Processo n.º 7/2015-T
Acordam os Árbitros José Poças Falcão (Árbitro Presidente), Miguel Patrício e Guilherme Waldemar d’Oliveira Martins, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:
Decisão Arbitral
I – Relatório
1.1. A… Portugal, Lda., com sede em …, Edifício n.º … – ….º Piso, …-… … (doravante designada por «Requerente»), tendo sido notificada das decisões de indeferimento das reclamações graciosas identificadas no ponto 1.º da sua petição inicial, apresentou, em 30/12/2014, um pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 3, al. a), e 6.º, n.º 2, al. a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a “apreciação da legalidade das decisões de indeferimento das reclamações [acima referidas e identificadas pela Requerente] e, por via disso, das liquidações de Imposto Único de Circulação («IUC») e juros compensatórios”.
1.2. Em 16/3/2015 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Coletivo.
1.3. Nos termos do artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, como parte Requerida, para apresentar resposta, nos termos do referido artigo, em 2/4/2015. A AT apresentou a sua resposta em 12/5/2015, tendo argumentado, em síntese, no sentido da total improcedência do pedido da Requerente.
1.4. Em 13/5/2015, a Requerida apresentou um requerimento solicitando a junção aos presentes autos do Documento n.º 2 a que faz referência na sua resposta.
1.5. Em 26/5/2015, a Requerente apresentou um requerimento solicitando “a remessa para os presentes autos dos processos administrativos relativos aos atos tributários subjudice, fixando o prazo para o efeito e determinando a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias caso esse prazo não venha a ser cumprido.” A Requerente respondeu, também, à exceção invocada pela Requerida a 12/5/2015, defendendo a “admissibilidade da cumulação de pedidos em causa, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, e pela consequente improcedência da exceção invocada”.
1.6. Por despacho de 05/08/2015, o Tribunal considerou, nos termos do artigo 16.º, al. c) e e), do RJAT, ser dispensável a reunião do artigo 18.º do RJAT e que o processo estava pronto para decisão. Foi, ainda, fixada a data de 16/9/2015 para a prolação da decisão arbitral, tendo sido esta prorrogada por mais dois meses em 07/09/2015.
1.7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.
II – Alegações das Partes
2.1. Vem a ora Requerente alegar, na sua petição inicial, que:
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“[quanto à cumulação de pedidos] na medida em que, para aferir da legalidade de ambos os atos tributários seja necessário considerar uma única realidade material transversal aos diversos factos tributários em questão, poderá concluir-se que a matéria de facto a apreciar para aferir a ilegalidade desses atos é essencialmente a mesma. [...]. Constatar-se-á, então, a conexão objetiva exigida pelo artigo 3.º, n.º 1 do RJAT, para a cumulação de pedidos que respeitem a atos tributários diferentes na medida em que a questão jurídico-fiscal no âmbito da qual é apreciada a legalidade dos atos seja essencialmente semelhante [...]. Nestes termos conclui-se pela admissibilidade da cumulação dos pedidos de anulação dos atos tributários objeto dos presentes autos”;
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“os sujeitos passivos de IUC são (i) os utilizadores de veículos que tenham a respetiva propriedade económica, independentemente de estarem inscritos no registo automóvel como seus proprietários jurídicos ou não e (ii) os adquirentes de veículos a partir do momento em que, nos termos do artigo 408.º do Código Civil se tornem titulares do direito de propriedade sobre os veículos”;
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“de uma leitura articulada do disposto nos artigos 4.º, n.º 2, 6.º, n.º 2, e 17.º, n.º 1, do CIUC, constata-se que apenas há facto gerador de IUC após a atribuição de matrícula aos veículos em causa. Ou seja: antes da atribuição de matrícula, os proprietários dos veículos não são sujeitos passivos de IUC, por inexistência de facto tributário”;
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“Como resulta da prova produzida perante a Administração Tributária nos procedimentos de reclamação graciosa que antecederam os presentes autos, designadamente das faturas de venda apresentadas nessa sede [...], a Requerente transmitiu para os seus concessionários a propriedade sobre os veículos em questão em momento anterior à atribuição das respetivas matrículas. Assim, a Administração não poderia entender ser a Requerente sujeito passivo do IUC incidente sobre os veículos identificados no documento n.º 1, quer nos casos em que as liquidações de IUC se reportam a ano subsequente, uma vez que, em ambos os casos, a Requerente não era, à data dos factos tributários, a proprietária dos veículos”;
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“Em síntese, os fundamentos aduzidos pela Administração Tributária para indeferir as reclamações graciosas que antecederam os presentes autos devem ser rejeitados, não se encontrando em conformidade com o regime ínsito nos artigos 1.º, 3.º, 4.º, n.º 1 e 3, e 17.º, n.º 1, do CIUC”;
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“perante os documentos disponibilizados pela Requerente, a Administração Tributária encontrava-se na posse de elementos suficientes para não só considerar ilidida da presunção ínsita no artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, mas também proceder à correta identificação dos sujeitos passivos responsáveis pelo pagamento do imposto em questão. Tudo ponderado, conclui-se pela ilegalidade das decisões de indeferimento das reclamações graciosas em referência, por violação do regime ínsito nos artigos 1.º, 3.º, 4.º, n.º 1 e 2, 6.º, n.º 1 e 3, e 17.º, n.º 1, do CIUC e, por via disso, pela ilegalidade e consequente anulabilidade dos atos de liquidação de IUC identificados nessa sede e no documento n.º 1, nos termos do artigo 135.º do CPA”;
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“Uma vez anuladas as liquidações de IUC em referência, não poderá deixar de ser reconhecida a nulidade das correspetivas liquidações de juros compensatórios, nos termos do artigo 133.º, n.º 2, alínea i), do CPA”;
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“Não se encontrando verificados os pressupostos para a liquidação de juros compensatórios previstos no artigo 35.º da LGT por falta de culpa da ora Requerente, deve esse ato tributário ser anulado, nos termos do artigo 135.º do CPA”;
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“Padecendo os atos tributários objeto dos presentes autos do vício de violação de lei, como amplamente demonstrado, nenhuma dúvida restará que assiste à ora Requerente o direito ao ressarcimento do prejuízo resultante da indisponibilidade dos montantes de IUC e juros compensatórios indevidamente pagos, com fundamento em erro imputável aos serviços da Administração Tributária, nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT”.
2.2. Requer a ora Requerente ao Tribunal Arbitral que “declare a ilegalidade dos indeferimentos das reclamações graciosas n.os … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014…, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, bem como dos atos de liquidação oficiosa de IUC identificados nessa sede e no documento n.º 1 junto aos presentes autos, nos termos do artigo 135.º do CPA, por violação dos artigos 1.º, 3.º, 4.º, n.º 1 e 2, 6.º, n.º 1 e 3, e 17.º, n.º 1, do CIUC; com a procedência do pedido acima formulado, declare a nulidade das correspondentes liquidações de juros compensatórios, nos termos do artigo 133.º, n.º 2, alínea i), do CPA; subsidiariamente, caso [...] não determine a anulação das liquidações oficiosas de IUC em referência, [...] determine a ilegalidade originária das correspetivas liquidações de juros compensatórios, por falta de preenchimento dos pressupostos ínsitos no artigo 35.º da LGT; reconheça o erro imputável aos serviços da Administração Tributária, e, por consequência, nos termos do artigo 43.º da LGT, condene a Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, computados sobre o montante global a restituit, desde a data do pagamento e até à emissão da respetiva nota de crédito; finalmente, e na medida da procedência dos pedidos anteriores, condene a Administração Tributária nas custas do processo arbitral”.
