DECISÃO ARBITRAL
Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Maria Forte Vaz e Paulo Lourenço, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral:
I – RELATÓRIO
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No dia 04 de Fevereiro de 2015, A... S.A., NIF ..., com sede em ..., Rua ..., ..., ...-... ..., apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos actos de autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) de Abril de 2012 a Outubro de 2013 no valor total de € 257.748,06.
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Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que são ilegais os actos de autoliquidação aqui impugnados a título mediato, e o acto (imediato) de indeferimento da reclamação necessária deles apresentada que os confirmou, por violação do disposto na verba 2.17 da Lista J anexa ao Código do IVA em conjugação com a alínea a) do n.º 2 do artigo 18.º do mesmo diploma, mais sendo, no entender da Requerente, ilegais por violação dos princípios comunitários da neutralidade fiscal, objectividade e da taxa de tributação uniforme do Imposto sobre o Valor Acrescentado, por um lado, e do princípio da efectividade ou eficácia, por outro.
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No dia 06-02-2015, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 26-03-2015, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 13-04-2015.
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No dia 18-05-2015, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.
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Por despacho de 19-05-2015, foi a Requerente notificada para se pronunciar sobre as excepções invocadas pela Requerida e pela manutenção do interesse da produção de prova testemunhal.
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Por requerimentos de 29-05-2019, a Requerente pronunciou-se, por escrito, sobre as excepções invocadas pela Requerida e solicitou o aproveitamento, nos presentes autos, das inquirições efectuadas no proc. n.º 348-2015-T.
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Notificada a Requerida para se pronunciar sobre este pedido, esta nada teve a opor pelo que, por despacho de 15-06-2015, foi deferido o pedido de aproveitamento da prova testemunhal produzida no proc. n.º 348-2015-T.
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No dia 08-09-2015, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram apresentadas alegações orais pelas partes, que se pronunciaram sobre a prova produzida, reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
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Foi fixado o prazo de 30 dias para a prolação de decisão final, após a apresentação de alegações da AT.
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Em 08-10-2015 foi proferido despacho a prorrogar o prazo para entrega de decisão por mais 30 dias, bem como o prazo a que alude o artigo 21.º/1 do RJAT, por 2 meses.
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O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- A Requerente, à data dos factos tributários em causa no presente processo, era um sujeito passivo de IRC, residente em território nacional e enquadrada no regime normal de IVA de periodicidade mensal, e tem como actividade principal a exploração de aldeamentos turísticos com serviço de restauração.
2- Dos serviços disponibilizados pela Requerente, à data, podiam desfrutar tanto os sócios do Clube como qualquer utilizador, em geral, embora sob condições diferentes.
3- Os referidos serviços eram prestados num estabelecimento de alojamento turístico de quatro estrelas sito na ..., em ..., no ..., denominado B... Club.
4- O estabelecimento referido dispunha de 36 unidades de alojamento totalmente equipadas e prontas a ocupar e utilizar, e gozavam de um serviço diário de arrumação e limpeza, reposição de toalhas, roupa de cama e de consumíveis de higiene pessoal.
5- Esse mesmo estabelecimento dispunha de infra-estruturas de apoio e lazer, como recepção, bar, piscinas exterior e interior, sauna, ginásio, salão de jogos, espaços comuns de descanso.
6- No referido estabelecimento, a Requerente fornecia aos seus clientes serviços de atendimento personalizado, refeições ou outros serviços complementares específicos.
7- O estabelecimento da ora Requerente era exclusivamente procurado para fins não residenciais e o uso por todos os seus clientes circunscrevia-se a curtos períodos de tempo destinados ao repouso e ao lazer dos próprios.
8- A Requerente prestava todos os seus referidos serviços ao público em geral, mas oferecia condições mais vantajosas aos designados membros do B... Club (Clube).
9- O Clube foi criado pelos promotores do estabelecimento da ora Requerente nos anos oitenta, ainda antes da sua construção, com o propósito de agregar e fidelizar clientes.
