DECISÃO ARBITRAL[1]
1. Relatório
A - Geral
1.1. Fundo de Investimento Imobiliário Fechado A…, com o número de identificação fiscal …, com sede em Lisboa, no Largo …, n.º …, ….º, legalmente representado pela sociedade B…, S.A., pessoa colectiva número …, com sede no mesmo endereço (de ora em diante designado “Requerente”), apresentou, no dia 04.03.2015, um pedido de constituição do tribunal arbitral em matéria tributária, que foi aceite, visando, por um lado, a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de Imposto do Selo de 07.11.2012, respeitante à verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (de ora em diante “TGIS”), relativo a prédio de que é proprietário, como adiante melhor se verá, e que deu origem à nota de cobrança n.º 2012 …, referente ao facto tributário ocorrido no dia 31.10.2012, no valor de € 9.929,75 (nove mil novecentos e vinte e nove euros e setenta e cinco cêntimos), e, por outro, o ressarcimento dos danos por si sofridos pela prestação indevida de uma garantia bancária destinada a suspender a execução fiscal que contra si foi instaurada pelo facto de não ter procedido ao pagamento do montante liquidado.
1.2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro, não tendo as Partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essa designação.
1.3. Por despacho de 19.03.2015, a Administração Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada “Requerida”) procedeu à designação da Senhora Dra. C… para intervir no presente processo arbitral, em nome e representação da Requerida.
1.4. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi constituído a 11.05.2015.
1.5. No dia 20.05.2015 foi notificado o dirigente máximo do serviço da Requerida para, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional.
1.6. No dia 23.06.2015 a Requerida apresentou a sua resposta.
B – Posição do Requerente
1.7. O Requerente é proprietário de um terreno para construção que constava da matriz predial sob o artigo …, da freguesia de …, concelho de Lisboa, com um valor patrimonial, à data, de € 1.985.949,51 (um milhão novecentos e oitenta e cinco mil novecentos e quarenta e nove euros e cinquenta e um cêntimos), a que corresponde a caderneta que o Requerente anexa ao seu pedido como documento n.º 2, cujo teor se tem por reproduzido (de ora em diante designado “Prédio”).
1.8. O Requerente foi notificado da liquidação de Imposto do Selo (de ora em diante designado “IS”) referida em 1.1., cujo documento de cobrança foi anexado ao pedido de pronúncia arbitral como documento n.º 1, cujo teor se tem por reproduzido, a qual se baseou no art.º 1.º do Código do Imposto do Selo (de ora em diante o “CIS”) e na verba 28.1 da TGIS, aditada pelo art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, e na subalínea i) da alínea f) do n.º 1 do art.º 6.º da mesma Lei.
1.9. O Requerente não procedeu ao pagamento do montante liquidado, tendo sido contra si instaurado, consequentemente, um processo de execução fiscal (n.º … 2013 …).
1.10. O Requerente, visando suspender a dita execução fiscal, prestou garantia de pagamento do tributo que lhe era exigido pela liquidação a que acima se fez referência, como se comprova pelo documento anexo ao requerimento de pronúncia arbitral com o n.º 3, cujo teor se tem por reproduzido, peticionando o ressarcimento dos danos por si sofridos com a emissão de garantia bancária indevida.
1.11. Alega o Requerente, em primeiro lugar, que a verba 28 da TGIS, na redacção em vigor até 31.12.2013 não se aplicava a terrenos para construção, por não serem estes subsumíveis no conceito de «prédios com afectação habitacional», razão por que a liquidação posta em crise padece do vício de erro sobre os pressupostos de facto, sendo portanto ilegal.
1.12. Os terrenos para construção só passaram a subsumir-se na verba 28 da TGIS a partir de 01.01.2014, sendo pois ilegal a liquidação impugnada, por ser anterior àquela data, não podendo atribuir-se à mencionada alteração normativa efeitos retroactivos nem natureza interpretativa.
1.13. Entende ainda o Requerente que nem sequer o licenciamento da obra pode ser indicador da afectação à habitação de um terreno para construção, na medida em que o licenciamento não é por si só uma garantia da concretização da construção de que resulte uma efectiva utilização habitacional.
