Decisão Arbitral
I. RELATÓRIO
1. Objeto do pedido
A... e B... vieram impugnar as liquidações de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) números ... e ..., nos montantes, respetivamente, de € 5184,25 e € 8856,43, respeitantes à aquisição conjunta de uma fração autónoma, designada pela letra G, 3.º andar direito, do prédio urbano situado na ..., n.º ..., inscrito sob o artigo ... da matriz predial urbana da freguesia da ..., concelho de Lisboa, requerendo a sua anulação e restituição acrescida dos juros legais.
Face ao disposto no n.º 1 do artigo 6.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo DL n.º 10/2011, de 20.01, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro singular o signatário, Joaquim Silvério Dias Mateus, que aceitou o encargo dentro do prazo legalmente previsto sem que qualquer das partes tivesse manifestado recusa pela sua designação.
O tribunal arbitral singular foi constituído em 28 de Maio de 2015.
Com o assentimento das partes foi proferido despacho dispensando a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT assim como a apresentação de alegações, sendo fixado o dia 31 de Outubro de 2015 como data limite para proferir a decisão arbitral.
2. Fundamentos do pedido
Os autores fundamentam a sua pretensão de ver anuladas as liquidações de que foram destinatários com a argumentação que, em resumo, passa a apresentar-se:
Em primeiro lugar invocam a falta de fundamentação das liquidações devido ao facto da Autoridade Tributária não ter indicado “o motivo pelo qual os serviços entendem que o imposto é devido”.
Seguidamente e para além do vício formal invocado, alegam os requerentes que as liquidações de IMT não deveriam ter sido efetuadas “pois existia isenção desse imposto como previsto no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE”.
Para sustentar a sua conclusão de que deveriam beneficiar de isenção de IMT, os requerentes invocam a jurisprudência do STA que, segundo eles, proferiu, pelo menos, dois acórdãos face aos quais o n.º 2 do artigo 270.º do CIRE abrange não apenas a venda de uma empresa ou de um estabelecimento desta, enquanto universalidades de bens, mas também a venda isolada dos elementos do seu ativo, desde que, em qualquer dos casos, tais vendas estejam integradas, além doutros atos, no âmbito da liquidação da sua massa insolvente.
Da análise que fazem dos acórdãos invocados, através de várias transcrições, os autores apresentam os argumentos e a fundamentação que aqueles utilizaram para concluir pela aplicabilidade da norma em apreço a transmissões idênticas à sua, chamando a atenção, nomeadamente e com base no acórdão de 30/05/2012, processo 0949/11, para os termos do preâmbulo do CIRE onde se declara que este novo Código mantinha no essencial os mesmos benefícios fiscais que o anterior Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e de Falência (CPEREF) onde, em norma equivalente, era consignada a isenção da Sisa para a transmissão dos elementos do activo da empresa, invocando também a Lei de autorização legislativa n.º 39/2003, de 22 de Agosto, que autorizava o Governo a aprovar o CIRE e a isentar de Sisa a “venda, permuta ou cessão da empresa, estabelecimento ou elementos dos seus activos”.
Ora, continuam os requerentes, uma vez que o Governo restringiu a amplitude da autorização legislativa que lhe tinha sido concedida violou uma lei da Assembleia da República, o que faz com que “a interpretação do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE no sentido de que não isenta de IMT a venda dos activos da empresa tornaria esse preceito inconstitucional, designadamente por violação do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa”.
Seguidamente os requerentes invocam o acórdão de 17/12/2014, processo 01085/13, do qual transcrevem alguns trechos, mormente um que afirma que “não se consegue conceber que haja bens que integrando a massa insolvente de uma empresa declarada insolvente possam ser integrados numa categoria de bens sem qualquer relação com essa empresa ou estabelecimento” o que lhes permite concluir que “é manifesto que a venda de um imóvel pertencente ao activo de uma empresa insolvente praticada no âmbito da liquidação da respectiva massa falida está sempre isenta de IMT”.
