrícula da viatura junto do IMTT; os factos descritos foram também confirmados pela testemunha C…;

h)         A empresa adquirente é uma empresa do setor, que desenvolve a sua atividade, especificamente, na aquisição de viaturas sinistradas e salvados, nuns casos para reparação (se possível), mas sobretudo para o aproveitamento das peças em bom estado e sua negociação no mercado; é, pois, uma entidade perfeitamente consciente das suas obrigações em relação a este tipo de processos;

i)          Em 12-09-2012 foi entregue no IMTT guia de documentos a requerer o cancelamento da matrícula da viatura – cfr. documentos nºs 3, 4,5, 6 e 8 juntos aos autos e constantes do PA;

j)          A apreensão dos documentos só foi ordenada pelo IMTT em 17-07-2014 – cfr. Doc. nº 8.

k)         O Requerente foi notificado da demonstração de Liquidação de IUC, junto ao pedido arbitral, na qual se identificam as liquidações de IUC impugnadas, respetivos valores de imposto e de juros, bem assim como da data limite de pagamento: 27-02-2015;

l)          O Requerente apresentou Recurso Hierárquico, posteriormente convolado em Reclamação Graciosa, no qual juntou todos os documentos que constam do respetivo PA, a qual veio a ser indeferida com os fundamentos constantes no referido despacho constante do PA;

m)        O Requerente procedeu ao pagamento das liquidações de IUC e respetivos juros;

n)         Foram instaurados, pelos factos supra descritos, os processos de contraordenação com os nºs …2015… e ..2015…, referentes, respetivamente, ao incumprimento verificado nos anos de 2013 e 2014;

o)         Que o Requerente pagou todas as liquidações de imposto impugnadas, conforme comprovativos juntos aos autos.

 

B)        FACTOS NÃO PROVADOS

 

17.       Não há factos não provados com relevo para decisão a proferir.

 

C)        FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

 

 

18.       Os factos supra descritos foram dados como provados com base nos documentos que o Requerente juntou ao processo, em anexo do Pedido Arbitral, bem assim como no documento junto aos autos na reunião de 10-07-2015, em toda a documentação junta do PA, bem assim como no depoimento das testemunhas inquiridas, as quais revelaram um conhecimento rigoroso do sucedido e do desenvolvimento do processo que conduziu à alienação da viatura sinistrada. O Tribunal reconhece como particularmente relevante o depoimento da testemunha B…, pelo conhecimento e razão de ciência revelada, atendendo às funções profissionais exercidas, no âmbito das quais foi a gestora do processo referente à viatura sinistrada do Requerente.

 

19.       Quanto ao alegado pelo Requerente relativamente à incompletude dos elementos constantes do processo Administrativo, o Tribunal considera que apesar disso, os elementos em falta em nada prejudicam a prova realizada, nem o conhecimento das questões de direito em discussão nos presentes autos, pelo que se afigura irrelevante.

 

 

IV – QUESTÕES DECIDENDAS e FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

20.       Cumpre, pois, apreciar e decidir as questões a dirimir, tal qual se encontram configuradas no pedido arbitral e na resposta deduzida pela ATA e que são as seguintes:

 

a)         Interpretação da norma de incidência subjetiva prevista no artigo 3º, nº 1, do CIUC, ou seja, determinar se esta norma prevê uma presunção ilidível ou, ao invés, uma ficção legal, insuscetível, por isso, de ser ilidida mediante prova em contrário;

b)         O valor jurídico do registo dos veículos automóveis;

c)         O valor probatório dos documentos juntos aos autos pelo Requerente para prova de que já não era o proprietário da viatura á data dos factos tributários e, consequentemente, ilidir a presunção.

