Decisão Arbitral[1]
Requerente - A…, I.F.I.C. – Instituição Financeira de Crédito, S.A. – Em Liquidação
Requerida - Autoridade Tributária e Aduaneira
O Árbitro Dra. Sílvia Oliveira, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 1 de Junho de 2015, com respeito ao processo acima identificado, decidiu o seguinte:
1. RELATÓRIO
1.1. A…, I.F.I.C. – Instituição Financeira de Crédito, S.A. – Em Liquidação (doravante designada por “Requerente”), pessoa colectiva nº …, com sede …, Paço de Arcos, apresentou um pedido de pronúncia arbitral e de constituição de Tribunal Arbitral Singular, no dia 18 de Março de 2015, ao abrigo do disposto no artigo 4º e n.º 2 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 Janeiro [Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT)], em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “Requerida”).
1.2. A Requerente pretende que o Tribunal Arbitral declare a “(…) ilegalidade dos Actos de Liquidação Oficiosa do Imposto Único de Circulação, relativos aos anos fiscais de 2009 a 2012 devidamente juntos e indicados (…)”.
1.3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 20 de Março de 2015 e foi notificado à Requerida em 27 de Março de 2015.
1.4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6º, nº 2, alínea a) do RJAT, a signatária foi designada como árbitro, em 13 de Maio de 2015, pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, tendo a nomeação sido aceite, no prazo e termos legalmente previstos.
1.5. Na mesma data, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11º nº 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6º e 7º do Código Deontológico.
1.6. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 1 de Junho de 2015, tendo sido proferido despacho arbitral na mesma data, no sentido de notificar a Requerida para, nos termos do disposto no artigo 17º, nº 1 do RJAT, apresentar resposta, no prazo máximo de 30 dias e, caso quisesse, solicitar a produção de prova adicional.
1.7. Em 2 de Julho de 2015, a Requerida apresentou a sua Resposta, tendo-se defendido por excepção (caducidade do direito à acção) e por impugnação, tendo concluído a mesma no sentido de que “deve ser julgada procedente a excepção invocada, ou caso assim não se entenda, deve ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, por não provado, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a entidade Requerida do pedido”.
1.8. Em 8 de Julho de 2015, foi emitido despacho arbitral no sentido de notificar a Requerente para, no prazo de dez dias, se pronunciar sobre a matéria de excepção deduzida pela Requerida na Resposta.
1.9. Em 10 de Agosto de 2015, a Requerida veio juntar aos autos o respectivo processo administrativo (notificado ao Tribunal Arbitral e à Requerente em 14 de Agosto de 2015).
1.10. Em 16 de Setembro de 2015, na sequência do despacho arbitral de 8 de Julho de 2015 (vide ponto 1.8., supra) e tendo em consideração o facto de a Requerente nada ter vindo dizer ao processo no prazo acima referido (no que diz respeito à matéria de excepção deduzida pela Requerida), com o objectivo de garantir o princípio do contraditório e de igualdade das partes (de acordo com o disposto no artigo 16º, alíneas a) e b) do RJAT), foi proferido novo despacho arbitral a notificar ambas as Partes para se pronunciarem, no prazo de cinco dias, sobre a possibilidade de dispensa da realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, bem como da dispensa da apresentação de alegações.
1.11. Contudo, nenhuma das Partes veio apresentar qualquer resposta ao despacho arbitral referido no ponto anterior.
1.12. Nestes termos, foi decidido pelo Tribunal Arbitral, em despacho datado de 24 de Setembro de 2015 (notificado às partes em 25 de Setembro de 2015), em consonância com os princípios processuais consignados no artigo 16º RJAT, da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar [alínea c)], da cooperação e da boa-fé processual [alínea f)] e da livre condução do processo consignado no artigo 19º e 29º, nº 2 do RJAT, tendo ainda em conta o princípio da limitação de actos inúteis previsto no artigo 130º do Código do Processo Civil (CPC) [aplicável por força do disposto no artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT], prescindir da realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT bem como prescindir da apresentação de alegações, tendo sido designado o dia 30 de Setembro de 2015 para efeitos de prolação da decisão arbitral.
1.13. No âmbito do despacho arbitral referido no ponto anterior, foi a Requerente ainda advertida que “até à data da prolação da decisão arbitral deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 4º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e comunicar esse pagamento ao CAAD”.
