Decisão Arbitral
Processo n.º 32/2015-T
Os árbitros Juiz José Poças Falcão (árbitro-presidente), Professor Doutor Manuel Pires e Professor Doutor António Martins (árbitros vogais), integrando este Tribunal Arbitral por designação das partes [artigos 6º-2/b), 10º-2/g) e 11º-2, do RJAT] e, quanto ao presidente, por acordo dos árbitros vogais comunicado oportunamente ao CAAD, acordam no seguinte:
I – Relatório
A..., SGPS, SA, pessoa coletiva n.º …, com sede na Av. …, …, …-… …, apresentou, ao abrigo do disposto no RJAT, pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade dos atos de liquidação de retenções na fonte de IRS n.ºs 2014 …, 2014 … e 2014 … (no valor global de € 4.645.650,00) e de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2014 … a 2014 … e 2014 … a 2014 … (no valor global de € 361.778,64), referentes aos exercícios de 2011, 2012 e 2013, dos quais resultou um valor global a pagar de € 5.007.428,64 (Doc 1, junto com o requerimento) e bem assim sobre a legalidade do despacho de 30-12-2014, notificado à Requerente em 8-1-2015, que indeferiu a reclamação graciosa oportunamente apresentada (Docs 3 e 4, juntos com o requerimento inicial).
Alega, em síntese e no essencial, que a AT fundou a tributação na desconsideração (pese embora a sua validade jurídica) para efeitos fiscais de atos ou negócios jurídicos consubstanciados na (i) constituição da Requerente, (ii) na realização de prestações acessórias em seu benefício por parte dos respetivos acionistas individuais, (iii) na transmissão onerosa à Requerente das ações representativas do capital social da B..., SGPS, SA de que eram titulares os mesmos acionistas e (iv) na restituição parcial das mencionadas prestações acessórias.
Assim, tratou a AT as sobreditas prestações acessórias restituídas pela Requerente A...como dividendos distribuídos pela B..., SGPS aos respetivos acionistas originários, de modo que o procedimento da AT foi o correspondente à não consideração da transmissão das ações da B... à A...e considerando, pelo contrário, que ocorrera uma distribuição de dividendos da B... SGPS na sequência da alienação do ativo mais relevante da B... SGPS, o Banco C....
Ilegitimidade da A...no procedimento
Considera a Requerente A...que a cláusula geral anti abuso (CGAA) foi erradamente aplicada aos factos que efetivamente tiveram lugar e que a AT ilegalmente desconsiderou para efeitos tributários e, para além disso, subsistiria ilegalidade dos citados atos tributários por ilegitimidade da A...no procedimento, por não ser esta nunca a beneficiária das vantagens que a AT considerou ilegítimas uma vez que, na perspetiva da AT, foram os acionistas da A...que quiseram receber dividendos (sujeitos a IRS) sob a capa de restituições de prestações acessórias (não sujeitas a IRS). Manter a tributação da A...nestas circunstâncias seria sufragar a violação do princípio da capacidade contributiva.
Vício de fundamentação da decisão de aplicação da CGAA e erro quanto aos pressupostos de facto
Alega ainda a Requerente que o ónus de fundamentação [artigo 63º/3-a) e b), do CPPT] a que estava obrigada a AT não foi cumprido, designadamente ao nível da descrição do negócio jurídico celebrado ou do atos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam e da demonstração de que a celebração do negocio jurídico ou prática do ato jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negocio ou ato com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.
Racionalidade económica subjacente à prática dos atos ou negócios jurídicos em causa nos autos
Alega ainda a Requerente que, não fossem os atos impugnados ilegais por força da sobredita ilegitimidade da Requerente e do vício de fundamentação invocado, a ilegalidade verificar-se-ia sempre uma vez que a situação configura um caso típico localizado fora do perímetro de aplicação da CGAA e não censurável através desta. E isto porque, em síntese conclusiva, as operações subjacentes visaram sempre objetivos empresariais e fundamentos económicos genuínos lícitos e normalmente realizáveis por agentes económicos congéneres em situações comparáveis, como exaustivamente explica (arts 287º e ss., do requerimento/pedido de pronúncia arbitral).
