Processo nº 40/2015 – T
DECISÃO ARBITRAL
A – RELATÓRIO
1. A…, SA, pessoa colectiva nº …, com sede na Rua Dr. …, n.º …, …-… Lisboa, veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos art. 2º, n.º 1, a) e 10º, n.º 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no DL 10/2011, de 20 Janeiro, doravante designado “RJAT” e dos artigos 1º e 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, tendo em vista a declaração de ilegalidade das liquidações oficiosas de Imposto Único de Circulação (IUC) e respectivos juros compensatórios, relativas aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, no valor global de 2.723,62 €, subsequente a indeferimento de reclamação graciosa, bem como o reconhecimento ao direito a juros indemnizatórios, sendo requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “AT”).
2. Admitido o pedido de constituição do tribunal arbitral singular, e não tendo a requerente optado pela designação de árbitro, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro.
As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico, tendo, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral ficado constituído em 31-03-2015.
3. Notificada, a AT veio apresentar resposta em que não suscitou qualquer excepção.
4. Foi dispensada, com a anuência das partes, a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, bem como a apresentação de alegações.
* * *
6. Pretende a requerente que seja declarada a ilegalidade e inerente anulação dos actos de liquidação do Imposto Único de Circulação das liquidações oficiosas de Imposto IUC e respectivos juros compensatórios, no valor de 2.723,62, onde se incluem 195,00 € de juros compensatórios, com a consequente restituição do montante pago, alegando em síntese:
a) A requerente é a distribuidora em Portugal da marca de automóveis A1….
b) No âmbito da sua actividade importa os automóveis da referida marca e, posteriormente, procede à alienação dos mesmos aos seus clientes.
c) Para efeitos da venda dos automóveis em condições de circulação imediata, a requerente requer junto dos serviços competentes a atribuição das respectivas matrículas.
d) Como é prática habitual, a matrícula é requerida em data anterior ou na mesma data da alienação das viaturas.
e) Sempre que a requerente requer a atribuição de uma matrícula, está obrigada a efectuar o registo de propriedade do veículo em seu nome.
f) A requerente importa os veículos em causa e procede à sua introdução no consumo, através da apresentação da respectiva declaração aduaneira de veículo (DAV), solicitando, posteriormente, a emissão do certificado de matrícula do qual depende a apresentação da DAV.
g) Posteriormente a requerente aliena a regista as aludidas viaturas em nome dos seus clientes e nos anos subsequentes ao ano da matrícula.
h) Nos anos subsequentes ao ano da matrícula, a requerente aliena e regista os automóveis a favor dos seus clientes antes do aniversário da matrícula.
i) Em alguns casos, por motivos que se prendem com atrasos no processo de registo da viatura em nome do cliente, não obstante a venda set realizada antes do aniversário da matrícula, o registo da propriedade dos automóveis a favor dos clientes é efectuado após essa data.
j) Relativamente às viaturas automóveis a que respeita o IUC em causa, nenhuma delas era sua propriedade na data do aniversário da matrícula.
k) Na sequência do exercício do direito de audição para que foi notificada, a requerente invocou que não era a proprietária daqueles veículos, apresentando, então, facturas que atestavam a alienação dos veículos ou as certidões do registo automóvel que o atestavam.
l) Após notificação das liquidações deduziu reclamação graciosa, onde juntou as referidas facturas e extractos contabilísticos da conta “clientes”.
m) Reclamação graciosa que foi indeferida.
n) Afiguram-se incompreensíveis as afirmações da administração tributária constantes da decisão de reclamação graciosa no sentido de que o imposto é exigível à data da emissão da matrícula e de que a recorrente nessa data constava como proprietária.
o) É que não está em causa nos autos aferir quem é o sujeito passivo do imposto no ano da emissão da matrícula, mas sim em anos subsequentes ao daquela emissão, ou seja, nos anos do aniversário da matrícula.