10- A qualidade de membro do Clube conferia aos clientes o direito de uso para alojamento temporário de uma determinada unidade de alojamento durante uma determinada semana de cada ano, a preços preferenciais.
11- A qualidade de membro do Clube dependia de um pagamento anual que dispensava o pagamento de qualquer outra contraprestação pelo alojamento, e que era tendencialmente inferior ao preço de idêntico alojamento cobrado aos demais clientes.
12- Caso falhasse a qualquer pagamento anual, o cliente perdia definitivamente a sua qualidade de membro e passava a ser tratado como qualquer outro cliente, podendo ocupar uma unidade de alojamento disponível mediante o pagamento do preço devido por qualquer cliente não membro do Clube.
13- O serviço que a Requerente prestava a todos os seus clientes - membros e não membros do Clube - era idêntico.
14- A Requerente liquidou IVA à taxa reduzida sobre os serviços de alojamento hoteleiro prestados aos clientes que não eram membros do Clube.
15- Sobre valor do pagamento anual facturado pela Requerente a clientes membros do Clube pelo alojamento nas mesmas unidades, aquela liquidou IVA à taxa normal.
16- O preço estabelecido pela ora Requerente para os seus clientes membros do Clube pelo serviço de alojamento hoteleiro que lhes prestava era, desde sempre, um preço final, com IVA incluído, em que qualquer imposto apurado, quer se mostrasse ou não legalmente devido, achava-se contido e incorporado naquele preço e corria por conta e risco da ora Requerente.
17- Aos adquirentes do serviço - clientes membros do Clube - não assistia qualquer direito a qualquer reembolso, uma vez que não pagaram à Requerente qualquer quantia adicional ao valor do encargo anual a que se vincularam.
18- A partir de Novembro de 2013, a ora Requerente passou a facturar o serviço de alojamento hoteleiro à taxa reduzida de IVA, incluindo aquele que é prestado aos seus clientes membros do Clube.
19- Nos períodos de imposto de Abril de 2012 a Outubro de 2013, a ora Requerente liquidou imposto, nas facturas que emitiu aos seus clientes membros do Clube à taxa de 23%.
20- Entre Abril de 2012 a Outubro de 2013, como a partir de Novembro de 2013, a ora Requerente não cobrou aos seus clientes membros do Clube qualquer quantia adicional ao valor do encargo anual fixo que se achava estabelecido como contrapartida do serviço de alojamento hoteleiro que lhes prestou.
21- A Requerente, oportunamente, apresentou as declarações periódicas correspondentes aos períodos ora em causa, fazendo delas constar o IVA nos termos facturados, ou seja e no que diz respeito ao membros do seu Clube, à taxa de 23%, IVA esse que entregou ao Estado.
22- Por carta registada enviada em 05 de Junho de 2014, a Requerente apresentou reclamação graciosa dos referidos actos de autoliquidação, pelas seguintes diferenças entre o imposto autoliquidado (à taxa normal sobre serviços de alojamento turístico) e aquele que entende devido (à taxa reduzida):
23- O apuramento do IVA liquidado nos período, em referência teve por base as facturas emitidas pela Requerente nos períodos também em referência, constantes do doc. 8 junto por aquela com a reclamação graciosa, que aqui se dá por reproduzido[1].
24- Todas as referidas facturas titulam serviços de alojamento turístico no supra-referido estabelecimento de alojamento turístico de quatro estrelas sito na ..., em ..., no ..., denominado B... Club.
25- A Requerente não apresentou para os períodos em causa – Abril de 2012 a Outubro de 2013 – qualquer modelo de substituição da correspondente declaração periódica.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, bem como os depoimentos prestados pelas testemunhas C... e D... no processo 348/2104T do CAAD, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
B. DO DIREITO
i. da matéria de excepção
a.
A Requerida começa a sua Resposta por suscitar a questão da incompetência da Jurisdição Arbitral em razão da matéria, por entender, em suma, que o que está em causa no processo é a “condenação da Administração Tributária ao reconhecimento do direito à restituição do IVA que alegadamente terá liquidado e pago em excesso”.
