Decisão Arbitral
CAAD: Arbitragem Tributária
Processo nº 105/2015-T
Tema: Imposto de Selo – Usucapião
REQUERENTE: A
REQUERIDA: AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
I – RELATÓRIO
A) As Partes e a Constituição do tribunal Arbitral
1. A, contribuinte nº …, residente na Calçada …, nº …, …, …, …, Lisboa, doravante designada por “Requerente”, notificado da decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa, requereu a constituição de Tribunal Arbitral singular, ao abrigo do disposto no artigo 2º, nº 1, a alínea a) e 10º, nº 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante designado por “RJAT” e da Portaria nº 112 – A/2011, de 22 de Março, para impugnar esse indeferimento parcial, e obter a declaração de ilegalidade da liquidação de Imposto de Selo (IS), juntas como documentos nºs 1e 2 em anexo ao pedido arbitral, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos efeitos legais, no montante global a pagar de €5.459,85.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, foi apresentado pelo Requerente em 18-02-2015, foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 20-02-2015 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA) nessa mesma data.
3. O Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no nº1 do artigo 6º do RJAT, foi designada, em 13-04-2015, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa a ora signatária como árbitro singular. A nomeação foi aceite e as partes notificadas da designação do árbitro, não tendo manifestado a vontade de recusar a designação.
4. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c), do nº 1, do artigo 11º, do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro (RJAT), o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 28-04-2015. A AT foi notificada na mesma data para apresentar resposta no prazo legal, nos termos e para os efeitos do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 17º do RJAT,
5. A ATA apresentou a sua resposta em 01-06-2015, a qual se dá por integralmente reproduzida. Juntou, ainda, o respetivo processo administrativo (PA). Em 01-06-2015 o Requerente juntou aos autos requerimento para ampliação do pedido, juntando comprovativo de pagamento de mais uma prestação do imposto. Foi notificada a Requerida para se pronunciar e aceite a junção aos autos do referido requerimento e documento anexo. Consultadas as partes intervenientes no processo, foi proferido despacho arbitral dispensando a realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT. Por despacho arbitral de 02-07-2015 foi dispensada a realização da reunião e fixado prazo para alegações das partes e prolação da decisão arbitral até 25-10-2015. Foi ainda advertida o Requerente para, até àquela data, proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente.
6. Não há divergência entre as partes quanto aos factos invocados pelo Requerente nem quanto aos documentos juntos, mas tão só quanto à interpretação do direito aplicável.
B) DO PEDIDO FORMULADO PELA REQUERENTE:
7. O Requerente formula o presente pedido de pronúncia arbitral, não se conformando com o indeferimento parcial da reclamação graciosa deduzida e, em consequência, o ato de liquidação de imposto de selo sobre aquisição por usucapião, emitida com o nº…, junta em anexo ao pedido arbitral como documento nº1 e 2, pugnando pela ilegalidade, com a consequente anulação, das liquidações de Imposto de Selo, cujo valor presume o Requerente se situe entre 1.819,95 e €5.459,85, considerando o disposto no artigo 45º, nº2 do Código de Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), ex vi artigo 13º do Código de Imposto do Selo (CIS). Tendo em conta que a reclamação graciosa foi deferida parcialmente, dando acolhimento à alegação do Requerente, segundo a qual o Valor Patrimonial Tributário de referência para a liquidação de IS a existir (porque que ele entende não ser devida) deveria incidir sobre o valor do terreno e não sobre o valor de todo o prédio edificado.
8. A liquidação originária foi reapreciada e alterada em sede de reclamação graciosa, como resulta da análise do PA junto aos autos, nomeadamente de todos os elementos constantes do procedimento de Reclamação Graciosa deduzida pelo Requerente, com o nº …2014…, a qual foi considerada parcialmente procedente, conforme Despacho do Serviço de Finanças, de 28-11-2015, pelo que se dá por integralmente reproduzidos todos os documentos constantes juntos pelo Requerente aos presentes autos e os constantes do PA junto pela ATA.
Em síntese, o Requerente fundamenta o seu pedido, alegando o seguinte:
9. O Requerente impugna a decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa e pugna pela ilegalidade do ato de liquidação subsistente, ou seja, a parte de imposto do selo sobre aquisição por usucapião, na parte ainda não anulada. Alega que a parte do ato subsistente não é possível de quantificar com exatidão, já que está em causa imposto do selo sobre aquisição por usucapião de um imóvel que teve por base tributável o valor patrimonial tributária da construção erguida entretanto sobre o mesmo, a saber, € 121.330,00. Em sede de reclamação graciosa foi deferida a pretensão subsidiária de que o valor patrimonial tributário fosse apenas o valor do terreno para construção, e consequentemente esta última, foi reduzida para um valor entre 15% e 45% do valor patrimonial tributário da construção em conformidade com o disposto no artigo 45.º, n.º 2, do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) ex. vi. artigo 13.º do Código do Imposto do Selo - CIS). Conclui que, assim sendo, a liquidação deste imposto se fixará entre € 1.819,95 e € 5.459,85, e que só após a execução do deferimento parcial da reclamação graciosa se saberá ao certo.
10. Alega que não pode haver lugar a Imposto do Selo por usucapião quando para efeitos fiscais a aquisição do imóvel já se tinha dado como efetuada e já tinha sido tributada. A tributação em sede de Imposto do Selo por usucapião defronta-se neste caso com um ilogismo, uma impossibilidade lógica, visto que, se foi considerado pela lei tributária que houve uma aquisição (onerosa) para efeitos fiscais em 1979 (desencadeada – e como tal tributada – por contrato promessa com tradição do imóvel), não pode esta mesma lei tributária voltar a considerar que existe para efeitos fiscais novamente uma aquisição (agora gratuita), em 2013, do mesmo imóvel, pelo mesmo sujeito, sujeita a uma segunda tributação, agora Imposto de Selo (IS).
