Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 827/2014-T
Data da decisão: 2015-07-28  IVA  
Valor do pedido: € 198.489,81
Tema: Transporte escolar prestado por Município
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Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), José Coutinho Pires e Ana Maria Rodrigues, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral na seguinte

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 19 de Dezembro de 2014, o Município de …, pessoa colectiva de direito público local, contribuinte fiscal número …, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos seguintes actos:

                                                    i.     Indeferimento do pedido de reembolso – N.º …;

                                                  ii.     N.º de liquidação 2014 … e n.º de compensação 2014 …;

                                                iii.     N.º de liquidação 2014 … e n.º de compensação 2014 …;

                                                iv.     N.º de liquidação 2014 … e n.º de compensação 2014 …;

                                                  v.     N.º de liquidação 2014 … e n.º de compensação 2014 …;

                                                vi.     N.º de liquidação 2014 … e n.º compensação 2014 …;

                                              vii.     N.º de liquidação 2014 … e n.º de compensação 2014 …;

                                            viii.     N.º de liquidação 2014 … e n.º de compensação 2014 …;

                                                ix.     N.º de liquidação 2014 … e n.º de compensação 2014 …;

                                                  x.     N.º de liquidação 2014 … e n.º de compensação 2014 ….

  

  1. Para fundamentar o seu pedido alega o Requerente, em síntese, que as correcções reportam-se ao serviço de transporte colectivo de pessoas prestado pelo Município, que é sujeito a IVA e dele não isento, sendo aplicável ao serviço em causa a taxa reduzida de IVA, pelo que o imposto suportado na aquisição dos recursos diretamente associados ao mesmo será integralmente dedutível, padecendo, na medida em que o não reconhecem, os actos tributários a que se opõe, de erro nos respectivos pressupostos.

 

  1. No dia 22 de Dezembro, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 10 de Fevereiro de 2015, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 26 de Fevereiro de 2015.

 

  1. No dia 13 de Abril de 2015, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

  1. Posteriormente, atendendo a que não existia necessidade de produção de prova adicional, para lá da prova documental já incorporada nos autos, que não está em causa, no presente processo, matéria de excepção e que no processo arbitral vigoram os princípios processuais gerais da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis, ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT e facultou-se às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem, alegações escritas.

 

  1. As partes não usaram a faculdade que lhes foi concedida, tendo sido prorrogado o prazo a que alude o artigo 21.º/1 do RJAT e fixado o prazo de 30 dias, contados de 29-06-2014, para a entrega da decisão final do processo.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-     O Requerente é uma pessoa colectiva de direito público local, cuja atividade consiste na prossecução das suas atribuições municipais nas mais diversas áreas de atividade, encontrando-se enquadrada, para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), no regime normal trimestral.

2-     Na prossecução das suas atribuições, o Requerente realiza um vasto conjunto de operações inseridas no âmbito dos seus poderes de autoridade, as quais são excluídas da sujeição a IVA ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 2.º do Código do IVA.

3-     Realiza também o Requerente um conjunto de operações, quer sejam transmissões de bens, quer sejam prestações de serviços, que não se encontram enquadradas no âmbito dos seus poderes de autoridade, estando por isso sujeitas a IVA nos termos gerais do Código deste imposto.

4-     Na dedução do IVA suportado, e no que respeita aos períodos de 2011 a 2013, relativamente a todos os bens e serviços, incluindo os relacionados com atividades não sujeitas ou sujeitas mas isentas que não conferem direito à dedução do IVA suportado e não apenas os de utilização mista, o Requerente deduziu uma percentagem do imposto (pro rata) de 2% em 2011 e 2012 e de 1 % em 2013, que foi calculada incluindo no denominador todas as operações realizadas, incluindo as fora do campo de incidência do imposto, isto é, as que não decorrem do exercício de uma atividade económica para efeitos de IVA, e excluía apenas daquele apenas as operações previstas no n.º 5 do artigo 23.º do CIVA, cuja redação não foi alterada pelo Orçamento de Estado para 2008.