Ausência de atos ou negócios jurídicos dirigidos por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas
Além dos fundamentos anteriormente expostos, considera a Requerente que as sobreditas operações, para além de justificação empresarial e económica, não permitam divisar atos fraudatórios ou realizados com abuso de formas (cfr artigos 342º e ss., do requerimento/pronúncia arbitral)
Inconstitucionalidade da interpretação pela AT da CGAA no caso concreto
Alega ainda a A...que interpretada no sentido em que o fez a AT, a norma do artigo 38º-2, da LGT, viola o princípio da legalidade fiscal, em particular na sua dimensão de princípio da tipicidade previsto nos artigos 103º-2, 104º e 165º-1/i), da Constituição e violaria também os princípios da liberdade económica e da segurança jurídica, na sua expressão de princípio da proteção da confiança ínsito na ideia de Estado de Direito democrático, previstos nos artigos 61º e 2º, da Constituição.
Cada uma das partes procedeu à designação de árbitros e estes, por acordo, designaram o presidente do Tribunal
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 16-4-2015.
A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) apresentou atempadamente resposta, defendendo a posição anteriormente assumida no relatório de inspeção que conduziu ao ato de liquidação ora impugnado e, consequentemente, a improcedência total do pedido de pronúncia arbitral.
Em 12-08-2015 foi junto pela Requerente e admitido pelo Tribunal um parecer subscrito pela ROC e auditora, D…, SROC, SA.
Em 11-09-2015 a AT apresentou nos autos um parecer da Divisão de Inspeção Tributária II (DIT-2), que foi igualmente admitido por deliberação do Tribunal de 16-09-2015.
Em 16-09-2015, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, a que se seguiu a produção de prova testemunhal, após o que, nos termos acordados pelas partes e aceites pelo Tribunal, foi fixado prazo para apresentação de alegações finais escritas, tudo nos termos que constam da respetiva ata.
Ambas as Partes apresentaram alegações com conclusões idênticas, no essencial, às formuladas nos respetivos articulados.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões que possam obstar à apreciação do mérito da causa.
II – Fundamentação
Os factos
a) Factos provados
Analisados os articulados, o processo administrativo instrutor e os demais documentos juntos em conjugação crítica com a prova testemunhal produzida, consideram-se provados os seguintes factos:
1. Factualidade relativa às operações societárias realizadas
- A B..., SGPS, SA (que se designará ulterior e abreviadamente por “B...”) foi constituída em 20.04.1988, com um capital de € 57.500.000,00, dividido em 11.500.000 ações de 5 euros cada, com o objeto de gestão de participações sociais de outras sociedades como forma indireta de exercício de atividades económicas;
- Esta sociedade estava integrada no “Grupo E…”, sendo o seu principal ativo a participação de 74,12% que detinha, direta e indiretamente, no Banco C...;
- Até 2006, os seus acionistas foram F…, com 74,37%, a esposa e dois dos três filhos, G… e H…, com 3,15% cada;
- Em 2006, o Grupo E… sofreu uma reestruturação, em virtude da separação das áreas financeira e imobiliária das áreas industrial e comercial. As participações das empresas da área financeira e imobiliária ficaram concentradas na B... e as da área industrial e comercial na I…, SGPS,SA;
- Para além desta divisão por áreas foram ainda introduzidas mais quatro sociedades gestoras de participações sociais entre a B..., a I… SGPS, SA e os acionistas;
- Uma dessas sociedades gestoras de participações sociais assumiu a designação de A...