 

 

 

 

A) QUANTO À INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 3º Nº 1 DO CIUC

 

 

21.       Invoca o Requerente que já não era o proprietário da viatura em causa nos autos, à data dos factos tributários (anos de 2013 e 2014), pelo que não se encontram preenchidos os pressupostos de incidência subjetiva previstos no artigo 3º do CIUC, não sendo, por isso, sujeito passivo de IUC e, em consequência, as liquidações devem ser anuladas por manifesta falta de responsabilidade subjetiva pelo seu pagamento. Alega que vendeu a viatura sinistrada em 23-12-2011 à sociedade comercial E…, Unipessoal Lda, pelo que desde então já não é o proprietário da viatura automóvel objeto das liquidações impugnadas.

 

22.       Entende o Requerente que o artigo 3º do CIUC estabelece uma presunção implícita de propriedade dos veículos a favor de quem os mesmos se encontrem registados, presunção essa que, por força da aplicação da regra geral prevista no artigo 73º da Lei Geral Tributária, é ilidível mediante prova em contrário. De resto, no caso dos autos, o Requerente na data da celebração do contrato de compra e venda, na qual recebeu o valor de €1.999,00 pago por cheque cuja cópia consta dos autos, assinou o respetivo recibo e entregou as chaves e documentação do veículo para que o adquirente desse andamento ao respetivo procedimento de alteração do registo e/ou cancelamento da matrícula junto do IMTT.

 

23.       Já para a Requerida, o artigo 3º do CIUC não estabelece qualquer presunção implícita, mas uma verdadeira ficção legal, inilidível, pelo que, o titular do registo automóvel é o devedor do imposto independentemente de ser ou não o seu proprietário. Esse mesmo fundamento aparece referenciado no despacho de indeferimento da reclamação graciosa (por convolação do recurso hierárquico apresentado), constante do PA.

 

24.       Com referência a esta questão é já abundante a jurisprudência arbitral produzida nos últimos anos, da qual destacamos as decisões proferidas nos processos nºs 14/2013-T, de 15 de outubro, 26/2013-T de 19 de julho, 27/2013-T, de 10 de setembro, 217/2013-T de 28 de fevereiro e, mais recentemente, nas decisões proferidas nos processos 286/2013-T, de 2 de maio de 2014, 293/2013-T, de 9 de junho de 2014, 46/2014-T de 5 de setembro, 246 e 247/2014 T, de 10 de outubro, entre outros.

 

25.       Vejamos qual deverá ser o sentido e alcance do disposto no artigo 3º nº 1 do CIUC, de acordo com os princípios da hermenêutica jurídica. Dispõe o nº 1, do artigo 3º do CIUC:

“São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados. “

 

26.       Da simples leitura do número um do indicado preceito verifica-se, sem grandes dificuldades, que a pedra de toque está na expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador. Deverá entender-se que o legislador pretendeu estabelecer uma presunção implícita ou uma verdadeira ficção legal?

 

27.       Importa atender a alguns conceitos de referência para encontrar a resposta mais adequada a esta questão., tais como o disposto no artigo 349º do Código Civil, segundo o qual “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.”

Já segundo o nº2 do artigo 350º do Código Civil, as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, salvo nos casos em que a lei o proibir.

Acresce, no que diz respeito, em concreto, às presunções de incidência tributária, que segundo o artigo 73º da Lei Geral Tributária, estas admitem sempre prova em contrário.

Situação diversa, à qual, por vezes, o legislador recorre, é a que se designa por “ficções legais”, as quais consistem “num processo jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir consequências jurídicas”

 

28.       De acordo com a tese reiteradamente defendida pela Requerida AT em diversos processos idênticos ao que se discute nos presentes autos e que verteu como fundamento do indeferimento da reclamação graciosa dirigida ao ora Requerente, o facto do artigo 3º, nº 1, do CIUC estabelecer que se “consideram” como proprietários, ao invés de “presumem-se” como proprietários, revela que o legislador, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, pretendeu expressamente determinar que as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados se consideram, sem admissibilidade de qualquer prova em contrário, proprietários dos mesmos. Segundo a ATA, se o legislador pretendesse criar uma presunção e não uma ficção legal, teria escrito, como fez em diversos outros diplomas, que se presumem proprietários e não que se consideram proprietários.