Assim, conclui a excepcionante, tendo em conta que “o âmbito de competência dos tribunais arbitrais constituídos ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), não contempla a possibilidade de apreciação de pedidos tendentes ao reconhecimento de direitos em matéria tributária”, verifica-se a “existência de uma excepção dilatória que determina a incompetência material do tribunal arbitral, obstando ao conhecimento do pedido.”.
Ressalvado o respeito devido, não assistirá qualquer razão à pretensão em causa.
Com efeito, como se pode ler no pedido formulado pela Requerente, esta pede (sublinhado nosso):
“Nestes termos e nos demais de Direito que serão doutamente supridos por V.Exas, deve a presente acção arbitral ser julgada inteiramente provada e procedente, e por via disso, com as inerentes consequências de lei, declarados ilegais e parcialmente anulados os actos de autoliquidação de IVA de Abril de 2012 a Outubro de 2013 (...) e bem assim o acto de indeferimento da reclamação necessária em tempo deles apresentada que os confirmou”.
Como se escreveu no processo 348/2014-T[2], onde se colocou questão idêntica, e que, com a devida vénia, se transcreve:
“Afigura-se-nos que decorre com meridiana clareza da literalidade do pedido que o que a Requerente efetivamente pretende é a declaração de ilegalidade e a anulação parcial do ato de autoliquidação de IVA de março de 2012, por via da declaração de ilegalidade e anulação do ato que indeferiu a reclamação graciosa oportuna e previamente apresentada.
Nessa medida, o pedido formulado pela Requerente está compreendido no âmbito das competências dos tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD, pois nele está incluída a apreciação de pretensões de «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», como decorre do estatuído na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT. (...)
A pretensão de receber o montante de imposto que tenha sido liquidado de forma ilegal é, pois, uma consequência da eventual declaração de ilegalidade, no âmbito do dever de «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado», estatuído na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, pelo que tal pretensão não contende com a competência dos tribunais tributários que funcionam no CAAD, tanto mais que pressupõe a prévia declaração de ilegalidade do ato de autoliquidação.”
Assim, sendo perfeitamente claro que a pretensão da requerente se prende com a anulação parcial das autoliquidações por si indicadas, o que se contém na al. a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, improcede a excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral.
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b.
Seguidamente, invoca a Requerida a “Excepção peremptória por inexistência de erro na autoliquidação e consequente extemporaneidade da reclamação apresentada”.
Reconhecendo agora que “a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa constitui objecto imediato da presente acção, sendo o objecto mediato os vícios imputados às respectivas autoliquidações de IVA.”, expende a Requerida que sendo o “erro fundamento imperativo para reclamação prevista no artigo 131.º do CPPT, o sujeito passivo, caso queira dele socorrer-se, terá sempre que demonstrar a existência de erro.”, pelo que, prossegue, “a matéria reclamada ora impugnada não tem enquadramento em sede de erro de autoliquidação por inexistência de erro naquela, sendo, por isso, a reclamação apresentada intempestiva”.
Ressalvado sempre o respeito devido, entende-se que a argumentação em causa labora em erro de difícil compreensão.
Com efeito, a tempestividade da reclamação afere-se, lógica e unicamente, em função da data em que foi apresentada a declaração e do decurso, ou não, do prazo de dois anos, contado daquela data, como resulta de forma meridianamente clara da norma em causa[3].
A existência ou não de erro, como até a própria Requerida acaba por, discursivamente, reconhecer, é fundamento e não pressuposto (temporal, no caso) da reclamação.
Ou seja: a existência de erro na autoliquidação não é condição da admissibilidade da mesma, e da obrigação de conhecimento do seu mérito, mas é matéria que faz parte do próprio mérito da mesma (seu fundamento), devendo a reclamação proceder, se existir aquele erro (se tiver fundamento), e improceder se o mesmo não se verificar (se não tiver fundamento).
Deste modo, e resultando dos factos provados que a reclamação foi apresentada no prazo a que alude o artigo 131.º/1 do CPPT, o que, de resto, a própria AT o reconheceu em sede de decisão da reclamação graciosa, deverá ser julgada improcedente a arguida excepção da extemporaneidade da lide.
