Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 26/2015-T
Data da decisão: 2015-11-04  IUC  
Valor do pedido: € 7.009,91
Tema: IUC – Incidência subjetiva
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

A…, contribuinte n.º …, com residência na R. …, S/N, …, …-… …, doravante designado Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º n.º 1 a) e 10.º n.º 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) efetuados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, relativos às viaturas com as matrículas …-…-…, …-…-…, …-…-… e …-…-…, identificados com os números:

a)      …, de 2008;

b)     …, de 2008;

c)      …, de 2009;

d)     …, de 2011;

e)      …, de 2008;

f)      …, de 2009;

g)     …, de 2011;

h)     …, de 2008;

i)       …, de 2009.

 

 

  1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 19-01-2015.

 

  1. Nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º. n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 10-03-2015 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

  1. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 25-03-2015.

 

  1. Em 04-09-2015 realizou-se a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT.

 

  1. As partes apresentaram alegações por escrito.

 

  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

  1. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

  1. O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

  1. As alegações que sustentam o pedido de pronúncia arbitral do Requerente são, em súmula, as seguintes:

 

Alegações do Requerente

           

10.1 O Requerente foi citado, na qualidade de devedor revertido, para proceder ao pagamento das liquidações de IUC supra identificadas.

 

10.2 As viaturas a que se referem os atos de liquidação pertenceram à sociedade B…, Lda, da qual o Requerente é sócio-gerente.

 

10.3 Sucede que as referidas viaturas foram alienadas a terceiros em data anterior às liquidações ora impugnadas, conforme faturas que junta com os n.ºs A 558, A 449, A614 e 952.

 

10.4 A notificação do imposto à sociedade alienante resulta do fato de os adquirentes não terem procedido ao registo de aquisição das viaturas.

 

10.5 Nos termos do artigo 3.º n.º 1 do CIUC, “são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

 

10.6 Este preceito integra uma presunção ilidível que permite prova em sentido contrário, o que se faz com a apresentação das faturas de venda.

 

10.7 Sem prejuízo, o Requerente alega ainda que a AT não estaria habilitada para proceder às liquidações relativas ao ano de 2008 por efeito não só da caducidade do direito a liquidar, mas também da prescrição.

 

10.8 Termina requerendo a anulação das liquidações de IUC objecto do presente processo.

 

Resposta da Requerida

 

11.1 Na Resposta, a AT entende que as alegações da Requerente não devem proceder.

 

11.2 Com efeito, o legislador tributário ao estabelecer no art.º 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2 as pessoas aí mencionadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

 

11.3 O legislador não usou a expressão “presume-se” como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

 

11.4 Assim, a redação do art.º 3.º do CIUC corresponde a uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, pelo que entender que aí se consagra uma presunção seria inequivocamente efetuar uma interpretação contra legem.

 

11.5 Em conformidade, este entendimento já foi adoptado pela Jurisprudência dos nossos tribunais, transcrevendo, para tanto, parte da sentença do tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, proferida no Processo nº 210/13.0BEPNF. (Cfr. art. 21.º da Resposta)

 

11.6 Também o elemento sistemático de interpretação demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio legal. (Art.º 22.º da Resposta)

 

11.7 Por fim, atentos à “ratio”, dos debates parlamentares em torno da aprovação do presente regime, resulta claramente que o regime de tributação automóvel aprovado estabelece que o IUC “passou a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos” (artigo 64.º).

 

11.8 Assim, de acordo com a informação junta ao presente processo, a propriedade dos veículos em causa encontrava-se registada a favor da empresa B…, Lda., em situação ativa, pelo que de acordo com os artigos 1.º a 6.º do CIUC encontram-se reunidos todos os elementos de incidência objetiva, subjetiva e temporal, facto gerador do imposto e exigibilidade para liquidação do IUC dos anos de 2008, 2009 e 2011.

 

11.9 Acrescenta ainda que as facturas por si só não constituem documento idóneo para comprovar a venda dos veículos, uma vez que a mesma não é mais do que um documento unilateralmente emitido pela Requerente.

 

11.10 Com efeito, o Requerente não fez qualquer prova documental do recebimento do preço ou do pedido de cancelamento das matrículas.