5-     No decurso de 2013, o Requerente reviu o método de dedução que vinha aplicando e passou a deduzir o imposto, com efeitos aos exercícios de 2011 e seguintes, de acordo com os seguintes critérios:

                                                    i.          relativamente às aquisições de bens ou serviços afectos exclusivamente a operações que considerou sujeitas a imposto e dele não isentas (ex.º: redébitos à A… de …, concessão de exploração das B…, exploração do bar da biblioteca municipal, transportes colectivos), o Requerente passou a deduzir integralmente o imposto suportado;

                                                  ii.          relativamente às aquisições de bens e serviços afectos exclusivamente a operações que considerou não sujeitas a imposto ou sujeitas mas isentas (ex.º: a iluminação pública, despesas relacionadas com escolas e o saneamento) o imposto suportado não foi deduzido;

                                                iii.          Relativamente aos bens ou serviços de utilização mista, utilizados simultaneamente em operações que considerou como conferindo direito à dedução do imposto e operações que considerou como não conferindo esse direito, o Requerente considerou que todas as operações às quais esses bens estão afectos são decorrentes do exercício de uma atividade económica e aplicou a percentagem de dedução calculada nos termos do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA.

6-     Da descrita revisão do método resultaram regularizações a favor do Estado e a favor do sujeito passivo, relativamente aos anos de 2011, 2012 e 2013, que foram refletidas nas declarações de substituição referentes a Dezembro de cada um dos anos, nos montantes que a seguir se indicam:

 

Rubricas

2011

 

2012

2013

(valores em euros)

C40 – Regularizações a favor do sujeito passivo

112.874,32

66.667,37

60.703,11

C41 – Regularizações a favor do Estado

40.742,32

35.273,47

13.647,70

 

7-     Na declaração periódica de IVA relativa ao 1.º Trimestre de 2014, o Requerente solicitou um reembolso de IVA no valor de €79.727,28.

8-     Na sequência desse pedido de reembolso o Requerente foi alvo de um procedimento de inspeção tributária externa que incidiu sobre os anos de 2011 a 2014 (1.º Trimestre).

9-     No dia 19 de Setembro de 2014, o Requerente foi notificado, através do Ofício n.º …, de 18 de Setembro de 2014, do relatório de inspeção tributária, onde foram efectuadas correcções aritméticas em sede de IVA, no valor de € 201.082,90, resultantes das seguintes situações:

                                                    i.          IVA suportado nos períodos de 2011, 2012 e 2013 e deduzido indevidamente relativo a Transportes escolares - €198.489,81;

                                                  ii.          IVA deduzido indevidamente relativo a Inputs de bens e serviços afectos a atividades isentas ou não sujeitas a imposto - € 1.756,89;

                                                iii.          Falta de liquidação de IVA na exploração do bar - € 836,20.

10- No dia 24 de Setembro de 2014, o Requerente foi notificado, através do documento n.º …, do indeferimento do pedido de reembolso, ali constando que, em resultado das correcções, compensações e liquidações efetuadas, se encontra disponível um crédito de IVA de €695,70, a favor do Requerente, para compensação em pagamentos futuros.

11- Das correcções referidas no ponto 9.i. supra, resultaram os actos tributários objecto da presente acção arbitral.

12- No dia 17 de Outubro de 2014, o Requerente recebeu as "Demonstrações de acertos de contas", de onde resulta um valor de IVA a pagar de € 37.572,66, de juros compensatórios de € 3.291,39 e de juros de mora no valor de € 212,12.

13- No dia 5 de Dezembro de 2014, o Requerente procedeu ao pagamento das liquidações adicionais de IVA e juros mencionadas nos pontos anteriores.

14- O Requerente, na observância das suas competências resultantes, designadamente, do Decreto-Lei n.º 299/84, de 5 de Setembro (que regula a transferência para os municípios de competências sobre organização, financiamento e controle de funcionamento de transportes escolares) e da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro (que vigorou até à entrada em vigor da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, e que estabelecia o quadro de transferências de atribuições e competências para as autarquias locais) presta, nos termos legais, um serviço de transporte de estudantes do ensino obrigatório (1.º, 2.º e 3.º ciclos), bem como do ensino secundário.