2. CAUSA DE PEDIR
2.1. A Requerente pretende com o pedido de pronúncia arbitral que seja declarada “(…) a ilegalidade dos Actos de Liquidação Oficiosa de Imposto Único de Circulação, relativo aos anos (…) de 2009 a 2012 (…) referentes aos veículos automóveis com as matrículas (…) descritas (…)” e que seja condenada “a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas suportadas (…)”.
2.2. “A Requerente é uma Instituição Financeira de Crédito que se dedicava, entre outros, à celebração de contratos de crédito de locação financeira e aluguer de longa duração, tendo por objecto veículos automóveis”.
Da Tempestividade do Pedido de Constituição do Tribunal Arbitral
2.3. Neste âmbito, refere a Requerente que “em Dezembro de 2014, (…) foi notificada (…) das decisões de indeferimento das Reclamações Graciosas (…) apresentadas (…) contra os actos de liquidação oficiosa do Imposto Único Automóvel relativos aos anos fiscais de 2009 a 2012, anteriormente notificados (…)”.
2.4. Refere ainda a Requerente que “nos termos do disposto no artigo 10°, nº 1 do RJAT, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral deve ser apresentado no prazo de 90 dias, contados a partir (…)” nomeadamente, “(…) do indeferimento de reclamação graciosa” pelo que, segundo a Requerente, “o prazo para apresentação do pedido de constituição de tribunal arbitral termina no próximo dia 18 de Marco de 2015”, estando por isso ainda a correr à data da interposição do pedido de constituição deste Tribunal Arbitral (18 de Março de 2015).
2.5. Assim, conclui a Requerente que “o pedido de constituição de Tribunal Arbitral em matéria Tributária é tempestivo”.
Da cumulação de pedidos
2.6. Nesta matéria, refere a Requerente que “não obstante o elevado número de actos de liquidação oficiosa em causa, todos eles se referem à liquidação do mesmo tributo (Imposto Único de Circulação, relativos aos anos fiscais de 2009 a 2012), sendo que os fundamentos de facto e de direito (…), que consubstanciam a ilegalidade dos referidos actos, são os mesmos”.
2.7. Assim, para a Requerente “encontram-se preenchidos os pressupostos legais que permitem a cumulação de pedidos (…)”.
Da falta de responsabilidade da Requerente
2.8. “A ora Requerente não pode concordar, nomeadamente, com a imputação subjectiva da responsabilidade pelo pagamento do referido imposto nos anos em causa, na medida em que, a data da sua exigibilidade, não era legalmente sujeito passivo do mesmo, porquanto o veículo objecto do imposto encontrava-se abrangido por um contrato de locação, sendo assim responsável o respectivo locatário”.
2.9. Com efeito, refere a Requerente que “no âmbito da sua actividade comercial (…) celebrou os contratos (…) identificados (…)”, “por meio dos quais locou os veículos com as matrículas igualmente (…) descriminadas (…)”.
2.10. Reitera a Requerente que “não obstante (…) ser efectivamente proprietária dos veículos em causa, à data da exigibilidade dos IUC's alegadamente em falta, a verdade é que a responsabilidade pelo seu pagamento não deve recair sobre a mesma, mas antes sobre os respectivos locatários (…)”.
2.11. Assim, “a responsabilidade pelo pagamento do imposto sub judice recai indiscutivelmente (…) sobre os respectivos locatários (…) e nunca sobre a (…) Requerente”.
2.12. Continua a Requerente referindo que “o entendimento supra explicitado é acompanhado por parte significativa da nossa Doutrina (…)”, tendo a Requerente apresentado “(…) Reclamação Graciosa contra os actos de Liquidação Oficiosa em causa (...)”.
2.13. “Em resposta à Reclamação Graciosa apresentada, veio a Autoridade Tributária e Aduaneira indeferir, na grande maioria dos casos, o pedido formulado, determinando o prosseguimento do processo de liquidação oficiosa (…)”.
2.14. Sucede que, continua a Requerente, “aquando do exercício do direito de Audição Prévia, a Requerente procedeu à identificação fiscal dos locatários/utilizadores dos veículos locados (…)”, pelo que, “desta forma (…) deu cumprimento á obrigação específica constante do artigo 19° do CIUC, ou seja, forneceu a Autoridade Tributária e Aduaneira os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados”.