3. Resposta da autoridade requerida
Por sua vez a Requerida, na sua Resposta, defende a legalidade das liquidações impugnadas contrapondo que o n.º 2 do artigo 270.º do CIRE não se aplica às transmissões isoladas de imóveis ainda que os referidos imóveis tenham integrado o património de uma empresa declarada insolvente.
Para sustentar a sua posição a requerida invoca o teor literal do preceito em causa, que refere expressamente que se aplica a “atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta (…)”, invoca a comparação com a redacção do artigo 121.º, n.º 2, do anterior Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e de Falência (CPEREF) que, ao contrário do CIRE, fazia referência tanto às transmissões de bens imóveis provenientes da autonomização jurídica da empresa ou do estabelecimento como à venda, permuta ou cessão dos elementos do activo da empresa, concluindo assim que ao contrário do que acontecia com o CPEREF, o legislador do CIRE, como decorre claramente da literalidade do preceito, pretendeu beneficiar apenas os casos em que a própria transmissão permitia que fosse assegurada a continuidade da atividade empresarial ou de uma parte dela.
Quanto ao argumento da violação da lei de autorização legislativa constante no artigo 9.º, n.º 3, alínea c), da Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto, a Requerida, reconhecendo embora que a mesma dava amplitude ao Governo para isentar, além doutras operações, a venda isolada de bens da empresa, observa que nada impedia que o Governo utilizasse apenas parcialmente essa autorização limitando a isenção à transmissão da empresa ou de um seu estabelecimento.
Além do mais, continua a Requerida, a questão da invocada violação da lei de autorização legislativa está já ultrapassada dado que o artigo 234.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, deu nova redação ao n.º 2 do artigo 270.º do CIRE reafirmando, quanto à questão em apreço, a redação que o CIRE tinha dado ao mesmo preceito no âmbito da referida autorização, ou seja, o de que a isenção de IMT abrange apenas a venda, a permuta e a cessão da empresa ou de estabelecimentos desta, excluindo a venda isolada dos seus ativos.
4. Saneamento
O tribunal arbitral é materialmente competente e foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
Uma vez que o processo não enferma de nulidades e não foram levantadas quaisquer questões que obstem à apreciação do mérito da causa estão reunidas as condições para ser proferida a decisão arbitral.
II. Fundamentação
1. Matéria de facto
Compulsando os documentos juntos por requerentes e requerida dá-se por provada a matéria de facto relevante, não contestada por qualquer das partes, a saber, que a transmissão que deu origem às liquidações impugnadas foi titulada por escritura pública celebrada no dia 29 de Janeiro de 2015, fls. 34 a 37, Livro ...-..., Cartório Notarial ..., a qual teve por objeto a compra conjunta da fração autónoma designada pela letra G, 3.º andar direito, do prédio urbano situado na ..., n.º ..., inscrito sob o artigo ... da matriz predial urbana da freguesia da ..., concelho de Lisboa.
A referida fração autónoma foi adquirida no âmbito da liquidação da massa insolvente da empresa “C..., Lda”, declarada insolvente conforme processo n.º .../13...., que correu termos no tribunal da Comarca de Lisboa, tendo a escritura sido outorgada, do lado da venda, pela administradora da insolvência daquela sociedade comercial.
Os requerentes juntaram cópia de uma exposição escrita, datada de 26 de Janeiro de 2015, que terão apresentado junto dos serviços da AT a solicitar a isenção de IMT pela aquisição supra identificada, invocando já a jurisprudência do STA, tendo terminado essa exposição a dizer que “caso se entenda não estarem isentos de IMT por esta aquisição, requerem a liquidação do respetivo imposto, conforme modelo 1 agora também entregue, sem prejuízo do pedido de reembolso do imposto que venha a ser pago”.
Foi igualmente provado no processo que as Declarações modelo 1 foram apresentadas pelos requerentes em 2015-01-27, data em que foram emitidas as liquidações de IMT ora impugnadas as quais foram pagas voluntariamente nessa mesma data pelos requerentes.