15- Este serviço é assegurado pelo próprio Município, através da empresa C…, mas também por várias outras empresas de transporte público, como sejam a D…, Lda., a E…, Lda. e a F…, Lda.

16- De acordo com os Planos de Transporte Escolar publicitados pelo Requerente, os alunos abrangidos pelo serviço de transportes escolares, foram os constantes do seguinte quadro:

 

Ano Letivo 2010/2011

Ano Letivo 2011/2012

Ano Letivo 2012/2013

Ano Letivo 2013/2014

Número de Alunos

Passes Escolares (Concelho de …)

5.749

5.048

3.478

4.480

Passes Escolares (Escolas de Outros Concelhos)

234

174

142

249

Alugueres – Alunos sem transporte público compatível

285

249

321

362

Alugueres – Alunos c/ necessidades educativas especiais

10

11

0

0

Carrinha municipal de apoio às escolas

0

0

13

11

Total

6.278

5.482

3.954

5.102

 

17- Foram registados pelo Requerente como gastos na conta 62101 (Fornecimento e Serviços Externos/Transportes Escolares) de acordo com os balancetes analíticos à data de 31 de Dezembro, e que correspondem aos valores faturados pelas empresas transportadoras ao Requerente, relativos aos transportes referidos, os valores que constam do quadro seguinte:

 

Rubricas

2011

 

2012

2013

(valores em euros)

Conta 62.101 – FSE/Transportes Escolares

1.414.558,11

1.295.048,56

1.241.765,46

 

18- Os valores contabilizados pelo Requerente como recebidos por contrapartida da prestação dos transportes referidos, nos exercícios de 2011, 2012 e 2013, totalizaram as importâncias que a seguir se encontram evidenciadas:

 

Rubrica

2011

 

2012

2013

(valores em euros)

Conta 712132 – Prestações de serviços/Transportes Escolares

120.775,66

102.713,71

97.758,97

 

19- Para fazer face aos custos dos transportes escolares, os Municípios recebem uma parcela que é anualmente integrada no Fundo de Equilíbrio Financeiro (artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 299/84) sendo que o valor da transferência contabilizada pelo Requerente na conta 7421118 (Transferências obtidas/Transportes escolares), em cada um dos anos de 2011, 2012 e 2013, foi de €337.083,00.

20- Nos exercícios de 2011, 2012 e 2013, o Requerente liquidou IVA, à taxa reduzida de 6%, sobre as quantias a que se refere o quadro supra, constante do ponto 18 supra, mas apenas relativamente aos alunos do secundário (do 10.º ao 12.º ano).

21- Aquando da contabilização dos serviços de transporte escolar facturados pelas empresas transportadoras referentes a 2011 e 2012, o Requerente aplicou inicialmente a percentagem de dedução de 2% ao IVA suportado.

22- Relativamente a 2013, o Requerente aplicou inicialmente a percentagem de dedução de 1% à maior parte das faturas de transporte escolar aquando da sua contabilização mas, em relação a algumas facturas, deduziu o imposto suportado na íntegra e, relativamente a outras, não deduziu imposto nenhum.

23- Posteriormente, aquando da revisão do método de dedução, acima descrito nos pontos 4 e 5, e relativamente aos referidos serviços, o Requerente deduziu a totalidade do imposto suportado nas facturas em que não tinha sido deduzido imposto nenhum e deduziu a parte restante do imposto suportado nas faturas em que tinha sido aplicado o pro rata, tendo o valor assim determinado sido inscrito no campo 40 (regularizações a favor do sujeito passivo) da declaração periódica de substituição referente a Dezembro de cada um dos anos.