2.15. Em consequência, “a Autoridade Tributária e Aduaneira não poderia ter iniciado a liquidação oficiosa contra a (…) Requerente uma vez que já sabia quem eram os locatários dos veículos automóveis em causa e tinha na sua posse os elementos de identificação fiscal dos mesmos”.
2.16. Em face do exposto, para a Requerente, “é forçoso concluir que (…) não era (nem podia ser considerada), comprovadamente, responsável pela liquidação e pagamento do IUC nos anos fiscais de 2009 a 2012 e respeitantes aos veículos automóveis (…) discriminados (…) nem mantinha com eles qualquer relação jurídica que pudesse potenciar a exigibilidade, contra si, do imposto em causa”.
2.17. Assim, segundo a Requerente, “não se encontrando preenchidos os pressupostos que fundamentam a relação jurídico-tributária (…) a imputação à Requerente da responsabilidade do IUC nos anos fiscais de 2009 a 2012 e respeitantes aos veículos em causa, jamais a Autoridade Tributária e Aduaneira poderá vir exigir-lhe tal imposto por manifesta falta de responsabilidade subjectiva pelo seu pagamento (…)”.
2.18. E conclui a Requerente peticionando que:
2.18.1. Seja admitido “o presente pedido de constituição de Tribunal Arbitral, uma vez que o mesmo é tempestivo”;
2.18.2. Seja admitida “a apreciação conjunta da legalidade dos actos de liquidação oficiosa juntos (…) uma vez que se encontram preenchidos os pressupostos legais que permitem a cumulação de pedidos (…)”;
2.18.3. Seja declarada “a ilegalidade, dos Actos de Liquidação Oficiosa do Imposto Único de Circulação, relativa aos anos fiscais de 2009 a 2012, juntos (…) referentes aos veículos automóveis com as matriculas (…) descritas (…)”.
3. RESPOSTA DA REQUERIDA
3.1. A Requerida, na resposta apresentada, defendeu-se por excepção e por impugnação nos termos a seguir descritos.
POR EXCEPÇÃO
Da Caducidade do Direito à Acção
3.2. Neste âmbito, segundo a Requerida, “o pedido formulado reconhece e é absolutamente consentâneo com essa evidência: o Requerente peticiona (unicamente) que o tribunal se digne apreciar a legalidade dos actos de liquidação oficiosa juntos (…)” mas “(…) o objecto imediato do presente processo seria ou haveria de ser o indeferimento das reclamações graciosas apresentadas pela Requerente”.
3.3. Ora, defende a Requerida que “os documentos contestados (…) têm como data limite de pagamento 2013/12/1 e a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral somente em 2015/03/18 (…)” pelo que, ainda segundo a Requerida, “(…) se mostra (claramente) ultrapassado o prazo legalmente definido para a impugnação de actos de liquidação em sede arbitral”.
3.4. Neste contexto, para a Requerida, “o pedido formulado é intempestivo e o tribunal não pode dele conhecer” porquanto, “tendo sido ultrapassado o prazo de impugnação directa dos actos liquidação de imposto (ou seja, dos actos primários), a tempestividade do pedido apenas poderia fundar-se na existência de um qualquer meio de impugnação gracioso dos actos de liquidação onde tivesse sido prolatada decisão a negar/indeferir, total ou parcialmente, as pretensões aí formuladas pelo sujeito passivo de imposto (naquilo que constituiria um acto de segundo grau)” (sublinhado nosso).[2][3]
POR IMPUGNAÇÃO
Da falta de responsabilidade da Requerente
3.5. Neste âmbito, a Requerida não concorda com a posição defendida pela Requerente (de que à data da exigibilidade do imposto não era legalmente sujeito passivo de imposto, “porquanto o veículo objecto do imposto encontrava-se abrangido por contrato de locação financeira, sendo assim responsável o respectivo locatário”), dado que “pese embora, o raciocínio da Requerente se encontrar correcto, pelo menos num plano teórico, o mesmo só terá aplicação prática, se a Requerente tivesse efectuado a comunicação à Requerida nos termos do artigo 19º do CIUC”, “norma legal que a Requerente não pode afirmar desconhecer”.
3.6. E, prossegue a Requerida, “ao não ter dado cumprimento à comunicação (…) do artigo 19º do CIUC, a Requerente só de si mesma se pode queixar, colocando-se nesta situação (…)” pelo que “(…) terá, forçosamente que suportar a responsabilidade pelo pagamento do imposto (…) na medida em que (…) reconhece, era proprietária daqueles veículos”.
