Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 801/2014-T
Data da decisão: 2015-10-14  IVA  
Valor do pedido: € 7.085,75
Tema: IVA: Taxa a aplicar aos acessórios e peças de cadeiras de rodas e scooters de uso exclusivo por deficientes motores
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Processo arbitral n.º 801/2014-T

Requerente: A... – Material Ortopédico, Lda. (“Requerente”)

Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”)

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

  1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado no dia 5 de Dezembro de 2014.
  2. Foi designado árbitro único a signatária, Marta Gaudêncio, que atempadamente comunicou a aceitação do cargo.
  3. O tribunal arbitral constituiu-se em 12 de Fevereiro de 2015 e, em Agosto de 2015, o prazo para proferir a decisão foi prorrogado para 12 de Outubro de 2015.
  4. A sociedade A... – Material Ortopédico, Lda., titular do NIPC …, com sede na Rua …, requereu a constituição do Tribunal Arbitral ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e do artigo 10.º do D.L. n.º10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”).
  5. O pedido de constituição de tribunal arbitral tem por objecto a declaração de ilegalidade e consequente anulação das liquidações adicionais de IVA relativas ao ano de 2012, no valor total de €7.085,75, com fundamento em alegado vício de violação de lei      , por erro nos pressupostos da aplicação das verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA.
  6. A Requerente peticiona ainda a restituição das quantias já pagas, a anulação do despacho de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada e a fixação de uma indemnização correspondente ao valor dos juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento indevido.
  7. Com efeito, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra as correcções de que foi alvo e, na sequência do indeferimento da referida reclamação graciosa, apresentou recurso hierárquico contra a referida decisão.
  8. Não tendo a AT decidido no prazo legalmente fixado de 60 dias, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 66.º do CPPT, presumiu-se o indeferimento tácito do recurso hierárquico, tendo posteriormente sido requerida a constituição do presente tribunal arbitral.  
  9. No dia 14 de Julho de 2015 realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e, no dia 3 de Setembro de 2015, realizou-se a inquirição da testemunha B..., tendo a Requerente prescindido da inquirição da testemunha C....
  10. A Requerente fundamenta o pedido apresentado no seguinte:
  11. É entendimento da Requerente que se aplica a taxa reduzida de IVA (nos termos das verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA) à transmissão dos seguintes bens destinados exclusivamente a pessoas com deficiência:

                                                              i.      Acessórios para scooters (porta bagagens, bolsas de assento, malas e suportes para copos) e para cadeiras (bolsas e porta bagagens);

                                                            ii.      Acessórios para cadeiras de rodas manuais (mesas e respectivos kits de montagem);

                                                          iii.      Peças, componentes e partes de produtos facturados a revendedores para aplicação em cadeiras e scooters anteriormente vendidas (rodas, jantes, pneus, rodízios, luzes, trepa passeios, entre outros);

                                                          iv.      Baterias e carregadores de baterias.

  1. A AT considera que a transmissão destes bens não está abrangida pelas verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA, devendo portanto ser tributadas à taxa normal, desconsiderando desde logo que o objectivo da tributação à taxa reduzida destes bens visa assegurar a igualdade aos cidadãos portadores de deficiência.
  2. Com efeito, os utilizadores das cadeiras e scooters comercializados pela Requerente necessitam de as utilizar a tempo inteiro, de forma a satisfazer as suas necessidades básicas, sendo necessário que qualquer upgrade ou operação de manutenção sejam realizados de forma célere, na medida em que os utilizadores não podem esperar muito tempo pelos equipamentos de auxílio.
  3. Deverá ter-se em conta que tanto as peças como os acessórios só fazem sentido se forem utilizados em conjunto com as cadeiras e scooters na medida em que, com estas, compõem um “produto único”, ou seja, integram-se na cadeira/scooter, completando-a, sendo que esta não cumpriria as suas especificações se não as incluísse.
  4. Já as peças separadas (baterias, motores, parafusos) são transmitidas pela Requerente aos seus revendedores para aplicação em cadeiras/scooters anteriormente vendidas para realizar operações de manutenção, reparação, substituição ou actualização e não podem ser usadas noutros produtos que não sejam os da Requerente (os quais não cumpririam as funções a que se destinam se estas operações não fossem realizadas).
  5. O mero facto de estas peças serem facturadas em separado, quer aquando da venda da cadeira/scooter, quer posteriormente, quando o seu utilizador, devido à alteração do seu estado de saúde, necessita que a cadeira seja sujeita a upgrades, não pode alterar o seu enquadramento e qualificação para efeitos do IVA.
  6. Da mesma forma que o facto de as mesmas peças serem sujeitas à taxa reduzida de IVA quando facturadas em conjunto com uma cadeira, aplicando-se a taxa normal de IVA quando sejam objecto de facturação autónoma se traduz numa má técnica interpretativa por parte da AT.
  7. A Directiva IVA (Directiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro de 2006), não estabelece qualquer impedimento à aplicação da taxa reduzida aos acessórios e componentes das cadeiras de rodas e veículos similares.
  8. Aliás, no ponto 4 do Anexo III da Directiva prevê-se a tributação à taxa reduzida de IVA de “Equipamento médico, material auxiliar e outros aparelhos normalmente utilizados para aliviar ou tratar deficiências, para uso pessoal exclusivo dos deficientes, incluindo a respectiva reparação, bem como assentos de automóvel para crianças.”,
  9. Pelo que a interpretação literal do preceito, bem como o princípio da neutralidade, justificam a aplicação da taxa de IVA reduzida aos componentes das cadeiras de rodas e scooters.
  10. As regras de interpretação das normas jurídicas permitem concluir que só a aplicação da taxa reduzida de IVA a estes componentes, independentemente da forma como forem vendidos, é uma interpretação conforme à lei.
  11. Os actos de liquidação em causa enfermam de vício de violação de lei, por desconformidade entre os seus pressupostos e o conteúdo e a previsão das normas nacionais e comunitárias aplicáveis, o que acarreta a sua anulabilidade, devendo a tributação ocorrer à taxa reduzida de IVA e não à taxa normal como pretende a AT.
  12. Dada a invalidade das liquidações de IVA são também inválidos os juros compensatórios inerentes, e indevidos os pagamentos efectuados, devendo ser tais quantias restituídas à Requerente, acrescidas de juros indemnizatórios.