 

11.11 Assim, conforme se fundamentou na decisão arbitral n.º 220/2014-T citada pela Requerida, os meros documentos unilaterais (as faturas) não possuem valor probatório bastante com vista a ilidir a presunção constante do registo.

 

11.12 Mais, as faturas e vendas a dinheiro não se encontram autenticadas, nem se comprova que os valores dela constantes tenham dado entrada contabilisticamente.

 

11.13 Quanto à responsabilidade pelo pagamento das custas judiciais: não foi a Requerida quem deu azo à dedução do pedido de pronúncia arbitral mas sim a Requerente que só subministrou prova documental relativa à pretensa transmissão da propriedade após a liquidação do imposto.

 

11.14 Consequentemente, deverá a Requerente ser condenada ao pagamento das custas arbitrais, em linha com o decidido em questão similar no âmbito do Processo n.º 72/2013-T deste Centro de Arbitragem.

 

11.15 Quanto à caducidade do direito de liquidar o IUC relativo ao período de 2008, determina o n.º 4 do artigo 45.º da LGT que o prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu.

 

11.16 No caso, o IUC qualifica-se indiscutivelmente como um imposto periódico, atendendo ao caráter de permanência e estabilidade do facto tributário, independentemente da sua exigibilidade em função da matrícula do veículo.

 

11.17 Assim, sendo o IUC referente ao período de 2008, a contagem do prazo geral de caducidade de quatro anos a que alude o disposto no artigo 45.º da LGT iniciou-se em 01-01-2009 e terminou em 31-12-2012.

 

11.18 Acontece que a empresa B…, Lda foi notificada da liquidação do IUC em 30-11-2012, pelo que não operou a caducidade alegada.

 

11.19 Por fim, o IUC relativo ao período de 2008 também não prescreveu, atentos ao prazo de 8 anos previsto no n.º 1 do artigo 48.º da LGT.

 

11.20 No caso, o limite previsto no n.º 3 do artigo 48.º quanto à não produção de efeitos de um eventual facto interruptivo por a citação do responsável subsidiário ter ocorrido após o 5.º ano posterior à liquidação não é relevante nesta data por ainda estar a decorrer aquele prazo de 8 anos.

 

Tudo visto, cumpre proferir decisão final.

 

 

A. MATÉRIA DE FACTO

 

A.1. Factos dados como provados

 

1-A Requerente, por contratos verbais de compra e venda, vendeu as viaturas identificadas no Pedido de Pronúncia arbitral.

 

2-As viaturas foram alienadas às entidades identificadas nas faturas emitidas, conforme cópia das mesmas juntas ao pedido de pronúncia arbitral.

 

3-O Requerente foi citado, no âmbito de um processo de reversão, para pagamento das liquidações do IUC, no valor global de € 7.009,91, feitas à devedora originária.

 

 

B. DO DIREITO

 

1.    Da caducidade do direito à liquidação ou prescrição do IUC relativo ao ano de 2008

 

Impõe-se, em primeiro lugar, decidir a questão da caducidade da liquidação ou a eventual prescrição do IUC relativo ao período de 2008, porquanto o seu provimento preclude, quanto a estas, a análise das demais questões de direito.

Quanto à caducidade do direito de liquidar o IUC relativo ao período de 2008, o artigo 45.º n.º 1 da LGT estabelece que “o direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos…”.

 

 Para efeitos de início de contagem de prazos, o prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu.

 

Ora, conforme alegado pela Requerida, pelo seu caráter de permanência e estabilidade ao longo do período do ano civil, o IUC é qualificado como um imposto periódico, pelo que a contagem do prazo de caducidade iniciou-se em 01-01-2009 e terminaria em 31-12-2012.

 

No entanto, como a empresa B…, Lda foi notificada da liquidação do IUC em 30-11-2012, não operou a caducidade alegada.

 

O mesmo se diga quanto à prescrição. O artigo 48.º n.º 1 da LGT determina que as dívidas tributárias prescrevem no prazo de 8 anos, pelo que, salvo a verificação de fatos interruptivos ou suspensivos da contagem do prazo (vide artigo 49.º da LGT), o imposto prescreverá em 31-12-2016.

 

Não releva, assim, o invocado pela Requerente quanto à não produção de efeitos de um eventual facto interruptivo por a citação do responsável subsidiário ter ocorrido após o 5.º ano posterior à liquidação porque, como referido, o prazo de prescrição, sem qualquer consideração de factos interruptivos, ainda está em curso.