3.7. Por outo lado, refuta a Requerida que a Requerente lhe tenha fornecido “(…) a identificação fiscal dos locatários aquando do exercício do direito de audição” porquanto, neste âmbito, não foi “(…) obtida qualquer reacção do reclamante (…)”.
3.8. Com efeito, reitera a Requerida, “a Requerente não efectuou a comunicação específica do artigo 19º do CIUC antes da liquidação oficiosa, nem tão pouco exerceu, como afirma, o direito de audição prévia”, tendo apresentado “(…) após a notificação da liquidação oficiosa pela Requerida (…), nos termos legalmente previstos, reclamação graciosa onde apresenta um documento elaborado por si, sob a forma de tabela, onde identifica as liquidações reclamadas associadas às respectivas matrículas, bem como os demais elementos identificadores”.
3.9. Da análise efectuada pela Requerida, da tabela acima referida, em sede de apreciação da reclamação graciosa apresentada pela Requerente, resultou em seu entender que “(…) contrariamente ao alegado, não se preenchem a todos os veículos, os requisitos legais que determinam a equiparação a proprietário dos locatários e que, consequentemente, desonerariam o Reclamante do pagamento do Imposto em causa, pelo que será de manter as liquidações referentes aos veículos em que o reclamante conste como proprietário e em relação aos quais não exista registo da existência de qualquer contrato de locação”.
3.10. Assim, face ao acima exposto, concluiu a Requerida que “só com a respectiva comunicação nos termos do artigo 19º do CIUC poderia haver a equiparação entre proprietário e locatário” pelo que “nos casos em que a Requerida dispunha de tal comunicação, procedeu à anulação das liquidações emitidas, mantendo quanto às restantes liquidações (…) a responsabilidade pelo pagamento do imposto, em nome da Requerente, enquanto proprietária”.
3.11. No que diz respeito à prova, “tendo presente o ónus da prova que se consubstancia no princípio de que quem alega um determinado facto constitutivo de um direito, tem necessidade de prová-lo (…), para a Requerida, a Requerente alega factos que servem de fundamento e que substancialmente configuram a alegada posição jurídica de que se arroga, sem que o prove”, “de nada relevam as afirmações da Requerente de que a Requerida tinha conhecimento das locações (…) já que a mesma não logrou demonstrar ter dado conhecimento à Requerida dos factos que agora alega”.
3.12. Nestes termos, alega a Requerida que “(…) os argumentos da Requerente, não podem de todo proceder, porquanto fazem uma interpretação e aplicação das normas legais subsumíveis ao caso sub judice notoriamente erradas”, “desde logo, porque o entendimento propugnado pela Requerente decorre de uma enviesada leitura da letra da lei (…), mas também de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado (…) e, bem assim, em todo o CIUC”.
3.13. Com efeito, prossegue a Requerida “mesmo estando perante contratos de locação financeira outorgados pela Requerente, sempre cabia a esta última demonstrar ter dado cumprimento à obrigação acessória imposta pelo artigo 19º do CIUC”.
3.14. Para a Requerida, “a seguir-se (…) a tese defendida pela Requerente quanto ao facto do artigo 3º do CIUC consagrar uma presunção ilidível, então forçoso é concluir que o funcionamento daquele (i.e., a ilisão da presunção) depende igualmente do cumprimento do estatuído no artigo 19º do CIUC (…)”.
3.15. E reitera a Requerida, “nenhuma prova fez a Requerente quanto ao cumprimento desta obrigação no que respeita aos veículos automóveis objecto das liquidações em crise”.
3.16. E, prossegue a Requerida, “não tendo a Requerente dado cumprimento àquela obrigação, forçoso é concluir que aquela é sujeito passivo do imposto”.
3.17. Finaliza a Requerida, referindo que “não tendo a Requerente cumprido o ónus probatório que se lhe impunha (…) duas consequências (…) necessariamente se haverão de extrair do seu comportamento omisso”:
3.17.1. “(…) a sua responsabilidade pelas custas arbitrais relativas ao presente pedido de pronúncia (…)”, e,
3.17.2. “(…) ao apuramento da sua responsabilidade em termos
contra-ordenacionais (…)”.