p) Mesmo no que respeita ao veículo com a matrícula …-…-…, este foi alienado em 26-06-2010, ainda em momento anterior ao da emissão da matrícula – em 06-07-2010 – o que está aqui em causa é o imposto relativo a anos subsequentes, quais sejam os anos de 2011 e 2012.
q) Estando em causa apurar quem é o sujeito passivo do IUC nos aniversários da matrícula e sendo a incidência subjectiva aferida nessa mesma data, a circunstância de a requerente ter alienado esses veículos em data anterior, é quanto basta para concluir que não era o sujeito passivo do IUC devido nesses anos.
r) O legislador pretendeu que a obrigação de imposto nascesse com a propriedade dos veículos matriculados ou registados em Portugal e que a matrícula e o registo automóvel servisse, apenas, para a atestar; não tendo, desse modo, sido sua intenção que a matrícula ou o registo de propriedade do veículo preenchessem as condições legais necessárias à exigibilidade do imposto.
s) A determinação de quem é o sujeito passivo do IUC deve efectuar-se apenas à luz das normas que preveem a incidência subjectiva, que é art. 3º do Código do IUC.
t) Por outro lado, o facto de o IUC dos anos subsequentes à matrícula dever ser pago até ao termo do mês em que o imposto se torna exigível, que é o mês do aniversário da matrícula, demonstra que a incidência subjectiva deve ser aferida nessa data.
u) Por outro, o Código do IUC pretende tributar os proprietários dos veículos na medida em que, enquanto seus utilizadores, são estes os causadores dos custos ambientais e viários resultantes da circulação automóvel.
v) Embora o n.º 1 do art. 3º do Código do IUC preveja que são sujeitos passivos do IUC os proprietários, considerando-se como tais aqueles em nome dos quais os veículos se encontram registados, esta é uma presunção que se considera ilidível, desde logo porque o art. 73º da LGT estabelece que “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempres prova em contrário.
x) Resultando provado dos documentos juntos com a reclamação graciosa que a requerente não era proprietária dos veículos em causa à data do aniversário da matrícula, só pode concluir-se não ser este sujeito passivo do imposto.
7. Por seu turno a requerida veio em resposta alegar, em síntese:
a) No âmbito do artº 17º do Código de Impostos sobre Veículo (CISV), a introdução no consumo e liquidação de imposto sobre os veículos que não possuam matrícula nacional é titulada pela emissão de Declaração Aduaneira de Veículos (DAV).
b) A emissão deste documento constitui o facto gerador do imposto, nos termos e para os efeitos no disposto do artº 5º do CISV.
c) Da articulação entre o âmbito da incidência subjectiva do IUC e o facto constitutivo da correspondente obrigação de imposto decorrem, inequivocamente, do artº 6º do CIUC, as situações jurídicas que geram o nascimento da obrigação de imposto, ou seja a atribuição de matrícula ou o registo em território nacional.
d) Ou sejam, o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto apresenta uma relação directa com a emissão do certificado de matrícula, no qual devem constar os factos sujeitos a registo (confronte-se com o disposto no nº 2 do artº 4 e nº 3 do artº 6º, ambos do CIUC, no nº 1 do artº 10º do Dec-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro e no artº 24º do Regulamento do Registo de Automóveis).
e) Aqui chegados, e por força da conjugação das normas expressas e, em especial atenção, ao disposto no artº 24º do RRA, subjaz que o registo inicial de propriedade de veículos admitidos (como é o caso dos autos), tem por base o requerimento respectivo e a prova do cumprimento das obrigações fiscais relativas ao veículo.
f) Ou seja, a emissão de certificado de matrícula implica a apresentação de uma DAV por parte da requerente e o pagamento do correspondente imposto ISV e origina, automaticamente, o registo de propriedade do veículo ao abrigo do artº 24º do RRA em nome da entidade que procedeu à sua importação do veículo e à formulação do pedido de matrícula, ou seja, a Requerente.