 

Pelo exposto, não procedem as alegadas caducidade da liquidação e prescrição do IUC relativo ao período de 2008.

2.    Da presunção da titularidade da propriedade

 

Atenta as posições das Partes assumidas nos argumentos apresentados, a questão central é saber se, na data da ocorrência dos factos geradores do imposto (artigo 3.º n.º 1, do CIUC) os proprietários dos veículos não forem os que constam do registo, serão apesar disso estes que serão sempre considerados os sujeitos passivos do IUC, não sendo por consequência considerada presunção ilidível a titularidade revelada pelo registo ou, dito doutro modo, se a norma de incidência subjetiva constante do artigo 3º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção.

 

Esta matéria foi já abundantemente tratada na Jurisprudência Arbitral Tributária. Veja-se, a título de exemplo, as diversas decisões do CAAD publicadas em www.caad.org.pt, nomeadamente as proferidas nos processos nºs 14/2013, 26/2013, 27/2013, 73/2013, 170/2013, 294/2013 e 216/2014. No presente acórdão seguiremos o entendimento e conclusões daquelas decisões.

 

Pela síntese e clareza de pensamento, aderimos, sem reservas, ao enquadramento feito na decisão arbitral no âmbito do Processo n.º 216/2014-T, que citamos e para a qual remetemos:

“O sentido geral e unânime de tal Jurisprudência é o de considerar que o artigo 3º-1, do CIUC, consagra presunção ilidível da titularidade da propriedade as menções ou inscrições constantes na Conservatória do Registo Automóvel e/ou da base de dados do IMTT à data do facto tributário.

Ou seja: liquidado o IUC em função das inscrições do registo ou de harmonia com os elementos que constam nas bases de dados do IMTT, pode o sujeito passivo exonerar-se do pagamento demonstrando a não correspondência entre a realidade e aquelas inscrições e elementos de que se socorreu a Autoridade Tributária para proceder às liquidações.

Não se antolham razões para inverter o alterar o sentido essencial desta Jurisprudência.

Vejamos então, de novo e mais de perto a questão:

Dispõe o artigo 3º do CIUC (Código do Imposto único de Circulação):

Artigo 3º

Incidência Subjetiva

             1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

         2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

Estabelece, por seu lado, o nº1 do artigo 11º da LGT que “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.

Resolver as dúvidas que se suscitem na aplicação de normas jurídicas pressupõe a realização de uma atividade interpretativa.

Há assim que ponderar qual a melhor interpretação[1] do art. 3º, nº 1 do CIUC, à luz, em primeiro lugar, do elemento literal, ou seja aquele em que se visa detetar o pensamento legislativo que se encontra objetivado na norma, para se verificar se a mesma contempla uma presunção, ou se determina, em definitivo, que o sujeito passivo do imposto é o proprietário que figura no registo.

A questão que se coloca é, no caso sub juditio, a de saber se a expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador no CIUC, em vez da expressão “presumindo-se”, que era a que constava nos diplomas que antecederam o CIUC, terá retirado a natureza de presunção ao dispositivo legal em apreço.

A nosso ver e ao contrário do que defende doutamente a AT, a resposta tem necessariamente de ser negativa, uma vez que da análise do nosso ordenamento jurídico se retira de forma clara que as duas expressões têm sido utilizadas pelo legislador com sentido equivalente, seja ao nível de presunções ilidíveis, seja no quadro das presunções inilidíveis, pelo que nada habilita a extrair a conclusão pretendida pela Autoridade Tributária por uma mera razão semântica.

Na verdade, assim acontece em variadas normas legais que consagram presunções utilizando o verbo “considerar”, de que se indicam, meramente a título de exemplo, as seguintes:

~ no âmbito do direito civil - o nº 3 do art. 243º do Código Civil, quando estabelece que “considera-se sempre de má-fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da ação de simulação, quando a este haja lugar”;

 ~  também no âmbito do direito da propriedade industrial o mesmo se passa, quando o art. 59º, nº 1 do Código da Propriedade Industrial dispõe que “(…)as invenções cuja patente tenha sido pedida durante o ano seguinte à data em que o inventor deixar a empresa, consideram-se feitas durante a execução do contrato de trabalho (…)”;

   ~ e, por último, no âmbito do direito tributário, quando os nºs 3 e 4 do art. 89-A, da LGT dispõem que incumbe ao contribuinte o ónus da prova que os rendimentos declarados correspondem à realidade e que, não sendo feita essa prova, presume-se (“considera-se” na letra da Lei) que os rendimentos são os que resultam da tabela que consta no nº 4 do referido artigo.