Da responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais
3.18. A este respeito, alega a Requerida que “o registo automóvel constitui a pedra angular de todo o edifício em que assenta o IUC”, mas “a competência para o registo automóvel não se encontra na esfera da Requerida, mas sim atribuída a várias entidades exteriores (…) a quem cabe transmitir à Requerida as alterações que se venham a verificar quanto à propriedade dos veículos automóveis”.
3.19. Na verdade, continua a Requerida “o registo da propriedade constitui um elemento essencial no sistema de informação entre a Requerida e demais entidades públicas (…) e com as forças da autoridade (…) com vista à troca de informação necessária à liquidação e fiscalização do (…) IUC”.
3.20. Assim, “a transmissão da propriedade de veículos automóveis não é susceptível de ser controlada pela Requerida, pois inexiste qualquer obrigação acessória declarativa quanto a esta matéria (…) significando isto que o IUC é liquidado de acordo com a informação registal oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado”.
3.21. Em resumo, alega a Requerida que “o IUC não é liquidado de acordo com informação gerada pela própria Requerida (…)” pelo que não tendo a Requerente “(…) procedido com o zelo que lhe era exigível, levou (…) a Requerida a limitar-se a dar cumprimento às obrigações legais a que está adstrita (…) e (…) a seguir a informação registral que lhe foi fornecida (…)”.[4]
3.22. “Logo, não foi a Requerida quem deu azo à dedução do pedido de pronúncia arbitral, mas sim a própria Requerente” pelo que, consequentemente, “deverá a Requerente ser condenada ao pagamento das custas arbitrais decorrentes do presente pedido de pronúncia arbitral (…)”.[5]
3.23. Nestes termos, conclui a Requerida a resposta apresentada no sentido que:
3.23.1. “Deve ser julgada procedente a excepção invocada, ou caso assim não se entenda,
3.23.2. Deve ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, por não provado, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se (…) a entidade requerida do pedido”.
4. APRECIAÇÃO DE QUESTÃO PRÉVIA - MATÉRIA DE EXCEPÇÃO
4.1. Tendo a Requerida invocado a excepção da caducidade do direito à acção, impõe-se a este Tribunal Arbitral que se pronuncie, previamente, sobre a procedência ou não da mesma.
4.2. Neste âmbito, sendo a caducidade do direito à acção uma excepção peremptória, caso a mesma proceda obstará ao conhecimento do mérito do pedido.[6]
4.3. Preliminarmente, refira-se que no que respeita às excepções peremptórias, o legislador prescindiu de qualquer enumeração e ficou-se pela definição constante do nº 3 do artigo 576º do CPC, nos termos do qual se define que as mesmas “consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor”.
4.4. Assim, conforme defendido na jurisprudência, será desta definição legal que se deverá partir para indagar da natureza da excepção decorrente da caducidade do direito de acção.[7] [8] [9]
4.5. Com efeito, a caducidade do direito de acção, uma vez que obsta à produção do efeito jurídico dos factos articulados pelo autor (aqui Requerente), constitui uma excepção peremptória, porquanto configura uma causa a que a lei substantiva atribui a cessação do direito que aquele invoca como já validamente constituído e, desta perspectiva, integra o domínio daquele tipo de excepções, que “são as que se traduzem na invocação de factos ou causa impeditivas, modificativas ou extintivas do direito do Autor (…) levando à improcedência total ou parcial da acção”.[10]
4.6. Em consequência, importará, por isso, conhecer previamente da mesma.
4.7. Em termos gerais, de acordo com o disposto no artigo 102° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), o prazo de dedução da impugnação judicial é de três meses contados, nomeadamente, do termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte ou da notificação dos restantes actos que possam ser objecto de impugnação autónoma.
4.8. Por outro lado, no âmbito do regime da arbitragem tributária, o artigo 10º, nº 1, do RJAT estabelece que o pedido de constituição de tribunal arbitral deve ser apresentado, nomeadamente, “no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 102º do CPPT, quanto aos actos susceptíveis de impugnação autónoma (…)”.
4.9. Nesta matéria, refira-se que, de acordo com o disposto no artigo 29º do RJAT, são de aplicação subsidiária ao regime da arbitragem as normas de natureza procedimental ou processual tributárias, as normas sobre organização e processo nos tribunais administrativos e tributários, as normas do Código do Procedimento Administrativo (CPA) e do CPC.