g) Logo, é peremptório que, nos termos do artº 24º do RRA, o importador figura no registo como primeiro proprietário do veículo e nesse sentido é, de acordo com o estatuído no artº 3º e artº 6º ambos do CIUC, sujeito passivo de imposto.
h) Alega a requerente que antes da atribuição da matrícula procede à venda dos veículos aos seus clientes, sendo que alguns (constantes da lista descrita no artº 26º do pedido arbitral) foram registados a favor daqueles até ao termo do prazo de 60 dias após a atribuição das matrículas, e que outros (constantes da lista do artº 28º do pedido arbitral) apenas o foram após o prazo dos 60 dias, ou mesmo nenhum registo foi efectuado em nome dos seus clientes, não sendo a requerente o sujeito passivo do IUC no ano da matrícula, em qualquer dos casos.
i) Ou seja, o legislador tributário não ficcionou que o imposto seria devido pelo proprietário do veículo que se encontrasse registado no fim dos 60 dias a que alude o nº 2 do artº 42º do RRA, o qual seria pago nos 30 dias posteriores nos termos do artº 17º do CIUC.
j) E muito menos ficcionou que os importadores, não obstante procedam à venda dos veículos antes da atribuição do certificado de matrícula, possam assim ser excluídos da incidência subjectiva de IUC.
k) Logo, tendo a requerente solicitado e preenchido a DAC, pago o ISV e pedido o certificado de matrícula, ela preenche inelutavelmente o facto gerador do imposto (incidência objectiva/subjectiva), sendo-lhe exigível o seu pagamento.
l) Ou seja, independentemente de a requerente proceder à venda do veículo aos seus clientes antes da atribuição da matrícula, tal circunstância, à luz do facto gerador consignado no artº 6º do CIUC, é manifestamente inócuo, na medida em que o legislador consagrou expressamente que o facto gerador do imposto é atestado pela atribuição da matrícula.
m) O legislador tributário quis intencional e expressamente que fosse considerado facto gerador do imposto, tal como atestado pela matrícula.
n) Ora, o entendimento que a requerente esgrime de que não é sujeito passivo do imposto porquanto os vendeu aos seus clientes antes da matrícula e, como tal, antes do termo do prazo de 60 dias, não encontra guarida na letra da lei, ou seja, não encontra na lei o mínimo de correspondência verbal.
o) O argumento sobre o qual a requerente assenta a sua pretensão escora-se no pressuposto de que com a alienação dos veículos aos clientes se afasta a tributação em sede de IUC, à luz do artº 3º do CIUC.
p) Ou seja, seguindo-se o entendimento propugnado pela requerente, a incidência do imposto não ocorreria com a matrícula, mas em nome do posterior proprietário que adquiriu o veículo e que assina o requerimento de registo automóvel conjuntamente com a requerente.
q) Logo, e à revelia dos argumentos aduzidos pela requerente, sendo apenas dada relevância ao registo, ficaria irremediavelmente afastado o facto gerador ocorrido com a emissão da matrícula, bem como a exigibilidade do imposto no ano em que a mesma é emitida.
r) Ora, tal entendimento é completamente desfasado das normas legais e consubstanciaria uma exclusão de tributação que não encontra qualquer respaldo na letra da lei.
s) Sendo efectivamente a preocupação ambiental uma das ratios subjacentes à reforma da tributação automóvel, esta não afasta outra das ratios fundamentais do CIUC que supra se explicitou: a de que o legislador fiscal pretendeu criar um IUC assente na tributação do proprietário do veículo tal como constante do registo automóvel ou através da emissão da matrícula a que se reporta o artº 6º do CIUC.
t) A acrescer a tudo quanto acima foi exposto, cabe ainda referir que a interpretação veiculada pela requerente se mostra contrária à lei fundamental.
u) Desde logo, o afastamento da incidência subjectiva na tributação em sede de IUC, proposta pela requerente, contraria o princípio da legalidade e da tipicidade estatuído no artº 8º da LGT e artº 103º da CRP, uma vez que tal entendimento não se escora na lei.