24- O IVA deduzido pelo Requerente relativamente aos transportes em causa, no ano de 2011 e 2012 totalizou as seguintes importâncias:

 

Rubricas

2011

2012

(valores em euros)

C24 – Outros Bens e Serviços (diversos períodos)

2.007,56

790,92

C40 – Regularizações a favor do sujeito passivo (DP de substituição de dezembro)

98.036,86

38.733,29

Total

100.044,42

39.524,21

 

25- No ano de 2013, o IVA relativo à mesma atividade, totalizou os seguintes montantes:

Rubricas

2013

(valores em euros)

C24 – Outros Bens e Serviços (dedução com base no pro rata – diversos períodos)

398,65

C24 – Outros Bens e Serviços (dedução integral – meses de outubro, novembro e dezembro)

15.885,07

C40 – Regularizações a favor do sujeito passivo (DP de substituição de dezembro)

42.637,46

Total

58.921,18

26- Os serviços de transporte prestados pelo Requerente aos alunos são, por imposição legal, gratuitos para os 1.º, 2.º e 3.º ciclos e comparticipados em 50% no que diz respeito à sua utilização pelos alunos do secundário.

27- Os pedidos de passe escolar são efectuados pelos estabelecimentos de ensino às empresas de transporte público de passageiros, com a devida autorização do Requerente.

 

A.2. Factos dados como não provados

 

1-     O passe escolar só é emitido para os dias em que existem aulas e para os troços da carreira que ligam o local do estabelecimento de ensino à residência do aluno.

2-     Os alunos podem utilizar este serviço de transporte colectivo de pessoas, independentemente de se dirigirem ou não para a escola, uma vez que o denominado passe escolar utilizado pelos alunos não tem limites no número de viagens e ou de dias de utilização.

3-     As viaturas que prestam os referidos serviço de transporte não fazem quaisquer circuitos especiais destinados exclusivamente a alunos, fazendo antes circuitos destinados à população em geral.

4-     Os alunos podem utilizar estes transportes quer para se deslocarem para a escola, quer para qualquer outro local.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Os factos dados como não provados devem-se à ausência de prova suficiente que os sustente.

Designadamente não está disponível no processo qualquer elemento de prova relativo aos termos e condições dos passes escolares do Município de …, incluindo trajetos, horários, e termos de utilização.

O Requerente pretendeu fazer prova do ponto 2 dos factos dados como não provados, remetendo para consulta do “site da Internet do Município”. Para além de se entender que a mera menção de um facto numa página electrónica, de per si, nada mais prova do que quem a administra colocou ali tal menção, verifica-se que o Requerente não menciona qualquer URL concreta.

Não obstante, verificou-se que no endereço …, consta que, no que diz respeito ao serviço “C…”, “O passe escolar não tem limites no número de viagens e nos dias de utilização”.

Também se verificou que, por exemplo, na página electrónica da E… (http://...), consta que o passe escolar é um “Título mensal, válido para número limitado de viagens, para o mês requisitado”, o que está em conformidade com o disposto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 299/84, de 5 de Setembro, que dispõe que “Os bilhetes de assinatura terão validade mensal, a utilizar somente em duas viagens nos dias lectivos e para os troços das carreiras que ligam o local do estabelecimento de ensino ao local de residência do aluno.”.

 

 

B. DO DIREITO

 

            Atenta a delimitação feita pelo Requerente no se requerimento inicial, a questão que se coloca nos presentes autos é a de saber se os serviços contabilizados pelo Requerente na conta 712132, como prestações de serviços de transporte escolares, nos exercícios de 2011, 2012 e 2013, integram, ou não, prestações de serviços sujeitas a IVA, e dele não isentas, e, como tal, conferem o direito à dedução do imposto suportado a montante, nas aquisições registadas pelo Requerente como gastos na conta 62101.

 

*

           

            A este propósito, e com interesse para a questão que nos ocupa, dispõe o artigo 1.º/a) do CIVA, na redacção vigente à data dos factos tributários, que:

“1 - Estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado:

a) As transmissões de bens e as prestações de serviços efetuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal;”.