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i. do mérito da causa
A situação em questão no presente processo arbitral, pode-se descrever, sumariamente, da seguinte forma: tendo a Requerente liquidado, nas facturas que emitiu aos clientes do seu “Clube”, IVA à taxa normal, IVA esse que declarou e entregou ao Estado, entendendo que o IVA devido é o resultante da aplicação da taxa reduzida, e tendo em conta, por um lado, que não procedeu a qualquer rectificação nas referidas facturas, e, por outro, que nos termos da relação contratual que estabeleceu com os referidos clientes o preço fixado incluía o IVA (que ficava, portanto, contratualmente a cargo da Requerente), pretende, através da anulação das autoliquidações efectuadas, reaver os valor que entende ter sido entregue a mais ao Estado.
Face a tal situação, pretende a Requerente, como se viu já, que sejam “declarados ilegais e parcialmente anulados os actos de autoliquidação de IVA de Abril de 2012 a Outubro de 2013”, e que, como consequência disso lhe sejam restituídas as importâncias que, do seu ponto de vista, em excesso, liquidou, cobrou e entregou ao Estado.
A viabilidade da pretensão da Requerente assentará na demonstração de dois requisitos fundamentais, a saber:
- a ilegalidade dos actos de autoliquidação; e
- a legitimidade da Requerente para pedir a restituição, para si, do imposto que se verifique, naqueles, ilegalmente liquidado em excesso.
Vejamos cada uma delas.
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Começando pela última das questões referidas, a mesma foi já alvo de análise aprofundada no quadro das decisões proferidas nos processos 78/2014-T[4] e 348/2014-T do CAAD, cuja fundamentação, nessa parte, se acompanha e para a qual, por brevidade se remete.
Assim, demonstrando-se, como é o caso, que foi a Requerente quem, economicamente, suportou o imposto, nada obstará a que, demonstrando-se a ilegalidade dos actos de auto-liquidação impugnados, lhe seja devolvido o montante de imposto que se apure pago em excesso.
Deste modo, e para o que ora interessa, subscrevendo-se, na parte em questão, o decidido nos processos citados, considera-se existir razão à Requerente no que diz respeito ao que argumenta relativamente às regras nacionais e europeias de repetição do indevido, sendo desnecessário qualquer reenvio, conforme por ela sugerido, ao “Tribunal de Justiça da União Europeia para decidir a título prejudicial sobre a sua compatibilidade com a Directiva 2006/112/CE, de 28 de Novembro, nos termos do artigo 267.º do TFUE e com as regras do direito da União relativas à repetição do indevido”.
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Assente, então que, verificando-se a ilegalidade dos actos de autoliquidação objecto do presente processo, à Requerente será legítimo peticionar que lhe seja devolvido os montantes que se apurem ter sido liquidados em excesso, já que, economicamente, foi ela quem suportou o respectivo encargo, cumpre verificar se, de facto, as referidas autoliquidações foram, ou não, efectuadas em desconformidade com a lei.
A respeito desta questão, nota-se desde já que as decisões proferidas nos processos n.º 117/2012-T[5], 78/2014-T e Proc. 348/2014-T do CAAD, já atrás citados, nada contribuem para a respectiva resolução.
Com efeito, nos dois últimos arestos entendeu-se que “o pomo da discórdia advém da posição da Requerida – adotada na esteira do entendimento seguido na decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida pela Requerente – no sentido de considerar que a Requerente carece de legitimidade para peticionar a declaração daquela ilegalidade e receber a quantia de imposto indevidamente liquidada, por a Requerente não ser lesada pela ilegal liquidação de IVA, pois este foi integralmente repercutido nos clientes membros do Clube”(processo Proc. 348/2014-T), e que “é ponto assente que as liquidações cuja declaração de ilegalidade a Requerente pretende enfermam efectivamente de ilegalidade, o que não é sequer objecto de controvérsia.”, pelo que “é a falta de legitimidade da Requerente para pedir tal declaração e receber a quantia liquidada indevidamente, derivada de, no entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira, a Requerente não ser lesada pela ilegal liquidação de IVA, que foi integralmente repercutido nos seus clientes membros do clube. Numa situação deste tipo pode-se ver, doutra perspectiva, a criação de uma situação de enriquecimento sem causa da Requerente ao permitir-se-lhe a obtenção de quantias de IVA que cobrou aos seus clientes.”.