Esta conclusão de haver total equivalência de significados entre as duas expressões, que o legislador utiliza indiferentemente, satisfaz a condição estabelecida no art. 9º, nº 2 do Código Civil, uma vez que se encontra assegurado o mínimo de correspondência verbal para efeitos da determinação do pensamento legislativo.

Importa, de seguida, submeter a norma em apreço aos demais elementos de interpretação lógica, designadamente, o elemento histórico, o racional ou teleológico e o de ordem sistemática.

Dissertando sobre a atividade interpretativa diz Francisco Ferrara que esta “é a operação mais difícil e delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino trato, senso apurado, intuição feliz, muita experiência e domínio perfeito não só do material positivo, como também do espírito de uma certa legislação. (…) A interpretação deve ser objetiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei” (Cfr. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, tradução de Manuel de Andrade, (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Coimbra, 1963, p. 129).

Como refere Batista Machado “a disposição legal apresenta-se ao jurista como um enunciado linguístico, como um conjunto de palavras que constituem um texto. Interpretar consiste evidentemente em retirar desse texto um determinado sentido ou conteúdo de pensamento.

O texto comporta múltiplos sentidos (polissemia do texto) e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Mesmo quando aparentemente claro à primeira leitura, a sua aplicação aos casos concretos da vida faz muitas vezes surgir dificuldades de interpretação insuspeitadas e imprevisíveis. Além de que, embora aparentemente claro na sua expressão verbal e portador de um só sentido, há ainda que contar com a possibilidade de a expressão verbal ter atraiçoado o pensamento legislativo – fenómeno mais frequente do que parecerá à primeira vista “ (Cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp.175/176).

“A finalidade da interpretação é determinar o sentido objetivo da lei, a vis potestas legis.(…) A lei não é o que o legislador quis ou quis exprimir, mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei. (…) Por outro lado, o comando legal tem um valor autónomo que pode não coincidir com a vontade dos artífices e redatores da lei, e pode levar a consequências inesperadas e imprevistas para os legisladores. (…) O intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris (Cfr. Francesco Ferrara, Ensaio, pp. 134/135).

Entender uma lei “não é somente aferrar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direções possíveis”(loc. cit., p.128).

Com o objetivo de desvendar o verdadeiro sentido e alcance dos textos legais, o intérprete lança mão dos fatores interpretativos que são essencialmente o elemento gramatical (o texto, ou a “letra da lei”) e o elemento lógico, o qual, por sua vez, se subdivide em elemento racional (ou teleológico), elemento sistemático e elemento histórico. (Cfr. Baptista Machado, Loc. Cit., p. 181; Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral 2ª Ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p.361).

Entre nós, é o artigo 9º do Código Civil (CC) que fornece as regras e os elementos fundamentais à interpretação correta e adequada das normas.

O texto do nº 1 do artigo 9º do CC começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.

Sobre a expressão “pensamento legislativo” diz-nos Batista Machado que o artigo 9º do CC “não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjetivista e a doutrina objetivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à “vontade do legislador” nem à “vontade da lei”, mas apontar antes como escopo da atividade interpretativa a descoberta do “pensamento legislativo” (artº. 9º, 1º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exatamente que o legislador não se quis comprometer” (loc. cit., p. 188).

No mesmo sentido se pronunciam P. de Lima e A. Varela, em anotação ao artigo 9º do CC (Cfr. Código Civil Anotado – vol. I, Coimbra ed., 1967, p. 16 ).

E sobre o nº 3 do artigo 9º do CC refere ainda Batista Machado: “(…) este nº 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagrou as soluções mais acertadas (mais corretas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correta. Este modelo reveste-se claramente de características objetivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorreto, precipitado, infeliz) mas um legislador abstrato: sábio, previdente, racional e justo” (Obra e loc. cit. p. 189/190).