 

29.       Pois bem, não é esse o entendimento deste Tribunal. E, não se diga que esta é uma posição apenas plasmada nos sucessivos processos arbitrais que se debruçaram sobre este tema já que a mesma posição foi recentemente sufragada pelo Tribunal Central Administrativo Sul, por Acórdão proferido em 19-03-2015, no processo nº 08300/14, no qual se afirma que “(…) o citado artigo 3º, nº1, do CIUC consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível, por força do art. 73º da LGT.”

 E, acrescenta, o mesmo Acórdão do TCA Sul “que a ilisão da presunção legal obedece à regra constante do artigo 347º do C. Civil, nos termos do qual a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto.”

 

Cabe pois ao Requerente o ónus de provar que à data dos factos tributários já não era o proprietário do veículo em causa nos presentes autos.

 

30.       Na verdade, como já foi salientado em diversas decisões arbitrais proferidas, a análise dos elementos histórico e teleológico, para além, naturalmente, do elemento literal, de interpretação legislativa, conduzem à conclusão lógica de que o legislador não pretendeu estabelecer qualquer ficção legal mas apenas e só uma presunção, ilidível mediante prova em contrário nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 73º da Lei Geral Tributária. Tratando-se de norma de incidência tributária outro entendimento seria claramente contrário aos princípios que regem a relação jurídica fiscal.

 

31.       Assim, quanto ao elemento histórico, importa referir que o CIUC teve a sua génese na criação, através do DL 599/72, de 30 de Dezembro, do imposto sobre veículos, o qual já consagrava expressamente que o imposto era devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados.  Do mesmo modo, o art. 2.º, do Regulamento dos Impostos de Circulação e de Camionagem (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 116/94) estabelecia que: “são sujeitos passivos do imposto de circulação e do imposto de camionagem os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou colectivas em nome das quais os mesmos se encontram registados”. Porém no CIUC, o legislador substituiu a expressão “presumindo-se” pela expressão “considerando-se”, o que na ótica da Requerida traduziu a consagração de uma ficção legal, inilidível. Pois não consideramos que assim seja.

 

32.       Na verdade, na versão atual do Código apenas mudou o verbo, optando agora o legislador pela expressão “considerando-se”. Certo é que, entre as versões legislativas anteriores e a atual entrou em vigor a LGT, que consagrou expressamente o princípio contido no artigo 73º, do qual resulta que em matéria de incidência tributária qualquer presunção admite sempre prova em contrário. Logo, torna-se indiferente a adoção de uma presunção expressa ou implícita, porquanto, uma como a outra são igualmente ilidíveis.

 

33.       Como resulta vertido já em diversas decisões arbitrais, agora reforçadas pela jurisprudência dos Tribunais superiores, estamos perante uma presunção ilidível. Além do que, como já se disse supra, tratando-se de norma de incidência tributária, nunca seria admissível a consagração de uma presunção inilidível. Como afirmam, Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação ao nº 3, do artigo 73º, da LGT, “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objetiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”.

 

34.       E, são muitos os exemplos de normas em que é utilizado o verbo “considerar” para estabelecer presunções ilidíveis, como sucede com o disposto nº 2 do artigo 21º do CIRC, no artigo 89-A da LGT ou no artigo 40º, nº1 do CIRS entre outros. Alega, porém, a Requerida na resposta apresentada, que este mesmo vocábulo “considerando-se” também é normalmente utilizado, pelo ordenamento jurídico fiscal, para definir situações distintas de presunções. Afigura-se normal, nomeadamente, no caso de outras normas fiscais em que o legislador utilizou a fórmula “considera-se” ou “consideram-se”, mas atribuindo-lhe outro sentido, já que se trata de expressões que, dependendo do contexto, podem assumir uma pluralidade de sentidos, sem que daí possa extrair-se a conclusão que pretende a Requerida.