C – Posição da Requerida
1.14. Já a Requerida sustenta o entendimento segundo o qual o identificado terreno para construção tem “natureza jurídica de prédio com afectação habitacional”, defendendo consequentemente a manutenção do acto de liquidação objecto do pedido de pronúncia arbitral.
1.15. O entendimento da Requerida resulta da circunstância de não haver, em sede de Imposto do Selo, qualquer definição dos conceitos de “prédio urbano”, “terreno para construção” e “afectação habitacional” o que impõe o recurso ao Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (o “CIMI”), em obediência ao disposto no n.º 2 do art.º 67.º do CIS, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, resultando necessária a conclusão de que a noção de afectação de um prédio urbano “encontra assento na parte relativa à avaliação dos imóveis” e se “para efeitos de determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é clara a aplicação do coeficiente de afectação em sede de avaliação”, então “a sua consideração para efeitos de aplicação da verba 28 da TGIS não pode ser ignorada”.
D – Conclusão do Relatório e Saneamento
1.16. Por despacho de 01.10.2015 o tribunal arbitral dispensou a reunião prevista no art.º 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), por entender que as Partes haviam já carreado para o processo os elementos de facto necessários e suficientes para a prolação da decisão.
1.17. O tribunal arbitral é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT.
1.18. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
1.19. A cumulação de pedidos efectuada no presente pedido de pronúncia arbitral, em homenagem ao princípio da economia processual, justifica-se uma vez que o art.º 3.º do RJAT, ao admitir expressamente a possibilidade de “cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos”, acomoda, sem abuso hermenêutico, a apreciação de um pedido que decorre, em termos necessários, do juízo que o tribunal arbitral sufrague quanto à validade da liquidação posta em crise.
1.20. O processo não padece de qualquer nulidade nem foram suscitadas pelas Partes quaisquer excepções que obstem à apreciação do mérito da causa, pelo que se mostram reunidas as condições para a prolação da decisão arbitral.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
2.1.1. O Requerente é o único proprietário do Prédio (doc. n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral).
2.1.2. O Prédio estava descrito como terreno para construção (doc. n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral).
2.1.3. Ao Prédio, à data dos factos, foi atribuído o valor patrimonial tributário de € 1.985.949,51 (um milhão novecentos e oitenta e cinco mil novecentos e quarenta e nove euros e cinquenta e um cêntimos) (doc. n.º 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral).
2.1.4. Para efeitos de determinação do respectivo valor patrimonial tributário, foi ao Prédio conferida afectação habitacional (consenso das Partes).
2.1.5. O Requerente foi notificado da liquidação de IS a que se refere a nota de cobrança anexada ao pedido de pronúncia arbitral como documento n.º 1.
2.1.6. O Requerente não procedeu ao pagamento do valor liquidado oficiosamente pela Requerida (art.º 54.º do pedido de pronúncia arbitral).
2.1.7. A Requerida, na sequência do não pagamento voluntário do tributo exigido pela liquidação ora posta em crise, instaurou contra o Requerente o processo de execução fiscal n.º … 2013 … (consenso das Partes).
2.1.8. O Requerente, com vista à suspensão do processo de execução fiscal referido em 2.1.7. apresentou uma garantia bancária datada de 29.04.2014 (doc. n.º 3, junto com o pedido de pronúncia arbitral).
2.1.9. A emissão da garantia bancária referida em 2.1.8. tem custos para o Requerente, cuja quantificação final depende da determinação do prazo durante o qual ela se manterá em vigor (docs. n.os 4 e 5, juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
2.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para a apreciação do mérito da causa que hajam sido dados como não provados.
3. Matéria de direito
3.1. Questões a decidir
Resulta do que acima se deixou dito que as questões a apreciar são, no fundo, duas:
a) A de saber se, à data a que se reportam os factos, um terreno para construção é um prédio “com afectação habitacional” para efeitos da aplicação do art.º 1.º do CIS e da verba 28.1 da TGIS, aditada pelo art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro; e
b) A de esclarecer se, caso se julgue procedente o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação contestada, o Requerente, no âmbito do presente processo arbitral poderá obter a condenação da Requerida quanto ao ressarcimento dos danos por si sofridos com a prestação indevida de uma garantia bancária.