v) Logo, não tendo o legislador tributário expressamente consagrado na lei o afastamento da incidência subjectiva de tributação em sede de IUC nos casos em que a requerente aponta, é inequívoco que tal entendimento viola frontalmente o princípio da legalidade tributária consignado no artº 8º da LGT e no artº 103º da CRP.
x) Mas mais: tal entendimento colide ainda com o princípio da capacidade contributiva estatuído no artº 4º da LGT e no artº 104º da CRP.
z) Mas se alguma réstia de dúvida ainda permanecesse, certo é que a para afastar a qualidade de proprietária dos veículos em causa, e por conseguinte, a incidência subjectiva do IUC, a requerente teria que fazer prova idónea dos factos constitutivos do direito que alega em juízo arbitral.
aa)A prova apresentada pela requerente não é, por si só, bastante para efectuar prova concludente da transmissão dos veículos aqui em causa.
bb )As facturas, por si só, não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois aquele documento não revela por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte do pretenso adquirente.
cc)Em qualquer circunstância, deverá a requerente ser condenada no pagamento das custas arbitrais decorrentes do presente pedido de pronúncia arbitral, aplicando-se o mesmo raciocínio relativamente ao pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios formulado pela Requerente.
* * *
8. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
A cumulação de pedidos é legal (art. 3º do RJAT).
O processo é tempestivo e não enferma de nulidades.
B. DECISÃO
1. MATÉRIA DE FACTO
1.1. FACTOS PROVADOS
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) A requerente é a distribuidora em Portugal da marca de automóveis A1….
b) No exercício da sua actividade, importa os automóveis da referida marca e, posteriormente, procede à alienação dos mesmos aos seus clientes
c) Foi notificada das notas de liquidação de IUC objecto dos autos, tendo pago o respectivo imposto.
d) Como importadora, para efeitos da venda dos automóveis em condições de circulação imediata, requer junto dos serviços competentes a atribuição das respectivas matrículas.
e) Nos anos subsequentes ao ano da matrícula, a requerente aliena e regista os automóveis a favor dos seus clientes antes do aniversário da matrícula.
f) Nenhuma das viaturas automóveis a que respeita o IUC em causa, era sua propriedade na data do aniversário da matrícula daquelas, por a requerente as ter vendido, tendo emitido as respectivas facturas.
g) De acordo com os extractos contabilísticos da “conta de clientes” da requerente, todas as aludidas facturas se encontram pagas, apresentando “saldo zero.
h) Na data de aniversário da matrícula respeitante às liquidações impugnadas, os veículos automóveis estavam registados, no Registo Automóvel, em nome da requerente.
i) A requerente reclamou graciosamente das liquidações objecto do presente processo, de cujo indeferimento foi notificada em 22-12-2014.
j) A requerente apresentou, em 26-01-2015, o pedido de pronúncia arbitral que deu origem aos presentes autos.
1.2 Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos ao processo pela requerente, cuja autenticidade não foi posta em causa pela requerida.
1.3 FACTOS NÃO PROVADOS
Não existem factos dados como não provados com relevância para a apreciação do pedido.
1.4 O DIREITO
A questão de fundo suscitada pela requerente reside, no entendimento que sustenta, da sua indevida qualificação, pela AT, como sujeito passivo de IUC.
Para a requerida é determinante, para essa qualificação, o facto de a requerente figurar no registo como proprietária dos veículos o que, aliás, decorre do art. 117º do Código da Estrada, quando estipula que é a entidade que procede à admissão ou introdução no consumo – a requerente – que solicita ao IMTT a emissão de matrícula.
No seu entendimento, é decisivo, para esta questão, a imposição resultante do art. 24º do Reg. Registo Automóvel de que o “importador figura no registo como primeiro proprietário de veículo”, donde decorrerá, face ao disposto nos art. 3º e 6º do CIUC, de forma inelutável, a sua qualidade de sujeito passivo do imposto.