Já no primeiro dos referidos arestos (p. 117/2012-T) estava em causa “decidir sobre a taxa de IVA aplicável à prestação, paga anualmente pelos Membros do Clube (os denominados “encargos de gestão”)”.
Assim, como se viu, os processos 78/2014-T e 348/2014-T apenas contribuem para a questão previamente abordada.
Já o processo 117/2012-T conclui pela aplicação da taxa de 6% à prestação, paga anualmente pelos Membros do Clube, questão essa que, como se verá de seguida, não está, também, aqui em causa, já que a AT não questiona, seja em fase administrativa, seja em fase contenciosa, o montante da taxa a aplicar.
Questiona, isso sim, desde a fase graciosa, “que o IVA entregue ao Estado, e aqui reclamado, foi cobrado aos membros do clube á taxa normal, razão pela qual, não tendo suportado qualquer IVA adicional, também não terá direito á restituição ou dedução de qualquer quantia, uma vez que se limitou a entregar o imposto cobrado aos seus clientes e não se conhecem, de conformidade com a informação dos Serviços de Inspeção que tenham sido feitas regularizações a favor do sujeito passivo, que respeitem a rectificações da taxa de IVA.”[6].
Verifica-se, assim, que a AT entende, desde que foi chamada a pronunciar-se sobre a pretensão da Requerente, que não existirá qualquer ilegalidade nas autoliquidações impugnadas, porquanto a Requerente “se limitou a entregar o imposto cobrado aos seus clientes e não se conhecem () que tenham sido feitas regularizações a favor do sujeito passivo, que respeitem a rectificações da taxa de IVA”.
Prende-se esta matéria, como se verá de seguida, não com a legitimidade da Requerente para pedir, para si própria, a restituição do imposto que entende indevidamente recebido pelo Estado, mas com a própria legalidade das autoliquidações.
Senão vejamos: dispõe o artigo 27.º/1 do CIVA que “os sujeitos passivos são obrigados a entregar o montante do imposto exigível, apurado nos termos dos artigos 19.º a 26.º e 78.º, no prazo previsto no artigo 41.º, nos locais de cobrança legalmente autorizados”[7], sendo que o montante do imposto exigível é apurado, pela dedução, nos termos dos artigos 19.º e seguintes, a efectuar sobre o imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectuaram.
Para o efeito, e no que ao caso ora importa, os sujeitos passivos estão obrigados a “Enviar mensalmente uma declaração relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade no decurso do segundo mês precedente, com a indicação do imposto devido ou do crédito existente e dos elementos que serviram de base ao respectivo cálculo” (artigo 29.º/1/c) do CIVA).
São estas declarações que, na medida em que das mesmas decorre uma obrigação de pagamento a título de imposto constituem actos de (auto)liquidação, estão presentemente em causa.
Ora, salvo melhor opinião, o IVA incidente sobre as operações tributáveis que o sujeito passivo efectuou e que deverá constar de tais declarações, será o IVA que foi liquidado nas correspondentes facturas emitidas pelo sujeito passivo declarante, no cumprimento das obrigações legais consagradas nos artigos 36.º/5/d) e 37.º/1 do CIVA.
Tal entendimento impor-se-á, desde logo, face ao próprio Regime Comum do IVA (Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006), que dispõe expressamente (artigo 203.º) que “O IVA é devido por todas as pessoas que mencionem esse imposto numa factura.”, sendo que, nos termos do artigo 226.º daquele, a factura inclui, obrigatoriamente, a taxa do IVA aplicável[8].