2. Matéria de direito
Nos presentes autos, bem como na jurisprudência invocada, está em causa saber se a isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE comporta, nas condições aí referidas, apenas a transmissão de imóveis integrados na alienação da própria empresa insolvente ou de qualquer estabelecimento desta ou se, para além desses atos, a simples transmissão isolada de qualquer imóvel dessa empresa, como acontece na situação em apreço nos presentes autos, também deve ser abrangida pela isenção.
Vejamos antes de mais o teor do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE:
“2 — Estão igualmente isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente”.
Desde já se observa que a atual redação acabada de transcrever foi introduzida pelo artigo 234.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (Lei do OE para 2013), sendo ligeiramente diferente a redação em vigor aquando da prolação do acórdão de 30/05/2012, invocado pelos requerentes como suporte do pedido e que infra analisaremos, a qual que era do seguinte teor:
“2 — Estão igualmente isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de planos de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente”.
Como se pode observar o citado artigo 234.º da Lei n.º 66-B/2012 alargou apenas a aplicação da isenção de IMT às transmissões operadas nos atos de recuperação da empresa, que a anterior redação não contemplava, mantendo o restante teor do preceito em causa.
Não obstante, como infra assinalaremos, esta nova redação teve um outro efeito significativo em matéria da aplicabilidade do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, na medida em que após a sua entrada em vigor veio sanar a eventual inconstitucionalidade orgânica assacada ao preceito pelos requerentes, tornando irrelevante qualquer argumento que se pretendesse invocar para o caso em apreço proveniente desse vício.
Com o devido respeito desde já se adianta que a presente decisão arbitral não vai acompanhar a interpretação acolhida pelos doutos acórdãos invocados pelos requerentes para sustentar a sua pretensão.
Desde logo porque o próprio teor dos referidos acórdãos revela ou assume mesmo algumas dúvidas e hesitações sobre a melhor interpretação que deve ser dada ao n.º 2 do artigo 270.º do CIRE em análise, razão pela qual, no nosso modesto entender, se pode justificar uma reapreciação da problemática em causa.
Vejamos, a começar, a fundamentação utilizada no acórdão de 30-05-2012, processo n.º 0949/11.
A sentença recorrida que foi objeto do douto acórdão acabado de citar tinha decidido que embora a redação do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE “seja ambígua, propiciando a interpretação de que tanto a venda como a permuta conjuntamente com a cessão, estejam reportadas à empresa ou a estabelecimento desta, tal interpretação deve ser postergada sob pena de se concluir que a ser assim haveria uma tautologia inexplicável, pois a cessão da empresa (ou do estabelecimento) mais não é do que a sua venda, julgando, pois, que a única interpretação plausível do referido preceito é a que o entende como reportando a isenção aos actos de venda e permuta dos próprios imóveis (…)”.
Confirmando a sentença recorrida, o acórdão do STA em apreço, depois de transcrever a redação do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE então em vigor, acrescenta que está em causa “decidir se a norma deve ser interpretada no sentido em que quer a venda, quer a permuta, quer a cessão, ainda que integrados no âmbito de plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente, para que isentas de IMT, terão de ter por objeto necessário a empresa ou estabelecimento desta ou se, como decidido (na sentença recorrida), a referência à empresa ou estabelecimento desta se refere apenas à cessão, estando compreendidos no âmbito da isenção de IMT também as vendas e permutas de imóveis integrados no âmbito de plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente”.
De seguida, reconhecendo que a letra da lei pode apontar em sentido diferente daquele que foi decidido, continua o acórdão a dizer que “em face da letra da lei, quer uma, quer outra das interpretações são defensáveis, afigurando-se contudo, gramaticalmente mais correta a sustentada pela administração tributária, pois que os termos vender, permutar e ceder são todos eles verbos transitivos, daí que na frase a referência à empresa ou estabelecimentos desta surgisse como complemento direto de todos três”.