2.3. Por seu lado, a AT vem alegar, na sua contestação:
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que “ainda que se possa alvitrar que os procedimentos factuais possam ser transversais a todas as liquidações, o que é certo é que estamos perante situações fácticas díspares consubstanciadas em veículos diferentes, com datas de venda diferentes, procedimentos diferentes caso estejamos perante vendas a concessionários, em datas diferentes e a proprietários totalmente díspares, por valores completamente diferenciados”;
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que “da articulação entre o âmbito da incidência subjetiva do IUC e o facto constitutivo da correspondente obrigação de imposto decorrem, inequivocamente, do artigo 6.º do CIUC, as situações jurídicas que geram o nascimento da obrigação de imposto, ou seja, a atribuição de matrícula ou o registo em território nacional”;
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que “o registo inicial de propriedade de veículos admitidos (como é o caso dos autos), tem por base o requerimento respetivo e a prova do cumprimento das obrigações fiscais relativas ao veículo. Ou seja, a emissão de certificado de matrícula implica a apresentação de uma DAV por parte da Requerente e o pagamento do correspondente ISV e origina, automaticamente, o registo da propriedade do veículo ao abrigo do artigo 24.º do RRA em nome da entidade que procedeu à sua importação [...] e à formulação do pedido de matrícula, ou seja, a Requerente”;
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que, nos “termos do artigo 24.º do RRA, o importador figura no registo como primeiro proprietário do veículo e nesse sentido é, de acordo com o estatuído no artigo 3.º e artigo 6.º, ambos do CIUC, sujeito passivo de imposto”;
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que “a atribuição, à Requerente, de um certificado de matrícula consubstancia, nos termos do disposto no artigo 6.º do CIUC, o facto gerador do imposto, pelo que, tendo a Requerente solicitado a emissão de certificado de matrícula [e] encontrando-se o mesmo registado em nome desta, encontram-se reunidos os pressupostos do facto gerador do IUC, bem como da sua exigibilidade, sendo a Requerente sujeito passivo do imposto”;
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que “o legislador tributário não ficcionou que o imposto seria devido pelo proprietário do veículo que se encontrasse registado no fim dos 60 dias a que alude o n.º 2 do artigo 42.º do RRA, o qual seria pago nos 30 dias posteriores nos termos do artigo 17.º do CIUC. E muito menos ficcionou que os importadores, não obstante procedam à venda dos veículos antes da atribuição do certificado de matrícula, possam assim ver excluída a incidência subjetiva de IUC. O que o legislador consagrou é que o facto gerador do imposto é aferido pela matrícula ou pelo registo, consagrando expressamente o artigo 24.º do RRA que tendo sido pago o ISV e pedida a matrícula, fica automaticamente o veículo registado em nome do importador, ou seja, da Requerente”;
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que “o argumento aventado no ponto n.º 8 do pedido de pronúncia arbitral é totalmente descabido, razão pela qual se impugna”;
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que “o legislador tributário no artigo 6.º do CIUC estabeleceu claramente as premissas quanto ao facto gerador do imposto, bem como da sua exigibilidade, consignando inequivocamente que tal facto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional. Ou seja, o legislador tributário não ficcionou que o imposto seria devido pelo proprietário do veículo que se encontrasse registado nos 60 dias a que alude o n.º 2 do artigo 42.º do RRA, o qual seria pago nos 30 dias posteriores nos termos do artigo 17.º do CIUC”;
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que, “independentemente de a Requerente proceder à venda do veículo para os seus concessionários até ao termo do prazo legal após a atribuição da matrícula, tal facto, à luz do facto gerador consignado no artigo 6.º do CIUC, é manifestamente inócuo, na medida em que o legislador consagrou expressamente que o facto gerador é atestado pela atribuição da matrícula”;
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que “pese embora a Requerente alegue que na data da atribuição da matrícula já vendeu os veículos aos seus concessionários, tal facto é irrelevante para efeitos de aplicação do disposto no artigo 6.º do CIUC”;
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que “o entendimento propugnado pela Requerente [de]corre não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adoção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático [nem teleológico], violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC;
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que “o artigo 3.º do CIUC não comporta qualquer presunção legal”;
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que “as faturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais faturas não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., de aceitação) por parte dos pretensos adquirentes”; o) que “a interpretação veiculada pela Requerente se mostra contrária à Constituição [dado que] o entendimento propugnado pela Requerente [visa] afastar a incidência subjetiva e tributação do IUC, não tem acolhimento legal e viola os princípios constitucionais da legalidade e justiça tributária, da capacidade contributiva, da igualdade, da certeza e da segurança jurídicas”;
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que “o IUC é liquidado de acordo com a informação registal oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado [pelo que] o IUC não é liquidado de acordo com informação gerada pela própria Requerida. [...] a Requerida limitou-se a dar cumprimento às obrigações legais a que está adstrita e, paralelamente, a seguir a informação registral que lhe foi fornecida por quem de direito”;
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que “não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços [pelo que] não se encontram reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros indemnizatórios”.
2.4. A AT conclui, por fim, que “deverá a exceção invocada proceder, absolvendo-se a Requerida da instância. Caso assim não se entenda, deverá ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a entidade Requerida do pedido.”
III – Factualidade Provada e Não Provada
3.1. Consideram-se provados os seguintes factos:
i) A Requerente é uma sociedade comercial de direito português, com sede e direção efetiva em território nacional, enquadrada no regime geral para efeitos de IRC e IVA, que se dedica à importação, admissão e comercialização de veículos automóveis das marcas «A1…» e «B…», maioritariamente em estado novo.
ii) Para proceder à comercialização dos referidos veículos em Portugal, a Requerente serve-se de uma rede de concessionários a quem confere o direito de comercializar, na fase de retalho, veículos automóveis das marcas em apreço, podendo ainda, em certos casos, proceder à comercialização de veículos junto das entidades financeiras do Grupo AA… em Portugal, os quais serão objeto de contratos de locação financeira ou aluguer de longa duração.
iii) Ainda que inconformada, a ora Requerente procedeu, em novembro e dezembro de 2013 e ainda dentro do prazo de pagamento voluntário, ao pagamento integral das liquidações de IUC e juros compensatórios em referência. Contestou, ainda, a legalidade das mesmas perante a AT, requerendo a respetiva anulação, nos processos de reclamação graciosa n… …2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 … e … 2014 ….
iv) A Requerente foi notificada das decisões de indeferimento das citadas reclamações graciosas a 29 e 30 de setembro e a 22 de outubro de 2014.
v) Não conformada com as referidas decisões, a Requerente apresentou o presente pedido arbitral em 30/12/2014.
vi) A cumulação de pedidos subjacente ao presente pedido arbitral tem acolhimento legal, dado que, à luz do artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, e do artigo 104.º do CPPT, se verifica, quanto a todos eles, e como alega a Requerente, identidade de imposto, circunstâncias e fundamentos de facto e de direito invocados para a sua apreciação e decisão.
3.2. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.
IV – Questão prévia: Cumulação de pedidos
Atendendo à identidade dos factos tributários (que não é igual a identidade absoluta das situações fácticas, como bem assinala Jorge Lopes de Sousa em “Comentário ao regime jurídico da arbitragem tributária”, in Guia da Arbitragem Tributária, 2013, 147), do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, nada obsta, face ao disposto no artigo 104.º do CPPT e artigo 3.º do RJAT, à pretendida cumulação (vd. ponto vi) da matéria de facto provada).
V – Fundamentação: A Matéria de Direito
Fixada a matéria de facto, importa conhecer da questão de direito suscitada pela Requerente, a qual consiste em apreciar os termos da configuração da incidência subjetiva do IUC à luz do disposto no artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), nomeadamente, a questão de saber se a incidência subjetiva assenta estritamente na inscrição da titularidade do veículo no Registo Automóvel, ou se, o registo opera apenas como uma presunção de incidência tributária, ilidível, em conformidade com o disposto no artigo 73.º, da Lei Geral Tributária. Sobre esta matéria é já abundante e bastante definida a jurisprudência arbitral vertida em diversas decisões arbitrais.