 

35.       Tendo em conta que o sistema jurídico deve formar um todo coerente, os exemplos acima referidos, bem como a doutrina e jurisprudência indicadas, permitem concluir que não é só quando é usado o verbo “presumir” que estamos perante uma presunção, mas também o uso de outros termos ou expressões, como o termo “considera-se” podem servir de base a presunções. E, como se referiu supra, sendo o elemento literal o primeiro instrumento de interpretação da norma jurídica, em busca do pensamento legislativo, importa confrontá-lo com os demais elementos de interpretação, nomeadamente o elemento racional ou teleológico, o elemento histórico e o sistemático.

 

36.       Afigura-se pacífico que, em matéria de incidência tributária, as presunções podem ser reveladas pela expressão “presume-se” ou por expressão semelhante.

A título de exemplo, refere Jorge Lopes de Sousa, que “no artigo 40º nº 1 do CIRS se utiliza a expressão “presume-se”, ao passo que no artigo 46º, nº 2 do mesmo Código se faz uso da expressão “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal.”

 Assim, não obstante o CIUC ter optado pela expressão “considera-se” em vez de “presume-se”, daí não se extrai qualquer alteração de fundo, tendo ambas o mesmo significado, ou seja, a consagração de uma presunção ilidível.

 

37.       Se atendermos ao elemento teleológico, idêntica conclusão se impõe.

Na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei nº 22-A/2007, de 29 de Junho, resulta evidente que se pretendeu empreender uma “reforma global e coerente dos impostos ligados à aquisição e propriedade dos veículos automóveis” a qual resulta da “necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel. (…) os dois novos impostos que agora se criam, o imposto sobre veículos e o imposto único de circulação, constituem muito mais do que o prolongamento técnico das figuras criadas nos anos 70 e 80 que os antecederam, voltadas predominantemente para a angariação da receita, indiferentes ao custo social resultante da circulação automóvel. Constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade.”

 

38.       Nesta linha de pensamento o legislador consagrou o princípio da equivalência, inscrito no artigo 1º do CIUC, como um princípio fundamental no funcionamento do imposto, “deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária. É este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respetiva propriedade e até ao momento do abate”.

O IUC, enquanto verdadeiro imposto ambiental, elegeu como sujeito passivo o utilizador, o poluidor, em obediência ao princípio do poluidor-pagador. O que, no caso dos autos, atendendo à circunstância resultante do acidente de viação, com perda total da viatura, já nenhuma justificação persiste para a cobrança do IUC, demonstrada que fica a sua inutilização. Devia isso sim, o novo adquirente ter acionado de imediato o mecanismo do IMTT para cancelamento da matrícula. Mas também é verdade que, apesar da diligência ter sido efetuada logo em 2012, apenas em julho de 2014 o IMTT concluiu o processo, ou seja 2 anos depois, facto ao qual o Requerente é totalmente alheio.

 

39.       Verifica-se, pois, que o princípio estruturante da reforma da tributação automóvel é justamente a incidência da tributação sobre o verdadeiro utilizador do veículo, não se coadunando este princípio com a leitura “cega” da letra da lei, que poderia levar, afinal, a tributar quem não fosse proprietário e, dessa forma, quem não fosse o sujeito causador do “custo ambiental e viário” provocado pelo veículo, a que alude o artigo 1º do CIUC.

 

40.       Assim, em conformidade com os elementos literal, histórico e teleológico de interpretação da lei conduzem necessariamente à conclusão de que a expressão “considerando-se” tem exatamente o mesmo sentido que a expressão “presumindo-se”, devendo, desta forma, entender-se que o artigo 3º, nº 1, do CIUC, consagra uma verdadeira presunção de propriedade e não qualquer ficção, sendo, por isso, tal presunção ilidível.