Abandonando a solução que decorre da literalidade da norma, este acórdão pondera outros elementos interpretativos e encaminha-se para uma solução diferente nos seguintes termos: “Esta interpretação choca, contudo – como bem observado na sentença recorrida – com aquilo que o legislador consignou no n.º 49 do preâmbulo do CIRE” onde ficou consignado que o novo Código (o referido CIRE) mantinha o anterior regime de benefícios fiscais sendo que, face ao artigo 121.º do anterior Código, a isenção de sisa abrangia as transmissões de “elementos do ativo da empresa”.
Além deste argumento, o texto do acórdão invoca ainda “o sentido e extensão da autorização legislativa concedida ao Governo ao abrigo do qual foi aprovado o CIRE” em que constava a possibilidade da isenção abranger a venda, permuta ou cessão da empresa, estabelecimento ou elementos dos seus ativos”.
Porém, antes da decisão final, o douto acórdão em análise rebate os seus próprios argumentos e reconhece que os preâmbulos dos diplomas nem sempre espelham com rigor o respetivo conteúdo e que não tem que haver coincidência entre eles e o articulado, aceitando, por outro lado, que o Governo poderia ter sido mais parcimonioso do que a Assembleia da República quanto à amplitude da isenção reconhecendo-a apenas à transmissão da empresa ou do seu estabelecimento.
Algo contraditoriamente com a reflexão antecedente, o texto deste douto acórdão volta de seguida a valorizar o argumento extraído da desconformidade entre a lei de autorização e o CIRE dizendo que o Governo não respeitou “o sentido e extensão da autorização legislativa que lhe foi concedida, tendo legislado em matéria reservada à assembleia da República em desrespeito da credencial parlamentar que lhe foi conferida”, e termina à laia de conclusão síntese para sustentar a decisão de negar provimento ao recurso dizendo que “É por essa razão fundamentalmente que se entende que a decisão recorrida (sentença) não merece censura, pois que sendo embora duvidoso que o legislador ordinário do CIRE tenha pretendido conferir à isenção de Sisa/IMT prevista no n.º 2 do seu artigo 270.º o mesmo âmbito que tinha a anterior isenção de Sisa prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 121.º do CPEREF, a opção do sentido da sua restrição não lhe era consentida, pois que em matéria de benefícios fiscais legisla em domínio reservado à Assembleia da República, havendo que respeitar os limites que esta lhe fixe, designadamente os respeitantes ao sentido e extensão da autorização”.
Quanto ao processo 01085/13, onde foi proferido o Acórdão do STA de 17.12.2014, igualmente invocado na petição dos requerentes, teve por objeto julgar uma situação tributária semelhante à que constituiu objeto do douto acórdão supra analisado e foi instaurado com base num recurso deduzido pela Fazenda Pública contra uma sentença que também reconheceu que a isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE se poderia aplicar à transmissão isolada de um prédio alienado no âmbito da liquidação da massa insolvente de uma empresa.
Sobre este douto arresto haverá que observar, em primeiro lugar, que, ao contrário do anterior, este acórdão foi proferido já no domínio de vigência da nova redação do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE dada pelo artigo 234.º da Lei 66-B/2012 a que supra se fez referência, o que tornaria irrelevante a invocação do desrespeito do conteúdo da lei de autorização legislativa feita por remissão para o acórdão de 30 de Maio de 2012, face à desconformidade entre aquela lei e o texto do CIRE publicado pelo Governo no uso da mesma.
Porém, não foi este o fundamento essencial invocado por este acórdão para julgar improcedente o recurso e para considerar que a isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE é aplicável à transmissão de um imóvel realizada na fase da liquidação de um processo de insolvência, neste caso com a especificidade de ser o único que integrava a massa insolvente.