4.10. No âmbito do presente processo, a Requerente, em cumprimento do disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 10º do RJAT, peticiona no seu pedido de pronúncia arbitral que seja declarada “(…) a ilegalidade dos Actos de Liquidação Oficiosa de Imposto Único de Circulação, relativo aos anos (…) de 2009 a 2012 (…) referentes aos veículos automóveis com as matrículas (…) descritas (…)” e que seja condenada “a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas suportadas (…)”.
4.11. Nestes termos, o objecto do pedido são, portanto, as liquidações do Imposto Único de Circulação (IUC)[11] acima referidas (cujas cópias foram anexadas aos autos – doc. nº 1 a 106 do pedido – e cujo teor se dá aqui como provado) e não os actos de indeferimento (total ou parcial)[12] das reclamações graciosas nº…, (cujas cópias foram anexadas aos autos – Anexo I a IX do pedido – e cujo teor se dá aqui como provado), oportunamente apresentadas em 24 de Março de 2014, relativamente aquelas liquidações, pelo que os actos tributários a sindicar neste pedido são aquelas liquidações.
4.12. Com efeito, nos termos do disposto no artigo 10º nº 1, alínea a) do RJAT, pretendendo a Requerente reagir dos actos de liquidação oficiosa de IUC respeitante aos anos de 2009 a 2012 (identificados no processo), o pedido de constituição de tribunal arbitral deveria ter sido apresentado no prazo de 90 dias a contar do termo do prazo para pagamento voluntário (11 de Dezembro de 2013), em conformidade com o disposto no artigo 102º, nº 1, alínea a) do CPPT, ou seja, a contar desde 12 de Dezembro de 2013.
4.13. Tendo a Requerente apresentado o pedido de constituição de Tribunal Arbitral em 18 de Março de 2015[13], e considerando o vertido nos pontos anteriores, verifica-se pois que naquela data o referido prazo se mostrava amplamente excedido (ainda que houvessem actos de indeferimento de reclamações graciosas que poderiam ter sido, mas que não foram, objecto do pedido de pronúncia arbitral).
4.14. Assim, o pedido aqui formulado é intempestivo, tendo em consideração a caducidade do direito à acção, não podendo este Tribunal Arbitral dele conhecer.
4.15. Com efeito, sendo aquele prazo de caducidade peremptório e de conhecimento oficioso [determinando, o seu decurso, a extinção do direito de praticar o acto (conforme disposto no nº 3 do artigo 145º do CPC)], tendo sido ultrapassado o prazo de impugnação directa dos actos liquidação de imposto (ou seja, o prazo de impugnação dos actos primários), a tempestividade do pedido apenas poderia fundamentar-se na existência de um qualquer meio de impugnação gracioso dos actos de liquidação onde tivesse sido prolatada decisão a negar/indeferir (total ou parcialmente), as pretensões aí formuladas pelo sujeito passivo de imposto (naquilo que constituiria um acto de segundo grau) e esse acto fosse objecto do pedido.
4.16. Neste âmbito, é pacífico na doutrina e na jurisprudência arbitral do CAAD que apesar do artigo 2º, nº 1, alínea a), do RJAT fazer referência explícita à competência dos tribunais arbitrais para declararem a ilegalidade de actos de liquidação, essa competência se estenderá também aos actos de segundo e terceiro grau que apreciem a legalidade dos actos primários (como é o caso, nomeadamente, de actos de indeferimento de reclamações graciosas).
4.17. Nestes termos, tendo sido ultrapassado o prazo para uma impugnação directa das liquidações de IUC, abria-se à Requerente a via de impugnar os actos de indeferimento das diversas reclamações graciosas (a que até faz referência no artigo 3º do seu pedido, aquando da explicação que dá para defender a tempestividade do pedido de constituição de Tribunal Arbitral[14]) ou seja, suscitar a apreciação da legalidade das liquidações de IUC na dependência da interposição e decisão desfavorável de um meio de defesa gracioso.
4.18. Assim, se é inequívoco que a Requerente ao identificar e formular o seu pedido arbitral não fez alusão à impugnação dos actos de indeferimento das reclamações graciosas que apresentou em 24 de Março de 2014 (conforme Anexo I a IX do pedido), também é certo que o âmbito dos poderes de cognição deste Tribunal está limitado pelo âmbito do pedido.