11. Segundo o Requerente, tal perspetiva equivale a defender que houve duas aquisições no plano fiscal do mesmo bem, o que, para além de ilógico e atentatório do princípio do legislador razoável e minimamente coerente, ofende o princípio da justiça e viola, além disso, o princípio que se retira da norma de coordenação entre o Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões onerosas de Imóveis (o CIMT, que sucedeu ao Código da Sisa) e o Código do Imposto do Selo (CIS) em sede de transmissões gratuitas: o princípio da não aplicabilidade sobreposta destes dois impostos, que só são de aplicar simultaneamente quando o negócio seja misto (um misto de oneroso e gratuito) e mesmo aí com a sujeição a adequada segregação das partes gratuita e onerosa da aquisição do imóvel para efeitos de incidência dos dois impostos sem sobreposições (cfr. artigos 3.º, 12.º e 13.º, do CIMT, e artigo 19.º do CIS).
12. Alega, ainda, que segundo o artigo 5.º, n.º 2, do CIMT, conjugado com a alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º do CIMT, a aquisição ocorreu fiscalmente em 1979, ano em que por esse facto (aquisição fiscal do bem), o adquirente pagou o devido imposto de Sisa (então previsto no, equivalente, 2.º do §1º do artigo 2.º do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações – CIMSISD), acrescido de juros compensatórios pelo atraso na promoção dessa liquidação de imposto. Logo, é uma contradição sistemática inaceitável considerar-se que tal transmissão que já ocorreu no plano fiscal, voltou a ocorrer, no mesmo plano fiscal (e com base nisso voltar a tributar), aquando da escritura de justificação notarial.
13. Em suma, o imóvel considera-se presente na esfera patrimonial do requerente desde 1979, de acordo com a avaliação dos factos e aplicação da lei feita oportunamente pela lei fiscal e pela aplicação que dela fez a AT, que por essa aquisição ocorrida em 1979, da qual tomou conhecimento em 1986 com a declaração de inscrição na matriz efetuada pelo Requerente, liquidou Sisa e respetivos juros compensatórios (contados desde 1979 até 1986), os quais foram integralmente pagos. O reconhecimento do Requerente como proprietário, à luz das regras fiscais aplicáveis, ocorre desde 1979. Além do que, tem vindo a liquidar o IMI devido (e anteriormente contribuição autárquica). Não é, pois, possível, agora, fazendo-se de conta que essa aquisição não existiu e não desencadeou imposto, pretender que para efeitos fiscais a aquisição teria (contraditoriamente) ocorrido em 2013 (por força da escritura de justificação notarial), donde resulta a ilegalidade desta liquidação, agora, de imposto do selo por aquisição.
14. Por tudo isto, o indeferimento parcial padece de ilegalidade e bem assim as consequentes liquidações de imposto de selo, impondo-se a sua anulação total e a condenação da ATA no reembolso de todas as quantias pagas acrescidas de juros compensatórios à taxa legal até integral pagamento.
C – A RESPOSTA DA REQUERIDA
15. A Requerida ATA, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta na qual, por exceção e por impugnação, alegou, em síntese, que os serviços da ATA ao decidirem como decidiram pelo deferimento parcial da reclamação graciosa decidiram em conformidade com a lei expurgando a liquidação reclamada de qualquer ilegalidade.
16. Tal como decidiram os serviços da ATA, em sede de reclamação graciosa: “Contrariamente ao que pretende o reclamante, a questão em apreço nos presentes autos não se prende com a noção de aquisição, mas sim com a incidência objetiva de imposto de selo. (…) a matéria aqui versante prende-se com o facto de, no presente caso, o imposto de selo incidir, não sobre a transmissão, mas sim sobre o ato da escritura. Com efeito, o facto tributário da transmissão já foi sujeito a imposto em sede de SISA (atual IMT), na data devida. Porém, a escritura pública de justificação notarial de usucapião é um instrumento notarial sujeito a tributação em imposto de selo, ao abrigo do n°1 do artigo 1° do CIS: “O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis Independentemente do conteúdo do ato, quer seja uma transmissão ou outro, a incidência objetiva é o referido documento.”
17. Nesta conformidade, segundo a Requerida a decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa fez uma correta subsunção dos factos ao direito aplicável, porquanto, ao contrário do que defende o Requerente, o que está em causa nestes autos não é o conceito de aquisição mas sim uma questão de incidência objetiva do imposto do selo. In casu, o facto tributário que é objeto da tributação não é a aquisição, mas sim o ato notarial constituído pela escritura de justificação notarial que titula a aquisição por usucapião, i. é., a incidência objetiva é o próprio documento notarial em causa.
18. Acrescenta a ATA que, “com efeito, o facto tributário da transmissão já foi sujeito a imposto em sede de SISA (atual IMT), na data devida. Porém, a escritura pública de justificação notarial de usucapião é um instrumento notarial sujeito a tributação em imposto de selo, ao abrigo do n° 1 do artigo 1.° do CIS: “O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis Independentemente do conteúdo do ato, quer seja uma transmissão ou outro, a incidência objetiva é o referido documento.”
19. Conclui que a Direção de Finanças fez uma correta subsunção dos factos ao direito aplicável, porquanto, ao contrário do que defende o Requerente, o que está em causa nestes autos é uma questão de incidência objetiva do imposto do selo. O facto tributário que é objeto da tributação não é a aquisição, mas sim o ato notarial constituído pela escritura de justificação notarial que titula a aquisição por usucapião, i. é, a incidência objetiva é o documento notarial em causa.
20. Admite que, tal como alega o Requerente, o facto tributário da transmissão já foi sujeito a imposto em sede de SISA (atual IMT), na data devida. Aliás, o Requerente é, para quaisquer efeitos fiscais, pleno proprietário do prédio supra referido (a fls. 24 e 25 do PA) tanto assim é que, é ao Requerente que são emitidas as liquidações de IMI (a fls. 29 do PA). Mas, sendo a aquisição, o facto tributário objeto de tributação em imposto do selo, improcedem totalmente as alegações do Requerente quanto à suposta duplicação da tributação e à consequente, violação do princípio da justiça. Não existe, assim, qualquer duplicação do tributo, porquanto, o que foi tributado em 1979, por força da celebração do contrato promessa de compra e venda, acompanhado de tradição, foi a aquisição propriamente dita; já em 2013, está-se a tributar, o ato notarial da escritura de justificação. Assim sendo, o caso em apreço, não consubstancia uma situação de duplicação de coleta, na medida em que não se subsume no artigo 205.º do CPPT. A situação invocada pelo Requerente, a ter existido, consubstanciaria, isso sim, uma situação de dupla tributação.