Este acórdão, embora também tenha salientado a ambiguidade do texto do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, considerou que o mesmo poderia ser “objeto de uma leitura mais clara e inequívoca sem recurso a qualquer interpretação extensiva”, acrescentando, para chegar a esta conclusão, que “basta que nos interroguemos se para alcançar o fim antes definido – fomentar a apoiar a venda rápida dos bens que integram a massa insolvente por óbvias razões do interesse dos credores, mas, também do interesse público de retoma do normal funcionamento do mundo empresarial em que cada processo de insolvência se apresenta como elemento perturbador dando um bónus (fiscal) a quem adquirir os bens imóveis que integram a massa insolvente – se faz alguma diferença que se esteja a vender globalmente a empresa com todo o seu ativo e o passivo, que se esteja a vender um ou mais dos estabelecimentos comerciais que a integravam, que se esteja a vender bens que integravam o seu património mas não eram utilizados no seu giro comercial, como seria por exemplo o caso de um imóvel recebido em pagamento de uma dívida de que a empresa insolvente era credora, para que se esteja perante uma venda que é praticada no âmbito da liquidação da massa insolvente?”.
Acrescenta o texto do douto acórdão que a resposta àquela questão “não pode deixar de ser negativa”, concluindo a seguir que o n.º 2 do artigo 270.º do CIRE deve ser interpretado respeitando o seu texto, sem necessidade de qualquer interpretação extensiva, devendo conferir-se relevância ao “fim que visa alcançar” tendo em conta “as diversas variantes do processo de insolvência”.
Assim, decidiu-se neste acórdão que o citado preceito legal confere isenção de IMT a qualquer venda (seja de que bem for), a qualquer permuta (seja de que bem for), e também à cessão da empresa ou de estabelecimento desta, desde que qualquer um daqueles atos seja praticado no âmbito da liquidação da massa insolvente.
Como já acima indicámos não concordamos com esta “leitura” da norma em causa, como passamos a desenvolver.
Determina o artigo 10.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais que “as normas que estabelecem benefícios fiscais não são suscetíveis de integração analógica, mas admitem interpretação extensiva”.
Este preceito legal, em linha com o artigo 11.º da Lei Geral Tributária, confirma a posição que é hoje pacífica na própria lei, na doutrina e na jurisprudência de que na interpretação das normas fiscais devem ser observadas as regras e princípios gerais de interpretação, com assento legal no artigo 9.º do Código Civil, sem prejuízo da proibição da analogia quando estejam em causa normas atinentes aos elementos essenciais do imposto.
Uma das primeiras regras gerais de interpretação prende-se com a literalidade da norma a interpretar segundo a qual não pode ser considerado pelo intérprete um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso.
Diz o n.º 2 do artigo 270.º do CIRE que “estão isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente”.
Desde logo haverá que ter em conta que o conteúdo e alcance das expressões que nesta norma se referem à sua componente tributária, conexa com o imposto sobre as transmissões de bens imóveis, devem ser procurados à luz das normas de incidência do respetivo Código (CIMT).
Ora, uma das regras gerais de incidência do CIMT é a de que havendo a transmissão efetiva, material, de um prédio, no sentido em que o mesmo seja transferido entre dois patrimónios juridicamente autónomos, mediante o pagamento de um preço, deixa de ser tão relevante a denominação que possa atribuir-se à operação ou ao título translativo utilizado, tanto podendo ocorrer no âmbito de um contrato de compra e venda formalizado nos termos da lei civil, através de um contrato promessa com tradição dos bens, através de uma procuração irrevogável, de uma cedência de posição contratual, através de uma permuta, de uma dação em pagamento, de uma operação de cisão ou fusão de sociedades, de aquisição de partes sociais ou de quotas de determinadas sociedades titulares de bens imóveis quando algum sócio fique a dispor de 75% do capital social, de cessão de partes sociais ou de quotas de sociedades civis na parte em que haja sócios a adquirir comunhão de imóveis, entre outras transmissões previstas nas normas de incidência daquele Código (vd. artigos 1.º a 3.º do CIMT).
Muitas vezes, quer a linguagem doutrinária, quer a jurisprudência e até as normas avulso, mormente as que tipificam benefícios fiscais, refletem esta variedade de transmissões reais ou ficcionadas, utilizando indistintamente, e às vezes até com alguma redundância e falta de rigor, diversas denominações como, por exemplo, venda, alienação, compra e venda, permuta, cessão, tudo expressões que visam captar os vários tipos de transmissão fiscal sujeita a IMT (vd., entre outras publicações, Os Impostos sobre o Património Imobiliário, anotações aos artigos 1.º a 3.º do CIMT, por J. Silvério Mateus e L. Corvelo de Freitas, publicação Engifisco).