, SGPS, SA, aqui requerente;
- Em Dezembro de 2006, ocorreu a transmissão onerosa à A…, realizada por F… e sua mulher, de 8.914.420 ações da B... pelo valor global de € 199.838.057,01;
- A A… promoveu, em 11 de Dezembro de 2006, um aumento do respetivo capital social, em dinheiro, de € 10.000,00 para € 100.000.000,00, por um lado, e a realização pelos acionistas (F… e sua mulher) de prestações acessórias, no regime das prestações suplementares, no valor de € 99.847.975,27, por outro, também em dinheiro.
- Quanto às prestações acessórias, consta da Ata nº 5 da assembleia geral da A...o seguinte:
“…foi verificada a necessidade de a sociedade proceder ao reforço dos seus capitais próprios, tendo em consideração os investimentos financeiros efetuados. Em consequência, foi deliberado, por unanimidade, constituir prestações suplementares de capital no montante global de noventa e nove milhões oitocentos e quarenta e sete mil novecentos e setenta e cinco euros e vinte e sete cêntimos, a realizar nas seguintes condições:
a) Entrega pelo sócio Senhor F… de cinquenta e nove milhões novecentos e oito mil setecentos e oitenta e cinco euros e dezasseis cêntimos em dinheiro, correspondente à proporção da sua participação no capital da sociedade;
b) Entrega pela sócia Senhora D.ª J… de trinta e nove milhões novecentos e trinta e nove mil cento e noventa euros e onze cêntimos em dinheiro, correspondente à proporção da sua participação no capital da sociedade;
c) As prestações suplementares de capital ficam subordinadas ao regime consubstanciado nos n.°s. 2 e 5 do artigo 210°. e nos n.ºs. 1 a 3 do artigo 213°. ambos do Código das Sociedades Comerciais;
d) Reembolso das prestações suplementares de capital fica subordinado à prévia autorização do Banco de Portugal.
As condições previstas nas alíneas c) e d) da presente deliberação foram tomadas no âmbito e em cumprimento dos requisitos indicados na carta do Banco de Portugal, referência …/…/DSBRE, Processo número …/…, datada de 2006/11/11, respeitante à reestruturação do Grupo E…”;
- Em resultado desta reestruturação a B..., que era a Holding do Grupo E…, detida diretamente por F… e família, passou a ser detida indiretamente, por interposição da A..., SGPS, Lda., que foi a Sociedade Gestora de Participações Sociais constituída para o efeito;
- A I…, SGPS, SA, sub-holding do Grupo E… que detinha, essencialmente, participações na área comercial e industrial, em resultado desta reestruturação passou a ser detida pelas sociedades K… SGPS, Lda., L…, SGPS, Lda. e M…, SGPS, Lda., passando cada uma destas sociedades a deter uma quota de 33,3(3)% na I…, SGPS, SA.
- A estrutura que vigorou até 2005 e a nova estrutura do Grupo E… após a reestruturação, esquematizam-se da forma seguinte:
- A A...diminuiu a sua participação na B... de 77,52% para 71,53%, mediante a alienação de ações da B... à K… SGPS, L… SGPS e M… SGPS;
- Foi promovido um aumento de capital do C... no valor de € 75.000.000,00 (em Junho de 2009), de que resultou uma redução da participação da B... naquela sociedade de 67% para 58% e o aumento dos interesses minoritários registados;
- Até 29 de Novembro de 2010 o ativo com maior expressão nas contas da B... era a participação de 58% que detinha no C...;
- Na figura seguinte consta a estrutura de cúpula do Grupo E… antes da venda do C...:
- A proposta de compra resultante da OPA lançada pelo O…, associada ao facto de F… ter falecido em Novembro de 2009 e não se encontrar à frente dos destinos do C…, levaram a família … a equacionar a venda do banco;
- No dia 29 de Novembro de 2010, em consequência da oferta Pública de Aquisição lançada pelo O… , I.P.S.S., a B... alienou a totalidade do capital que detinha no C…1 – Holding, SGPS, SA, pelo montante de € 198.042.450,40. Com a venda desta participação resultou uma mais valia contabilística no valor de € 69.104.594,12.