Salvo o devido respeito, existe, todavia, um incorrecto enquadramento por parte da requerida. É que não está em causa o imposto devido em resultado da inscrição, como primeira proprietária, da requerente pelo facto de ser a importadora dos veículos e requerente do pedido de atribuição da matrícula.
Para tanto remetemos para o quadro apresentado pela requerente no art. 29º do seu articulado, também constante do processo administrativo, donde essa constatação é evidente. Com efeito, os IUC exigidos respeitam, em todos os casos, a anos subsequentes ao da atribuição da matrícula.
Pelo que está em causa, sim, o facto de não data do aniversário da matrícula dos veículos automóveis – e da exigibilidade do IUC - estes se encontrarem registados em nome da requerente.
A questão a dirimir reconduz-se, então, à interpretação a dar ao n.º 1 do art. 3º do CIUC no sentido de apurar se a norma de incidência subjectiva, nele contida, estabelece uma presunção legal juris tantum – e, como tal, susceptível de ilisão (como sustenta a requerente) ou, pelo contrário, uma definição expressa e intencional da incidência pessoal, no sentido de que é necessariamente sujeito passivo do imposto aquele em nome de quem o veículo automóvel está registado como proprietário.
Dispõe o n.º 1 do art. 3º do CIUC: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares e colectivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados”.
Sustenta a requerida que pretensão da requerente residiria no pressuposto de que com a alienação dos veículos aos clientes se afastaria a tributação em sede de IUC, à luz do artº 3º do CIUC, o que não será admissível na medida em que tal entendimento é completamente desfasado das normas legais e consubstanciaria uma exclusão de tributação que não encontra qualquer respaldo na letra da lei.
Acrescenta, em abono da sua tese, que o legislador consagrou expressamente que o facto gerador do imposto consignado no art. 6º do CIUC é atestado pela emissão da matrícula. Daí decorreria que pese embora a requerente alegue que na data da atribuição da matrícula já vendeu os veículos, tal facto é irrelevante para efeitos de aplicação do disposto no art. 6º do CIUC.
De acordo com o disposto no art. 11º da LGT, “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”. É que, como referem Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues, J. Lopes de Sousa – LGT 4ª ed., em anotação a tal artigo, “… sem afastar a letra da lei, que tem de ser a principal referência e ponto de partida do intérprete, se exclui a sua aplicação automática, supondo que nas leis há uma racionalidade operante que o intérprete se deve esforçar por reconstruir”.
É, pois, dentro deste quadro de interpretação da lei fiscal, no caso o art. 3º, n.º 1 do CIUC, que teremos de encontrar a resposta ao antagonismo de posições entre a requerente e a AT.
Para a AT é decisivo para a determinação do sujeito passivo do IUC o registo de propriedade do veículo automóvel, de modo a que será considerado como tal, de modo irreversível, aquele em nome de quem este está registado.
O registo de propriedade de veículos é, face ao disposto no art. 5º, n.º 1, a) e n.º 2 do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, obrigatório, pelo que, qualquer direito de propriedade que incida sobre a viatura está sujeito a registo, com o que se pretende a segurança do comércio jurídico, bem como a publicidade da situação jurídica dos mesmos.
Tal registo goza, nos termos do disposto no art. 7º do Código do Registo Predial (aplicável ao registo automóvel por força do art. 29º do referido DL 54/75), da “… presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
Temos, por isso, que a inscrição de registo de propriedade do veículo é, também ela, uma presunção de que o direito de propriedade sobre o mesmo existe nos termos constantes do registo.
Quer dizer, o registo de propriedade automóvel não constitui qualquer condição de validade dos contratos a ele sujeitos, à semelhança do que ocorre com o registo predial (cujo regime, como já apontamos, é extensivo ao registo automóvel); o registo tem uma função meramente declarativa.