5.1. Da incidência subjetiva: o facto gerador de imposto e os efeitos do registo automóvel em sede de incidência de IUC
A questão a decidir tem estritamente a ver com os pressupostos de incidência de IUC, referentes ao caso concreto e, nessa medida, impõe-se conhecer da alegada ilegalidade por vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos que conduziu a AT a emitir as liquidações impugnadas.
Assim, analisada a matéria de facto carreada nos autos, o regime jurídico aplicável resultante das disposições conjugadas do CIUC, do ISV e do Código da Estrada, impõe-se aferir da sua aplicação ao caso concreto para poder concluir se as liquidações de IUC impugnadas são ou não ilegais.
Em primeiro lugar, há que ter em conta que o CIUC estabelece, como regra de incidência, que os sujeitos passivos são os proprietários dos veículos, considerando como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados. O quadro jurídico fundamental aplicável nesta matéria é o previsto nos artigos 1.º a 6.º, do CIUC, aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho.
O artigo 1.º do CIUC define a incidência objetiva do imposto, distinguindo os veículos por categorias especificadas, norma que se afigura clara e sem dificuldades de aplicação.
Porém, o mesmo já não sucede com a norma de incidência subjetiva contida no n.º 1, do artigo 3.º do CIUC, a qual está na origem do presente litígio e constitui, assim, questão a decidir no caso em apreciação. A análise de ambos os preceitos (artigos 1.º e 3.º) permitem concluir que no funcionamento do IUC o registo automóvel tem um papel fundamental, mas a correta aplicação do regime proposto pelo legislador impõe o recurso a outros elementos interpretativos.
O que importa, pois, é determinar qual o sentido e alcance da norma de incidência subjetiva, constante do artigo 3.º, n.º 1, do CIUC e da eventual existência ou não de uma presunção ilidível, conexionada com a questão dos efeitos jurídicos do registo automóvel, suscitada pela Requerente. Sobre esta questão, as posições das partes supra expostas resumem-se do seguinte modo:
- para a Requerente esta não pode ser considerada sujeito passivo de IUC, porquanto não era proprietária dos referidos veículos ao momento em que ocorreu o facto tributário, por ter alienado os referidos veículos em data anterior à própria matrícula; além do mais, todos os adquirentes registaram a aquisição da propriedade dos veículos; mas, ainda que, nos anos a que se reportam os IUC em causa (2009 a 2012), a transmissão dos referidos veículos não estivesse devidamente registada junto da Conservatória do Registo Automóvel, a Requerente também não poderia ser considerada devedora do imposto, já que o registo, ou a sua falta não podem ser considerados elemento determinante da responsabilização tributária da Requerente;
- para a Requerida o artigo 3.º, n.º 1, do CIUC consagra uma norma de incidência tributária e não mera presunção ilidível, pelo que sendo esta a primeira titular do registo automóvel é, sem mais considerandos, a devedora do IUC no ano em causa.
Ora, dispõe o artigo 3.º do CIUC que:
“ARTIGO 3.º
INCIDÊNCIA SUBJETIVA
1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.
Estabelece o n.º 1 do artigo 11.º, da LGT que:
“Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.
A interpretação e aplicação da norma jurídica, pressupõe a realização de uma atividade interpretativa, a qual deve ser objetiva, equilibrada, e conforme com a letra e o espírito da lei. Qualquer texto, e a lei não é exceção, comporta múltiplos sentidos e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Por essa razão, embora a letra da lei seja “o fio condutor” do intérprete, ela há-de ser interpretada tendo em conta os objetivos subjacentes, “a ratio” ou a motivação do legislador ao estabelecer a norma em análise. A estes elementos acresce um outro segundo o qual a interpretação da norma jurídica deve respeitar a “unidade do sistema jurídico”, a sua coerência e lógica intrínseca.
O artigo 9.º, do Código Civil (CC), fornece as regras e os elementos fundamentais para a interpretação da norma jurídica, ao qual também obedece a interpretação da lei fiscal deve obedecer ao disposto naquele normativo, o qual começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.
A estes princípios gerais acrescem, ainda, os princípios constantes da LGT, nomeadamente no artigo 73.º, que estabelece que as presunções contidas em normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.
Ainda, no que se refere à questão em análise, há que salientar o contributo das decisões arbitrais já proferidas nos processos nºs 14/2013-T, de 15 de outubro, 26/2013-T de 19 de julho, 27/2013-T, de 10 de setembro, 217/2013-T de 28 de fevereiro e, mais recentemente, nas decisões proferidas nos processos 286/2013-T, de 2 de maio de 2014, 293/2013-T, de 9 de junho de 2014, 46/2014-T de 5 de setembro, 250/2014-T, de 17 de novembro de 2014 e 43/2014-T, as quais, entre outras, revelam uma apurada reflexão sobre a questão fundamental em apreciação.
É, pois, neste quadro de fundo, utilizando os princípios hermenêuticos fundamentais acabados de referir, acolhidos pela Jurisprudência dos nossos tribunais superiores, que devemos procurar encontrar a interpretação adequada aos normativos em presença.
Regressando à análise do caso concreto, o facto gerador do imposto, nos temos do CIUC é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional, no ano da sua importação ou introdução no mercado nacional (artigo 3.º, n.º 1, do CIUC).
O imposto considera-se exigível no primeiro dia do período de tributação (artigo 6.º, n.º 3, do Código do IUC), o qual corresponde ao ano que se inicia na data da matrícula (cfr. artigo 4.º, n.º 2, do Código do IUC).
Ora, no caso dos presentes autos constata-se que o primeiro registo foi efetuado em nome da ora Requerente (já esta não era a proprietária dos veículos), mas logo de imediato foi efetuada o registo a favor dos legítimos proprietários.
Ora, apenas na ausência de registo de propriedade do veículo efetuado dentro do prazo legal, o imposto devido no ano da matrícula do veículo é liquidado e exigido ao sujeito passivo do imposto sobre veículos (ISV) com base na declaração aduaneira do veículo, ou com base na declaração complementar de veículos em que assenta a liquidação desse imposto, ainda que não seja devido (artigo 18.º, n.º 1, alínea a), do CIUC). Desta última disposição resulta que, no caso de haver registo de propriedade do veículo efetuado dentro do prazo legal o imposto devido no ano da matrícula do veículo é liquidado e exigido ao respetivo titular desse registo.
Ora, da factualidade provada nos autos conclui-se que no caso das viaturas constantes das liquidações ora impugnadas e identificadas no documento n.º 1, foi isso mesmo que sucedeu. Ou seja, embora os veículos em causa tivessem um primeiro registo a favor da ora Requerente (como se compreende pelo procedimento legalmente estabelecido e ao qual está sujeito o importador) os veículos já eram, àquela data, propriedade de outrem, a favor de quem foram registados na Conservatória do Registo Automóvel, sendo que o pedido arbitral que condensa toda a informação relativa à data da venda/transferência contratual, data da matrícula e registo.
Assim, se a Requerente não era a sua efetiva proprietária à data da ocorrência dos factos que determinam a obrigação de imposto, dado terem os mesmos sido já vendidos aos respetivos concessionários em data anterior à própria matrícula das viaturas, conforme faturação emitida, que junta como elemento probatório, não se compreende nem justifica a liquidação do IUC ao importador e ora Requerente.