- Do Relatório e Contas da A...de 2010 consta o seguinte :
“No ano de 2010, a B... SGPS procedeu à alienação da totalidade da participação que detinha no capital da C…1 Holding SGPS, pelo montante de € 198.042.450,40, tendo assim obtido uma mais valia de € 69.104.594,12.
A evolução da economia portuguesa em geral e os problemas financeiros daí decorrentes conduziram a uma difícil situação de exploração na generalidade dos bancos portugueses, especialmente aqueles que – como o C…, SA, principal ativo da C…1 Holding – se encontravam numa fase de crescimento.
Assim, foi decidido aceitar a proposta de aquisição dirigida pelo O… a todos os acionistas da C..1 Holding, ao preço unitário por ação de €1,95, permitindo a todos os acionistas que houvessem participado nas operações de dispersão ou de aumento de capital a obtenção de resultados positivos, situação assinalável perante a indiscutível crise do sector financeiro nos países desenvolvidos e particularmente em Portugal, a qual provocou desvalorizações abruptas nas cotações das empresas desse sector”.
- No dia 2 de Dezembro de 2010, em resultado da alienação do C…, entraram nas contas bancárias da B... € 198.042.450,40;
- Foi deliberada em 2010 a restituição de prestações acessórias à herança indivisa de F… no montante de € 10.000.000,00; tendo sido também deliberada, em Dezembro de 2011, uma nova restituição de prestações acessórias à mesma herança, no montante de € 10.000.000,00;
- No seguimento desta deliberação, foram, em 2011, 2012 e 2013, devolvidas pela A...prestações acessórias/suplementares no valor de € 20.000.000,00 à Herança Indivisa do Sr. F….
- Estas devoluções de prestações acessórias, que seguem o regime das prestações suplementares, foram autorizadas pela Assembleia Geral de Acionistas, nas datas a seguir indicadas:
Ata número dezanove de 4 de Novembro de 2011, que autoriza a devolução de € 10.000.000,00;
Ata número vinte de 9 de Dezembro de 2011, que autoriza a devolução de € 10.000.000,00;
- Apresenta-se na figura seguinte a estrutura de cúpula do Grupo E… após a venda do C…
- Em 6 de Abril de 2011 a Q… adquiriu a totalidade do capital da B..., à A...pelo valor de € 159.850.000,00;
- Na figura seguinte mostra-se a cúpula da estrutura do Grupo E… após a compra da B... pela Q…:
- A Q… foi constituída em 20 de Outubro de 2009 e teve até 28 de Fevereiro de 2011 como objeto social “o exercício da indústria da construção civil, empreitadas de obras públicas e particulares, urbanizações, conceção, edificação e exploração de empreendimentos turísticos e imobiliários, a compra e venda de prédios rústicos e urbanos e a revenda dos adquiridos para esse fim”;
- Em 28 de Fevereiro de 2011 a Q… transformou-se em sociedade gestora de participações sociais,
- Em 22 de julho de 2011, dá-se a fusão por incorporação da B..., SGPS, SA na Q…1, SGPS, Lda. Na figura seguinte apresenta-se a cúpula da estrutura do Grupo E… após a fusão da B..., SGPS, SA na Q…:
2. Enquadramento das operações constante do Relatório de Inspeção Tributária (RIT)
- As liquidações impugnadas pela requerente decorrem das conclusões do Relatório da Inspeção, cuja síntese a seguir se descreve:
- “A lógica intrínseca no conjunto dos atos praticados, com finalidades fiscais, ainda que os atos ou negócios sejam cronologicamente não coincidentes, culminou na montagem jurídica de um esquema com o objetivo que a seguir se descreve. Transformação de um fluxo financeiro que, sem a operação de alienação descrita, e a utilização da A…, chegaria aos acionistas sob a forma de dividendo e seria um rendimento sujeito a IRS. Todavia, com as operações realizadas, aquele fluxo financeiro chega aos acionistas sob a forma de reembolso de crédito, que não é considerado rendimento em sede de IRS, possibilitando a transferência não tributada do produto da venda do C….”(...) “Podemos, falar então, que estamos na presença de uma estrutura, enquanto conjunto de atos ou negócios sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário (encadeados), com vista a atingir o objetivo fiscal visado, assegurando ainda o efeito económico pretendido, a receção pelos acionistas do produto da venda do C…. De igual modo, verificamos que a estruturação do negócio, para além de dirigido à obtenção da referida vantagem fiscal, foi ainda e simultaneamente, dotado de uma forma anómala e artificiosa, em consideração dos fins económicos visados pelo contribuinte, não obstante, os atos e negócios jurídicos que compõem esta estrutura sejam, em si mesmos, válidos e lícitos, e que corresponderam à efetiva vontade do sujeito passivo”.