É o que se passa no preceito em análise que utiliza as expressões “venda”, “permuta” e “cessão” sem fazer qualquer distinção entre cada uma delas, sem as enquadrar nem referenciar às situações de incidência do CIMT e também sem esgotar as diversas formas translativas previstas no Código que podem operar transmissões sujeitas a este imposto, razões que, entre outras, terão levado os acórdãos supra analisados a fazer referências à pouca clareza, à falta de rigor e à ambiguidade com que a norma em causa é redigida.
Podendo mesmo afirmar-se que o legislador do CIRE, inseguro quanto à melhor expressão que deveria utilizar para tipificar as realidades que pretendia abranger pela isenção do citado n.º 2 do artigo 270.º, em vez de uma utilizou três expressões esperando que assim correria mesmo risco de falhar o efeito pretendido.
Para terminar a análise desta componente literal da norma em causa não podemos deixar de acompanhar uma das constatações do acórdão de 30-05-2012 já acima analisado que admite como gramaticalmente mais correta a posição sustentada pela administração tributária, pois que os termos vender, permutar e ceder são todos eles verbos transitivos e, sendo assim, a referência à empresa ou estabelecimentos desta surge como complemento direto dos referidos verbos.
Mas, para se atingir o verdadeiro sentido e alcance de uma norma devem ser considerados outros elementos interpretativos, como seja, o elemento racional ou lógico, o elemento sistemático e o elemento histórico (vd. Manuel de Andrade, in Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 8.ª Edição, Arménio Amado-Editor, Coimbra 1978).
Em termos do elemento racional deve considerar-se que toda e qualquer norma foi criada com uma determinada finalidade e que, consequentemente, deve ser entendida no sentido que melhor responda ao resultado que se pretendeu alcançar.
Segundo o acórdão de 17-12-2014, o n.º 2 do artigo 270.º do CIRE deve ser visto como um desentrave e apoio à venda rápida dos bens que integram a massa insolvente “por óbvias razões do interesse dos credores mas também do interesse público da retoma do normal funcionamento do mundo empresarial em que cada processo de insolvência se apresenta como elemento perturbador”.
Não se discordando que possa atribuir-se esta finalidade à norma em apreço, a verdade é que esta finalidade não deixa de estar presente se se considerar que a mesma abrange apenas a transmissão da empresa como um todo ou a transmissão de um determinado estabelecimento da mesma.
Pode dizer-se, é verdade, que quanto mais abrangente fosse o benefício, ou seja, se em vez de abranger apenas a transmissão da empresa ou de um estabelecimento desta se também se aplicasse à transmissão isolada de qualquer ativo imobiliário da empresa insolvente que o incentivo seria maior.
Isso é verdade. Porém, a interpretação sobre o que está ou não abrangido não pode fazer-se em função de máximos ou mínimos, em função do grau de apoio ou incentivo que pode conferir à proteção dos credores ou do mundo empresarial.
Esse grau só a própria lei o poderia determinar, não o intérprete, e no caso em apreço nada permite concluir que o benefício fiscal se deve aplicar a toda e qualquer transmissão dos bens da empresa insolvente ou sequer que o legislador ou a própria lei quisessem esse resultado.
Quanto ao elemento sistemático, a confrontação do n.º 2 do artigo 270.º com outras disposições do CIRE sobre benefícios fiscais pode também ajudar a percecionar o sentido e alcance desta norma.
Neste tocante, o que vemos é que nos artigos 268.º, 269 e n.º 1 do artigo 270.º estão previstos benefícios fiscais nos domínios da tributação do rendimento, do imposto do selo e do imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis, podendo constatar-se que, no que toca à transmissão de imóveis, há duas operações comuns a todas estas normas e que são a “dação de bens em cumprimento” e a “cessão de bens aos credores” (vd. n.º 1 do artigo 268.º, alínea d) do artigo 269.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 270.º).