3.2. A verba 28.1 da TGIS
A Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, entre várias alterações que promoveu ao CIS, aditou, pelo seu art.º 4.º, a verba 28 à TGIS, que conta com a seguinte redacção:
«28 - Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1.000.000 - sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:
28.1 - Por prédio com afetação habitacional - 1%;
28.2 - Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças - 7,5 %.»
Com a epígrafe “disposições transitórias”, o art.º 6.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, e com relevo para o que cumpre decidir, estabeleceu o seguinte:
1 — Em 2012, devem ser observadas as seguintes regras por referência à liquidação do imposto do selo previsto na verba n.º 28 da respetiva Tabela Geral:
a) O facto tributário verifica -se no dia 31 de outubro de 2012;
b) O sujeito passivo do imposto é o mencionado no n.º 4 do artigo 2.º do Código do Imposto do Selo na data referida na alínea anterior;
c) O valor patrimonial tributário a utilizar na liquidação do imposto corresponde ao que resulta das regras previstas no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis por referência ao ano de 2011;
d) A liquidação do imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira deve ser efetuada até ao final do mês de novembro de 2012;
e) O imposto deverá ser pago, numa única prestação, pelos sujeitos passivos até ao dia 20 de dezembro de 2012;
f) As taxas aplicáveis são as seguintes:
i) Prédios com afetação habitacional avaliados nos termos do Código do IMI: 0,5 %;
ii) Prédios com afetação habitacional ainda não avaliados nos termos do Código do IMI: 0,8 %;
iii) Prédios urbanos quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças: 7,5 %.
Como se constata, a verba 28.1 refere-se a “prédios com afectação habitacional”. Ora, não só este conceito não surge definido em qualquer disposição do CIS, como tão-pouco é usado no CIMI, diploma para que expressamente remete o n.º 2 do art.º 67.º do CIS quando estejam em causa matérias não reguladas no CIS relativamente à verba 28.
3.3. O sentido e o alcance do conceito de “prédio com afectação habitacional”
Não podem ser fixados o sentido e o alcance do conceito de “prédio com afectação habitacional” sem ter presente o significado do próprio vocábulo “afectação”. E esse terá de ser encontrado nos dicionários, colhendo-se neles o benefício do estudo criterioso dos lexicógrafos. Assim, “afectação”, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, é a acção de destinar alguma coisa a determinado uso e “afectar”, consequentemente, é sinónimo de destinar a um uso ou a uma função específica.
a) As regras de interpretação de normas fiscais
A questão a apreciar não dispensa, antes implica, que se surpreenda o sentido e o alcance do conceito de “prédio com afectação habitacional” a que faz apelo a verba 28.1 da TGIS. Na ausência de uma definição legal, quer no CIS, quer em qualquer outro diploma, tem o intérprete-aplicador desta disposição o dever de convocar as normas que regem o necessário exercício hermenêutico.
Não há verdadeiramente um regime especial de interpretação de normas tributárias. O n.º 1 do art.º 11.º da Lei Geral Tributária manda observar, “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam”, “as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”.
Os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis são os estabelecidos no art.º 9.º do Código Civil:
ARTIGO 9º
(Interpretação da lei)
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Note-se porém que a interpretação das normas, também das normas fiscais, não se esgota num exercício lexical. Não envolve apenas, nem sequer sobretudo, a dissecação vocabular. Não está pois em causa saber exactamente o que significa “prédio com afectação habitacional”, mas antes surpreender o sentido e o alcance desse conceito no âmbito do disposto na verba 28.1 da TGIS. O mesmo é dizer, sublinhe-se, que só haverá utilidade processual do esforço hermenêutico, no âmbito deste concreto pedido de pronúncia arbitral, se ele for dirigido a descortinar se o legislador, com a redacção escolhida para a verba 28.1 da TGIS, quis nela abranger os prédios urbanos qualificados como terrenos para construção.
b) A “afectação habitacional” – prédios habitacionais e com afectação habitacional
A Requerida sustenta que a afectação do imóvel é um coeficiente que concorre para a sua avaliação, o que pensamos ser indisputado. Contudo, está agora em causa saber se a verba 28 da TGIS, na redacção que nos cumpre atender, compreende quer os prédios edificados quer os terrenos para construção.