 

41.       Pelo que, o sujeito passivo do imposto é, em princípio, o proprietário, porque a lei presume que ele próprio utiliza o bem, porém, se o presumido proprietário afastar a presunção provando que já não o era à data dos factos tributários, não poderá ser considerado sujeito passivo do imposto. Aliás, nesta matéria conclui-se que não se verificam alterações relativamente à situação anteriormente em vigor no âmbito do Imposto Municipal sobre Veículos, Imposto de circulação e Imposto de Camionagem, como aliás é amplamente reconhecido pela doutrina, continuando a valer uma presunção ilidível nesta matéria. 

 

42.       Este entendimento é, ainda, o único que se afigura adequado e conforme ao princípio da verdade material e da justiça, subjacentes às relações fiscais, com o objetivo de tributar o real e efetivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário, por constar do registo automóvel. Neste sentido, também as decisões arbitrais proferidas nos processos nºs 150/2014-T e 220/2014-T, confirmam o mesmo entendimento já plasmado em decisões arbitrais anteriores, entre as quais, a que é invocada nos autos pela Requerente. Ainda a este propósito, e no mesmo sentido, refere o Acórdão arbitral nº 63-2014-T, de 15 de Setembro, que: “(…) se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjectiva do imposto numa ficção legal, em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjectiva. (…) E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1, só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto.”

 

43.       Por ser assim, tem de se permitir ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo, e que inicialmente, e em princípio, se supunha ser o verdadeiro proprietário. Caso contrário, aceitar-se-ia a supremacia da verdade formal do registo sobre a verdade material, e seria admitir a violação grosseira dos princípios fundamentais fiscais enunciados e, ainda, do princípio contido no artigo 73º, da LGT segundo o qual não existem presunções inilidíveis em matéria de incidência fiscal. A tudo o que se deixa supra exposto acresceria a violação dos princípios da legalidade, da proporcionalidade e da justiça, bem como o do inquisitório, consagrados, respetivamente, nos artigos 55º e 58º da LGT. Esta interpretação está, ainda, em sintonia com o princípio enunciado no artigo 11º, nº 3, da Lei Geral Tributária, que estabelece, nos casos de dúvida sobre a interpretação das normas tributárias que «deve atender-se à substância económica dos factos tributários» e, por outro lado, com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, que impõe que a tributação da generalidade dos contribuintes, sempre que possível, assente na realidade económica subjacente aos factos tributários.»

 

44.       A este propósito, a posição vertida na Decisão Arbitral nº 286/2013-T, de 2 de Maio de 2014, é bastante esclarecedora ao afirmar que: “É este princípio (da equivalência) que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate, o emprego comum de uma base tributável específica, a revisão do quadro de benefícios fiscais vigente e a afectação de uma parcela da receita aos municípios da respectiva utilização. Ora, pretender, como o faz a Requerida, que o legislador, no art. 3.º, n.º 1 do CIUC, fixou, seja qual for o meio técnico subjacente, a incidência subjetiva do imposto nas pessoas em nome de quem os veículos se encontram registados, com total independência de serem ou não, no período tributário relevante, titulares do direito de utilização do veículo, maxime da sua propriedade, implicaria desprezar aquela finalidade que preside à normatividade tributária, bem manifestada na incidência objectiva e na base tributável associada às diversas categorias de veículos (cfr. arts 2.º e 7.º do CIUC). É que uma inscrição registral, sem correspondência com a titularidade subjacente, nenhuma valia possui para dar satisfação e cumprimento a tal finalidade, pois não são as pessoas em nome de quem os veículos se encontrem inscritos quando não sejam titulares de direitos sobre a sua utilização que provocam custos ambientais e viários, mas antes tais custos ambientais e viários são causados pelos efetivos utilizadores dos veículos, nos termos das situações jurídicas substantivas pertinentes, mesmo que não constem, como deviam, do registo automóvel. O registo, na verdade, em nada depõe ou serve quanto ao princípio da equivalência estabelecido no art. 1.º do CIUC. Aliás, assumir que o elemento determinativo da incidência tributária subjetiva é simples e exclusivamente o registo automóvel também não permite afirmar uma ligação com uma qualquer manifestação de capacidade contributiva relevante, o que, via de regra, nos tributos não estritamente comutativos, é imprescindível, já que deve existir, sem prejuízo de exigências de praticabilidade, uma qualquer ligação efetiva entre o imposto e um pressuposto económico materialmente relevante capaz de fundamentar o tributo. A razão de ser da figura tributária afasta, pois, a ideia de que a incidência respectiva se prende estrita e exclusivamente com a própria inscrição registal da titularidade dos veículos tributários e não com as situações substantivas atributivas do direito de utilização dos veículos (art. 3.º, nºs 1 e 2 do CIUC) a que o registo se destina a dar publicidade (cfr. art. 1.º e art. 5.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro, com as alterações posteriores, que regula o registo automóvel).” 