21. Conclui que, não podem proceder as alegações expendidas pelo Requerente, porquanto não ocorreu qualquer duplicação de coleta, nem sequer, dupla tributação. Ainda que assim não se entenda a existir tributação do mesmo facto tributário em sede de SISA (atual IMT) e de IS, tal não configura uma tributação ilegal, ao contrário do que alega o Requerente, mas antes uma decisão de política legislativa, frequente e comum a outros casos sobre os quais a aquisição de bens é tributada em impostos diferentes. Pelo que, o indeferimento parcial da reclamação graciosa, não padece de qualquer ilegalidade, nem a liquidação de imposto de selo impugnada, pugnando pela improcedência do pedido arbitral.
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
22. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído. É materialmente competente, nos termos do artigo 2º, nº1, alínea a) do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro.
23. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (Cfr. 4º e 10º nº2 do DL nº 10/2011 e art. 1º da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março).
24. Quanto à ampliação do pedido, requerida pela Requerente por requerimento apresentado em 11 de junho de 2015, acompanhada do comprovativo de pagamento de mais uma prestação do imposto de selo, o Tribunal decidiu pela sua junção aos autos e ouvida a Requerida ATA, veio esta dizer nada ter a opor à junção, sendo certo não se justificar uma ampliação do pedido dado que o pedido inicial foi apresentado com referência ao valor total da liquidação de imposto, estando em causa apenas o pagamento da última prestação. Assim sendo não deve ser ampliado o valor do pedido inicialmente fixado no pedido arbitral em €5.459,85, o qual corresponderá ao valor total da liquidação de imposto, apesar do seu pagamento ser fracionado em prestações.
25. Assim, porque se trata somente da junção aos autos do comprovativo de pagamento de mais uma prestação do imposto de selo em discussão nos autos, admite-se a sua junção para efeitos de determinação dos efeitos da sentença, mantendo-se o valor do pedido em €5.459,85, tal como inicialmente fixado no pedido arbitral.
26. O processo não padece de vícios que o invalidem.
27. Tendo em conta o processo administrativo tributário, a prova documental junto aos autos, cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, que se fixa como segue.
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A) Factos Provados
28. Como matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:
a) O Requerente celebrou em 20-08-1979 contrato promessa de compra e venda, na qualidade de promitente-comprador da parcela de terreno, identificada nestes autos, e que viria a originar a liquidação de imposto de selo impugnada;
b) Desde essa data (20-08-1979) o Requerente tomou posse do terreno e nele exerceu todos os atos inerentes à sua condição;
c) Em 1985 obteve licença de construção para essa mesma parcela de terreno;
d) Em 1986 procedeu à inscrição do então lote … na matriz predial, pelo Serviço de Finanças de Lisboa …, tomou conhecimento do contrato promessa celebrado em 1979, com entrega imediata do prédio ao Requerente, que dele tomou posse
e) Em 1986, por via do descrito nas alíneas anteriores, foi liquidada SISA (e juros compensatórios contados desde 20-08-1979) ao Requerente, tendo como referencial a aquisição (fiscal) do terreno por força do contrato promessa celebrado em 1979, acompanhado de tradição do imóvel; (cfr. Docs.2 e 4 juntos ao PA)
f) O Requerente pagou os valores das liquidações de SISA e juros compensatórios; (cfr. Doc. 5 junto ao PA)
g) Nesta parcela de terreno foi edificado um prédio para habitação e em 1992 é declarado o fim das obras;
h) Desde essa altura têm sido liquidadas ao Requerente os correspondentes valores de Contribuição Autárquica e, posteriormente, de IMI; (Cfr. Docs. nºs 6, 7 e 8 juntos ao PA)
i) Foi esta edificação, que hoje consta da matriz, que serviu de base tributável para a liquidação de imposto do selo por usucapião aqui em causa. (Cfr. Doc. 11 junto ao PA)
j) Após a conclusão da edificação, o imóvel em causa passou então a ter a configuração e construção atuais, tendo em 2011 sido obtida a licença para habitação; (Cfr. Doc. 8 junto ao PA)
k) Em 2013 o requerente celebrou escritura de justificação notarial para adquirir a propriedade do terreno por usucapião conforme escritura de justificação notarial junta aos autos como documento nº3 anexo ao pedido arbitral, que se dá por integralmente reproduzida; (Cfr. Doc. 3 junto ao PA)
l) Em consequência desta aquisição por usucapião é liquidado imposto de selo, cuja base de incidência coincidiu com o Valor Patrimonial Tributário atribuído ao prédio edificado e avaliado nos termos do CIMI; (Doc. 11 junto ao PA)
m) Em 29 de Abril de 2013, o Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação de imposto de selo referida em i), alegando que já tinha pago imposto (Sisa) pela aquisição deste imóvel pelo que não fazia qualquer sentido, omitindo esse facto, agir como se no plano fiscal só agora o tivesse adquirido, e que, caso assim não se entendesse, então o valor de referência para incidência do imposto teria de corresponder apenas ao valor do terreno; (Cfr. Doc. 1 junto ao PA)
n) A ATA considerou a reclamação graciosa parcialmente deferida, reconhecendo que a liquidação de imposto do selo por usucapião não poderia incidir sobre a construção entretanto erigida a expensas do Requerente mas tão só sobre o valor do terreno, pois só este foi objeto da aquisição por usucapião (deferimento parcial da reclamação), pelo que alterou a liquidação de imposto de selo, agora com incidência sobre o terreno para construção.
o) O valor da liquidação, com incidência sobre o terreno adquirido por usucapião, corrigida pelo ato de deferimento parcial da reclamação graciosa, o que ascende a um valor total de €5.459,85;
p) O Requerente pagou este valor, conforme plano de pagamento fixado em 4 prestações de 1.213,30, cujos comprovativos de pagamento se encontram juntos aos autos. (Cfr. Doc. 11 e Doc. junto aos autos em 11-06-2015)
B) FACTOS NÃO PROVADOS
29. Não há outros factos não provados com relevo para decisão a proferir.
C) FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
30. Os factos supra descritos foram dados como provados com base nos documentos que as partes juntaram ao presente processo, a Requerente em anexo ao pedido formulado e a AT na resposta apresentada e respetivo Processo Administrativo., ao que acresce não subsistir qualquer divergência entre as partes quanto aos factos enunciados no pedido arbitral e confirmados documentalmente.