O n.º 1 do art.º 6.º do CIS, com preocupação taxinómica, distingue “prédios habitacionais” de “terrenos para construção”. Os primeiros serão, nos termos do disposto no n.º 2 do mesmo artigo, os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta dessa licença, os que tenham como destino normal esse fim. Já os terrenos para construção, esclarece o n.º 3 do preceito a que vimos fazendo referência, são aqueles para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, com algumas excepções.
Resulta claro, pois, que um terreno para construção não é, segundo esta classificação, um prédio habitacional. A questão é agora a de saber se “prédio com afectação habitacional”, conceito usado pela verba 28.1 da TGIS, corresponde, mau grado a diversidade literal, a “prédio habitacional”, noção empregue na classificação acabada de visitar.
Afectação, pelo que aprendemos com os dicionaristas, convoca o destino dado a certo bem. Já “habitacional” é relativo a habitação, sendo esta, por sua vez, e segundo o Dicionário que vimos usando, lugar ou casa em que se vive ou mora. Ora, afectação habitacional não poderá sugerir outro sentido que não seja a acção de dar a certo bem – no caso o Prédio, que é, recorde-se, um terreno para construção – o destino de casa ou lugar onde se mora.
É sabido que o CIMI faz, em diversas disposições, uso da expressão “afectação”. Fá-lo, por exemplo:
· No art.º 3.º, quando refere, relativamente a prédios rústicos, uma utilização geradora de rendimentos agrícolas;
· No art.º 9.º, quando impõe aos sujeitos passivos o dever de comunicarem aos serviços de finanças que um terreno para construção passou a figurar no inventário de uma empresa que tenha por objecto a construção de edifícios para venda ou que um prédio passou a figurar no inventário de uma empresa que tenha por objecto a sua venda;
· No art.º 27.º, quando relaciona certos edifícios e construções à produção de rendimentos agrícolas.
Em todas as situações apresentadas, como se pode ver, a afectação não é referida em termos potenciais, de vocação ou de expectativa. É justamente ao contrário. Sugere um destino efectivo ou directo, para usar uma expressão a que o legislador faz apelo no art.º 27.º.
Contudo, o CIMI faz também abundante uso da expressão “afectação” quando enuncia as regras que devem aplicar-se à determinação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos (artigos 38.º e seguintes do CIMI). Importa ver, então, se podemos extrair das regras de determinação do valor patrimonial algum elemento útil que nos permita surpreender o sentido e o alcance do conceito de “prédio com afectação habitacional”.
c) A relevância das regras de determinação do valor patrimonial tributário
Sustenta a Requerida que a “noção de afectação do prédio urbano encontra assento na parte relativa à avaliação dos imóveis” e, mais ainda, que “para efeitos de determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é clara a aplicação do coeficiente de afectação em sede de avaliação, pelo que a sua consideração para efeitos de aplicação da verba 28 da TGIS não pode ser ignorada”.
É certo que para a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção se tem atendido à “afectação” do que nele possa ser edificado.
Contudo, como bem refere a Requerida, “a mera constituição de um direito de potencial construção faz aumentar imediatamente o valor do imóvel em causa”, em função, justamente, do que nele possa ser construído. Por isso, como muito bem explica a Requerida, o art.º 45.º do CIMI “manda separar as duas partes do terreno”: de um lado, teremos de considerar “a parte do terreno onde vai ser implantado [rectius, onde pode vir a ser implantado] o edifício a construir, e do outro a área de terreno livre. Apurado o montante da primeira parte, reduz-se o valor determinado a uma percentagem entre 15% e 45% (…), em virtude de a construção não estar ainda efectivada”. É bom de ver que a aplicação daquela percentagem permite justamente atender à circunstância de não haver ainda construção, mas não autoriza o legislador que se ignore que o valor económico, ou de mercado, de um terreno para construção está relacionado com a sua capacidade construtiva.