Mais dispõe o artigo 2.º/2 e 3 do mesmo Código que:

“2- O Estado e demais pessoas coletivas de direito público não são, no entanto, sujeitos passivos do imposto quando realizem operações no exercício dos seus poderes de autoridade, mesmo que por elas recebam taxas ou quaisquer outras contraprestações, desde que a sua não sujeição não origine distorções de concorrência.

3 - O Estado e as demais pessoas coletivas de direito público referidas no número anterior são, em qualquer caso, sujeitos passivos do imposto quando exerçam algumas das seguintes atividades e pelas operações tributáveis delas decorrentes, salvo quando se verifique que as exercem de forma não significativa: (...)

e) Transporte de pessoas;”.

            Por fim, dispõe o artigo 9.º/9) do CIVA que:

“As prestações de serviços que tenham por objeto o ensino, bem como as transmissões de bens e prestações de serviços conexas, como sejam o fornecimento de alojamento e alimentação, efetuadas por estabelecimentos integrados no Sistema Nacional de Educação ou reconhecidos como tendo fins análogos pelos ministérios competentes;”

*

            Assenta inicialmente o Requerente a sua pretensão no entendimento de que “não estamos perante a prestação de serviços de transporte escolar, como assumiu a Autoridade Tributária”, mas que “O serviço de transporte coletivo (e não escolar) é prestado pelo Município aos utilizadores (incluindo alunos) em condições análogas ao serviço prestado por qualquer entidade privada.”.

            Não se pode, contudo subscrever tal entendimento.

            Desde logo, a própria contabilidade do Requerido, que goza de uma presunção de veracidade (cfr. artigo 75.º/1 da LGT), discrimina as receitas e gastos em questão como transportes escolares.

            Acresce que se, realmente, como alvitra o Requerente, no que toca aos registos contabilísticos por si efectuados nas contas 712132 e 62101, “não estamos perante a prestação de serviços de transporte escolar”, ter-se-ia de concluir que o Requerente não cumpria o dever legal que para si resulta, para além do mais, do Decreto-Lei n.º 299/84, de 5 de Setembro, e da Lei 159/99 de 14 de Setembro, pois não disponibilizaria aos alunos, seus munícipes, com direito a tal, esse serviço.

            Afigura-se, assim, evidente que os rendimentos e gastos que o Requerente contabilizou nas contas 712132 e 62101, não se referem à exploração de uma empresa de transportes colectivos, seja em que termos for, concorrendo com os demais operadores desse mercado. Aliás, e ao contrário do que afirma o Requerente, é facto notório a inexistência de qualquer operador privado que tenha a finalidade de oferecer transporte gratuito a uma faixa considerável dos seus utilizadores[1].

            Pelo contrário, a situação que se desenha é que os rendimentos e gastos que o Requerente contabilizou nas contas 712132 e 62101, correspondem à contratação de serviços externos destinados ao cumprimento da obrigação legal que lhe assiste de proporcionar transportes escolares, decorrente do Decreto-Lei n.º 299/84, de 5 de Setembro e da Lei 159/99 de 14 de Setembro (gratuitos para os alunos do ensino obrigatório, e com desconto de 50% para os alunos do ensino secundário).

 

*

            Prossegue o Requerente afirmando que “Subsidiariamente, e sem prescindir de tudo que foi explanado, entende o Município que ainda que o serviço de transporte em causa fosse escolar (...), o mesmo seria sujeito a IVA.”.

            Segundo o Requerente, “não se vislumbra no Código do IVA qualquer norma que estabeleça que o serviço de transporte escolar prestado pelos Municípios, é uma atividade exercida no âmbito dos poderes de autoridade”, e “qualquer entidade (privada ou pública) pode prestar este tipo de serviço de transporte, não estando o Município, neste caso, revestido de um poder que lhe é próprio e que não pode ser exercido por privados.”.

            Nota, ainda o Requerente, que “o Código do IVA (nº 3 do artigo 2º do Código do IVA), refere expressamente que a atividade de transporte de pessoas, quando exercida por Municípios, está sujeita a imposto”.