Ainda no domínio das operações que podem envolver imóveis a alínea e) do artigo 269.º prevê a isenção de imposto de selo para “a venda, permuta ou cessão de elementos do ativo da empresa” e as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 270.º preveem a isenção de IMT para as transmissões conexas com a constituição de novas sociedades e com a realização do seu capital social e também as transmissões que visem o aumento do capital social da sociedade devedora.
Constata-se assim que estas situações abrangidas pelos benefícios fiscais estão claramente formuladas e devidamente delimitadas para determinados tipos de operações e que, no caso da alínea e) do artigo 269.º, no domínio do imposto de selo, a norma é bem clara e expressa ao abranger a “a venda, permuta ou cessão de elementos do ativo da empresa” sem que haja qualquer dúvida, no plano gramatical, de que os verbos vender, permutar e ceder têm como complemento direto apenas e só os elementos do ativo da empresa.
Ou seja, perante a clareza da redação deste preceito, não faria qualquer sentido, seja qual for o elemento interpretativo que se possa invocar, que as expressões “venda” e “permuta”, tal como a “cessão”, não se referissem aos “elementos do ativo da empresa”.
Assim, estando-se perante a mesma construção gramatical quanto aos verbos utilizados, constata-se que não existe coincidência entre o complemento utilizado na norma referente ao imposto de selo, que são os elementos do ativo da empresa, e o complemento constante no n.º 2 do artigo 270.º em matéria de IMT, em que apenas estão previstos os atos de “venda”, de “permuta” e de “cessão”, não de qualquer ativo de uma empresa, mas antes da própria empresa ou de qualquer dos seus estabelecimentos.
O que permite concluir que, diferentemente de outras normas em que o fim prosseguido com os benefícios fiscais foi diverso, o legislador privilegiou aqui a alienação do conjunto dos ativos da empresa insolvente ou de qualquer dos seus estabelecimentos tendo em vista proteger a sua continuação e a sua laboração noutra titularidade.
O elemento histórico pode também estar presente com a análise da evolução das normas que antecederam a versão atual do preceito em análise.
E, neste tocante, o que se constata é que o CIRE foi aprovado ao abrigo da Lei de autorização legislativa n.º 39/2003, de 22 de Agosto, que autorizava o Governo a “isentar de imposto municipal de sisa (antecedente do IMT) a venda, permuta ou cessão da empresa, estabelecimento ou elementos dos seus ativos”, tendo o mesmo utilizado parcialmente tal autorização ao isentar apenas a venda, permuta ou cessão da empresa e dos seus estabelecimentos, excluindo a venda, permuta ou cessão dos seus ativos enquanto tais.
Ora, ao utilizar apenas parcialmente a referida autorização legislativa, o Governo poderia ser acusado, como se fez consignar no acórdão de 30/05/2012 e como os requerentes invocaram na sua fundamentação, de não ter “respeitado o sentido e extensão da autorização legislativa que lhe foi concedida, tendo legislado em matéria reservada à Assembleia da República em desrespeito da credencial parlamentar que lhe foi concedida”.
Não vamos entrar na apreciação desta argumentação que apenas poderia fazer algum sentido quando foi proferido o acórdão de 30/05/2012 mas que, depois da publicação do artigo 234.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, deixou de ter qualquer relevância uma vez que a própria Assembleia da República, ao manter, nessa parte, a redacção do n.º 2 do artigo 270.º que o Governo lhe tinha anteriormente dado, sanou, pelo menos para o futuro, qualquer vício e qualquer objeção que se pudesse imputar à publicação inicial da norma em causa.
Sendo assim, se alguma conclusão há a retirar da evolução histórica da redacção do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE é a de que, pelo menos depois da lei 66-B/2012, o ato de alienação isolada dos ativos imobiliários de uma empresa insolvente não beneficia da isenção de IMT prevista no citado preceito legal, sendo óbvio que esse tipo de atos não foi acolhido na versão em vigor à data em que ocorreu a transmissão que deu origem às liquidações impugnadas.