Dizer o que precede não significa, porém, que o legislador sinta a necessidade de impor a tributação automática e necessária, em sede de Imposto Municipal sobre Imóveis, a todos os terrenos para construção. Basta ler o que dispõe a alínea d) do já referido art.º 9.º do CIMI:
ARTIGO 9º
(Início da tributação)
1. O imposto é devido a partir:
(…)
d) Do 4.º ano seguinte, inclusive, àquele em que um terreno para construção tenha passado a figurar no inventário de uma empresa que tenha por objecto a construção de edifícios para venda;
(…)
Ou seja, ainda que o legislador entenda ser razoável, como parece ser, determinar o valor patrimonial tributário de um terreno para construção levando em linha de conta a sua capacidade construtiva e, concedamos a benefício de raciocínio, a natureza ou vocação do que possa sobre ele ser edificado, não deixa de ser sintomático que tenha optado, do mesmo passo, por suspender essa tributação nos casos em que esses terrenos para construção figurem no inventário de uma empresa que tenha por objecto a construção de edifícios para venda. Nos casos em que, poder-se-ia também dizer, esses prédios urbanos integram um processo produtivo que tende a continuar e a produzir, a jusante, frutos também eles tributáveis.
Se o sentido primacial de “afectação”, como deixámos dito, sugere um destino efectivo, directo, dado a um determinado bem, não vemos como possa este entendimento ser infirmado pela constatação de que o legislador, no âmbito da avaliação de terrenos para construção, autoriza o uso do coeficiente de afectação, tendo em vista o que nele pode vir a ser construído. Na verdade, não parece razoável admitir neste cenário o recurso a normas de determinação da matéria colectável para alargar a previsão das normas de incidência.
d) Posição adoptada
Face ao exposto, julga o tribunal arbitral que se impõe, na interpretação do disposto na verba 28.1 da TGIS com a redacção aplicável ao caso que temos em mãos, o entendimento segundo o qual a afectação habitacional de um prédio urbano sugere que se lhe dê esse efectivo destino, ou se lhe possa directamente dar esse destino. Sendo como nos parece, um terreno para construção não está naquela verba incluído, em termos de incidência objectiva. Parece-nos pois que a um terreno para construção, pela sua própria natureza, não pode se associada uma afectação habitacional tal como a que é sugerida pela verba 28.1 da TGIS.
Não se diga que este juízo colide com a possibilidade de ver aplicado a um terreno de construção o coeficiente de afectação a que se faz referência na secção II do Capítulo VI do CIS. Na verdade, uma coisa são as regras que o legislador impõe para determinar o valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, não sendo estranho que se atenda à sua capacidade construtiva e à natureza e vocação do que neles possa ser edificado, outra, bem diversa, é pretender que essas regras sejam convocadas para recortar o campo da previsão normativa das regras de incidência.
Aliás, a interpretação que aqui se acolhe está de harmonia com o que parece ter sido a intenção do Governo, autor da proposta que resultou nesta pouco rigorosa intervenção legislativa.
Aquando da apresentação e discussão, no Parlamento, da proposta de lei n.º 96/XII (2.ª), o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais referiu expressamente[2]:
“O Governo propõe a criação de uma taxa especial sobre os prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8% em 2012 e de 1% em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros.”
Ora, o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais apresenta esta proposta de lei referindo as expressões “prédios urbanos habitacionais”, que são os que constam da alínea a) do n.º 1 do art.º 6.º do CIS e “casas”, sendo manifesto que, num caso e noutro, nesses conceitos não cabem, sem mais, os terrenos para construção, referidos que são na alínea c) do citado preceito.
Assim, mau grado a infelicidade da técnica legislativa e sem prejuízo da redacção hoje em vigor, resulta com meridiana clareza que a verba 28.1 da TGIS, à data dos factos, não pode ser interpretada no sentido de nela estarem abrangidos os terrenos para construção, pelas razões supra aduzidas. Antes parece que o sentido e o alcance do conceito de “prédios com afectação habitacional” é o equivalente ao de “prédios habitacionais” mencionados na alínea a) do n.º 1 do art.º 6.º do CIS.
3.4. Indemnização por prestação indevida de garantia
O Requerente apresenta igualmente um pedido de indemnização pela prestação indevida de garantia.