“Assim, da análise dos atos inerentes ao negócio praticado, é evidente que, afastando-se estes da lógica de normal gestão empresarial e de mercado, afigura-se terem sido os mesmos, essencial ou principalmente, dirigidos ao resultado que é a vantagem fiscal. Pelo que dir-se-á que o elemento meio se concretiza nos atos/negócios realizados pela seguinte ordem cronológica:
1.º Constituição da A…
2.º Venda das ações da B... à A…
3.º O produto/resultado da venda ficou retido na empresa pela constituição de um direito de receber prestações acessórias da A…
4.º Venda do principal ativo da B... e são gerados resultados positivos avultados;
5.º Empréstimo da B... à A…;
6.º Devolução das prestações suplementares pela A...aos sócios;
7.º Venda da B..., seguida da sua incorporação na sociedade compradora, para eliminar o saldo do empréstimo à A…”;
“Pelo que, não se vislumbram razões económicas para a introdução da A…, a não ser a constituição de um crédito a favor dos acionistas para que possam retirar resultados do grupo sem qualquer tributação. O que acontece em 2008, com a devolução aos sócios dos resultados gerados pela reestruturação do grupo, e volta a acontecer em 2011, 2012 e 2013, com a devolução dos resultados gerados com a venda do C….”;
“No caso em análise o ato com fim económico idêntico à venda das ações da B... pelo Sr. F… e esposa à A…., era as ações da B... terem-se mantido na esfera do casal e, quando fossem gerados resultados na B..., estes seriam distribuídos aos sócios a titulo de dividendos e tributados como rendimentos da categoria E.”
“Provados que estão os pressupostos de aplicação da CGAA prevista no n.º 2 do art.º 38.º da LGT incumbe à Administração Fiscal considerar ineficaz no âmbito tributário, a transformação de distribuição de resultados gerados na B..., em devolução de prestações acessórias, através da venda das ações da B... à A…."
"Ou seja, deve-se proceder à tributação dos montantes pagos pela sociedade A…, no valor de 20 milhões de euros no momento em que foram colocados à disposição dos acionistas a título de distribuição de resultados. Pelo que serão de tributar como rendimentos de capitais – Categoria E.”
“Incumbe à Administração Fiscal considerar ineficaz no âmbito tributário, a transformação de distribuição de resultados gerados na B..., em devolução de prestações acessórias com caraterísticas de prestações suplementares, através da venda das ações da B... à A…. Ou seja, deve-se proceder à tributação dos montantes pagos pela sociedade A…, no valor de 20 milhões de euros no momento em que efetivamente foram colocados à disposição dos acionistas a título de distribuição de resultados.”;
“Estes rendimentos estão tipificados como rendimentos de capitais – Categoria E, nos termos da alínea h), do n.º 2, artigo 5.º , do CIRS, conforme texto da lei:
“1 - Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.