4.19. Com efeito, o acesso ao direito não é ilimitado nem incondicional pelo que, de acordo com as normas legais que o disciplinam, a Requerente tinha um meio adequado para garantir a sua pretensão (impugnar os actos de indeferimento das diversas reclamações graciosas apresentadas), sem que com isso fosse contrariada qualquer disposição constitucional, designadamente as que garantem o princípio do acesso aos tribunais para a tutela de direitos (cf. artigos 20º, nº 1 e 268º nº 4 da CRP) ou o princípio da protecção da confiança (artigo 2º), nem tão-pouco o disposto no artigo 9º do Código Civil.
4.20. Contudo, a Requerente não o fez no pedido de pronúncia arbitral apresentado e, por isso, não tendo pedido para sindicar a declaração de ilegalidade dos actos de segundo grau (ou seja, os de indeferimento das reclamações graciosas), não existe o apoio que poderia firmar a tempestividade do pedido e, consequentemente, a possibilidade de este Tribunal apreciar o pedido formulado relativamente aos actos de liquidação de IUC que a Requerente pretende, na verdade, sindicar.
4.21. Ora, estando os poderes de cognição do Tribunal limitados pelo pedido, e não o podendo, como é óbvio exceder[15], fica este Tribunal impedido de apreciar e declarar (o que quer que seja) relativamente ao pedido dado que o mesmo é, pois, intempestivo.
4.22. Em suma, resultando clara e inequivocamente do pedido de pronúncia arbitral, a impugnação directa dos actos tributários acima referidos (vide ponto 2.1.), deve o pedido formulado (conducente à anulação dos actos de liquidação de IUC relativos aos anos de 2009 a 2012 das viaturas identificadas no processo) ser declarado improcedente, por intempestivo.
4.23. Dado que a caducidade do direito à acção consubstancia uma excepção peremptória impeditiva do conhecimento do mérito da causa [nos termos do disposto nos nºs 1 e 3 do artigo 576º, do CPC (ex vi alínea e) do artigo 2º do CPPT e alíneas a) e e) do nº 1 do artigo 29º do RJAT)] deve, em consequência, ser a Requerida absolvida do pedido, uma vez que a caducidade do direito de acção obsta à produção do efeito jurídico do pedido formulado pela Requerente.
5. DECISÃO
5.1. De harmonia com o disposto no artigo 22º, nº 4, do RJAT, “da decisão arbitral proferida pelo tribunal arbitral consta a fixação do montante e a repartição pelas partes das custas directamente resultantes do processo arbitral”.
5.2. Neste âmbito, a regra básica relativa à responsabilidade por encargos dos processos é a de que deve ser condenada a Parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for (artigo 527º, nº 1 e 2 do CPC em vigor).
5.3. Nestes termos, pelos fundamentos expostos no Capítulo anterior, decidiu este Tribunal Arbitral:
5.3.1. Julgar procedente a excepção da caducidade do direito à acção, porquanto o pedido de pronúncia arbitral é intempestivo e, em consequência, absolver a Requerida do pedido;
5.3.2. E, condenar a Requerente no pagamento das custas do presente processo.
Valor do processo: Em conformidade com o disposto nos artigos 306º, nº 2 do CPC, artigo 97º-A, nº 1 do CPPT e no artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de EUR 19.754,05.
Nos termos do disposto na Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor das custas do Processo Arbitral em EUR 1.224,00, a cargo da Requerente, de acordo com o artigo 22º, nº4 do RJAT.
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Notifique-se.
Lisboa, 30 de Setembro de 2015
O Árbitro
Sílvia Oliveira
[1] A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, excepto transcrições efectuadas.
[2] Neste matéria, cita a Requerida Jorge Lopes de Sousa (Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013, página 121) no sentido de que “(…) embora na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT apenas se faça referência explícita à competência dos tribunais arbitrais para declararem a ilegalidade de actos de liquidação, actos definidores da quantia a pagar pelo contribuinte, essa competência estende-se também a actos de segundo e terceiro grau que apreciem a legalidade desses actos primários, designadamente actos de indeferimento de reclamações graciosas e actos de indeferimento de recursos hierárquicos interpostos das decisões destas reclamações”
[3] No mesmo sentido, cita a Requerida a decisão proferida no âmbito do processo CAAD nº 261/2013.
[4] Neste âmbito, a Requerida cita a Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo nº 26/2013.
[5] Neste âmbito, a Requerida cita a Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo nº 72/2013.