 

  1. A AT, na sua resposta, alegou o seguinte:
  2. A AT considera que alguns dos produtos comercializados pela Requerente, designadamente mesas e kits de montagem para acoplar a cadeiras de rodas, não têm enquadramento nas verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA porque constituem um acessório, estando sujeitos à aplicação da taxa normal e não da taxa reduzida.
  3. Considerou ainda a AT que, no que respeita à facturação de peças separadas para revendedores se trata de “uma transmissão autónoma de partes, peças e acessórios destinados aos utensílios, aparelhos ou objectos constantes do Despacho 26026/2006, que não têm enquadramento nas verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA, estando sujeitos à aplicação da taxa normal a que se refere a alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º do citado Código”.
  4. A posição da Direcção de Serviços do IVA, veiculada em pedidos de esclarecimento relativos à transmissão autónoma de partes, peças ou acessórios para  serem incorporados em cadeiras de rodas, tem sido no sentido de que a mesma deve ser tributada à taxa normal do imposto, prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º do Código do IVA.
  5. Assim como se tem considerado como correctamente tributada à taxa reduzida, a transmissão de utensílios e quaisquer aparelhos ou objetos especificamente concebidos para utilização por pessoas com deficiência, que constam da Lista aprovada pelo Despacho n.º 26026/2006, de 22 de dezembro, como determinado pela verba 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA.
  6. Tendo em consideração que as situações de tributação à taxa reduzida constituem  excepções à aplicação da taxa normal do IVA e, por via disso, representam um desvio à aplicação do regime geral do imposto, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem-se orientado, neste domínio, pela aplicação do princípio da interpretação estrita, tendo evidenciado, em diversos acórdãos, o caráter excepcional dos casos em que é permitida a aplicação de taxas reduzidas.
  7. Face ao escopo da norma da Directiva – que os bens sejam utilizados para aliviar e tratar deficiências e para uso pessoal exclusivo de pessoas com deficiência –, o legislador nacional fez tributar à taxa reduzida os bens identificados na verba 2.6, por considerar que se encontram numa fase em que cumprem com aquela função.
  8. Mas tal entendimento não se estende à transmissão de acessórios e componentes que se incorporem ou integrem no âmbito da comercialização das cadeiras de rodas e scooters.
  9. Pelo que se conclui que o que se pretendeu incluir na verba 2.6 foram as cadeiras de rodas para deficientes, como produto final, o que significa, por conseguinte, que não podem ser considerados como abrangidos pela referida verba, os bens (peças, partes e acessórios) transmitidos isoladamente pela Requerente, a pedido dos seus revendedores.
  10. Sendo certo que os componentes não se encontram previstos no Despacho 26026/2006, de 22 de Dezembro.
  11. Pelo que a Requerida pugna pela improcedência da acção.

 

II – SANEADOR

 

O Tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como dos artigos 5.º e 6.º do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos do disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

Não se verificam nulidades e questões prévias que atinjam todo o processo, pelo que se impõe conhecer o mérito do pedido.

 

III. QUESTÃO DECIDENDA

 

Está em causa o âmbito de aplicação da taxa reduzida de IVA, prevista nas verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA, nomeadamente se se considera abrangida por estas verbas a transmissão de acessórios e peças a serem incorporados em scooters e cadeiras de rodas destinadas a utilização exclusiva por pessoas portadoras de deficiência, quando os acessórios e peças sejam vendidos e/ou facturados em separado.