 

45.       Esta é, também, a posição do tribunal arbitral nos presentes autos, sufragando as posições já anteriormente plasmadas nas diversas decisões arbitrais supra mencionadas, pelo que, se entende que a presunção inscrita no nº1, do art.º 3º, do CIUC, configura uma presunção ilidível, que corresponde à interpretação mais ajustada à prossecução dos objetivos almejados pelo legislador. Outro entendimento implicaria aceitar a possibilidade de tributar pessoas coletivas ou físicas sem responsabilidade na produção de quaisquer danos ambientais, enquanto os reais causadores desses mesmos danos não estariam sujeitos ao imposto, frustrando em absoluto os propósitos reguladores da própria lei, ou seja, a sua verdadeira ratio legis.

 

 

B) QUANTO AO VALOR JURÍDICO DO REGISTO AUTOMÓVEL

 

46.       Nos termos do disposto no nº 1, do artigo 1º do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, que instituiu o Registo da Propriedade Automóvel, “o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. Acrescenta o artigo 7º do Código do Registo Predial, legislação supletiva do registo de automóveis, que “o registo definitivo constituiu presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

 

47.       O registo de propriedade não tem natureza constitutiva, mas meramente declarativa, permitindo apenas a inscrição no registo presumir a existência do direito e a sua titularidade. Logo, a presunção resultante do registo pode ser ilidida mediante prova em contrário.

 

48.       E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408º do Código Civil, salvas as exceções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente da inscrição no registo. No caso de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, não prevendo a lei qualquer exceção para o mesmo, o contrato tem eficácia real, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo, bem assim como o titular inscrito no registo deixará de ser o proprietário, pese embora ainda possa constar, por algum tempo ou mesmo muito, do registo como tal.

 

49.       De notar ainda que, as transmissões efetuadas são oponíveis à ATA, apesar do disposto no nº 1, do artigo 5º do Código do Registo Predial, que dispõe: “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros quando registados.” Isto porque a ATA não é terceiro para efeitos de registo, no contexto previsto na lei. A noção de terceiros para efeitos de registo está consagrada no nº 4 do mesmo artigo 5º: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, o que, manifestamente não é o caso da AT.

 

50.       A transmissão da propriedade de um bem móvel, ainda que sujeito a registo, como sucede com um veículo automóvel, opera por mero efeito do contrato, nos termos previstos no artigo 408.º, n.º 1, do Código Civil. O contrato de compra e venda tem natureza real, isto é, a transmissão da propriedade da coisa vendida, ou a transmissão do direito alienado, tem como causa o próprio contrato. As viaturas automóveis são bens móveis, cuja transmissão de propriedade não obedece a formalismo especial. Esta questão é de importância fundamental, ainda, para a determinação dos meios de prova necessários e suficientes para a elisão da presunção.

 

51.       No direito português o facto que determina a transmissão da propriedade de um bem móvel (ainda que sujeito a registo) é o contrato expresso pela vontade das partes. Tanto assim é que o comprador torna-se proprietário do veículo vendido mediante a celebração do contrato de compra e venda, independentemente do registo o qual se assume como condição de eficácia e oponibilidade face a terceiros adquirentes.