Também – e como não podia deixar de ser – o ordenamento jurídico nacional aponta no mesmo sentido, dispondo, desde logo, o artigo 2.º/1/c) do CIVA, que são sujeitos passivos do imposto, “As pessoas singulares ou colectivas que, em factura ou documento equivalente, mencionem indevidamente IVA.”.
Daqui resulta, claramente, julga-se, a obrigação de entrega ao estado do IVA facturado, ainda que indevidamente, seja porque motivo for, incluindo, obviamente, a aplicação de uma taxa superior à devida.
Por isso mesmo, dispõe o artigo 29.º/7 do mesmo Código que “Deve ainda ser emitida factura ou documento equivalente quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexactidão”, devendo aqui ter-se presente o artigo 219.º da Directiva supra-referida, que dispõe que “É assimilado a factura qualquer documento ou mensagem que altere a factura inicial e a ela faça referência específica e inequívoca.”.
Por fim, mas não menos relevante, o artigo 97.º/3 do CIVA dispõe que “As liquidações só podem ser anuladas”, na sequência de recurso hierárquico, reclamação e/ou impugnação, “quando esteja provado que o imposto não foi incluído na factura ou documento equivalente passado ao adquirente nos termos do artigo 37.º”.
Deste modo fica demonstrado, julga-se, que a autoliquidação efectuada pelos sujeitos passivos de IVA, na declaração apresentada nos termos do artigo 29.º/1/c) do CIVA, apenas poderá ser anulada, mesmo em sede de impugnação, no que se refere ao apuramento do montante de imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectuaram, se o imposto em causa não estiver contido em factura ou documento equivalente passado ao adquirente.
O que, de resto, bem se compreende, já que, a mecânica do imposto em questão assenta na essencialidade da factura, pelo que, desde logo, os adquirentes dos serviços da Requerente, que detenham as facturas por esta emitidas, poderão, reunindo os requisitos que lei aplicável lhes imponha, deduzir o imposto contido nas mesmas[9].
Conclui-se, assim, que para que fosse possível anular as autoliquidações em questão, era necessário que as facturas emitidas pela Requerente, nas quais esta, confessadamente inclui 23% de IVA, fossem corrigidas, nos termos legais, para que passasse a constar das mesmas a taxa que aquela entende correcta, ou seja, 6%, bem como o correspondente montante de imposto, decorrente da aplicação desta taxa, ao valor tributável da operação.
Era necessário, por isso, que fosse seguido o procedimento estabelecido no artigo 78.º do CIVA, que dispõe, no seu n.º 1 que “As disposições dos artigos 36.º e seguintes devem ser observadas sempre que, emitida a factura ou documento equivalente, o valor tributável de uma operação ou o respectivo imposto venham a sofrer rectificação por qualquer motivo.” [10].
Não se verificando tais requisitos (dos artigos 29.º/7, 97.º/3, e 78.º/1, todos do CIVA), inexistem fundamentos legais para a anulação das autoliquidações em questão, que se verificam efectuadas em conformidade com as normas que a regulam.
Não obsta ao que vem de se concluir, a circunstância – não discutida no caso – de as operações em causa serem tributáveis à taxa de 6%, e não à taxa, facturada pela Requerente, de 23%. Com efeito, daí resulta, não a ilegalidade das autoliquidações efectuadas pela Requerente nas declarações a que alude o artigo 29.º/1/c) do CIVA, mas das liquidações efectuadas pela própria Requerente nas facturas que emitiu, em cumprimento do disposto no artigo 37.º/1 do CIVA[11], liquidações essa cuja correcção se impunha à própria requerente, nos termos atrás expostos.
Assim, como se decidiu no Acórdão do TCA-Sul de 04-07-2000, proferido no processo 1525/98[12]:
“1. A dívida de IVA de cada sujeito passivo é encontrada deduzindo da totalidade do imposto mencionado nas facturas processada aos seus clientes o imposto suportado nas facturas de aquisição de bens e serviços destinados à sua produção, tudo reportado a um certo período de tempo;
2. Se houver alteração do valor tributável dos bens ou serviços pode o sujeito passivo proceder à sua rectificação, sendo a mesma facultativa se o imposto mencionado na factura for superior, e obrigatória, se tal imposto for inferior;
3. Em caso de imposto mencionado na factura de montante superior ao devido, enquanto não for rectificado, é o mesmo devido, cabendo à AF fiscal a sua liquidação adicional, no caso de o sujeito passivo o não fizer;”.