 

 

 

IV. MATÉRIA DE FACTO

 

1. Factos dados como provados

Com relevo para a apreciação e decisão da presente causa, dão-se por provados os seguintes factos:

  1. A Requerente encontra-se inscrita no cadastro da AT, desde 01-12-2004, para o exercício da actividade de “Agentes Especiais de Comércio por Grosso de Outros Produtos - CAE 46180”, enquadrando-se, em sede de IRC, no regime geral de tributação e, em termos de IVA, no regime normal de periodicidade mensal.
  2. A Requerente pertence ao grupo A…, o qual se encontra representado em vários países europeus, procedendo à comercialização, em território nacional e, por vezes, europeu, de materiais destinados a pessoas com deficiência, nomeadamente, cadeiras de rodas manuais, eléctricas e scooters, elevadores para camas, ajudas de marcha, canadianas, material sanitário e colchões ortopédicos, prestando ainda serviços de reparação e manutenção dos bens que comercializa.
  3. Os produtos que a Requerente comercializa são classificados pelo INFARMED como “dispositivos médicos classe I” e estão obrigados a respeitar um conjunto de normas técnicas europeias, de forma a garantir a sua integridade e a assegurar a segurança do utilizador a que se destinam.
  4. Estes produtos estão sujeitos, nomeadamente, a certificação CEE obrigatória e a certificação TUV por produto e destinam-se exclusivamente a pessoas com deficiência permanente ou evolutiva/degenerativa.
  5. Cada encomenda de cadeira de rodas é específica de acordo com as características da deficiência do utilizador, que pode evoluir, requerendo nomeadamente a adaptação futura da cadeira e/ou acessórios adicionais, no caso de deficiências degenerativas que se agravam com a progressão da doença.
  6. Em regra, a Requerente dispõe em stock de cadeiras de rodas prontas para entrega, na cor azul, as quais são facturadas como um único elemento.
  7. Já quando as cadeiras não existe em stock e são encomendadas, a facturação é feita por elemento, mas o que é vendido é uma cadeira construída com aqueles elementos.
  8. Esta situação decorre das especificidades do sistema de facturação utilizado pela Requerente, conforme instruções do grupo em que se encontra inserida, e que têm regras relativas à própria codificação e classificação dos produtos.
  9. As necessidades das pessoas com deficiência a quem se destinam os produtos comercializados pela Requerente vão-se alterando ao longo do tempo, com a progressão da doença, sendo que a utilização dos mesmos leva também ao seu desgaste, sendo a dada altura necessário proceder a reparações e substituição de peças.
  10. As peças comercializadas em separado pela Requerente são acessórios integrantes da unidade cadeira de rodas e também produtos e peças destinados a reconfigurar e actualizar cadeiras já existentes a situações novas, decorrentes da evolução da doença do utilizador.
  11. As reparações e os upgrades são realizados pela Requerente, sem débito de mão de obra, sendo apenas facturadas as peças usadas nas reparações.
  12. Os acessórios e peças vendidos pela Requerente apenas podem ser aplicados e utilizados nos produtos específicos que comercializa, sendo que alguns destes acessórios e peças apenas podem ser utilizados num determinado modelo de cadeira.
  13. Estes acessórios destinam-se a que os utilizadores dos produtos possam utilizar todas as funcionalidades dos mesmos, satisfazendo várias necessidades (locomoção, alimentação, entre outras), sendo que os produtos não cumpririam todas as suas especificações se não incluíssem estas peças.
  14. A Requerente apenas vende a revendedores.
  15. Em suma, as peças aqui em causa (mesas incorporadas, baterias e caixas para cadeiras, câmaras de ar, carregadores de baterias, rodas, jantes, pneus, rodízios, kits diversos) são vendidas quer aquando da aquisição da cadeira, quer devido à evolução da doença degenerativa, quer ainda para aplicação em cadeiras no âmbito da manutenção, reparação ou actualização destas.
  16. As baterias têm uma autonomia limitada, sendo necessária, periodicamente, a sua substituição, sempre por modelos da marca, não podendo ser utilizados outros, nem podendo estas baterias ser usadas para outras finalidades.
  17. Todas as peças vendidas em separado passam a integrar os produtos comercializados pela Requerente, não podendo ser utilizadas em produtos de outras marcas.
  18. Na comercialização dos produtos, a Requerente aplica a taxa reduzida.
  19. Em 2013, a Requerente foi sujeita a uma acção de inspecção tributária para os períodos de Agosto a Dezembro de 2012.
  20. Dessa acção de inspecção tributária resultaram as correcções aqui em causa, no montante de €7.085,75.
  21. Estas correcções estão vertidas na demonstração de liquidação de IVA n.º 2013 …, da qual resulta um valor a reembolsar de €171.205,18 e no acerto de contas realizado pela AT, deduzindo àquele valor a reembolsar o valor já reembolsado à Requerente de €173.913,68 (documento n.º 2013 … e documento n.º 2013 …), do qual resultou um saldo a favor da AT de €2.708,50, que a Requerente pagou.
  22. Foi ainda rectificado o valor do IVA a recuperar pela Requerente relativamente a Outubro, Novembro e Dezembro de 2013, no valor total de €4.350,13.
  23. A Requerente apresentou reclamação graciosa contra as correcções realizadas, resultantes da diferença entre a aplicação da taxa normal de IVA aos bens e serviços por si disponibilizados e a aplicação da taxa reduzida aos mesmos bens e serviços.
  24. Na sequência do indeferimento da reclamação graciosa, a Requerente apresentou recurso hierárquico, o qual não foi decidido no prazo legalmente previsto para o efeito.
  25. No dia 5 de Dezembro de 2014 a Requerente requereu a constituição do tribunal arbitral, tendo o pedido sido apresentado dentro do prazo legalmente previsto para o efeito.