Logo a seguir este insigne Mestre chama a atenção de que o nº 1 do artigo 9º, refere mais três elementos de interpretação a “unidade do sistema jurídico”, as “circunstâncias em que a lei foi elaborada” e as “condições específicas do tempo em que é aplicada” (loc. cit, p. 190).

Quanto às “circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada”, explica ainda Batista Machado que esta expressão “representa aquilo a que tradicionalmente se chama a occasio legis: os fatores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram ou motivaram a medida legislativa em causa” (loc. cit., p.190).

Relativamente às “condições específicas do tempo em que é aplicada”, este elemento de interpretação “tem decididamente uma conotação atualista (loc. cit., p. 190) no que coincide com a opinião expressa por P. de Lima E A. Varela, nas anotações ao artigo 9º do CC.

No que respeita à “unidade do sistema jurídico” , Baptista Machado considera este o fator interpretativo mais importante: “ (…) a sua consideração como fator decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica” (loc. cit., p. 191).

É também este autor que nos diz, relativamente ao elemento literal ou gramatical (texto ou “letra da lei”) que este “é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.

Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, nos seguintes termos: se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redação do texto atraiçoou o pensamento do legislador” (loc. cit., p. 182).

Referindo-se ao elemento racional ou teleológico, diz este autor que ele consiste “na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.,) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura política-económica-social que motivou a decisão legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido da norma. Basta lembrar que o esclarecimento da ratio legis nos revela a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma regula e, portanto, o peso relativo desses interesses, a opção entre eles traduzida pela solução que a norma exprime” (loc. cit., pp. 182/183).

No que respeita ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos) que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.

Baseia-se este subsídio interpretativo no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário” (Batista Machado, loc.cit., p. 183).

 “(…) Em particular havemos de tomar em consideração o encandeamento das diversas leis do país, porque uma exigência fundamental de toda a sã legislação é que as leis se ajustem umas às outras e não redundem em congérie de disposições desconexas (Joseph Kohler, citado por Manuel de Andrade, in Ensaio, p. 27).

Descendo ao caso dos autos e ao enquadramento legal e jurídico que lhe subjaz:

Através da análise do elemento histórico, extrai-se a conclusão que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei nº 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o CIUC [cfr Lei nº 22-A/2007, com as alterações da Lei 67-A/2007 e 3-B/2010], foi consagrada a presunção [grifado nosso] dos sujeitos passivos do IUC serem as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da sua liquidação.

            Verifica-se, portanto, que a lei fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma ou outra expressão que, como vimos, têm na nossa ordem jurídica um sentido coincidente.

            O mesmo se diga quando nos socorremos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica.

            Com efeito, o atual e novo quadro da tributação automóvel consagra princípios que visam sujeitar os proprietários dos veículos a suportarem os prejuízos por danos viários e ambientais causados por estes, como se alcança do teor do art. 1º do CIUC.

            Ora a consideração destes princípios, designadamente, o princípio da equivalência, que merecem tutela constitucional e consagração no direito comunitário, e são também reconhecidos em outros ramos do ordenamento jurídico, determina que os aludidos custos sejam suportados pelos reais proprietários, os causadores dos referidos danos, o que afasta, de todo, uma interpretação que visasse impedir os presumíveis proprietários de fazer prova de que já não o são por a propriedade estar na esfera jurídica de outrem[5].

Assim, também, da interpretação efetuada à luz dos elementos de natureza racional e teleológica, atento aquilo que a racionalidade do sistema garante e os fins visados pelo novo CIUC, resulta claro que o nº 1 do art. 3º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível.

Em face do exposto, importa concluir que a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efetivos proprietários-utilizadores dos veículos pelo que a expressão “considerando-se” está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a “presumindo-se”, razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal.

Por outro lado, estabelece o art. 73º da LGT que “(…) as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis (…)”.

Assim sendo, consagrando o art. 3º, nº 1 do CIUC uma presunção juris tantum [e, portanto, ilidível], a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e que, por essa razão foi considerada pela Autoridade Tributária como sujeito passivo do imposto, pode apresentar elementos de prova visando demonstrar que o titular da propriedade, na data do facto tributário, é outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida.