A terminar não deixa de se aludir a outro acórdão do STA, também invocado pelos requerentes na petição inicial, que versou a matéria da aplicabilidade do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE a uma alienação em que a insolvente era uma pessoa singular.
Referimo-nos ao acórdão do STA de 03-07-2013, processo 0765/13, em que estava em causa a questão de saber se aquele n.º 2 do artigo 270.º do CIRE poderia também aplicar-se à venda de um prédio operada no âmbito de um processo de insolvência em que o insolvente era uma pessoa singular, tendo sido decido em sentido negativo, sem que tivesse deixado de se reconhecer a falta de clareza daquela norma quanto “ao âmbito da isenção de IMT aí consignada”.
Porém, nesse mesmo acórdão foi acrescentado, sendo essa a razão que terá levado os requerentes a invocá-lo, que “quando muito, o referido preceito pode interpretar-se como abrangendo não apenas as vendas da empresa ou estabelecimentos desta, enquanto universalidades de bens, mas também as vendas de elementos do seu ativo, desde que integradas no âmbito de plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente”.
Sendo que no referido acórdão não estava em causa analisar a amplitude da norma quanto à sua aplicabilidade à alienação isolada de ativos imobiliários de uma empresa, a verdade é que, com o devido respeito, estamos perante uma afirmação que não é coerente com a conclusão e com a decisão do próprio acórdão.
Com efeito, face à letra da norma e à ausência de qualquer referência expressa a pessoas singulares concluiu-se sem hesitação que a isenção consignada no referido preceito legal não é aplicável à alienação de prédios quando o insolvente é uma pessoa singular, mas perante a mesma ausência de qualquer referência literal para sustentar a sua aplicação à alienação de ativos não integrados na alienação da empresa ou dos seus estabelecimentos já não se hesitou em integrar essa lacuna e considerar que as vendas de elementos do ativo da empresa também lá poderiam caber.
Por outras palavras, se se aceita que o preceito em causa pode interpretar-se no sentido em que as expressões “venda” e “permuta” não se referem apenas à alienação da empresa ou dos seus estabelecimentos, podendo abranger qualquer venda e qualquer permuta operada no âmbito dos atos processuais e nos processos indicados pela norma, como foi entendido nos acórdãos de 30-05-2012 e de 17.12.2014, então também não faria sentido excluir a sua aplicação à insolvência das pessoas singulares, como foi decidido no acórdão de 03-07-2013.
Ao concluir pela inaplicabilidade da isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE aos atos de venda de prédios quando a insolvente é uma pessoa singular, com o que se concorda, a decisão proferida no acórdão de 03-07-2013, ao menos implicitamente, reconheceu prevalência à literalidade da norma que prevê que só os atos de “venda”, de “permuta” ou de “cessão” de empresas ou dos seus estabelecimentos é que aí estão contemplados.
Improcede igualmente a invocada nulidade por falta de fundamentação das liquidações impugnadas dado que, além dos requerentes não terem indicado que norma ou normas consideram violadas, constata-se antes que a AT se limitou a satisfazer pedidos de liquidação de IMT que lhe foram apresentados, sendo que as próprias liquidações têm subjacente o entendimento de que à transmissão em causa não se aplicava a isenção prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE.
Decisão
Nestes termos, o tribunal arbitral decide julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) números ... e ..., nos montantes, respetivamente, de € 5184,25 e € 8856,43, condenando os requerentes em custas.
Valor do Processo
Face ao determinado no n.º 2 do artigo 315.º do CPC, na alínea a) do n.º 1 do artigo 97-A do CPPT e no n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 14.040,68.
Custas
Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 12.º e no n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, bem como no n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa a este Regulamento, fixam-se as custas em € 918,00 (novecentos e dezoito euros), a suportar integralmente pelos requerentes.
Notifique-se
Lisboa, 21 de Outubro de 2015.
O árbitro,
(Joaquim Silvério Dias Mateus)