 

2. Factos dados como não provados

Não existem factos com relevo para a decisão que não se tenham provado.

 

 

V. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, de resto consensualmente reconhecidos e aceites pelas partes.

Foi ainda ouvida a Sra. Dra. B..., Directora Financeira da Requerente à data dos factos, que demonstrou razão de ciência directa quando aos procedimentos internos da Requerente e familiaridade relativamente aos produtos comercializados pela Requerente.

 

VI. DO DIREITO

 

A título prévio, refira-se que foi já proferida decisão arbitral sobre matéria em tudo semelhante à que aqui está em causa, no âmbito do processo n.º 171/2013-T, tendo sido proferida decisão favorável à Requerente. A fundamentação da presente decisão acompanha, assim, a fundamentação do referido acórdão.

 

Aplicação das taxas reduzidas de IVA

 

A Directiva 92/77/CEE, do Conselho, de 19 de Outubro de 1992, veio harmonizar as taxas de IVA, com vista à entrada em funcionamento do mercado interno em 1 de Janeiro de 2003, sendo que, anteriormente, cada Estado Membro tinha autonomia para fixar o número de taxas existente e o respectivo quantitativo.

 

Segundo esta Directiva, “A partir de 1 de Janeiro de 1993, os Estados Membros aplicarão uma taxa normal que, até 31 de Dezembro de 1996, não pode ser inferior a 15%”. Em matéria de taxas reduzidas os Estados-Membros “podem também optar entre uma ou duas taxas reduzidas, aplicáveis apenas às categorias de bens e serviços especificados no anexo H [da Sexta Directiva] e que não podem ser inferiores a 5%”.

 

Este regime, anteriormente constante do artigo 12.º da Sexta Directiva (Directiva n.º 77/388/CEE, de 17 de Maio de 1977 – “Directiva IVA”), mantém-se em vigor na actual Directiva do IVA (Directiva n.º 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro).

Actualmente, a Directiva do IVA dispõe como segue, no Capítulo 2 do Título VIII:

 

“Secção 1

Taxa normal


Artigo 96.º


Os Estados-Membros aplicam uma taxa normal de IVA fixada por cada Estado-Membro numa percentagem do valor tributável que é idêntica para a entrega de bens e para a prestação de serviços.

Artigo 97.º

 A partir de 1 de Janeiro de 2011 e até 31 de Dezembro de 2015, a taxa normal não pode ser inferior a 15 %.

 

Secção 2

Taxas reduzidas

 

Artigo 98.º

1. Os Estados-Membros podem aplicar uma ou duas taxas reduzidas.

2. As taxas reduzidas aplicam-se apenas às entregas de bens e às prestações de serviços das categorias constantes do Anexo III.

As taxas reduzidas não se aplicam aos serviços prestados por via electrónica.

3. Ao aplicarem as taxas reduzidas previstas no n.º 1 às categorias relativas a bens, os Estados-Membros podem utilizar a Nomenclatura Combinada para delimitar com exactidão cada categoria.

 

Artigo 99.º

1. As taxas reduzidas são fixadas numa percentagem do valor tributável que não pode ser inferior a 5 %.

2. Cada taxa reduzida é fixada de modo a que o montante do IVA resultante da aplicação dessa taxa permita normalmente deduzir a totalidade do imposto relativamente ao qual é concedido o direito à dedução em conformidade com os artigos 167.º a 171.º e 173.º a 177.º. “

 

Actualmente, o Anexo III da Directiva IVA contém o elenco das transmissões de bens e prestações de serviços a que se podem aplicar as taxas reduzidas previstas no artigo 98.º, prevendo no ponto 4: “Equipamento médico, material auxiliar e outros aparelhos normalmente utilizados para aliviar ou tratar deficiências, para uso pessoal exclusivo dos deficientes, incluindo a respectiva reparação, bem como assentos de automóvel para crianças”.

 

Esta redacção é em tudo similar à do Anexo H da Sexta Directiva (entretanto revogada) que dispunha: “Equipamento médico e outros aparelhos, normalmente utilizados para aliviar ou tratar deficiências, para uso pessoal exclusivo dos deficientes, incluindo a respectiva reparação e assentos de automóvel para crianças”, sendo a principal diferença o alargamento posterior do seu escopo que passou a conter “material auxiliar”.

 

Note-se ainda que também que nos seus considerandos a Directiva IVA refere que “um sistema de IVA atinge o maior grau de simplicidade e de neutralidade se o imposto for cobrado da forma mais geral possível” (considerando 5) e que “deverá, ainda que as taxas e isenções não sejam completamente harmonizadas, conduzir a uma neutralidade concorrencial, no sentido de que, no território de cada Estado-Membro, os bens e os serviços do mesmo tipo estejam sujeitos à mesma carga fiscal, independentemente da extensão do circuito de produção e de distribuição” (considerando 7).