Analisados os elementos carreados para o processo e os factos provados, extrai-se a conclusão que a impugnante não era a proprietária dos veículos a que respeitam as liquidações em apreço à data dos respetivos factos tributários, por, entretanto, já ter transferido a propriedade do veículo em causa, nos termos da lei civil.

 Estas operações de transmissão de propriedade são oponíveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos em relação a terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5º, nº 1 do Código do Registo Predial [aplicável por remissão do Código do Registo Automóvel], a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no nº 2 do referido art. 5º do Código do Registo Predial, aplicável por força do Código do Registo Automóvel, ou seja: não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

Em síntese conclusiva:

Para liquidação de IUC, a Autoridade Tributária e Aduaneira só pode prevalecer-se da realidade registal ou constante da base de dados do IMTT, se não for comprovada a desatualização da situação jurídica, designadamente quanto à propriedade do veículo.

O registo automóvel, na economia do CIUC, representa assim mera presunção ilidível dos sujeitos passivos do imposto.

 

2. Da prova da transmissão das viaturas automóveis

 

Face ao exposto supra, concluímos que o n.º 1 do art.º 3º do CIUC consagra uma presunção ilidível, nos termos do artigo 73.º da LGT, de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário. In casu, a Requerente tem de provar, a fim de ilidir a presunção do artigo 3º, n.º 1 do CIUC (e até do Registo Automóvel) que não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas.

 

Para provar que ocorreram tais transmissões de propriedade através de contratos de compra e venda, a Requerente apresenta cópia das faturas.

Nas suas alegações, a Requerida alega que as faturas, enquanto documentos particulares e unilaterais, não constituem prova bastante para ilidir a presunção.

 

Discordamos deste entendimento.

 

Não pode deixar de ser assinalado, desde logo, que o contrato de compra e venda de veículo automóvel é contrato verbal, não sujeito, por conseguinte, a forma específica. Deste enquadramento resulta, inevitavelmente, uma especial importância do documento fiscal não só para efeitos tributários mas também para efeitos civis ou outros.

 

No caso, a Requerente apresentou faturas, emitidas nos termos legais, comprovativas da operação de venda. As faturas constituem, para efeitos fiscais, os documentos legalmente exigidos para comprovar as operações de vendas e prestações de serviços, conforme resulta expressamente dos vários códigos fiscais (veja-se o disposto no n.º 6 do artigo 23.º do Código do IRC, al. b) do n.º 1 do artigo 29.º e artigo 36.º do Código do IVA e artigo 115.º do Código do IRS).

 

Estranho seria, portanto, que uma fatura constitua, na ótica do transmitente, prova suficiente para apurar um rendimento da venda de uma viatura, tributável em sede de IRS (no regime de contabilidade organizada) ou IRC mas, em sentido contrário, não constitua prova suficiente para comprovar a mesma transmissão, agora para efeitos de IUC.

 

Esta afirmação não obsta a que a AT demonstre que se trata de um documento falso por não existir qualquer transmissão (com todas as consequências fiscais e penais).

 

In casu, não há qualquer prova ou sequer indícios que ponham em causa a presunção de boa fé do contribuinte e dos documentos apresentados, conforme resulta expressamente do disposto no artigo 75.º da Lei Geral Tributária.

 

Em conclusão, estão reunidos os pressupostos necessários para a procedência do pedido de anulação das liquidações, com fundamento em ilegalidade e erro nos pressupostos.

 

 

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C. DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)      Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IUC supra identificadas, no valor global de € 7.009,91;

b)      Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento das custas do processo, no montante de € 612,00.

 

E. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 7.009,91, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

F. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

A responsabilidade pelas custas é da parte vencida porque, ao contrário do alegado, a AT poderia ter procedido à revogação dos atos de liquidação identificados nos 30 dias seguintes ao do conhecimento do pedido de constituição do Tribunal Arbitral (artigo 13.º n.º 1 do RJAT).

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 4 de novembro de 2015

 

O Árbitro

(Amândio Silva)

 

 



[1] A génese da relação jurídica de imposto pressupõe a verificação cumulativa dos três pressupostos necessários ao seu surgimento, a saber: o elemento real, o elemento pessoal e o elemento temporal. (Neste sentido, veja-se, entre muitos outro autores, Freitas Pereira, M.H., Fiscalidade, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009.