 

52.       Assim, a prova da existência deste contrato de compra e venda deste tipo, por assentar no princípio da consensualidade, pode ser efetuada por qualquer meio idóneo, nomeadamente a prova testemunhal. Uma vez que a presunção resultante do registo é ilidível, resta analisar se no caso em apreço nos presentes autos, se tal presunção a existir foi ou não ilidida.

 

 

C) QUANTO AO VALOR PROBATÓRIO DOS DOCUMENTOS CONSTANTES DOS AUTOS PARA ILIDIR A PRESUNÇÃO:

 

 

53.       Como resulta da matéria provada nos presentes autos, à data dos factos tributários referenciados aos anos de 2013 e 2014, o Requerente já não era o proprietário da viatura, porquanto a alienou em dezembro de 2011 nas circunstâncias supra descritas. O Requerente demonstrou, também, a quem alienou, ou seja qual o proprietário adquirente da viatura, como sendo a sociedade comercial E… Unipessoal, Lda.

 

54.       Chegados aqui cumpre referir que o alegado pela ATA a propósito da “Fatura” como meio de prova e da controvérsia sobre o seu caráter unilateral e suscetibilidade de poder ser admissível como meio de prova bastante, não colhe nos presentes autos, desde logo, porque não há qualquer fatura (nem tinha de haver) junta aos autos. Recorde-se que, nos presentes autos, o vendedor é um particular, logo não emitiu fatura nem estava obrigado a fazê-lo. Tão só vendeu o automóvel sinistrado, nas condições que resultam provadas nos autos, emitindo o respetivo recibo de quitação. Nesta factualidade a tese em torno do valor probatório da fatura não encontra referencial no caso concreto em discussão, sendo certo que, mesmo que outro fosse o entendimento, a aceitação das partes quanto ás condições do negócio ficam cabalmente provadas que pelo teor dos documentos supra referidos, quer pela apresentação do comprovativo de pagamento, quer ainda pela prova testemunhal produzida.

 

55.       Assi, entende este tribunal que, no caso dos presentes autos, o Requerente provou a celebração do contrato de compra e venda, para o qual a lei não exige forma especial, podendo ser meramente verbal, em obediência ao princípio da consensualidade. Mas, a verdade é que a prova produzida nos autos não deixa dúvida sobre a celebração do contrato, da data em que o mesmo foi concretizado, da identificação completa do adquirente, conforme consta do recibo de quitação junto aos autos, corroborado pelo documento comprovativo do pagamento da quantia acordada (cópia do cheque junta aos autos) e da restante documentação, também constante do PA junto pela ATA. A estes documentos de prova acresce a prova testemunhal produzida, sendo que as testemunhas inquiridas nos autos oferecem toda a credibilidade pelo conhecimento direto dos factos e foram objetivas, coerentes e precisas nos depoimentos prestados. Ora, a prova da transmissão da propriedade pode ser efetuada por qualquer meio idóneo, legalmente admissível, como sucede no caso dos presentes autos.

 

56.       Acresce que a obrigação de alteração do registo de propriedade incide sobre o adquirente, o qual, no caso, é uma empresa inserida no ramo de atividade automóvel, com obrigação de conhecer as suas obrigações jurídicas. Por último, a documentação entregue no IMTT para o cancelamento da matrícula também não deixa dúvidas sobre os factos ocorridos e provados nos presentes autos.

 

57.       Ora, se atendermos às regras do direito civil que regem a transmissão da propriedade de bens móveis, já supra citadas e devidamente explanadas, conclui-se que a transmissão ocorre por mero efeito do contrato, sendo a questão do registo automóvel, ainda que obrigatório, uma condição de publicidade e não de validade nem de eficácia do negócio de compra e venda. Seria, aliás, ofensivo do princípio da uniformidade do sistema jurídico que uma transmissão fosse considerada válida, para todos os efeitos previstos na lei civil e não o fosse para efeitos fiscais, acompanhando integralmente a jurisprudência vertida a este propósito na decisão arbitral proferida no processo nº 265/2013-T.