 

Jurisprudência do TJUE

 

Conforme pode ler-se na decisão arbitral proferida no Processo n.º 171/2013-T, de 12 de Junho de 2014:

“Sobre a aplicação de taxas reduzidas por parte dos Estados-Membros, o TJUE tem, de forma reiterada, afirmado que se trata de uma “possibilidade reconhecida aos Estados-Membros por derrogação ao princípio segundo o qual é aplicável a taxa normal” e que “as taxas reduzidas de IVA [uma ou duas] podem unicamente ser aplicadas às entregas de bens e às prestações de serviço referidas no anexo H [actual Anexo III]” – cf. Acórdão de 3 de Abril de 2008, Zweckverband zur Trinkwasserversorgung, processo n.º C-442/05 (ponto 39), e Acórdão de 18 de Janeiro de 2001, Comissão vs Espanha, processo n.º C-83/99 (ponto 18).

 

Estamos, assim, face a uma opção ou faculdade dos Estados-Membros, naturalmente limitada ao elenco de operações constante do Anexo III da Directiva IVA, e não a uma vinculação destes na transposição de operações sujeitas à taxa reduzida.

 

Acresce que os Estados-Membros podem fazer uma aplicação selectiva da taxa reduzida (a produtos ou serviços concretos e específicos), desde que a mesma não crie um risco de distorção de concorrência – cf. Acórdão de 8 de Maio de 2003, Comissão vs França, processo n.º C-384/01 (pontos 25 a 28).

 

De acordo com o TJUE, a introdução e a manutenção de taxas reduzidas de IVA só são admissíveis se não violarem o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA, “o qual se opõe a que mercadorias semelhantes, que estão, portanto, em concorrência entre si, sejam tratadas de maneira diferente do ponto de vista do IVA” – cf. Acórdão de 3 de Abril de 2008, Zweckverband zur Trinkwasserversorgung, processo n.º C-442/05 (ponto 42); Acórdão de 28 de Outubro de 2003, Comissão vs Alemanha, processo n.º C-109/02 (ponto 20); Acórdão de 8 de Maio de 2003, Comissão vs França, processo n.º C-384/01 (ponto 25), e Acórdão de 3 de Maio de 2001, Comissão vs França, processo n.º C-481/98 (pontos 21 e 22).

 

É, por conseguinte, recorrente a afirmação do Tribunal de Justiça no sentido de que os Estados-Membros têm de respeitar o princípio da neutralidade fiscal quando aplicam taxas reduzidas.

 

Além do mais, por configurar uma excepção ao princípio geral (que é o da aplicação de uma taxa normal), a aplicação de taxas reduzidas deve ser, de acordo com a jurisprudência comunitária, interpretada de forma estrita, conforme salientado nos Acórdãos proferidos nos processos n.ºs C-83/99 (ponto 19) e C-384/01 (ponto 28), acima citados.

 

No entanto, a este respeito, deve esclarecer-se que interpretação estrita não é equivalente a interpretação restrita ou restritiva. A jurisprudência do TJUE utiliza a palavra “estrita” (em inglês, “strictly”, em francês “de manière stricte” e em castelhano “estrictamente”), cujo significado é “precisa”, “rigorosa” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, I Volume, 2001). Assim, o que este Tribunal Europeu preconiza é uma interpretação literal, também denominada de declarativa, e não, como refere a AT, uma interpretação restritiva.

 

Na realidade, a correspondência literal ou rigorosa com o texto da norma não implica uma restrição do sentido desta, típica da interpretação restritiva assente no pressuposto de que o texto disse mais do que aquilo que se pretendia dizer, mas sim a eleição de um sentido que o texto directa e claramente comporte, por ser esse [sentido] aquele que corresponde ao pensamento legislativo (cf. João Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 2010, 18.ª reimpressão, pp. 185 e 186).

 

Na interpretação estrita ou declarativa, “o sentido literal, ou um dos sentidos literais, cobre aquilo que, definitivamente, se apura ser o que ela pretende exprimir” (cf. Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e teoria geral, Almedina, 10.ª ed., 1999, p. 418). Na interpretação restritiva (tal como na interpretação extensiva), pelo contrário, corrige-se, em certo sentido, o texto da lei, abandona-se o sentido ou sentidos literais possíveis (cf. idem, 419-421).

 

Ora, a existir um qualquer princípio especial de interpretação no domínio da aplicação das taxas reduzidas de IVA, tal princípio só pode ser o de integral e rigoroso respeito pelo sentido (ou sentidos) verbal possível das expressões constantes da lei (princípio de interpretação estrita ou declarativa). Pelo contrário, afigura-se inadmissível a consideração de um princípio que tome como regra geral que o legislador foi traído pelas palavras que usou, revelou um mau uso da sua língua e exprimiu mais do que intentava (suposto princípio de interpretação restritiva).

 

 De notar que apenas no Acórdão C-384/01 (ponto 28) é empregue a locução “restritivamente”, embora tal se deva, por certo, a lapso, pois tal referência é realizada no quadro da invocação do princípio desenvolvido pela jurisprudência comunitária “segundo o qual as isenções ou derrogações devem ser interpretadas restritivamente” e ao compulsarmos a jurisprudência do TJUE constatamos que esta se refere de forma consistente a interpretação estrita (literal) e não restritiva.

 

Por fim, e ainda em matéria de interpretação da Directiva IVA, o TJUE sustenta que esta deve atender “não apenas aos respectivos termos mas também ao seu contexto e aos objectivos prosseguidos pela regulamentação em que está integrada” – cf. Acórdão acima citado, Zweckverband zur Trinkwasserversorgung, processo n.º C-442/05 (ponto 30), num claro apelo aos elementos sistemático e racional ou teleológico.