Esta conclusão decorre, também, da interpretação das normas do n.º 1 do artigo 17.º e do artigo 18.º do CIUC, relativas ao prazo de pagamento do imposto e liquidação oficiosa, respetivamente, os quais assentam no pressuposto de que “no ano da matrícula o sujeito passivo do IUC é o proprietário do veículo na data em que findarem aqueles 60 dias contados da data da atribuição da matrícula, que o deverá liquidar e entregar ao Estado nos 60 dias subsequentes.”
E, sendo assim, no caso dos presentes autos, resulta demonstrado que o sujeito passivo não era a ora Requerente.
Aliás, outro entendimento seria ir manifestamente contra os princípios subjacentes à reforma do IUC e até contra a sua natureza de imposto sobre a circulação da viatura automóvel.
Na verdade, na atividade desenvolvida pela ora Requerente, na qualidade de importadora, a transmissão da propriedade dos veículos opera, normalmente, antes mesmo da data da matrícula. Isto porque a Requerente procede à admissão em território português de veículos novos, que, em momento anterior ao da respetiva matrícula, transmite aos seus clientes, concessionários, facto que comprova através dos respetivos contratos, planos de negócios e objetivos e faturação junta aos autos.
Todavia, por força das normas legais aplicáveis, o registo dos veículos em causa é efetuado em nome da Requerente, ainda que, no momento em que se efetiva, não seja esta já a sua proprietária. Este procedimento, aliás, resulta do disposto nos artigos 117.º, n.º 4, do Código da Estrada, que atribui à pessoa, singular ou coletiva, que proceder à admissão, importação ou introdução no consumo em território nacional, a obrigatoriedade de requerer a matrícula dos veículos, bem assim como, do disposto no artigo 24.º, n.º 1, do Regulamento do Registo Automóvel, que determina que o registo inicial de propriedade de veículos importados, admitidos, montados, construídos ou reconstruídos tem por base o respetivo requerimento.
Das referidas normas resulta, pois, que a Requerente, na qualidade de operador registado que procede à admissão de veículos novos em território nacional, necessariamente figura no respetivo registo inicial como sua proprietária, ainda que no momento em que este se efetua, a propriedade dos mesmos tenha sido já transmitida a terceiros. E, se assim é, por imposição do legislador, tal visa o controlo da atividade pelas autoridades competentes de forma a controlar quem vem a adquirir tais viaturas e quando. Disto decorrem, entre outras, diversas obrigações fiscais.
Nesta conformidade estamos perante a questão de saber se está em causa a interpretação do artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, no sentido de se determinar se a mesma consagra, ou não, uma presunção relativa à qualificação como proprietário, e consequentemente, como sujeito passivo deste imposto, a pessoa, singular ou coletiva, em nome da qual a propriedade do veículo se contra registada e, caso de conclua nesse sentido, a sua elisão com base dos elementos probatórios que o integram.
Não obstante o Código do IUC erigir como princípio estruturante deste tributo o princípio da equivalência, entendido como compensação pelos efeitos nefastos em termos ambientais e energéticos resultantes da circulação de veículos, o referido Código elege, no tocante à incidência subjetiva, o proprietário do veículo, considerando como tal a pessoa em nome da qual o mesmo se encontre registado (artigo 3.º, n.º 1, do CIUC). Mas, apesar disso, o legislador ressalvou alguns casos particulares em que a propriedade formal ou jurídica do veículo foi secundarizada pela utilização do mesmo, imputando a este último a obrigação de pagamento do IUC, como sucede com os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direito de opção de compra por força de contrato de locação (artigo 3.º, n.º 2, do CIUC).[1]
Certo é que a norma de incidência, ao remeter para os elementos do registo automóvel, não distingue entre o registo inicial do veículo e os registos posteriores: o sujeito passivo do imposto é o proprietário do veículo, considerando-se como tal a pessoa, singular ou coletiva em nome da qual o veículo se encontrar registado. É, pois sobre a interpretação da norma do n.º 1 do artigo 3.º que, como já referido, se evidenciam as diferentes posições expressas pela Requerente e pela Requerida.
Segundo a Requerente, a referida norma estabelece uma presunção de propriedade, com base no registo, ilidível nos termos gerais e, em especial, por força do disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária.
Para a Requerida, estabelecendo o CIUC a sujeição passiva bem como o facto gerador da obrigação de imposto, por referência aos elementos constantes do registo automóvel, conforme decorre dos artigos 3.º e 6.º do CIUC e sendo a Requerente a solicitar a emissão do certificado de matrícula e encontrando-se os veículos registados em seu nome no períodos de tributação “encontram-se reunidos os pressupostos do facto gerador do IUC, bem como da sua exigibilidade, sendo a Requerente sujeito passivo do imposto com referência ao período em causa.” Nada diz quanto ao facto desse mesmo registo ter sido de imediato alterado para o nome dos verdadeiros e adquirentes dos veículos automóveis, no mesmo período de tributação, certamente por desconsiderar tal facto como relevante o que, à partida entra em contradição com o valor que ela própria defende atribuir ao registo automóvel.
Esta matéria tem sido objeto de diversas decisões arbitrais que, reiterada e uniformemente, se têm pronunciado no sentido de considerar que a norma do n.º 1, do artigo 3.º do CIUC estabelece uma presunção, ilidível, nos termos gerais e, em especial, for força do disposto no artigo 73.º da LGT. Também este tribunal seguirá de perto essa orientação.[2]
Com efeito, o recurso ao registo automóvel como elemento estruturante do sistema de liquidação deste tributo evidencia-se ao longo de todo o respetivo Código. Mas impõe-se atender ao disposto no seu artigo 6.º, relativo à definição do facto gerador da obrigação de imposto, cujo n.º 1 dispõe que é facto gerador da obrigação de imposto “a propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional”.
Deste preceito decorre que os veículos automóveis que não estejam, nem devam estar, registados em território português, apenas ficam abrangidos pela incidência objetiva deste tributo se no mesmo permanecerem por período superior a 183 dias, conforme dispõe o n.º 2 do mesmo artigo. Não há dúvida que é por recurso ao elemento registral que o legislador estabelece, simultaneamente, o facto gerador do imposto, bem assim como a determinação do momento do início do período de tributação e a constituição da obrigação tributária e, de uma maneira geral, todos os elementos necessários à liquidação do imposto em causa, como, de resto, bem acentuado vem na resposta elaborada pela AT.
Apesar do supra exposto quanto à dependência do regime de tributação do IUC em relação ao registo automóvel não se pode extrair, como imediata conclusão, que a norma de incidência subjetiva, no segmento em que considera como proprietário a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado, não constitua uma presunção de incidência. Segundo noção contida no artigo 349.º do C. Civil, presunções são as ilações que a lei ou o julgador, tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. Acresce que, estabelece o artigo 341.º do Código Civil que as presunções constituem meios de prova, tendo esta por função a demonstração da realidade dos factos, de tal modo que, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (cfr. n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil).
Dito isto, acresce que as presunções, que podem ser explícitas ou implícitas, salvo nos casos em que a lei o proibir, podem ser ilididas, mediante prova em contrário, como aliás resulta expressamente do disposto no n.º 2, do artigo 350.º do Código Civil. Por fim, tratando-se de presunções de incidência tributária, estas são sempre ilidíveis, conforme expressamente dispõe, o artigo 73.º, da LGT.
A controvérsia em torno desta questão veio a surgir no âmbito na nova lei, porquanto a expressão “presumindo-se” foi substituída pela expressão “considerando-se”. No mesmo sentido, estabelece o artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento dos Impostos de Circulação e Camionagem, aprovado pelo DL n.º 116/94, de 3/05, que são sujeitos passivos destes tributos “os proprietários dos veículos presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou coletivas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”
Entendemos, contudo, que se está perante uma mera questão semântica, que não altera minimamente o conteúdo da norma em questão.