 

58.       Não prevendo a lei qualquer forma específica para a celebração de um contrato de compra e venda de um bem móvel, terá, necessariamente, de se aceitar como prova bastante para a ilisão da presunção os documentos juntos aos autos como documentos nºs 3, 5 a 10, em anexo ao pedido arbitral e a cópia do meio de pagamento (cheque) junto aos autos na reunião do artigo 18º do RJAT.

 

59.       Pelo que, no caso dos presentes autos, a prova junta pelo Requerente é suficiente para afastar a presunção resultante do registo. Acresce ainda salientar que a obrigação de registo cabe ao comprador pelo que, tendo o Requerente agido de forma prudente, mais não lhe era exigível. Aliás, é pacífico para a doutrina e para a jurisprudência que o registo não é condição de validade dos negócios a ele sujeitos ou subjacentes. Dele não depende a transmissão da propriedade e não pertence ao transmitente o ónus de promover o registo, pelo que nenhuma sanção lhe pode ser imposta pelo não cumprimento dessa obrigação por parte do adquirente (este sim obrigado a promover o registo).  

 

60.       O Requerente prova a alienação da viatura pela apresentação de meios de prova documental e testemunhal, perfeitamente inequívocos, já supra mencionados, quanto à celebração e cumprimento integral do contrato de compra e venda realizado e toda a factualidade que o determinou, a saber: participação do acidente, recibo de quitação da venda da viatura sinistrada (salvados) e cópia do cheque.com o qual o pagamento da transação se realizou (sendo certo que o pagamento não é condição de validade do negócio de compra e venda, mas tão só do cumprimento do mesmo), pelo que o Requerente conseguiu, sem margem de dúvida, ilidir a presunção.

 

61.       Nestes termos, há que considerar as liquidações ilegais por erro sobre os pressupostos de facto e de direito em que se fundamentaram, nomeadamente, por erro de qualificação do sujeito passivo responsável pelo pagamento do imposto.

Por último, cabe salientar, que dos elementos juntos aos autos no PA, é de concluir que a ATA teve conhecimento dos elementos probatórios juntos aos presentes autos, em tempo adequado à não emissão das liquidações definitivas de imposto, ou pelo menos à sua revogação e a imediata extinção dos correspondentes processos em curso. Ainda assim, preferiu manter na ordem jurídica os atos tributários ilegais.

 

62.       Pelo que, afastada a presunção, forçoso é considerar que as liquidações de IUC reclamadas e aqui impugnadas devem ser anuladas.

 

63.       Não se afigura existirem outras questões relevantes suscitadas pelas partes.

 

 

V - DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

 

a) Julgar totalmente procedente o pedido arbitral e, em consequência, anular as liquidações impugnadas, referentes aos anos 2013 e 2014, com referência à viatura identificada nos autos, com todas as consequências legais, as quais implicam a extinção de todos os processos em curso;

b) Condenar a Requerida a reembolsar o Requerente de todas as quantias pagas a título de IUC, no montante global de €430,67, acrescida de juros à taxa legal;

c) Condenar a Requerida pagamento das custas processuais, nos termos previstos no artigo 2º, 3º e 4º, nº,6, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

VALOR DO PROCESSO: Em conformidade com o disposto nos artigos 305º, nº 2 do CPC, artigo 97º - A, nº 1, alínea a), do CPPT e artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €430,67.

 

CUSTAS: Nos termos do disposto no artigo 22º, nº 4, do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em €306,00, a cargo da Requerida Autoridade Tributária.

 

Registe-se e notifique-se. 

 

Lisboa, 10 de Agosto de 2015

 

O Árbitro singular,

 

     (Maria do Rosário Anjos)