 

Neste aresto em concreto (C-442/05), discutia-se a aplicação da taxa reduzida prevista para o abastecimento de água à operação de instalação de um ramal de ligação individual às redes de distribuição de água6 (ponto 11 do Acórdão).

 

O TJUE concluiu que, apesar de a instalação do referido ramal de ligação ser distinta da distribuição de água (ponto 12), pelo facto de esse ramal ser indispensável à disponibilização da água ao público (ponto 34), pois sem o mesmo a água não seria distribuível ao consumidor, se devia considerar que a respectiva instalação (do ramal) se encontra igualmente abrangida pelo conceito de abastecimento de água mencionado na categoria 2 do anexo H da Sexta Directiva (ponto 40), reconhecendo o carácter acessório e instrumental daquela prestação no âmbito do fornecimento de água.”

 

O Código do IVA

 

O Código do IVA prevê no n.º 1 do artigo 18.º as seguintes taxas de imposto:

“a) Para as importações, transmissões de bens e prestações de serviços constantes da lista I anexa a este diploma, a taxa de 6 %;

b) Para as importações, transmissões de bens e prestações de serviços constantes da lista II anexa a este diploma, a taxa de 13 %;

c) Para as restantes importações, transmissões de bens e prestações de serviços, a taxa de 23%7.” 

 

Na situação em análise estão em discussão as seguintes verbas da citada Lista I, através da qual o legislador português consagrou a faculdade de aplicação de taxas reduzidas deste imposto:

“2.6. Aparelhos ortopédicos, cintas médico-cirúrgicas e meias medicinais, cadeiras de rodas e veículos semelhantes, accionados manualmente ou por motor, para deficientes, aparelhos, artefactos e demais material de prótese ou compensação destinados a substituir, no todo ou em parte, qualquer membro ou órgão do corpo humano ou a tratamento de fracturas e as lentes para correcção de vista, bem como calçado ortopédico, desde que prescrito por receita médica, nos termos a regulamentar pelo Governo no prazo de 30 dias.

 (…)

2.9. Utensílios e quaisquer aparelhos ou objectos especificamente concebidos para utilização por pessoas om deficiência, desde que constem de uma lista aprovada por despacho conjunto dos Ministros das Finanças, da Solidariedade e Segurança Social e da Saúde.”

 

A lista a que se refere a verba 2.9 foi aprovada pelo Despacho Conjunto n.º 26026/2006, publicado em 22 de Dezembro de 2006 e inclui, com relevância para a situação que aqui nos ocupa, os seguintes produtos:

9) Assentos e apoios para a cabeça, costas, braços e pés, específicos para cadeiras de rodas;

10)  Auxiliares de elevação para colocar as pessoas com deficiência, ou as pessoas sentadas em cadeiras de rodas, dentro do carro;

(…)

39)  Plataformas elevatórias e elevadores para cadeiras de rodas (não possuem cobertura e não trabalham dentro de um poço), elevadores para adaptar a escadas (dispositivos com assento ou plataforma fixada a um ou mais varões que seguem o contorno e ângulo da escadaria), trepadores de escadas e rampas portáteis para cadeiras de rodas;

(…)

48) Sistemas para controlo dos movimentos, direcção de marcha e travagem de cadeiras de rodas;”

 

A situação em análise

Cumpre aferir se o legislador português visou restringir a aplicação da taxa reduzida às cadeiras de rodas e veículos semelhantes (scooters) vendidas como um todo, não incluindo na verba 2.6 da lista I anexa ao Código do IVA a transmissão autónoma dos acessórios ou componentes que fazem parte dessas cadeiras.

 

De acordo com o artigo 98.º da Directiva IVA, a aplicação de taxas reduzidas, dentro do âmbito das categorias constantes do Anexo III da Directiva IVA, encontra-se na disponibilidade do legislador nacional, que pode determinar a transposição dessas categorias, total ou parcialmente, ou não as transpor de todo.

 

Resulta também da leitura da categoria 4 do mencionado Anexo III da Directiva IVA que aquela abrange a transmissão de qualquer equipamento e material normalmente utilizados para aliviar ou tratar deficiências, para uso pessoal exclusivo dos deficientes, incluindo a respectiva reparação.

 

Conclui-se, portanto, que do ponto de vista da Directiva do IVA não se verifica qualquer impedimento à aplicação da taxa reduzida à venda de acessórios e componentes de cadeiras de rodas e veículos similares.

 

Mas, será que o direito interno também o prevê? Para o aferir, cumpre analisar o elemento literal, bem como o contexto e os objectivos prosseguidos pela verba 2.6, devendo esta análise resultar numa interpretação declarativa (e não restritiva, ao contrário do que sustenta a AT).

 

Considerando o elemento literal, a verba 2.6 prevê “cadeiras de rodas e veículos semelhantes, accionados manualmente ou por motor”. Assim, permite que se considerem abrangidas pela previsão normativa as transmissões dos acessórios ou componentes que se incorporem ou integrem no âmbito da comercialização das cadeiras de rodas e das scooters, independentemente da forma como forem facturadas bem como, no âmbito do apoio pós-venda, de reparação ou substituição de peças e componentes, sem as quais as mencionadas cadeiras deixariam de poder ser utilizadas.