IV – QUESTÃO DECIDENDA e FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO
31. A questão decidenda consiste em saber se, a aquisição de um terreno por usucapião, através de escritura de justificação notarial celebrada para o efeito em 2013, nos termos descritos nos presentes autos, está ou não sujeita a imposto de selo, sabendo que em momento anterior (1986) a ATA já tributara, em sede de imposto de SISA a sua aquisição pelo sujeito passivo, considerando como tal a celebração do contrato promessa de compra e venda com tradição da coisa, ocorrida em 1979 (o terreno).
32. Importa, desde logo, determinar a incidência do imposto de selo sobre a aquisição de um imóvel por usucapião. Trata-se de saber se está em causa ou não a tributação da aquisição ou, como alega a Recorrida ATA, a tributação do ato notarial de justificação e, em consequência da resposta encontrada, decidir a sua aplicação ao caso concreto dos autos.
33. Para apreciar a questão que se coloca a este tribunal, importa atender à natureza do imposto de selo, não apenas na sua origem mas na conformação legal que veio a assumir ao longo dos anos, alargando de forma notável a sua base de incidência com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 287/2003 de 12 de novembro e com a extinção do antigo imposto sobre sucessões e doações.
Trata-se de um imposto com uma longa história no sistema fiscal português, de procedimento simples e elevada receita fiscal, o que explica a sua longevidade e o progressivo alargamento da sua base de incidência.[1] Por ser assim, o imposto de selo constitui, conjuntamente com o IMI e o IMT, um instrumento de tributação do património, por opção do legislador que, desde há muito tempo, deixou de ver no imposto de selo um mero “imposto sobre o papel”.
34. Ao longo da sua história, com maior relevo para a sua evolução recente, o imposto de selo, que nasceu como um imposto sobre documentos, papel selado, títulos de crédito, autenticação de documentos, contratos, termos de transação, atos notariais e similares, foi alargando a sua base de incidência convertendo-se num imposto heterogéneo, incidente sobre uma multiplicidade diversificada de factos, atos e situações jurídicas (“atos, contratos, documentos, títulos, papeis e outros factos ou situações jurídicas”…, como estabelece o artigo 1º do Código), aparentemente sem um traço comum que lhes confira identidade.”[2]
Este imposto acabou por assumir a natureza de “imposto subsidiário dos impostos sobre o rendimento e o consumo pretendendo atingir manifestações de capacidade contributiva não abrangidas pela incidência de quaisquer outros impostos. Não revestindo a natureza de tributação de sobreposição, este imposto tende a assumir uma função residual preenchendo espaços deixados em aberto pela tributação do rendimento e do consumo.”[3]
35. Com a reforma da tributação do património, o legislador optou por introduzir no CIS a tributação das transmissões gratuitas (sucessões e doações) não isentas, deixando de existir um código de imposto autónomo. Assim, foi introduzida na Tabela Geral do Imposto de Selo a verba 1.2, a qual estabelece a sujeição a imposto da “aquisição gratuita de bens, incluindo por usucapião, a acrescer, sendo caso disso, à da verba1.1 sobre o valor de 10%”
Dispõe o artigo 1º do CIS que:
“O imposto de selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo a transmissão gratuita de bens.”
E, acrescenta, na alínea a) do seu nº 3:
“Para efeitos da verba 1.2 da Tabela geral, são consideradas transmissões gratuitas, designadamente, as que tenham por objeto:
a)Direito de Propriedade ou figuras parcelares desse direito sobre bens imóveis, incluindo a usucapião.”
36. A aquisição por usucapião está, pois, no âmbito de incidência do Imposto de selo, não o ato notarial que lhe dá suporte, mas a aquisição originária de imóvel por usucapião É o ato aquisitivo em si mesmo que é tributado, porquanto o legislador entende que estamos perante uma aquisição gratuita e como tal está sujeita a imposto de selo. Recorde-se que esta é uma solução que surgiu no sistema fiscal português, como já se referiu, no da reforma fiscal do património de 2004.
37. Dispõe o artigo 1287.º do Código Civil, que a usucapião corresponde à posse do direito de propriedade ou de outros direitos de gozo, mantida por um certo lapso de tempo, facultando ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação. Invocada a usucapião, os seus efeitos retroagem à data do início da posse, sendo que a posse consubstancia-se, entre outros factos, pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito. (cfr. artigos 1288.º, 1317.al.c) e 1263.º do C.C.)
38. No âmbito fiscal, a aquisição de um bem imóvel, por usucapião, está sujeito a imposto de selo, o qual incide sobre todos os atos, contratos, documentos, título, livros, papéis, e outros factos previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens, sendo a aquisição por usucapião, prevista no artigo 1287.º e seguintes do C.C., considerada uma transmissão gratuita de um bem imóvel.
39. No caso dos presentes autos, como resulta da factualidade provada, a celebração do contrato promessa com tradição do imóvel ocorrida em 1979, foi considerada pela ATA, em conformidade com o disposto no Código da SISA então em vigor, como ato equivalente à aquisição por escritura pública de compra e venda. Diga-se que, então como agora, o legislador previa um conjunto de situações jurídicas equivalentes à aquisição por celebração de escritura de compra e venda, fazendo incidir o imposto sobre a aquisição patrimonial no momento em que o facto ou ato equivalente ocorresse. No caso dos autos, esse facto ocorreu com a celebração do contrato promessa com tradição do imóvel, em 1979, pelo que, para efeitos de incidência fiscal tudo se passou como se a aquisição do terreno tivesse ocorrido nesse momento. Por isso, tributou essa aquisição, nos termos e à luz das disposições então em vigor, no âmbito do Código da SISA e que corresponde ao previsto no atual artigo 2º, nº2, alínea a) do CIMT.