2 - Os frutos e vantagens económicas referidos no número anterior compreendem, designadamente:
(…)
h) Os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respetivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20 .º;”
"Pelo que estão sujeitos a retenção na fonte à taxa liberatória nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 71. do CIRS, por remissão do artigo 94.º, n.º 4 do Código do IRC, a partir do momento em que são colocados à disposição do respetivo titular, conforme dispõe a al. 2) do nº 3 do artigo 7º do CIRS, por remissão do artigo 94.º, n.º 6 do Código do IRC, às seguintes taxas:
Ano de 2011, à taxa liberatória de 21,5%, no cumprimento da redação da Lei n.º 55-A/2010 - 31/12e da Lei n.º 12-A/2010 - 30/06
Janeiro a outubro de 2012 a taxa liberatória de 25% de acordo com a redação da Lei n.º 64-B/2011 - 30/12
Após outubro de 2012 a taxa liberatória é de 26,5% em conformidade com Lei n.º 55-A/2012 - 29/10
Para o exercício de 2013 a taxa liberatória é de 28% em conformidade com Lei n.º66-B/2012, de 31/12”
"Deste modo, tendo sido a sociedade A...que colocou à disposição os rendimentos, será sobre os valores pagos por esta aos acionistas que incidirá retenção na fonte no momento do pagamento, e caberia a esta a sua entrega – n.º 1 do artigo 98.º do CIRS";
“Os valores de IRS em falta apurados por ano são os seguintes:
Ano de 2011: 2.446.700,00 euro
Ano de 2012: 1.995.950,00 euro
Ano de 2013: 203.000,00”.
3. Elementos de prova adicionais e factos considerados provados a partir deles em resultado dos depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas
R…, economista, Director Adjunto no Banco de Portugal
S…, economista, Revisor Oficial de Contas e
T…, economista, Responsável Financeiro do Grupo E…
- Existiu, desde julho de 2000, regular troca de correspondência entre o Grupo E… e o Banco de Portugal, relativa quer à natureza das atividades, quer à reestruturação do Grupo operada em 2006;
- Essa troca de correspondência inseria-se no contexto da reclassificação do Grupo como tendo natureza financeira e da preocupação do Banco de Portugal com a análise de risco e a adequação dos níveis de capital, quer do C…, quer do Grupo que o controlava;
- Existiram contactos entre técnicos do Banco de Portugal e do Grupo E… durante a fase de elaboração da restruturação do Grupo;
- Em carta de 13 de Novembro de 2006, o Banco de Portugal informou a B... de que não tinha objeções ao projeto de reestruturação, tal como apresentado em carta de 28 de julho desse ano, e que incluía a criação da A...como a sociedade holding de topo a ser supervisionada pelo regulador;
- Essa reorganização implicava a separação das áreas financeiras e não financeiras do Grupo E…;
- O Banco de Portugal tinha preferência por uma supervisão que incluísse o maior número de empresas, dado que assim se analisaria um mais alargado número de potenciais fontes de risco;
- A criação da A...aumentava os “interesses minoritários” do Grupo;
- Os “interesses minoritários” são componentes do capital próprio e incrementam o designado “rácio de solvabilidade;
- A divergência entre o valor dos interesses minoritários no parecer da “D…” sobre o impacto desses interesses nos fundos próprios do Grupo e o valor que consta no prospeto de emissão de obrigações da A…, deriva do facto de serem calculados a partir de diferentes regras contabilísticas;
- No caso do montante que consta do mencionado parecer, esse cálculo foi efetuado com base em regras da contabilidade bancária, emanadas do supervisor; no caso do prospeto, resultam da aplicação de normas internacionais de contabilidade empresarial;
- A AT questionou, por escrito, em 2013, o Banco de Portugal sobre este processo de reestruturação, tendo-lhe sido comunicado, por ofício, que a reestruturação do Grupo E… se efetuou por iniciativa exclusiva do Grupo e sem prévia orientação do Banco de Portugal;
- Na reestruturação efetuada, o Banco de Portugal não analisou o impacto fiscal das operações;
- Se o Banco de Portugal tivesse suscitado objeções ao projeto de restruturação, a reorganização operada não se concretizaria e um projeto alternativo teria de ser apresentado, pois só a anuência do regulador permitiu que a reestruturação avançasse nos moldes em que, no plano económico-financeiro, foi desenhada.