 

Com efeito, parece evidente que peças como baterias, motores, câmaras de ar e rodas são essenciais para que as cadeiras de rodas e scooters cumpram integralmente as duas funções. O mesmo se dirá de peças como mesas, suportes para copos, entre outros, que são

 indispensáveis para que os utilizadores deficientes possam beneficiar de forma cabal de todas as funcionalidades das cadeiras.

 

Importa ainda referir que todos estes elementos produzidos e comercializados pela Requerente são especificamente concebidos para essa finalidade e insusceptíveis de utilização noutros equipamentos e de utilização autónoma (ou seja, são instrumentais às cadeiras de rodas para os quais são produzidos). Esses acessórios e em especial as peças são incorporados e fazem parte integrante da cadeira de rodas, sendo frequentemente utilizáveis apenas num determinado modelo de cadeira de rodas.

 

Conforme pode ler-se na decisão proferida no âmbito do processo n.º 171-2013-T, “Compulsada a jurisprudência do TJUE, constata-se que, sem prejuízo de estar consagrado o princípio da interpretação estrita no domínio de aplicação das taxas reduzidas de IVA, aquele Tribunal com competência para interpretar de modo uniforme o sistema comum do IVA harmonizado pela Directiva 2006/112/CE, considera que operações indispensáveis e instrumentais (acessórias) a fornecimentos abrangidos pela taxa reduzida também deviam, elas próprias, ser abrangidas pela taxa reduzida, nos termos do Acórdão proferido no processo n.º C-442/05 acima mencionado.

 

De igual modo, o princípio da neutralidade preconiza esse entendimento, pois, caso contrário, haveria uma diferença de tratamento entre a cadeira de rodas comercializada e facturada num só artigo e aquela em que, face às especificidades das patologias ou por razões que se prendem com o sistema de organização interna da Requerente, os diversos itens que compõem a cadeira são facturados separadamente. Em ambas as situações se trata da venda de uma cadeira de rodas, ainda que possa ter especificações diversas consoante o caso (deficiência).

 

No que se refere às peças e componentes, como sejam as baterias e os motores, que são em regra comercializados separadamente no contexto da manutenção ou da reparação de uma cadeira de rodas ou scooter, não se vislumbra justificação atendível que favorecesse a aplicação de uma taxa reduzida a uma cadeira de rodas nova e uma taxa normal a uma parte dessa cadeira, por exemplo o motor, para integração numa cadeira usada. Ou, ainda, uma tributação à taxa normal da aplicação ulterior (à aquisição da cadeira de rodas) de uma parte que se tenha tornado necessária, em virtude da evolução de uma doença degenerativa.

Acresce que, à face da formulação legal, nada indica que uma restrição desta natureza estivesse incluída no pensamento legislativo, de molde a afastar os acessórios e peças das cadeiras de rodas, quando facturados ou comercializados em separado, quando é sabido que o seu único destino possível é o da integração nas referidas cadeiras de rodas, inexistindo qualquer risco de desvio para outras finalidades que não as que a lei quis tutelar com a verba 2.6.

 

Note-se que não estão em causa acessórios e peças que se incorporam num processo produtivo, mas sim acessórios e peças que, pelas suas características objectivas, se podem aplicar, sem ser objecto de qualquer transformação posterior, nas cadeiras de rodas fazendo parte das mesmas.

 

No que se refere à finalidade do regime, a razão extrafiscal que presidiu à consagração da taxa reduzida na verba 2.6, que se consubstancia num benefício social de natureza financeira, está presente, quer na venda e comercialização das cadeiras de rodas sob um único artigo ou como um único produto, quer na sua transacção em componentes separados e peças sobressalentes essenciais ao seu funcionamento, manutenção e continuidade na evolução da deficiência. O que o legislador nacional pretendeu facilitar e proteger foi o acesso das pessoas com deficiência aos aparelhos e equipamentos especiais de que necessitam para se movimentarem. Ora, como se sabe, sem baterias e sem motores as cadeiras de rodas eléctricas não andam …

 

Por outro lado, a invocação, por parte da AT, do argumento da Nomenclatura Combinada não procede, porquanto esta Nomenclatura foi criada para efeitos estatísticos e de aplicação da pauta aduaneira comum e não tem qualquer relevo em matéria de classificação de bens e serviços para efeitos de IVA em Portugal (com uma única excepção que, de seguida, se assinala).

 

Se é verdade que de acordo com o artigo 98.º, n.º 3 da Directiva IVA os Estados-Membros podem utilizar a Nomenclatura Combinada para delimitar com exactidão cada categoria sujeita à taxa reduzida, certo é que o legislador português não seguiu esse caminho12 (nem a tal era obrigado).

 

Com efeito, a única situação em que o Código do IVA recorre à Nomenclatura Combinada para definir o alcance do regime tributário dos bens, para efeitos de IVA, é a prevista no artigo 14.º, n.º 1, alínea i), para efeitos de determinação do regime de isenção (completa ou taxa zero), segundo o qual são isentas as “transmissões de bens de abastecimento postos a bordo das embarcações de guerra classificadas pelo código 8906 00 10 da Nomenclatura Combinada, quando deixem o país com destino a um porto ou ancoradouro situado no estrangeiro” e que não tem qualquer aplicação no caso concreto em análise.