Pedidos deste teor não constituem novidade no CAAD, havendo várias decisões no sentido de admitir a sua cognoscibilidade pelos tribunais arbitrais[3]. Como se deixou já dito em termos sumários, também este tribunal arbitral entende poder conhecer desse pedido.
A alínea b) do n.º 1 do RJAT dispõe que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.
Não se ignora que a autorização legislativa concedida ao Governo pelo art.º 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, na base da qual foi aprovado o RJAT, determina que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária. Ainda que as alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT fundem a competência dos tribunais arbitrais em “declarações de ilegalidade”, parece razoável o entendimento segundo o qual se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo certo que nos processos de impugnação judicial, para além da anulação de actos tributários, podem ser apreciados pedidos de indemnização, sejam eles relativos a juros indemnizatórios ou à prestação indevida de garantias.
Com efeito, o princípio da cognoscibilidade dos pedidos de indemnização, em reclamação graciosa ou em processo judicial, justifica-se sempre que o dano que se pretende ver ressarcido resulte de facto imputável à administração tributária e aduaneira. Manifestações desse princípio podemos encontrar no n.º 1 do art.º 43.º da Lei Geral Tributária (LGT) e no n.º 4 do art.º 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
Especificamente sobre a indemnização em caso de garantia indevida se refere o art.º 171.º do CPPT, resultando claro dessa disposição que se pode conhecer do pedido de indemnização no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda, o que se impõe por razões de economia processual, já que o direito à indemnização por garantia indevidamente prestada depende do que se decida sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação. Assim, forçoso é concluir que também o processo arbitral deve ser tido como adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevidamente prestada.
O regime do direito a indemnização por garantia indevidamente prestada consta, como bem refere o Requerente, do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:
Artigo 53.º
Garantia em caso de prestação indevida
1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida.
2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
(…)
No caso sub judice, como se disse, o acto de liquidação controvertido é ilegal, uma vez que as normas em que se baseia não se mostram aplicáveis à factualidade dos autos, erro que não pode deixar de ser imputável à Requerida já que a dita liquidação é da sua exclusiva iniciativa e responsabilidade.
Consequentemente, entende o tribunal arbitral que o Requerente tem direito a ser indemnizado pelos prejuízos por si sofridos com a emissão da garantia indevidamente prestada, sendo eles equivalentes aos custos que teve de suportar com essa emissão, custos cuja fixação depende do conhecimento do prazo durante o qual há-de vigorar a dita garantia, sendo certo que até ao dia 31.01.2015, esses custos ascendiam a € 574,27 (quinhentos e setenta e quatro euros e vinte e sete cêntimos).
Importará sempre determinar se os custos suportados pelo Requerente com a emissão da garantia bancária indevidamente prestada excedem o limite fixado no n.º 3 do art.º 53.º da LGT, em função da aplicação ao valor garantido (na respectiva proporção) da taxa de juros indemnizatórios. Uma vez que a garantia ainda se mantém válida, não é possível determinar os custos efectivos nem, consequentemente, realizar a necessária operação aritmética, pelo que ela terá de ser efectuada em momento ulterior.
Assim, o montante da indemnização a que o Requerente tem direito terá de ser determinado em execução da presente decisão, nos termos do disposto no art.º 609.º do Código de Processo Civil, aplicável por força da alínea e) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT.
4. Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral com a consequente anulação da liquidação impugnada, com todas as consequências legais;
b) Julgar procedente o pedido de indemnização por garantia indevidamente prestada, condenando a Requerida a pagar ao Requerente a indemnização que vier a ser apurada em execução do ora deliberado.
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto no n.º 2 do art.º 306.º do CPC, no art.º 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 10.504,02 (dez mil quinhentos e quatro euros e dois cêntimos).
6. Custas
Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12 e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 4 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 918,00 novecentos e dezoito euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerida.
Lisboa, 5 de Outubro de 2015
O Árbitro
(Nuno Pombo)
[1] Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do art.º 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do art.º 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
[2] V. DAR I Série n.º 9/XII -2, de 11 de Outubro, pág. 32.
[3] Vejam-se, a título de exemplo, as decisões proferidas no âmbito dos processos números 233/2013-T, 112/2013-T e 36/2013-T.