            Vejamos.

 

*

            Refere o requerente que o CIVA não estabelece que o serviço de transporte escolar é uma atividade exercida no âmbito de poderes de autoridade, consideração que, sendo correcta, não se reveste de especial relevância, na medida em que o CIVA não estabelece qualquer atividade como sendo, por definição, exercida no âmbito de poderes de autoridade.

            O estabelecimento do exercício de uma atividade no âmbito de poderes de autoridade, ou fora deles, dever-se-á fazer, assim, não por exegese do CIVA, mas através da análise das características próprias da atividade exercida em concreto, e das circunstâncias em que tal exercício se dá.

            Ora, transpondo para o presente caso as palavras do STA, exaradas no Ac. de 29-02-2012, proferido no processo 01096/11[2], “não parece que o município, ao”, no caso, assegurar o transporte, de e para a escola, de forma gratuita, para os alunos do ensino obrigatório, e descontada a 50%, para os alunos do secundário, “esteja a realizar de um modo independente e com carácter de habitualidade, uma atividade económica de produção, comércio ou prestação de serviços. Pelo contrário, esta construção mais não é do que uma forma de exercer as atribuições que a Lei lhe confere no âmbito do fomento” e promoção do acesso à educação.

            Tal como naquele aresto, é isso que se conclui, no caso, do artigo 19.º/3/b) da Lei 159/99 de 14 de Setembro, onde se dispõe que:

Compete ainda aos órgãos municipais no que se refere à rede pública:

a) Assegurar os transportes escolares;

            Por outro lado, e em contraciclo com o afirmado pelo Requerente, não se subscreve a afirmação deste, segundo a qual qualquer entidade (privada ou pública) pode prestar este tipo de serviço de transporte, pelo menos no sentido que o Requerente lhe quer dar.

            De facto, é certo que, quem quiser (muitos pais o fazem diariamente), pode transportar gratuitamente alunos de casa para a escola e da escola para casa, não carecendo de quaisquer poderes de autoridade para o fazer.

            Tal como, por exemplo, e para nos restringirmos a gastos que o próprio Requerente considerou não sujeitos a IVA, qualquer pessoa pode iluminar o espaço público (quanto mais não seja, passeando com uma lanterna), sem precisar de poderes de autoridade para tal.

            Não é, contudo, isso que está em causa.

            O que está em causa é saber se estamos, ou não, perante o exercício das atribuições próprias de um ente público, nos termos do atual CPA[3], de um atividade “regulada de modo específico por disposições de direito administrativo”, ou do aresto supracitado, “submetida a um regime substantivo de direito público

            É, precisamente, este último o caso, já que a atividade de transportes escolares era, regulada de modo específico pelas disposições do Decreto-Lei n.º 299/84, de 5 de Setembro e da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro (até à entrada em vigor da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro).

            De resto, tendo em conta os critérios doutrinalmente aceites na matéria, as relações contratuais estabelecidas pelo Requerente com os utentes dos serviço de transporte escolar, revestem-se de natureza administrativa e, como tal, pública. Assim, seguindo-se uma vez mais o Acórdão do STA já citado, “Os critérios que têm sido usados pela doutrina e jurisprudência, quer portuguesa quer estrangeira, são aqueles que singularizam o Direito Administrativo em face do Direito Privado: a sujeição do particular, o objecto, o fim e o estatuto privativo da Administração Pública. O recurso a tais critérios, especialmente o critério estatutário, permite proceder à qualificação de um contrato como administrativo. Assim (...) se o contrato for celebrado para a satisfação directa e imediata de determinadas necessidades colectivas, o contrato é administrativo (critério do fim); se os efeitos pactuados pelas partes estiverem previstos em normas jurídicas que se dirigem à entidade pública, enquanto tal, o contrato é administrativo (critério estatutário).