40. Aliás, isso mesmo resulta da fundamentação da decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente, da qual resulta claro que:
a. Em 1986, o SF ao tomar conhecimento do contrato promessa de compra e venda com tradição do prédio, promoveu a liquidação de SISA, reportando os seus efeitos à data da celebração do contrato (1979) cobrando os respetivos juros compensatórios;
b. Como resulta da própria fundamentação da decisão proferida pela Direção de Finanças, a SISA era devida, na medida em que a lei “ficciona” a aquisição da propriedade reportando-a ao momento da celebração do contrato promessa com tradição do prédio; situação que se mantém no atual CIMT (art.2º, nº2, alínea a), 1ª parte);
c. Em 2013, com a celebração da escritura de justificação notarial para aquisição do mesmo prédio por usucapião, o SF liquida imposto de selo, considerando como base de incidência o VPT atribuído ao prédio edificado;
d. Após reclamação graciosa apresentada pelo Requerente a ATA corrige o ato de liquidação, reconhecendo que o valor de referência para a liquidação do imposto de selo devido pela aquisição por usucapião deveria incidir apenas sobre o valor referente ao terreno, pois que apenas este foi adquirido por usucapião.
41. Posto isto, não há dúvida que o bem imóvel cuja aquisição por usucapião está agora a ser tributado (terreno) é exatamente o mesmo que já tinha sido tributado (em 1986, com efeitos reportados a 1979, com os correspondentes juros compensatórios) por força do contrato promessa com tradição do imóvel, ao abrigo do disposto no Código da SISA então em vigor.
Dispunham os artigos1ºe 2º do Código da SISA e do Imposto sobre Sucessões e Doações:
Artigo 1.º
“São sujeitas a sisa e a imposto sobre as sucessões e doações, nos termos dos artigos seguintes, as transmissões perpétuas ou temporárias dos bens, qualquer que seja o título por que se operem.
Artigo 2.º
A sisa incide sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis.
(…)
§ 1.º Consideram-se, para este efeito, transmissões de propriedade imobiliária:
(…)
2.º As promessa de compra e venda ou de troca de bens imobiliários, logo que verificada a tradição para o promitente comprador ou para os promitentes permutantes ou quando aquele ou estes estejam usufruindo os bens.”
42. Constata-se, assim, que a lei fiscal então em vigor, tal como a atual (CIMT) considerava, para efeitos de incidência fiscal, como transmissão sujeita a imposto (equivalente à celebração de contrato de compra e venda) um conjunto vasto de situações (sem qualquer coincidência com os conceitos do direito civil) entre as quais a celebração de contrato promessa com tradição da coisa. Por ser assim, tributou essa aquisição com referência ao terreno em causa, reportando os seus efeitos ao ano de 1979, no qual foi celebrado o contrato e dada posse do imóvel ao promitente-comprador.
43. A Situação supra descrita é em tudo equivalente ao que hoje se encontra previsto no artigo 2º, alínea do CIMT. A usucapião consubstancia uma aquisição, e é isto mesmo que o legislador pretende tributar em sede de imposto de selo e não o ato notarial (escritura de justificação notarial), como alega a ATA na sua resposta. A acrescer a tudo o que vem supra exposto, diga-se que a norma de incidência contida na verba 1.2 da Tabela Geral do Imposto do Selo é clara e refere expressamente: “Aquisição gratuita de bens, incluindo por usucapião (…)”.
44. Não resta pois dúvida que é sobre a aquisição e respetivo valor que incide o imposto, pelo que não colhe o argumento da ATA segundo o qual o imposto do selo aqui em causa incidiria sobre o documento “escritura pública”, e não sobre a aquisição.
45. Assim sendo, não pode a mesma aquisição, do mesmo bem, ser tributada duas vezes, ao mesmo sujeito passivo adquirente. Ora, no caso dos presentes autos foi isso mesmo que sucedeu. Por aplicação das regras em vigor à data em que o Requerente tomou posse do terreno, a celebração do contrato promessa com tradição do imóvel foi considerada como aquisição e, por consequência, foi tributada (como aquisição onerosa), tendo sido liquidado o correspondente imposto de SISA e juros compensatórios. Não pode, por isso, o prédio ser alvo de nova tributação, considerando que o mesmo sujeito passivo que o adquiriu em 1979 (por força da ficção legal consagrada), vem a adquirir também em 2013 por usucapião. Tal seria equivalente a tributar a aquisição do mesmo prédio duas vezes e, incompreensivelmente, considerar que sobre o mesmo prédio ocorreram duas aquisições, a favor do mesmo sujeito passivo, uma onerosa (1979) e outra gratuita (2013).
46. Certo é que em 2013 o já proprietário à luz das normas fiscais, ainda não o era à luz das regras vigentes no direito civil, E, como é usual, viu-se na necessidade de recorrer ao ato de justificação notarial para reconhecimento da usucapião, apenas pela necessidade de regularização da propriedade do imóvel à luz do direito civil e registral. Porém, não se verificou um facto tributário (aquisição) suscetível de tributação, já que esse ocorrera, para todos os efeitos fiscais, em 1979.
Dito de outro modo, não pode ser tributada a aquisição por usucapião ocorrida em 2013, porquanto a mesma versa sobre o mesmo prédio, o mesmo sujeito passivo e facto (aquisição) ocorrido em 1979 e já tributado em SISA, justificando-se a celebração da escritura de justificação apenas por imperativo das regras vigentes no direito civil e registral.
47. O legislador fiscal, para evitar situações de evasão ao imposto e, também, para evitar constrangimentos resultantes de formalismos registrais ou de outra ordem que possam por em causa a liquidação do imposto, afasta-se do rigor conceptual do direito civil e cria um conjunto de presunções por via das quais considera como aquisição certos factos ou contratos que face à lei civil não produzem esse efeito. É o que sucede, por exemplo, com o contrato promessa de compra e venda com tradição da coisa ou com o contrato de arrendamento com opção de compra. Concede-se que o legislador o possa fazer por razões de eficácia fiscal, sendo certo que apenas altera o momento em que cobra o imposto devido pela aquisição, mas nada na lei permite tributar duas vezes a aquisição de um mesmo imóvel, pelo mesmo sujeito passivo.
48. Se o imposto foi liquidado no momento da celebração do contrato que, nos termos da lei, é equiparado a aquisição, fica cumprida a obrigação fiscal e não pode ser cobrado o mesmo imposto no momento da formalização da aquisição da propriedade por usucapião. No caso dos autos, o mesmo prédio foi tributado pela aquisição onerosa considerada como tal por força da celebração do contrato promessa com tradição, pelo que, se afigura ilógico e incongruente considerar que no momento da celebração da escritura de justificação notarial ocorreu nova transmissão. A factualidade provada nos presentes autos demonstra claramente que a escritura de justificação para aquisição por usucapião se realizou apenas por imposição legal decorrente das regras do direito civil e registrais.