- A reestruturação do Grupo poderia ter passado por outras alternativas, mas que implicariam, de qualquer modo, o reforço de capitais e do rácio de solvabilidade. Assim, a operação de reestruturação concretizada, não podendo entender-se como necessária nos precisos moldes em que foi desenhada, revelou-se como positiva e conveniente, de um ponto de vista prudencial e de controlo de solidez do grupo financeiro (relevou, neste particular, o depoimento da testemunha, Dr R…, Director Adjunto do Banco de Portugal).
- Em 2006, nem o Banco de Portugal nem o responsável financeiro da A...tinham conhecimento de indícios ou rumores de uma eventual futura venda do C…;
- A partir de 2008, em face do desencadear da crise financeira, o Banco de Portugal incrementou o grau de exigência da supervisão, com maior preocupação relativamente ao nível de fundos próprios;
- Em 2008 existiu alguma debilidade no grau de solvabilidade do Grupo;
- A certificação legal de contas, efetuada pelos auditores do Grupo em 2008, foi emitida com uma ênfase relativa à fragilidade do capital próprio e ao seu impacto negativo na solvabilidade do Grupo;
- Em 2009 foi realizado um aumento de capital do C…, no sentido de reforçar a respetiva solvabilidade, e tomadas outras medidas que aumentaram o nível dos interesses minoritários Grupo e, também por essa via, procuraram melhorar o capital próprio;
- Após a venda do C…, e para fazer chegar a liquidez daí decorrente aos sócios da A…, existiam alternativas potenciais ao pagamento de dividendos, que a administração do grupo poderia ponderar, constituindo a amortização de capital social exemplo de uma delas.
b) Factos não provados
Não se provou que o motivo único ou principal da constituição da Requerente A... , SGPS, tivesse sido a obtenção de vantagens fiscais, designadamente para servir de veículo à distribuição de dividendos da B..., SGPS aos seus acionistas.
c) Fundamentação da fixação da matéria de facto
O Tribunal não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar apenas a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor (cfr.artºs.596, nº.1 e 607, nºs.2 a 4, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6) e consignar se a considera provada ou não provada (cfr.artº.123, nº.2, do C.P.P.Tributário).
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas (cfr. artº.607, nº.5, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6). Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g.força probatória plena dos documentos autênticos - cfr.artº.371, do C.Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
No caso, a convicção do Tribunal fundou-se na análise crítica de toda a documentação apresentada nos autos, em conjugação com os depoimentos prestados em audiência e as regras de experiência (cfr. artigo 412º-1, do CPC), tudo espelhando que, no essencial, nada se demonstrou quanto aos atos e factos supra terem sido efetuados com uma intenção deliberadamente defraudatória da Fazenda Pública, designadamente de molde a suscitar reação ao nível do uso da cláusula geral anti abuso prevista no artigo38º, da LGT, como se verá melhor infra quando for abordado o enquadramento jurídico. Na verdade todos os atos descritos pela AT para fundamentar a aplicação da CGAA tiveram sustentada e sustentável base económica, financeira e empresarial, designada e especialmente a constituição da própria Requerente.
II – Fundamentação (Cont.)
O Direito
Notas preliminares
Os Tribunais não têm que apreciar todos os argumentos formulados pelas partes – é o que tem sido repetidamente afirmado pela Jurisprudência (Vd inter alia, Ac do Pleno da 2ª Secção do STA, de 7 Jun 95, rec 5239, in DR – Apêndice de 31 de Março de 97, pgs. 36-40 e Ac STA – 2ª Séc – de 23 Abr 97, DR/AP de 9 Out 97, p. 1094, também publicados em www.dgsi.pt
O artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária estabelece uma cláusula geral antiabuso, nos termos da qual «são ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas»
Comece-se por salientar a natureza de norma excecional [absolutamente excecional] da CGAA.