 

É, pois, irrelevante, para efeitos de IVA, a classificação que as peças em causa tenham na Nomenclatura Combinada. A Lista I não recorre a essa Nomenclatura que não serve assim de guia interpretativo das normas definidoras dos bens sujeitos à taxa reduzida.

 

Salienta-se a este respeito que no projecto de relatório de inspecção a AT propunha a liquidação de IVA na comercialização dos veículos denominados “scooters” com base no citado argumento da Nomenclatura Combinada, em concreto por terem uma classificação diversa da das cadeiras de rodas.

 

Esta correcção foi abandonada pela própria AT em conformidade com a posição constante da Informação Vinculativa, com Despacho do Subdirector Geral dos Impostos, exarada no Processo n.º 1059, onde foi definido o entendimento de que “as scooters de mobilidade, enquanto equipamento especificamente concebido para a utilização por pessoas com deficiência, pelas suas características técnicas de utilização podem ser considerados veículos semelhantes a cadeiras de rodas e como tal enquadradas na verba 2.6. da Lista I anexa ao Código do IVA e, consequentemente, as suas transmissões passíveis da taxa 6%”.

 

Dito de outro modo, foi a própria AT que na referida Informação desvalorizou e abandonou (e bem) o critério da Nomenclatura Combinada no que se refere ao segmento das “scooters”. Desta forma, mal se compreende que tenha mantido essa fundamentação para as demais correcções.”

 

Parece-nos, assim, que uma correcta interpretação da verba 2.6 da Lista I anexa ao Código do IVA abrange as partes das cadeiras de rodas e das scooters que estão na origem dos actos de liquidação de IVA controvertidos.

 

E ainda que assim não se entendesse, tais partes sempre estariam compreendidas na hipótese normativa da verba 2.9, pois configuram objectos especificamente concebidos para utilização por pessoas com deficiência. Com efeito, tais partes encontram-se previstas na lista aprovada pelo despacho conjunto a que acima se fez referência (Despacho Conjunto n.º 26026/2006), pois a mencionada lista não deve limitar a hipótese normativa constante da primeira parte da verba 2.9 que contempla: “Utensílios e quaisquer aparelhos ou objectos especificamente concebidos para utilização por pessoas com deficiência”.

 

Efectivamente, consideramos que a tipificação administrativa pelo mencionado Despacho Conjunto, ainda que assente numa norma de remissão ou reenvio, não pode restringir o alcance da hipótese normativa constante da verba 2.9, sob pena de inconstitucionalidade formal e orgânica, pelo que a enunciação dos utensílios, objectos e aparelhos ou é inválida (caso vise restringir o âmbito da verba 2.9 em apreço) ou ser-lhe-á apenas de reconhecer carácter exemplificativo.

 

À face do exposto, é de reiterar o entendimento de que os acessórios e peças na origem dos actos de liquidação de IVA sempre seriam enquadráveis na verba 2.9 (caso não o fossem na verba 2.6) e tributados à taxa reduzida de IVA, atentas as características específicas desses acessórios e peças supra explicitadas.

 

Por esta razão, as liquidações de IVA e dos juros compensatórios consequentes carecem de fundamento legal, não podendo manter-se na ordem jurídica.

 

 

Juros indemnizatórios

Cumula a Requerente com o pedido anulatório do acto tributário objecto dos presentes autos, o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios sobre a quantia por si paga na sequência da notificação das liquidações ora anuladas.

 

É pressuposto da atribuição de juros compensatórios que o erro em que laborou a AT lhe seja imputável ( Cfr. artigo 43.º da LGT).

 

No caso em análise nos presentes autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos actos de liquidação, pelas razões que se apontaram anteriormente, há lugar a reembolso do imposto pago pela Requerente, por força do disposto nos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.

 

É também claro nos autos que a ilegalidade do acto de liquidação de imposto impugnado é directamente imputável à Requerida, que, por sua iniciativa, o praticou sem suporte legal, padecendo de uma errada apreciação dos factos juridicamente relevantes e consequente aplicação das normas jurídicas ao caso concreto.

 

Assim, a Requerente tem direito ao recebimento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT.

 

Os juros indemnizatórios são devidos à Requerente desde a data em que efectuou o pagamento da prestação do imposto em causa nos autos/data em que os valores em causa foram deduzidos ao valor do IVA a recuperar pela Requerente, até ao integral reembolso do montante pago, à taxa legal.

 

***

 

 

 

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)      Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar a anulação das liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios, o acerto de contas realizado, a rectificação do valor do IVA a recuperar pela Requerente relativamente aos meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2013 e a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada;

b)      Condenar a AT a restituir à Requerente os montantes pagos e compensados, acrescidos de juros indemnizatórios, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT;

c)      Condenar a AT nas custas do processo.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €7.085,75, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €612, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

A redacção da presente decisão arbitral rege-se pela ortografia antiga.

 

Lisboa, 14 de Outubro de 2015

 

O Tribunal Arbitral

 

(Marta Gaudêncio)