Assim, quanto à questão de saber, face ao teor literal do disposto no n.º 1, do artigo 3.º, do CIUC, qual o alcance da expressão “considerando-se como tais”, dado que na atual versão o legislador não usou o termo “presumem-se” (o qual constava do extinto Regulamento do Imposto Sobre Veículos), entende o Tribunal que só pode ser o seguinte: o legislador presume (considera) que os proprietários são as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados. Significa isto que, tal presunção, implícita, é naturalmente ilidível nos termos previstos no artigo 73.º da LGT.
A presunção estabelecida no artigo 3.º, n.º 1, do atual CIUC, já estava consagrada nas versões anteriores dos códigos abolidos com a entrada em vigor do CIUC. O artigo 3.º do Regulamento do Imposto Sobre Veículos (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78) estabelecia que: “o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados”.
Do mesmo modo, o artigo 2.º, do Regulamento dos Impostos de Circulação e de Camionagem (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 116/94) estabelecia que: “são sujeitos passivos do imposto de circulação e do imposto de camionagem os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou coletivas em nome das quais os mesmos se encontram registados”.
Na verdade, na versão atual do Código apenas mudou o verbo, optando agora o legislador pela expressão “considerando-se”. Certo é que, entre as versões legislativas anteriores e a atual entrou em vigor a LGT, que consagrou, expressamente, o princípio contido no artigo 73.º, do qual resulta que em matéria de incidência tributária qualquer presunção admite sempre prova em contrário. Logo, torna-se indiferente a adoção de uma presunção expressa ou implícita, porquanto, uma como a outra são igualmente ilidíveis.
Assim, entende-se que o facto de o legislador, na atual versão do CIUC, ter optado por uma presunção implícita (usando a expressão “considerando-se”) em vez de uma presunção expressa (com recurso à expressão “presumindo-se”), como acontecia anteriormente, não traduz uma alteração substancial no que respeita à incidência subjetiva do imposto. Não é, pois, a titularidade constante do registo automóvel condição, por si só determinante de incidência tributária, mas sima a propriedade tal qual resulta do registo, o que resulta numa mera presunção ilidível.
Acresce que podemos facilmente apontar diversos exemplos, extraídos do ordenamento jurídico tributário, em que o legislador optou pela utilização do verbo “considerar”, com sentido presuntivo. Além do que, como já se disse supra, tratando-se de norma de incidência tributária, nunca seria admissível a consagração de uma presunção inilidível. Como afirmam, Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação ao n.º 3 do artigo 73.º, da LGT, “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objetiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”.[3]
E, são muitos os exemplos de normas em que é utilizado o verbo “considerar” para estabelecer presunções ilidíveis, como sucede com o disposto n.º 2 do artigo 21.º do CIRC, no artigo 89-A da LGT ou no artigo 40.º, n.º 1 do CIRS entre outros. Alega, porém, a Requerida na resposta apresentada, que este mesmo vocábulo “considerando-se” também é normalmente utilizado, pelo ordenamento jurídico fiscal, para definir situações distintas de presunções. Ora, tal afigura-se normal, nomeadamente, no caso de outras normas fiscais em que o legislador utilizou a fórmula “considera-se” ou “consideram-se”, mas atribuindo-lhe outro sentido, já que se trata de expressões que, dependendo do contexto, podem assumir uma pluralidade de sentidos, sem que daí possa extrair-se a conclusão que pretende a Requerida.
Tendo em conta que o sistema jurídico deve formar um todo coerente, os exemplos acima referidos, bem como a doutrina e jurisprudência indicadas, permitem concluir que não é só quando é usado o verbo “presumir” que estamos perante uma presunção, mas também o uso de outros termos ou expressões, como o termo “considera-se” podem servir de base a presunções. E, como se referiu supra, sendo o elemento literal o primeiro instrumento de interpretação da norma jurídica, em busca do pensamento legislativo, importa confrontá-lo com os demais elementos de interpretação, nomeadamente o elemento racional ou teleológico, o elemento histórico e o sistemático.
No que toca ao elemento histórico, há que referir, que desde a origem do imposto de circulação, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 599/72 de 30 de dezembro, foi, explicitamente, consagrada uma presunção, relativamente aos sujeitos passivos do imposto como sendo aqueles em nome de quem os veículos se encontravam matriculados ou registados. Essa versão da lei usava a expressão literal “presumindo-se como tais”.
Porém, atendendo aos fins do imposto em presença, há que reconhecer que o uso da expressão “considera-se”, na atual versão, contempla uma expressão com um efeito semelhante àquela, consubstanciando, igualmente, uma presunção. Isso mesmo sucede na formulação contida no n.º 1, do artigo 3.º, do CIUC, em que se consagrou uma presunção, revelada por via do uso da expressão “considerando-se”, de significado semelhante e de valor equivalente à expressão “presumindo-se”, em uso desde a criação do imposto em questão. O uso da expressão “considerando-se” justifica-se por se afigurar, porventura, mais em sintonia com o reforço conferido à propriedade do veículo, que passou a constituir o facto gerador do imposto, nos termos constantes do artigo 6.º do CIUC.
Pelo que, à luz do elemento literal da interpretação, nada obsta ao entendimento de que, o disposto no n.º 1, do artigo 3.º, do CIUC, consagra uma presunção ilidível.
Assim, quanto à incidência subjetiva do imposto, é de concluir que não se verificam alterações relativamente à situação anteriormente em vigor no âmbito do Imposto Municipal sobre Veículos, Imposto de circulação e Imposto de Camionagem, como aliás é amplamente reconhecido pela doutrina, continuando a valer uma presunção ilidível nesta matéria.
Este entendimento é, ainda, o único que se afigura adequado e conforme ao princípio da verdade material e da justiça, subjacentes às relações fiscais, com o objetivo de tributar o real e efetivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário, por constar do registo automóvel, como sucede no caso concreto com a Requerente, por força da sua atividade de importadora e para cumprimento das regras legalmente aplicáveis à matrícula dos veículos novos importados e introduzidos no território nacional.
Neste sentido, também as decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 150/2014-T e 220/2014-T, confirmam o mesmo entendimento já plasmado em decisões arbitrais anteriores, no sentido de que: “(…) se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjetiva do imposto numa ficção legal, em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjetiva. (…) E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3.º, n.º 1, só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto.”
Sobre a questão em análise, é, pois, unanime o entendimento que tem vindo a ser defendido nas sucessivas, diversas e numerosas decisões arbitrais proferidas.
Por ser assim, tem de se permitir ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo, e que inicialmente, e em princípio, se supunha ser o verdadeiro proprietário. Caso contrário, aceitar-se-ia a supremacia da verdade formal do registo sobre a verdade material, e seria admitir a violação grosseira dos princípios fundamentais fiscais enunciados e, ainda, do princípio contido no artigo 73.º da LGT, segundo o qual não existem presunções inilidíveis em matéria de incidência fiscal.
A tudo o que se deixa supra exposto acresce que, outro entendimento, traduziria a violação dos princípios da legalidade, da proporcionalidade e da justiça, bem como o do inquisitório, consagrados, respetivamente, nos artigos 55.º e 58.º da LGT.
De resto, é possível extrair, ainda, um outro argumento do disposto no artigo 7.º do Código de Registo Predial (o qual constitui a base jurídica fundamental em matéria de registo de propriedade) o qual dispõe que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.” À luz do princípio da uniformidade e coerência intrínseca do sistema jurídico, nenhum fundamento se afigura aceitável para que o princípio vigente no registo de propriedade em geral, sofresse uma inflexão ou mesmo “atropelo” injustificado em matéria de registo automóvel.