Acontece que o art. 5º, n.º 1 do Código do Registo Predial, impõe que “os factos sujeitos a registos só produzem efeito contra terceiros depois da data do respectivo registo”. Do que parece resultar que tal bastaria para que a AT invocasse a ausência de registo para fazer funcionar de imediato o art. 3º, n.º 1 do CIUC, exigindo o pagamento do imposto àquele em nome de quem o veículo está registado, por ser o sujeito passivo do imposto.
Sucede que o n.º 4 do art. 5º do Código do Registo Predial restringe tal entendimento, ao determinar que “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”. Donde resulta que, por essa via, nunca a AT estaria habilitada a invocar a falta de registo, na medida em que não preenche o conceito de terceiro.
Posto isto em termos gerais, há que apurar se, pese embora o que vem de referir-se, o n.º 1 do art. 3º do CIUC contém, ou não, uma presunção legal.
Tudo está, em suma, em determinar se a expressão “considerando-se”, ali utilizada, tem a natureza de presunção legal.
Parece mais ou menos evidente que, quer do ponto de vista sistemático, quer teleológico, a expressão “considerando-se”, adoptada no n.º 1 do art. 3º do CIUC contempla uma verdadeira presunção, a isso não se opondo a aparente literalidade da expressão, nem o ordenamento tributário.
A este propósito, referem Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues, J. Lopes de Sousa – LGT 4ª ed., em anotação ao art. 73º, pag. 651: “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão “presume-se” ou semelhante, como sucede, por exemplo, nos n.º 1 a 5 do art. 6º, na alínea a) do n.º 3 do art. 10º, no art. 19º e 40º, n.º 1, do CIRS. No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real …”, enumerando-se depois um conjunto de exemplos.
Entendemos que é precisamente esse o caso contemplado pelo art. 3º, n.º 1 do CIUC: uma presunção implícita, no caso, uma presunção de incidência subjectiva. Presunção, aliás, que sempre existiu no domínio do imposto de circulação automóvel, pese embora anteriormente definido de forma explícita.
Ora, o n.º 2 do art. 350º do Código Civil estabelece que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos expressamente previstos na lei.
E, no que respeita à ilisão das presunções, temos por boa a doutrina a que o STJ recorreu na fundamentação do Assento n.º 1/91 de 03-04-1991 (DR n.º 114, de 18 de Maio) - para classificar como juris tantum uma presunção estabelecida num diploma laboral - defendida por Vaz Serra [Provas (direito probatório material), BMJ 110-112, pag. 35], bem como por Mário de Brito (Código Civil Anotado, pag. 466) e Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, pag. 429): “… as presunções juris tantum constituem a regra, sendo as presunções jure er de jure a excepção. Na dúvida, a presunção legal é juris tantum, por não se dever considerar, salvo referência da lei, que se pretendeu impedir a produção de provas em contrário, impondo uma verdade formal em detrimento do real provado”.
Por seu turno, no âmbito do direito tributário, o art. 73º da LGT dispõe que “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”. O que significa que todas as presunções em matéria de incidência tributária, como a que o n.º 1 do art. 3º do CIUC consagra, são juris tantum e, como tal, ilidíveis.
Aliás, no que ao IUC respeita, pareceria ofensivo à unidade do sistema jurídico-legal – e até, com as devidas adaptações, em oposição aos n.º 2 e 3 do art. 11º da LGT - que um indivíduo viesse a considerar-se como não proprietário de um bem para efeitos civis e tivesse de o ser necessariamente para efeitos tributários.
Por outro lado, em cumprimento dos princípios - com consagração no nosso ordenamento comunitário - do poluidor-pagador e da equivalência, o CIUC importa preocupações de ordem ambiental e energética, pretendendo que os custos decorrentes dos danos ambientais provocados pela utilização dos veículos automóveis sejam suportados pelos reais proprietários (e não pelos presumidos proprietários).