49. Posto isto, constata-se que a reclamação graciosa foi objeto de decisão de deferimento parcial, proferida por Despacho de 28/11/2014, com os seguintes fundamentos: “o imposto de selo deve incidir apenas sobre o VPT do terreno adquirido por usucapião, constantes da matriz à data da transmissão (n.° 1 do artigo 13.° do CIS). Ora, o imposto de selo incidindo sobre o VPT do bem adquirido por usucapião exclui as benfeitorias. Por outras palavras, somente está sujeito a imposto do selo o prédio objeto da usucapião, ou seja, o terreno. De facto, o documento notarial refere que “(...) o aqui justificante (...) prometeu comprar (...) uma parcela daquelas parcelas de terreno onde, mais tarde, veio a edificar o prédio urbano atrás identificado, com a superfície coberta de cento e oito metros quadrados e superfície descoberta de duzentos e sete metros quadrados, hoje sito na Rua …, lote …, freguesia de ..., concelho de ... (...)" (a fls. 8).” Em conformidade mantém-se na ordem jurídica, a liquidação de IS pela aquisição do terreno para construção, com a superfície coberta de 108m2 e superfície descoberta de 207m2, sito na freguesia da ..., concelho de ...”.
50. Na verdade, subjacente à própria decisão da reclamação graciosa está a consideração da ocorrência de uma aquisição por usucapião. Ora, por tudo o que se disse supra verifica-se no caso uma dupla tributação, da aquisição de um mesmo imóvel, pelo mesmo sujeito, sendo certo que não se adquire duas vezes a mesma coisa. De facto, constata-se que ocorreu tributação do mesmo facto tributário em sede de SISA em 1979 (atual IMT), pretendendo agora tributa-lo em sede IS. Tal configura uma tributação ilegal, ao contrário do que alega a Requerida.
51. A este respeito, alega a AT que há que atender ao disposto no artigo 205.º do CPPT. Dispõe o referido preceito que: “Haverá duplicação de colecta (...) quando, estando pago por inteiro um tributo, se exigir da mesma ou de diferente pessoa um outro de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo.”
52. Ocorre duplicação de coleta quando, estando pago por inteiro um tributo se exigir da mesma ou de diferente pessoa um outro, de igual natureza referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo, o que significa que esta figura só tem lugar quando se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos: o facto tributário seja o mesmo; seja idêntica a natureza do imposto já pago e o que, de novo, se exige, referiram-se ambos os impostos ao mesmo período temporal. Na ótica da ATA não se cumpre este último requisito, ou seja a tributação não respeita ao mesmo período de tributação, pelo que estaríamos perante a figura da dupla tributação, pois que nesta, ao contrário daquela, são várias as normas de incidência que se aplicam ao mesmo facto tributário.
53. Ora, não assiste razão à ATA nesta alegação, porquanto, o que ocorreu foi, tão só, que por força da reforma da tributação do património ocorrida em 2004 o facto aquisitivo passou a ser tributado em imposto de selo quando antigamente era tributado em imposto municipal de SISA, sucessões e doações. Não se extrai da lei, na versão antiga ou na versão atual, a intenção do legislador sujeitar a aquisição de um mesmo bem, pelo mesmo sujeito passivo, a uma dupla tributação.
54. Em síntese, o que tem vindo a suceder é, outrossim, uma interpretação da lei por parte da ATA que conduz a situações ilegais de duplicação de coleta. Assim, até há pouco tempo o seu entendimento era o plasmado na liquidação originária reclamada, ou seja, a sujeição a imposto da aquisição por usucapião incidiria sobre o valor total do prédio, considerando todas as edificações posteriormente realizadas e desconsiderando que apenas o terreno se adquiria por usucapião. Por força da jurisprudência uniforme do STA e dos Tribunais Centrais Administrativos, tal entendimento tem sido reiteradamente considerado ilegal.
55. Por brevidade na exposição, remete-se para o recente Acórdão de 23-09-2015, da 2ª secção do STA, proferido no processo nº 0667/15[4], o qual concentra a jurisprudência uniforme do STA sobre essa questão. Resulta claro e pacífico que que só o ato de aquisição do prédio originário (e não o ato de aquisição das benfeitorias neste realizadas) é que pode inscrever-se no âmbito de incidência objetiva do imposto do selo. Em consequência, deve apenas ser tributado o ato de aquisição da parcela de terreno e não o ato de aquisição de benfeitorias realizadas no mesmo imóvel pelos usucapientes. Esta jurisprudência é clara quanto à incidência do IS, o qual versa sobre a aquisição e não sobre o ato notarial, como pretende a requerida.
56. Logo, a liquidação reclamada estava necessariamente condenada à anulação em sede de impugnação judicial, o que determinou a sua alteração, plasmada na decisão de deferimento parcial proferida. Porém, ainda assim, também o deferimento parcial assenta num erro de apreciação da situação de facto e do direito aplicável, ao considerar como facto tributável em sede de imposto de selo a aquisição por usucapião do terreno. Acresce, ainda, a indefinição do valor a atribuir ao terreno e do valor da liquidação de imposto de selo, após o deferimento parcial da reclamação, o que, só por si, determinaria a anulação de toda a liquidação. – Cfr. Neste sentido Acórdão STA de 23-09-2015, proferido no processo nº 0667/15, in www.dgsi.pt
57. Importa, ainda, referir que o artigo 11.º, n.º 3 da LGT estabelece que “persistindo dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários”.
Ora, de acordo com o probatório fixado, resulta que no caso em apreço a ATA tributou o prédio urbano integrado por edifício construído pelos impugnantes em terreno que estava na sua posse em consequência da justificação notarial efetuada em 2013 para aquisição por usucapião, considerando ter o mesmo sido transmitido nessa data, quando não foi isso que sucedeu, pelo menos para efeitos fiscais. Na verdade, por força da aplicação das regras vigentes, em termos fiscais, a aquisição foi onerosa e já tinha ocorrido em 1979, tendo sido tributada em sede de imposto de SISA, imposto em vigor à data do facto tributário.