            Ora, não se tem dúvidas que nas relações contratuais do Requerente com os utentes dos transportes escolares, “os efeitos pactuados pelas partes” estão, no essencial, “previstos em normas jurídicas que se dirigem à entidade pública, enquanto tal”, e que impõem que a aquela assuma o custo dos transportes escolares dos alunos do ensino obrigatório, e metade daquele custo do mesmo serviço, nos que diz respeito aos alunos do ensino secundário, em ordem à satisfação de necessidades colectivas.

            Daí que não haja dúvidas, julga-se, que a atividade de transportes escolares exercida pelo Requerente seja executada no exercício dos poderes de autoridade daquele, enquanto Município, tal como pressuposto pelo n.º 2 do artigo 2.º do CIVA.

 

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            Não obsta à conclusão retirada, o disposto no artigo 2.º/3/e) do CIVA.

            Com efeito, o serviço de transportes escolares, tal como resulta das disposições do Decreto-Lei n.º 299/84, de 5 de Setembro e da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro (até à entrada em vigor da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, e desta, daí em diante), é um tipo de serviço próprio, distinto do “transporte de pessoas” a que alude a referida alínea do n.º 3 do artigo 2.º do CIVA, que se reporta ao exercício “de um modo independente e com carácter de habitualidade, uma atividade económica de” transporte de pessoas, o que não é manifestamente o caso, já que a própria natureza do serviço ora em questão, gratuito para a grande maioria dos destinatários, e descontado a 50% para os restantes, é incompatível com aquele tipo de exercício, o que é perfeitamente evidenciado pela disparidade dos gastos contabilizados na rúbrica respectiva (constantes do ponto 17 dos factos dados como provados) em relação aos rendimentos correspondentes (constantes do ponto 18 dos factos dados como provados), o que denota, sem qualquer espaço para dúvida, o carácter não-económico deste tipo de atividade.

 

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            Tendo por assente, então, que a atividade de transportes escolares exercida pelo Requerente é não sujeita a IVA, ter-se-á de concluir que o imposto suportado com os gastos a montante de tal atividade não serão dedutíveis, uma vez que aqueles não fazem parte dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas a jusante com direito a dedução.

            Com efeito, como se escreveu no Ac. do STA de 03/07/2013, proferido no processo 01148/11:

o direito à dedução do imposto consubstancia uma das principais características deste tributo, como resulta do principio fundamental inerente ao IVA constante do art.° 2.° da Primeira Directiva (67/227/CEE), que estabelece que “Em cada transacção, o imposto sobre o valor acrescentado, calculado sobre o preço do bem ou do serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto sobre o valor acrescentado que tenha incidido directamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço.

O regime das deduções visa libertar inteiramente o empresário do ónus do IVA, devido ou pago, no âmbito de todas as suas atividades económicas.

Assim o sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado garante a perfeita neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados dessas atividades, na condição de as referidas atividades estarem, elas próprias, sujeitas ao IVA (v., neste sentido, acórdãos de 26.05.2005, Kretztechnik, C 465/03, de 22.02.2001, processo C-408/98, de 14 de Fevereiro de 1985, Rompelman, 268/83, Recueil, p. 655, n.º 19; de 15 de Janeiro de 1998, Ghent Coal Terminal, C-37/95, Colect., p. I-1, n.º 15, e de 21 de Março de 2000, Gabalfrisa e o., C-110/98 a C-147/98, Colect., p. I-1577, n.º 44, assim como de 8 de Junho de 2000, Midlank Bank, C-98/98, Colect., p. I-4177, n.º 19), todos disponíveis também no site http://new.eur-lex.europa.eu.

No que respeita ao direito de dedução a Jurisprudência do TJCE vem afirmando que «o direito à dedução previsto nos artigos 17.° e 20.º da Sexta Directiva faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado.(…) Para que o IVA seja dedutível, as operações efectuadas a montante devem ter uma relação directa e imediata com as operações a jusante com direito a dedução. Assim, o direito à dedução do IVA que incidiu sobre a aquisição de bens ou serviços a montante pressupõe que as despesas efectuadas com a sua aquisição tenham feito parte dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas a jusante com direito a dedução.” – cf. Acórdão Kretztechnik (2005) – C.465/03 e Ac do TJCE, 2º secção de 08.06.2000, processo C-98/98, in http://new.eur-lex.europa.eu.