Mas, se alguma dúvida persistisse, sempre se diria que, quanto aos elementos de interpretação de pendor racional ou teleológico, a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei n.º 22-A/2007, de 29/06, é bastante expressiva ao esclarecer que a reforma da tributação automóvel é concretizada por via da deslocação de parte da carga fiscal do momento da aquisição dos veículos para a fase de circulação e visa “formar um todo coerente” que, embora destinado à angariação de receita pública, pretende que a mesma seja angariada na “medida dos custos ambientais que cada indivíduo provoca à comunidade”, acrescentando-se, a propósito do imposto em causa e dos diferentes tipos e categorias de veículos, que “como elemento estruturante e unificador (…) consagra-se o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”, referindo, ainda, ser “(…) este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respetiva propriedade e até ao momento do abate (…)”.
Assim, a lógica e racionalidade do novo sistema de tributação automóvel pressupõe e almeja um sujeito passivo coincidente com o proprietário do veículo, no pressuposto de ser esse, e não outro, o real e efetivo sujeito causador dos danos ambientais, tal como decorre do princípio da equivalência inscrito no artigo 1.º do CIUC. Este princípio da equivalência, que informa o atual imposto único de circulação, tem subjacente o princípio do poluidor - pagador, e concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar. Trata-se, afinal, de alcançar as externalidades ambientais negativas que advêm da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus proprietários e/ou pelos utilizadores, como custos que só eles deverão suportar.
A este propósito, a posição vertida na recente Decisão Arbitral n.º 286/2013-T de 2 de maio de 2014, é bastante esclarecedora ao afirmar que: “É este princípio (da equivalência) que dita a oneração dos veículos em função da respetiva propriedade e até ao momento do abate, o emprego comum de uma base tributável específica, a revisão do quadro de benefícios fiscais vigente e a afetação de uma parcela da receita aos municípios da respetiva utilização.
Ora, pretender, como o faz a Requerida, que o legislador, no artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, fixou, seja qual for o meio técnico subjacente, a incidência subjetiva do imposto nas pessoas em nome de quem os veículos se encontram registados, com total independência de serem ou não, no período tributário relevante, titulares do direito de utilização do veículo, maxime da sua propriedade, implicaria desprezar aquela finalidade que preside à normatividade tributária, bem manifestada na incidência objetiva e na base tributável associada às diversas categorias de veículos (cfr. arts 2.º e 7.º do CIUC). É que uma inscrição registral, sem correspondência com a titularidade subjacente, nenhuma valia possui para dar satisfação e cumprimento a tal finalidade, pois não são as pessoas em nome de quem os veículos se encontrem inscritos quando não sejam titulares de direitos sobre a sua utilização que provocam custos ambientais e viários, mas antes tais custos ambientais e viários são causados pelos efetivos utilizadores dos veículos, nos termos das situações jurídicas substantivas pertinentes, mesmo que não constem, como deviam, do registo automóvel. O registo, na verdade, em nada depõe ou serve quanto ao princípio da equivalência estabelecido no artigo 1.º do CIUC. Aliás, assumir que o elemento determinativo da incidência tributária subjetiva é simples e exclusivamente o registo automóvel também não permite afirmar uma ligação com uma qualquer manifestação de capacidade contributiva relevante, o que, via de regra, nos tributos não estritamente comutativos, é imprescindível, já que deve existir, sem prejuízo de exigências de praticabilidade, uma qualquer ligação efetiva entre o imposto e um pressuposto económico materialmente relevante capaz de fundamentar o tributo. A razão de ser da figura tributária afasta, pois, a ideia de que a incidência respetiva se prende estrita e exclusivamente com a própria inscrição registral da titularidade dos veículos tributários e não com as situações substantivas atributivas do direito de utilização dos veículos (artigo 3.º, nºs 1 e 2 do CIUC) a que o registo se destina a dar publicidade (cfr. artigo 1.º e artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro, com as alterações posteriores, que regula o registo automóvel).”
Acresce, ainda, salientar que o DL n.º 54/75, de 12/02, que disciplina o registo de veículos automóveis, não prevendo qualquer norma acerca do caráter constitutivo do registo da propriedade automóvel, estabelece, no n.º 1 do seu artigo 1.º que o registo automóvel visa apenas dar publicidade à situação jurídica dos bens. De acordo com o artigo 7.º do Código do Registo Predial, supletivamente aplicável ao registo automóvel, por remissão do artigo 29.º daquele diploma, determina que o registo apenas “(...) constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.” Pronunciando-se sobre esta matéria, o STJ, em acórdão de 19-02-2004, proferido no processo n.º 3B4369, conclui que “(...) o registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao ato registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível (presunção "juris tantum") da existência do direito (arts. 1.º, n.º 1, e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C. Civil) bem como da respetiva titularidade, nos termos dele constantes (...)”.
Quanto aos efeitos do registo, resulta claro do disposto nos artigos 1.º e 7º do Código de Registo Predial (CRP), que o registo tem uma dupla finalidade: dar publicidade à situação jurídica dos bens e constituir presunção de que o direito existe e pertence ao titular nele inscrito. Estas presunções são, porém, ilidíveis mediante prova em contrário, como resulta expressamente do disposto artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil (CC) e, em matéria tributária, reforçado pelo artigo 73.º da LGT.
É pacífico para a doutrina e para a jurisprudência dos nossos tribunais superiores que o registo não é condição de validade dos negócios a ele sujeitos ou subjacentes, dele não depende a transmissão da propriedade e não pertence ao transmitente o ónus de promover o registo, pelo que nenhuma sanção lhe pode ser imposta pelo não cumprimento dessa obrigação por parte do adquirente (este sim obrigado a promover o registo).[4]
Assim, acompanhando-se a reiterada jurisprudência arbitral, supra mencionada, relativa a situações idênticas, não pode deixar de se entender que a expressão “considerando-se como tais” constante da referida norma, configura uma presunção legal[5], e que esta é ilidível, nos termos gerais, e, em especial, por força do disposto no artigo 73.º da LGT que determina que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.
Esta é, também, a posição do tribunal arbitral nos presentes autos, sufragando as posições já anteriormente plasmadas nas diversas decisões arbitrais supra mencionadas, pelo que, se entende que a presunção ilidível, inscrita no n.º 1, do artigo 3.º, do CIUC, corresponde à interpretação mais ajustada à prossecução dos objetivos almejados pelo legislador.
5.2. Da Elisão da Presunção
Chegados aqui resta decidir a terceira e última questão suscitada nos autos e que é a de saber se, estando perante uma presunção ilidível por prova em contrário, a Requerente logrou essa elisão.
As presunções de incidência tributária podem ser ilididas através do procedimento contraditório próprio previsto no artigo 64.º do CPPT ou, em alternativa, pela via de reclamação graciosa ou de impugnação judicial dos atos tributários que nelas se baseiem. No caso dos autos, a Requerente não utilizou aquele procedimento próprio, tendo antes optado pelo presente pedido de decisão arbitral que, assim, constitui meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjetiva do IUC em que se suportam as liquidações tributárias cuja anulação constitui o seu objeto, pois que se trata de matéria que se situa no âmbito da competência material deste tribunal arbitral (arts. 2.º e 4.º do DL n.º 10/2011).
Para ilidir a presunção derivada da inscrição do registo automóvel, a Requerente oferece, como meio de prova, cópias dos comprovativos do recebimento dos preços, cópias dos contratos de “factoring” e cópia dos contratos com entre a Requerente e os concessionários e entre estes e a A2… – Sucursal em Portugal.
O entendimento do tribunal, avaliada a prova produzida pela Requerente, é no sentido de decidir que esta prova é suficiente para atestar a venda de todas as viaturas e liquidações de imposto aos respetivos adquirentes, de modo que ao tempo do facto tributário e do primeiro registo de propriedade efetuado esta já não era a sua proprietária. Aliás, diga-se que a AT e ora Requerida em momento algum, nem na Resposta nem nas Alegações juntas aos autos questionou essa documentação, a ocorrência efetiva das transmissões ou o valor probatório da documentação junta. Questionou, isso sim, a sua junção em momento posterior ao envio do Pedido Arbitral, a qual já se encontra decidida a título de questão prévia.