Assim, a justificação notarial para aquisição por usucapião era e deve ser desconsiderada como facto tributário, já que a mesma apenas se realizou para satisfação das exigências que o direito civil e registral impõem. Para efeitos fiscais o Requerente era já considerado como pleno proprietário do imóvel, tendo este cumprido com todas as suas obrigações fiscais, reportadas ao ano de 1979, ano em que celebrou o contrato promessa e tomou posse do imóvel. E desde então tem vindo a cumprir com o pagamento das liquidações de contribuição autárquica e posteriormente, o IMI emitidas em seu nome na qualidade de proprietário do prédio.
58. Acresce dizer, citando o Acórdão do STA, proferido no recurso nº 53/10 de 12.05.2010, que tratou de caso idêntico ao dos presentes autos, que «mesmo que houvesse dúvidas sobre o sentido interpretativo das normas de incidência – e pensamos que não há – sempre seria de considerar a substância económica dos factos (…) – cfr. Artº. 11º, nº 3 da LGT.
59. Finalmente, refira-se que o facto de a norma do artigo 5º alínea r) do CIS estatuir que a obrigação tributária se considera constituída, nas aquisições por usucapião, na data em que transitar em julgado a ação de justificação judicial ou for celebrada a escritura de justificação notarial e de a norma do artigo 13º, n° 1 do CIS referir que o valor dos imóveis a considerar nas transmissões gratuitas ser o valor patrimonial tributário constante da matriz nos termos do CIMI à data da transmissão, não permite a dupla tributação da aquisição do mesmo prédio. E é isso que sucede no caso em apreço, em que para efeitos fiscais ocorreu uma aquisição onerosa em 1979, no momento da celebração do contrato promessa com tradição da coisa, a qual foi devidamente tributada, vindo mais tarde, por necessidades formais de regularização da situação jurídica do prédio e registo da propriedade, a ocorrer uma escritura de justificação para aquisição por usucapião.
60. As normas supra enunciadas assentam no pressuposto de que se verifica uma aquisição por força da usucapião, não reconhecida anteriormente como facto já sujeito a tributação por força das regras fiscais aplicáveis. Na verdade, face à lei fiscal e por força da opção do legislador nesta matéria a aquisição do prédio em causa ocorreu em 1979 com a celebração do contrato promessa de compra e venda com tradição, logo tributada esta aquisição nesse momento não pode vir a ser tributada anos mais tarde como se, de novo, o Requerente estivesse a adquirir um prédio que, para efeitos fiscais, já era reconhecido como propriedade sua. – Cfr., ainda a este propósito, a jurisprudência vertida no Acórdão do TCAN, de 18-09-2014, in processo nº 635/07.0BEBRG.
61. O sistema fiscal obedece, além do mais, aos princípios da legalidade, da proporcionalidade e da uniformidade do sistema jurídico. Assim, a tributação da aquisição do terreno, em 2013, por usucapião, quando já fora tributada a sua aquisição onerosa pelo mesmo sujeito passivo, pela aquisição onerosa ocorrida em 1979, consubstancia violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito. Na previsão legal do artigo 1º do CIS o que se pretende tributar são as aquisições gratuitas de bens que advêm nesse momento à titularidade dos adquirentes. Se estes têm necessidade, por imperativo das regras do direito civil e registral (às quais o direito fiscal não atende) de proceder a uma escritura de justificação para aquisição por usucapião de um prédio que face à lei fiscal foi adquirido (considerado como tal) em 1979, tendo sido nessa altura devidamente tributada a sua aquisição, então conclui-se que não há novo facto tributário (aquisição gratuita), como pretende a Requerida. Esta é uma impossibilidade que decorre do facto de ninguém poder adquirir duas vezes o mesmo prédio, pelo menos, para efeitos fiscais e ser tributado duas vezes pela aquisição do mesmo prédio. Dir-se-á, ainda, que tal situação nunca esteve na mira do legislador, que apenas pretende tributar a aquisição originária por usucapião nos casos em que, para efeitos civis e fiscais, o prédio advém à propriedade do sujeito passivo por essa via, o que não é o caso.
62. Tendo em conta que o problema em análise é resultado da divergência entre os conceitos aplicáveis no âmbito da lei fiscal e os correspondentes conceitos do direito civil, a interpretação defendida pela ATA consubstancia uma situação de abuso de direito (venire contra factum proprium) e viola os princípios da justiça, da proporcionalidade e da uniformidade do sistema jurídico. Se por força da lei fiscal em vigor a aquisição ocorreu já anteriormente, e aí foi tributada, não pode ser de novo alvo de tributação.
63. Acresce que, recorrendo à jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, encontramos no Acórdão proferido a 18-09-2014, no processo nº 635/07.0BEBRG, pelo TCAN, uma situação idêntica, que resultaria em dupla tributação, no qual este Tribunal veio a considerar expressamente o seguinte:
“1- Tendo os recorrentes celebrado em 1972, por escritura pública, um contrato de compra e venda de um prédio, sendo este um dos modos de aquisição da propriedade (1316ª do Código Civil) e tendo sido respeitada a forma prescrita no artigo 875º do Código Civil, há que concluir que adquiriam a propriedade nessa data.
2- Não constitui transmissão gratuita de bens que possa constituir facto tributável no âmbito da previsão normativa do nº1 do artigo 1º do CIS a celebração de uma escritura pública de justificação de aquisição por usucapião, com o fim de reatar o trato sucessivo e proceder ao registo daquele prédio anteriormente adquirido, nos termos do artigo 34º do Código de Registo predial (….)”
64. Ainda neste Acórdão, o tribunal fundamentou a sua decisão, considerando que: “Muito embora a aquisição por usucapião constitua uma aquisição originária (artigo 1287.º e seguintes do Código Civil) para efeitos fiscais, é considerada como uma transmissão gratuita de bens imóveis, e por conseguinte, sujeita a imposto do selo nos termos do art. 1.º do CIS. Sucede que, in casu, não temos uma transmissão gratuita de bens, porque ninguém pode adquirir o que já é seu. Com efeito, resulta dos autos que os Recorrentes não adquiriram o prédio em causa por usucapião, pois já o haviam adquirido com compra e venda por escritura pública outorgada em 1972.