Resulta deste princípio bem como da regra nos termos da qual, para dar direito à dedução, os bens ou serviços adquiridos devem ter uma relação directa e imediata com as operações tributadas, que o direito à dedução do IVA, que onerou estes bens ou serviços, pressupõe que as despesas efectuadas com a sua aquisição devem ter feito parte dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas.

Portanto, as referidas despesas devem fazer parte dos custos dessas operações a jusante que utilizam os bens e serviços adquiridos (Ac 408/98).

            E mais adiante, no mesmo aresto:

Em suma, como de forma sintética e assertiva enuncia Mariana Gouveia de Oliveira (A dedutibilidade de IVA e a aquisição de participações sociais por sociedades operacionais, em Fiscalidade, 46, pag.107.), a coerência da jurisprudência do TJUE assenta em algumas ideias fundamentais:

«A primeira será que, o direito à dedução “faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado. Este direito exerce-se imediatamente em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efectuadas a montante (v., designadamente, acórdãos de 6 de Julho de 1995, BP Soupergaz, C-62/93, Colect., p. 1-1883, n.º 18, e de 2] de Março de 2000, Gabaifrisa e o., C’-]10/98 a C-147/98, Colect., p. 1-15 77, n.º 43).”

A segunda ideia reporta-se à ligação necessária entre o IVA suportado e a realização de operações tributáveis: “Para que o IVA seja dedutível, as operações efectuadas a montante devem ter uma relação directa e imediata com as operações a jusante com direito a dedução. Assim, o direito à dedução do IVA que incidiu sobre a aquisição de bens ou serviços a montante pressupõe que as despesas efectuadas com a sua aquisição tenham feito parte dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas a jusante com direito a dedução (v. acórdãos já referidos Midland Bank, n. 030, e Abbey National, n.º 28, assim como de 27 de Setembro de 2001, Cibo Participations, C-16/00, Colect., 1-6663, n.º 31).”

Finalmente o TJUE considera que «as despesas gerais da atividade dos sujeitos passivos, enquanto elementos constitutivos do preço dos produtos, se encontram numa relação directa e imediata com o conjunto da atividade do sujeito passivo, sendo por isso, dedutível o IVA nelas suportado».

            Não sendo, portanto e face a todo o exposto, ao contrário do que pretende o Requerente, o imposto suportado com a atividade de transportes escolares dedutível, deverá, necessariamente, o pedido arbitral improceder.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)     Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, manter o acto tributário impugnado;

b)     Condenar o Requerente nas custas do processo, no montante de €3.672.00, tendo-se em conta o já pago.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €198.489,81, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €3.672.00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar pelo Requerente, uma vez que o pedido foi integralmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

Notifique-se.

 

 

Lisboa

 

28 de Julho de 2015

 

 

O Árbitro Presidente

 

(José Pedro Carvalho - Relator)

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

(José Coutinho Pires)

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

(Ana Maria Rodrigues)

 

 


[1] Cfr., p. ex., que de acordo com o Plano de transportes escolares do Requerente, para o ano lectivo 2013/2014 (disponível em https://www.cm-....pt/portal/binary/com.epicentric.contentmanagement.servlet. ContentDeliveryServlet/Thematic%2520Navigation/Educa%25C3%25A7%25C3%25A3o/Plano%2520de%2520Transportes/ficheiros/Planos%2520de%2520transportes%2520escolares/Plano%2520de%2520Transportes%2520Escolares%25202013-2014.pdf),  de 4480 alunos previsivelmente abrangido, apenas 720 seriam do ensino secundário. Os restantes seriam alunos do ensino obrigatório, com direito a passe gratuito.

[2] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência doravante citada sem referência de proveniência.

[3] Cfr. artigo 2.º/1.