Diverge-se, assim, do entendimento da Requerida, segundo a qual, à luz das normas legais é manifestamente irrelevante a venda aos seus concessionários antes da atribuição da matrícula, uma vez que, mesmo não podendo circular ou ser introduzida no consumo, a viatura existe, material e juridicamente, antes da matriculação, podendo, naturalmente, ser objeto de direitos e relações jurídicas.
Mas, acresce que, as dúvidas na AT explanadas nas suas alegações em relação aos casos que particulariza têm ainda uma resposta mais direta e evidente, qual seja a de os tributar tal como fez em relação a todas as demais viaturas em que procedeu à correta liquidação do imposto ao verdadeiro e único sujeito passivo: o adquirente. Ou ainda, procedesse como já procedera no passado em relação a idêntico procedimento descrito no pedido arbitral pela Requerente (e que a Requerida não questiona ou desdiz), pois que, desde pelo menos esse momento esteve em condições de tributar o verdadeiro sujeito passivo do IUC em relação a cada uma das viaturas em causa. Por último, mas de fundamental importância, sabendo a Requerida que a Requerente opera como importadora e conhecedora do procedimento legal a que está sujeita, poderia seguir a informação do registo automóvel e promover a liquidação do IUC ao adquirente, já que em relação a todas as viaturas esse registo ocorreu de imediato e apenas com alguns dias ou semanas de diferença em relação ao primeiro registo.
Por último, mas claramente indicador de que o argumento da Requerida nesta matéria não poderá proceder, diga-se que a tese da inevitabilidade em tributar o IUC do ano da matrícula ao importador (Requerente) cai perante o argumento de que o período de tributação, no regime atual do IUC, não coincide com o ano civil. Com efeito, se um veículo for matriculado a 30 de dezembro de determinado ano (ano N, na hipótese da Requerida), não será devido um imposto nesse ano (por dois dias), e outro de 1 de janeiro a 31 de dezembro do seguinte. Antes, o período de tributação N vai, não de 30 a 31 de dezembro, mas de 30 de dezembro até 29 de dezembro seguinte, sendo absolutamente irrelevante, sob o ponto de vista do regime legal em causa, a passagem do ano civil.
Em suma, nenhum dos veículos aqui em causa era, à data da matrícula propriedade da Requerente. Ao que acresce a existência de registo de propriedade a favor do verdadeiro proprietário, pelo que, a Requerente não autoliquidou, nem pagou o imposto - nos anos de matrícula em causa (2009-2012) -, nem tal liquidação alguma vez lhe foi disponibilizada nos termos legais.
Não colhe, pois, o argumento do desconhecimento de quem eram os verdadeiros titulares da propriedade das viaturas desde o ano da matrícula, porquanto, quer em sede de audiência prévia quer por força da realidade vertida no próprio registo automóvel a Requerida teve pleno conhecimento, ou possibilidade de o alcançar, de quem eram os verdadeiros proprietários e, consequentemente, os sujeitos passivos de imposto.
Nesta conformidade, conclui-se que toda a documentação junta aos autos pela Requerente bem assim como a que foi aduzida pela Requerida comprovam com suficiente grau de certeza quem eram os proprietários e sujeitos passivos de imposto, pelo que se considera ilidida a presunção decorrente do primeiro registo automóvel efetuado.
Acrescente-se, ainda, que na situação em análise, se está perante contratos de compra e venda que, relativos a coisa móveis, que não estando sujeitos a quaisquer formalismos especiais (C. Civil, artigo 219.º), operam a correspondente transferência de propriedade por mero efeito do contrato e tradição da coisa. (C. Civil, artigo 408.º, n.º 1). No entanto, estando em causa um contrato de compra e venda que tem por objeto um veículo automóvel, em que o registo é obrigatório, o seu cumprimento pontual pressupõe a emissão da declaração de venda necessária à inscrição no registo da corresponde aquisição a favor do comprador, conforme vem sendo entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores.[6]
Tal declaração, relevante para efeitos de registo, poderá constituir prova da transação, embora não seja o único ou exclusivo meio de prova de tal facto. E, para efeitos registrais, também não é exigível qualquer formalismo especial, bastando a apresentação à entidade competente de requerimento subscrito pelo comprador e confirmado pelo vendedor, que, através de declaração de venda confirma que a propriedade do veículo foi por aquele adquirida por contrato verbal de compra e venda. Ora, nos presentes autos ficou demonstrado (a própria AT o confirma) que todo esse formalismo foi cumprido, e que a Requerente, ela própria, cuida de garantir a apresentação a registo em prazo célere.
Ora, tal procedimento não deve ser considerado estranho mas sim de louvar pelo rigor subjacente e que interessa à própria Administração Fiscal. Na situação em análise, estamos perante transações comerciais, efetuadas por uma entidade empresarial no âmbito da atividade que constitui seu objeto social. Nesse âmbito, a empresa está vinculada ao cumprimento de normas contabilísticas e fiscais específicas, em que a faturação assume especial relevância, bem assim como manter uma situação fiscal regularizada e sem incidentes de incumprimento fiscal.
Desde logo, por força de normas fiscais, a entidade transmitente dos bens está obrigada a emitir uma fatura relativamente a cada transmissão de bens qualquer que seja a qualidade do respetivo adquirente, sob forma legalmente exigida (artigos 29.º, n.º 1, alínea b) e 36.º do CIVA). É com base nesse documento emitido pelo fornecedor dos bens que o adquirente, quando se trate de um operador económico - como é o caso - irá deduzir o IVA a que tenha direito e contabilizar o gasto da operação (artigo 19.º do CIVA e arts. 23.º, n.º 6 e 123.º, n.º 2 do CIRS).
Desde que emitidas na forma legal e constituam elementos de suporte dos lançamentos contabilísticos em contabilidade organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal, os dados que delas constem são abrangidos pela presunção de veracidade a que se refere o artigo 75.º, n.º 1, da LGT. Presunção abrange não só os livros e registos contabilísticos, mas também os respetivos documentos justificativos, conforme, de resto, constitui entendimento pacífico da própria administração tributária e da jurisprudência firmada dos tribunais superiores.[7]
A presunção de veracidade das faturas comerciais emitidas nos termos legais pode ser afastada sempre que as operações a que se referem não correspondam à realidade, sempre que a Administração Tributária recolha e demonstre indícios fundados desse facto como resulta do disposto no artigo 75.º, n.º 2, al. a), da LGT.[8] Tal não sucedeu no caso dos presentes autos, em que a Requerida não impugnou, nem suscita qualquer dúvida, quanto às operações tituladas pelos contratos e faturas apresentadas pela Requerente. pelo que, forçoso é concluir que a prova documental junta pela Requerente aos autos constitui, só por si, prova bastante das transmissões invocadas pela Requerente, acompanhando-se, nesta matéria, a jurisprudência arbitral maioritária.
Considerando-se, assim, provada documentalmente a transmissão do direito de propriedade dos veículos em causa, há apenas que determinar a data em que, segundo a respetiva fatura, a mesma se terá verificado, atendendo a que a exigibilidade do imposto, relativamente a veículos terrestres novos, ocorre no primeiro dia do período de tributação, que se inicia na data da matrícula, conforme prevê o artigo 6.º, n.º 3, do CIUC, sendo esse o momento em que se define a relação jurídica tributária. Com base nos documentos que integram o presente processo verifica-se que, à data da exigibilidade do imposto, a situação dos veículos aí identificados já não eram propriedade da Requerente em virtude de, por esta, terem sido transmitidos a terceiros. Nestes termos, considera-se ilidida a presunção de propriedade derivada do registo automóvel acolhida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, relativamente aos veículos e períodos a que se reportam todas liquidações questionadas, com referência aos veículos nelas identificados, conforme lista anexa ao presente pedido de pronúncia arbitral (Doc. n.º 13).