Ao que acresce o facto de a AT dever nortear a sua actividade pela observância dos princípios da legalidade, do inquisitório e descoberta da verdade material, insíto ao ditame constitucional da capacidade contributiva.
Posto isto, cabe determinar se foi ilidida a presunção estabelecida.
A requerida põe em causa, como princípio balizador, que facturas titulando contratos de compra e venda sejam aptas a comprovar a efectiva transmissão de propriedade dos veículos, entendimento que não perfilhamos.
Não questiona, todavia, a veracidade dos documentos juntos. Sendo certo que em matéria tributária vigora a presunção de verdade dos elementos constantes da contabilidade do contribuinte, como é o caso das facturas.
É sabido que o art. 342º, n.º 1 do Código Civil, estabelece como regra geral probatória que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
Ora, como decorre do que atrás se expôs, partimos aqui de uma presunção legal (a que é estabelecida o art. 3º, n.º 1 do CIUC) que, como se concluiu, é ilidível. A ilisão da presunção legal obedece ao disposto no art. 347º do mesmo CC, quando impõe que “a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto.
Por sua vez, em matéria de contraprova, resulta do art. 346º do mesmo código que se a parte contrária conseguir tornar duvidosos os factos relativamente aos quais for apresentada prova, “a questão é decidida contra a parte onerada com a prova”.
Dos elementos constantes dos autos somos levados a concluir que os veículos automóveis foram vendidos, na sequência do que a requerente emitiu as respectivas facturas que se encontram pagas.
Temos por isso como assente, não ter sido colocado em causa que os negócios que as facturas juntas pela requerente tenham sido concretizados, sendo certo que o contrato de compra e venda é consensual, não se lhe exigindo qualquer forma especial.
Provada a transmissão de propriedade e uma vez que a AT não tem legitimidade para opôr a ausência de registo, por não ser para tais efeitos tida como terceiro, impõe-se a anulação das liquidações de IUC objecto do presente pedido arbitral.
juros indemnizatórios
Além da restituição do imposto indevidamente pago, pretende a requerente que seja declarado o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.
Tal direito vem consagrado no art. 43º da LGT o qual tem como pressuposto que se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial - ou em arbitragem tributária – que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.
O reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral, resulta do disposto no art. 24º, n.º 5 do RJAT.
No caso em apreço, parece-nos ocorrer, de facto, erro imputável à AT nas liquidações em crise.
Com efeito, a requerente já havia apresentado, quer em sede de audição prévia às liquidações oficiosas, quer de reclamação graciosa, documentação suficiente para a ilisão de presunção que sobre ela recaía.
Apesar de assim ser e de a AT se dever nortear, como acima se referiu, pelo princípio do inquisitório, ignorou todos os elementos que tinha ao seu dispor e que deveriam ter obstado à concretização das liquidações impugnadas.
Pelo que assiste à requerente o direito ao pretendido pagamento de juros indemnizatórios.
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3. DECISÃO
Face ao exposto, decide-se:
a) julgar procedente, por vício de violação de lei, o pedido de anulação dos actos tributários objecto do pedido arbitral correspondentes às liquidações de IUC referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, bem como o pedido de pagamento de juros indemnizatórios,
c) condenar a Administração Tributária e Aduaneira a restituir à requerente o montante de imposto pago, acrescido dos respectivos juros indemnizatórios;
c) condenar a Administração Tributária e Aduaneira no pagamento das custas do processo.
VALOR DO PROCESSO: De acordo com o disposto nos art. 306º, n.º 2 do Código de Processo Civil, art. 97º-A, n.º 1, a) do Código do Processo e de Procedimento Tributário e art. 3º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 2.732,62 € (dois mil setecentos e trinta e dois euros e sessenta e dois cêntimos).
CUSTAS: Nos termos do disposto no art. 22.º, n.º 4, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em 612,00€ (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
Lisboa, 16-10-2015
O árbitro,
António Alberto Franco