(…)
Saliente-se que a validade do contrato de compra e venda celebrado por escritura pública em 1972, não é colocada em causa pela AT. Por outro, a condição de forma para a sua validade foi respeitada, foi outorgada escritura pública tal como estipulada no art. 875.º do Código Civil (C.C.) para a compra e venda de imóveis.
(…)
Ou seja, resulta claro nos autos que não houve qualquer transmissão gratuita de bens que possa constituir facto tributável no âmbito da previsão normativa do disposto no art. 1.º do CIS. “
(…)
Com efeito, para a resolução do presente litígio, é preciso compreender que pese embora o imposto do selo incida, em regra, sobre actos, também incide sobre a transmissão gratuita de bens, sendo este último, o caso dos autos. Dito de outro modo, não está em causa nos autos saber se é devido imposto do selo não sobre o acto de escritura pública outorgada em 03/02/2006, mas antes saber se é ou não devido imposto do selo por transmissão gratuita de bens (última parte do art. 1.º, n.º 1 do CIS) que a AT entende que a escritura titula.”
65. Também no caso em apreço nos presentes autos, para efeitos fiscais, o prédio (terreno) já havia sido adquirido por força da celebração do contrato promessa de compra venda com tradição da prédio, e, por força do disposto na lei fiscal foi esse facto aquisitivo tributado em SISA, que o Requerente pagou, como se comprova nos presentes autos e a ATA admitiu como certo. Ora, para que se verifique o facto tributário previsto no artigo 1º, nº1 do CIS, é imperativo que tenha efetivamente existido uma transmissão gratuita de bens, e como supra exposto, in casu, tal não se verifica, pois a propriedade do prédio (para todos os efeitos fiscais legalmente previstos) já havia sido transmitida por força do contrato promessa de compra e venda com tradição do prédio, outorgado em 1979 e que a ATA tributou como aquisição onerosa, em SISA, liquidada em 1986 acrescida dos correspondentes juros compensatórios, que o Requerente pagou.
66. Assim sendo, quando em 2013 é celebrada escritura de justificação para aquisição por usucapião a fim de regularizar a situação em termos civis do prédio, não se verifica o facto tributário previsto no artigo 1.º n.º 1 e n.º 3 al. a) do CIS, e nessa medida, a liquidação impugnada enferma de vício de violação de lei por erro sobre pressupostos de direito e de facto, devendo ser anulada.
67. Nestes termos, também a decisão da reclamação graciosa, parcialmente deferida, enferma de ilegalidade pelos mesmos fundamentos, devendo ser revogada e anulada a liquidação de IS que lhe está subjacente, com as legais consequências.
V - do pedido e do direito a pagamento de juros indemnizatórios
68. Dispõe a alínea b), do nº 1, do art.º 24º, do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito. Tal dispositivo está em sintonia com o disposto no art.º 100º, da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a), do nº 1, do art.º 29º, do RJAT, no qual se estabelece que: “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”
69. Dispõe, por sua vez, o artigo 43º, nº1, da Lei Geral Tributária que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
70. Da análise dos elementos probatórios constantes dos presentes autos, nomeadamente do Processo Administrativo, é possível inferir que, pelo menos desde a apresentação do pedido apresentado pelo Requerente, expondo as razões pelas quais entendia que a justificação notarial para aquisição por usucapião não devia estar sujeita a imposto de selo, a AT tinha conhecimento dos elementos factuais, no essencial, relevantes para proceder à correta liquidação do imposto. Isso mesmo resulta dos documentos juntos ao pedido arbitral e da informação constante do PA junto aos autos. Pelo que, teve a possibilidade de revogação dos atos tributários ilegalmente praticados, que poderia ter efetuado no prazo para resposta ao presente pedido de pronúncia arbitral, o que não sucedeu.
71. Não resta dúvida que a AT se encontrava na disponibilidade dos elementos informativos suficientes sobre a situação concreta, reforçado pela apresentação da reclamação graciosa, de modo que teve a possibilidade de emendar o erro e de evitar a prática do ato tributário ilegal e lesivo. Nisso mesmo consiste o erro pelo qual está obrigada a indemnizar.
72. Assim sendo, atento o disposto no artigo 61º, do CPPT e considerando que se encontram preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no nº 1 do art.º 43º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de €5.459,85 a contar da data em que foi efetuado o pagamento de cada prestação de imposto, até ao seu integral reembolso.
VI - DECISÃO
Face ao exposto, este Tribunal Arbitral decide:
A) Considerar totalmente procedente o pedido arbitral, com a consequente anulação da liquidação de imposto de selo por padecer de vicio de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito subjacentes;
B) Condenar Requerida a reembolsar a Requerente de todo o montante pago, no valor de €€5.459,85, acrescido de juros indemnizatórios, a contar da data em que foi efetuado o pagamento de cada prestação de imposto, à taxa legal, até integral pagamento;
C) Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.
VII - VALOR DO PROCESSO: Em conformidade com o disposto nos artigos 305º, nº 2 do CPC, artigo 97º - A, nº 1, alínea a), do CPPT e artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €5.459,85.
VIII - CUSTAS: Nos termos do disposto no artigo 22º, nº 4, do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em €612,00 a cargo da Requerida.
Registe-se e notifique-se.
Lisboa, 21 de outubro de 2015
O Árbitro singular,
(Maria do Rosário Anjos)
[1] Neste sentido, a propósito da evolução da base de incidência deste imposto, vd. Pires, José Maria Fernandes, in Lições de Fiscalidade, Vol I, Obra Coordenada por João Ricardo Catarino e Vasco Branco Guimarães, 2014, 4ª edição, páginas 403 e ss
[2] Cfr. Pires, José Maria Fernandes, in ob. Cit., pág. 404.
[3] Vd. Mateus, J. Silvério Dias e Freitas, L. Corvelo (2005) Os impostos sobre o Património Imobiliário. O imposto de Selo. Anotados e Comentados, Engifisco, Lisboa, pág.534.
[4] Ainda neste sentido se pronunciou recentemente o STA no Acórdão de 17-06-2015, proferido no recurso n.º 0353/15; no mesmo sentido se pronunciaram os Acórdãos de 21.05.2014, recurso 1676/13, de 17.12.2014, recurso 1198/14, de 14.05.2015, recurso 1422/14 todos in www.dgsi.pt.