[6] Neste âmbito, vide AC TCAS nº 02970/09, de 27 de Setembro de 2011, no sentido de que “(…) a caducidade deve consubstanciar-se como uma excepção peremptória passível de apreciação oficiosa pelo tribunal (cfr. artigos 328º, 331º e 333º, todos do Código Civil, artigo 496º, do Código Civil, bem como Luís A. Carvalho Fernandes, in Teoria Geral do Direito Civil, II, A.A.F.D.L., 1983, pág. 567 e seg., Carlos Alberto da Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3ª.edição, Coimbra Editora, 1989, pág.372 e seg. e Aníbal de Castro, in A Caducidade na Doutrina, na Lei e na Jurisprudência, 3ª.edição, 1984, pág.29 e seg.)”.
[7]Neste matéria, vide AC STA nº 340/13, de 22 de Maio de 2013, nos termos do qual é referido que “(…) no CPTA, mais concretamente no artigo 89º, nº 1, alínea h), no âmbito da acção administrativa especial, a caducidade do direito de acção foi qualificada como excepção dilatória. Aí parecer ter-se optado por um enquadramento algo diverso da questão (…) encarando a caducidade como facto preclusivo, ainda que fundado em razões de direito substantivo, cujo efeito é o de precludir toda a indagação sobre a situação jurídica controvertida, dispensando averiguar da sua existência [posto que] invocada a caducidade o direito a ele sujeito não pode mais ser exercido, o que torna inútil a discussão sobre a sua existência anterior (LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, volume II, 2.ª ed., Coimbra Editora, página 333 e seguintes). Ora, o efeito característico das excepções dilatórias é, precisamente, o de obstar a que o tribunal conheça do fundo da causa, obrigatoriamente limitando a actividade jurisdicional ao conhecimento da excepção (…) da caducidade do direito de acção, em que o tribunal se limita a certificar, face aos factos pertinentes (…) que está precludido o conhecimento do direito invocado pelo autor (…), tendo como efeito a absolvição da instância”.
“No caso sub judice, porque a lei subsidiariamente aplicável é o CPC, entendemos que o efeito jurídico será a absolvição do pedido (…). Do ponto de vista dos resultados práticos, esta diversidade de opções doutrinárias não terá repercussões pois em ambas o tribunal não prossegue com a apreciação do mérito da causa (…)” (sublinhado nosso).
[8]. Neste âmbito, cite-se também o AC AC TCAS nº 07674/11, de 10 de Janeiro de 2013, nos termos do qual se refere que “a caducidade do direito de acção tem classificação legal, tanto no CPC como no CPTA, embora distinta, uma vez que no domínio da acção administrativa especial, o artigo nº 89º, nº 1 h) CPTA a integra expressamente na enumeração legal das excepções dilatórias, mas no que respeita à acção administrativa comum (…), decorre das disposições conjugadas dos artigos (…) do CPC o enquadramento da caducidade do direito de acção no domínio das excepções peremptórias”.
[9] Vide também AC STA nº 76/09, de 27 de Maio de 2009 e AC STA nº 875/09, de 12 de Novembro de 2013.
[10] Vide MANUEL DE ANDRADE, in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 130/131.
[11] Liquidações datadas de 2 de Novembro de 2013, conforme teor dos documentos nº 1 a 106 do pedido e Anexo I a IX também do pedido, cujo teor se dá aqui como provado.
[12] Ofícios nº…, …,, todos de 30.12.2014 (conforme cópias que foram anexadas aos autos – Anexo I a IX do pedido – e cujo teor se dá aqui como provado).
[13] E, segundo alega a Requerente nos artigos 2º, 3º e 4 do pedido, dentro do prazo prevista no artigo 102º do CPPT, porque “(…) foi notificada do primeiro indeferimento da reclamação graciosa no dia 31 de Dezembro de 2014, sendo que as restantes foram notificadas em data posterior”.
[14] Vide nota de rodapé nº 12.
[15] Tendo por base o disposto no nº 2 do artigo 608º e nº 1 do artigo 609º do CPC, refere o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, Áreas Editora, 6ª Edição, Volume II, 2011, página 319 que “(…) para além de questões de conhecimento oficioso, o juiz não pode conhecer na sentença de questões não suscitadas pelas partes, nem condenar em objecto ou em quantidade superior ao que tiver sido pedido”.