Deste modo e por todo o exposto, deverá improceder totalmente o pedido arbitral formulado.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar totalmente improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência,
a) Absolver a Requerida do pedido; e
b) Condenar a Requerente nas custas do processo.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 257.748,06, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €4.896.00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa
08 de Novembro de 2015
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho - Relator)
O Árbitro Vogal
(Maria Forte Vaz)
O Árbitro Vogal
(Paulo Lourenço)
[1] Devendo acompanhar todas as notificações da presente decisão legalmente obrigatórias, que não às partes, que dele têm conhecimento pessoal.
[2] Disponível em www.caad.org.pt.
[3] “no prazo de dois anos após a apresentação da declaração”.
[6] Cfr. decisão da reclamação graciosa, p. 255 do PA junto aos autos.
[7] Sendo que, no presente caso, em que é obrigatória a emissão de factura, o imposto tornou-se exigível com a emissão daquela, nos termos do artigo 29.º/1/a) do CIVA.
[8] “Sem prejuízo das disposições específicas previstas na presente directiva, as únicas menções que devem obrigatoriamente figurar, para efeitos do IVA, nas facturas emitidas em aplicação do disposto nos artigos 220.º e 221.º são as seguintes: (...) 9) A taxa do IVA aplicável;”
[9] E não se diga que tratando-se todos de adquirentes individuais não lhes seria possível beneficiar do direito à dedução, desde logo porquanto o facto de serem sujeitos individuais, não preclude que sejam também sujeitos passivos do imposto.
[10] Tratando-se de uma rectificação para menos do valor do imposto respeitante às operações tributáveis operadas pela Requerente, a alteração da factura ou documento equivalente deveria ser efectuada no prazo de 2 anos, conforme decorre do n.º 3 do mesmo artigo 78.º. Não obstam a este entendimento as considerações expendidas pela Requerente na sua resposta às excepções, em que pretende restringir o âmbito do n.º 3 referido a rectificações derivadas de erro material ou manifesto, desde logo porquanto quando o legislador o quis fazer, como acontece no n.º 6 do mesmo artigo 78.º, disse-o claramente.
Não tendo sido levada a cabo qualquer rectificação das facturas emitidas, não se coloca, todavia, a questão da aplicação do n.º 3 do artigo 78.º, sendo certo que, em todo o caso, da eventual não subsunção da situação sub iudice ao disposto no artigo 78.º/3, não decorreria, de qualquer maneira, o afastamento da aplicação do n.º 1 da mesma norma, pelo que sempre deveria a Requerente – nesse caso sem dependência do prazo de 2 anos – dar observância ao disposto no artigo 36.º, fazendo constar das facturas a correcção – para menos – do valor do imposto que entende devido.
Caso tivesse procedido ela própria à rectificação das facturas emitidas, a Requerente teria de dispor também, como impõe o n.º 5, ainda do mesmo artigo, de “prova de que o adquirente tomou conhecimento da rectificação ou de que foi reembolsado do imposto”.
A este propósito, note-se que o TJUE considerou já, no seu acórdão de 26 de janeiro de 2012, proferido no processo C‑588/10, que: “Uma exigência que subordina a redução do valor tributável, tal como resulta de uma fatura inicial, à posse, pelo sujeito passivo, de um comprovativo da receção de uma fatura retificada enviado pelo adquirente dos bens ou serviços enquadra‑se no conceito de condição referido no artigo 90.°, n.º 1, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado.”.
[11] “A importância do imposto liquidado deve ser adicionada ao valor da factura ou documento equivalente, para efeitos da sua exigência aos adquirentes das mercadorias ou aos utilizadores dos serviços”.