Assim, o entendimento subjacente às liquidações impugnadas nos presentes autos, segundo o qual os sujeitos passivos do IUC são, em definitivo e sem admissão de prova em contrário, as pessoas em nome de quem os veículos automóveis se encontram registados, sem considerar os elementos probatórios para identificação dos efetivos e verdadeiros utilizadores e atuais proprietários dos veículos, conduziu à liquidação ilegal do IUC, assente na errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjetiva do Imposto Único de Circulação. Tais liquidações afiguram-se, pois, ilegais o que impõe a anulação dos correspondentes atos tributários.
Nestes termos, atendendo ao disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do CIUC, conclui-se que se mostra ilidida a presunção contida no nº 1 e que, por isso, a Requerente não constitui sujeito passivo do IUC, liquidado em relação aos anos de 2009 a 2012, quanto aos veículos identificados nos autos. Em consequência de todo o supra exposto, resulta que todas liquidações impugnadas são ilegais, padecem do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, pelo que, devem ser objeto de anulação, procedendo-se, consequentemente, ao reembolso à Requerente do montante indevidamente pago a crescido dos juros à taxa legal.
5.3. Quanto ao pedido de juros
Dispõe a alínea b), do n.º 1, do artigo 24.º, do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito. Tal dispositivo está em sintonia com o disposto no artigo 100.º, da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 29.º, do RJAT, no qual se estabelece que: “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”
Dispõe, por sua vez, o artigo 43.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
Da análise dos elementos probatórios constantes dos presentes autos, nomeadamente do Processo Administrativo, é possível inferir que, pelo menos desde o exercício do direito de audição, a AT tinha conhecimento dos elementos factuais, no essencial, relevantes para proceder à correta liquidação do imposto. Isso mesmo resulta da informação constante do PA junto aos autos. Pelo que, teve a possibilidade de revogação dos atos tributários ilegalmente praticados, que poderia ter efetuado no prazo para resposta ao presente pedido de pronúncia arbitral, o que não sucedeu.
Não resta dúvida que a AT se encontrava na disponibilidade dos elementos informativos suficientes sobre a situação concreta das viaturas constantes dos autos, de modo que teve a possibilidade de emendar o erro e de evitar a prática dos atos tributários lesivos e ilegais. Nisso mesmo consiste o erro pelo qual está obrigada a indemnizar.
Por força do supra exposto e sem necessidade de mais considerandos, o tribunal não pode sufragar a alegação da Requerida quer quanto ao afastamento da obrigação de pagar juros indemnizatórios quer, por idêntica razão, no que toca à alegação em matéria de responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais.
Assim sendo, atento o disposto no artigo 61.º, do CPPT e considerando que se encontram preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de €589.857,79, a contar da data em que foi efetuado o pagamento até ao seu integral reembolso.
VI – Decisão
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar improcedentes às questões prévias suscitadas pela Requerida;
b) Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a declaração da ilegalidade dos indeferimentos das reclamações graciosas n.os … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 …, … 2014 … e a consequente anulação das liquidações de imposto e de juros compensatórios por padecerem do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito subjacentes, relativamente a todos os períodos de tributação e a todos veículos identificados nos presentes autos;
c) Condenar Requerida a reembolsar a Requerente de todo o montante pago, no valor de €188.274,36, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal até integral pagamento;
d) Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.
Fixa-se o valor do processo em €188.274,36 (cento e oitenta e oito mil duzentos e setenta e quatro euros e trinta e seis cêntimos), nos termos do artigo 32.º do CPTA e do artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Custas a cargo da Requerida, no montante de €3672,00 (três mil seiscentos e setenta e dois euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique.
Lisboa, 26 de outubro de 2015.
O Tribunal Arbitral Coletivo,
José Poças Falcão (Presidente)
Miguel Patrício
Guilherme W. d’Oliveira Martins
***
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no artigo 131.º,
n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
A redação da presente decisão rege-se pela ortografia do Acordo Ortográfico de 1990.
[1] Vd. Sérgio Vasques, “Os Impostos Especiais de Consumo”, Almedina, 2000 e a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 118-X, que deu origem à Lei n.º 22-A/2007, de 29/05 (reforma da tributação automóvel).
[2] Neste sentido, cfr.: Decisões Arbitrais de 19.7.2013, Proc. 26/1013-T, de 10.9.2013, Proc. 27/2013-T, de 15.10.2013, Proc. 14/2013-T, de 5.12.2013, Proc. 73/2013-T, de 14.2.2014, Proc. 170/2013-T, de 30.4.2014, Proc. 256/2013-T, de 2.5.2014, Proc. 286/2013, de 16.6.2014, Proc. 289/2013-T, de 14.7.2014, Proc.43/2014-T, de 6.6.2014, Proc. 294/2013-T, de 15.9.2014, Procs. 63/2014-T e 220/2014-T, de 5.9.2014 e Proc. 250/2014-T, de 7.11.2014.
[3] Cfr. Jorge de Sousa, CPPT, 6.ª Edição, Áreas Editora. Lisboa, 2011, pags. 586; ainda neste sentido, cfr. Ac. STA, Acs. de 29.2.2012 e de 2.5.2012, Procs. 441/11 e 381/12.
[4] Neste sentido, vd, entre outros, os seguintes Acórdãos do STJ: Ac. STJ de 31.05.1966, in Proc. n.º 060727 (Relator: Conselheiro Lopes Cardoso), decisão especificamente referente ao registo automóvel; Ac. STJ de 5.05.2005 (Relator: Conselheiro Araújo Barros), in Proc. n.º 05B743, e Ac. STJ de 14.11.2013, in Proc. n.º 74/07.3TCGMR.G1.S1(Relator: Conselheiro Serra Batista), exímios na afirmação do predomínio do princípio da substancia sobre a forma, valendo a prova, por qualquer meio idóneo, de quem é substantivamente titular do direito de propriedade, a qual faz ilidir a presunção do registo.
[5] Aliás, a própria Requerida, afirma, mais do que uma vez que “o facto gerador do imposto é aferido pela matrícula ou pelo registo”, o que implica, necessariamente, o reconhecimento do caracter presuntivo do regime em causa. Com efeito, se “o facto gerador do imposto é aferido pela matrícula ou pelo registo”, é poruqe, naturamente, o “facto gerador do imposto” não é nem a matrícula, nem o registo! Estes serão factos-índice, dos quais se retira aquele, estando-se, de forma inquestionável, perante uma presunção.
[6] Cfr. STJ, Acs. de 23.3.2006 e de 12.10.2006, Procs. 06B722 e 06B2620.
[7] Cfr. Parecer do Centro de Estudos Fiscais, homologado por despacho do Diretor-Geral dos Impostos, de 2 de janeiro de 1992, publicado em Ciência e Técnica Fiscal n.º 365. Ainda neste sentido, Cfr. STA, Ac. de 27.10.2004, Proc. 0810/04, TCAS, Ac. de 4.6.2013, Proc. 6478/13 e TCAN, Ac. de 15.11.2013, Proc. 00201/06.8BEPNF, entre outros.
[8] Cfr. STA, Acs. de 24.4.2002, Proc. 102/02, de 23.10.2002, Proc. 1152/02, de 9.10.2002, Proc 871/02, de 20.11.2002, Proc. 1428/02, de 14.1.2004, Proc. 1480/03, entre muitos outros.