A natureza excecional desta norma resulta quer do facto de permitir que a tributação seja efetuada por aplicação de outras regras que não as normas gerais que a lei para prevê para o(s) negócio(s) efetivamente praticados, quer, mais importante, por constituir um desvio ao princípio da segurança jurídica, na sua dimensão de previsibilidade da lei fiscal aplicável, que é um princípio basilar do direito fiscal.
Segurança e previsibilidade implicam que os contribuintes possam confiar na tipicidade do tipo legal de imposto, que possam ter a certeza que, uma vez praticados os negócios que a norma de incidência prevê, serão tributadas de acordo com a respetiva estatuição.
A CGAA só será, pois, aplicável nos casos em que se deva considerar que não é posto em causa o valor da segurança jurídica, a ideia de confiança na norma legal ínsita na ideia de Estado-de-Direito, por o contribuinte, objetivamente, dever saber que o ato ou negócio que praticou, nas circunstâncias em que ele aconteceu, não pode ser enquadrado na previsão legal por não ser coerente com o “espírito da lei”, muito embora, formalmente, possa encontrar “amparo” no elemento literal da norma.
Porém, diferentemente do que acontece relativamente a normas com idêntico intuito, que encontramos em outros ramos do ordenamento jurídico, como sejam o instituto do abuso do direito ou o princípio da boa-fé, a CGAA não é uma cláusula geral aberta que permita ao intérprete afastar a solução legal (a tributação) que decorre da norma que resultaria aplicável (da norma de incidência cuja hipótese os factos preenchem) invocando considerações de justiça material ou de coerência substantiva do sistema jurídico fiscal.
A CGAA é, também ela, uma norma típica – como não poderia deixar de ser, tratando-se de uma norma que releva diretamente nas regras de incidência tributária - que só pode ser aplicada quando, indubitavelmente, se encontrem verificados todos e cada um dos pressupostos nela previstos.
Significa isto que o intérprete se tem de abster de quaisquer juízos sobre, nomeadamente, se a economia fiscal lograda é ou não “justificada” ou “aceitável”, se a concreta situação fere ou não uma suposta igualdade horizontal entre os contribuintes.
O intérprete, o julgador, tem apenas o dever de verificar se, no caso concreto, estão ou não, indubitavelmente, presentes todos e cada um dos pressupostos de aplicação da CGAA.
E tal análise, tal interpretação, tem que ser feita de forma restritiva, como impõem as regras da hermenêutica jurídica relativamente às normas excecionais.
Ao intérprete é completamente vedado dar à CGAA um âmbito de aplicação mais vasto [fazer uma interpretação extensiva] que aquele que decorre do próprio texto legal, mesmo que sob o pretexto de realização da justiça material no caso concreto.
Dir-se-á que, assim sendo, fica, em muito, reduzida a eficácia da CGAA no combate a formas de elisão fiscal que se poderão, razoavelmente, considerar abusivas. Poderá ser a realidade, mas tal decorre, inquestionavelmente, da natureza excecional da norma e do que tal natureza impõe ao intérprete, ao julgador.
Os elementos da CGAA
É pacífico, na doutrina e na jurisprudência, que a aplicabilidade da CGAA supõe a verificação de quatro pressupostos (ou elementos): elemento meio; elemento resultado; elemento intelectual; elemento normativo.
a) Elemento meio
“Este elemento corresponde à via escolhida pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal, i.e., o(s) ato(s) ou negócios jurídicos cuja estrutura se encontra determinada em função de um dado resultado fiscal (Gustavo Courinha, A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito Tributário, 2009, pág. 165): “É, em conclusão, do nível de incoerência entre a forma ou estrutura escolhida e o propósito económico fáctico fiscal do contribuinte, entre o fim para que é entregue concretamente essa forma adoptada e a causa que lhe é própria” (ibidem, pág. 166) que se aferirá da verificação deste elemento.
Estando em causa uma sequência de negócios jurídicos pré-ordenados (step by step doctrine) “importa ressalvar, no entanto, que perante um caso de uma estrutura de tal natureza será esta que deverá possuir o carácter anómalo exigido pela atual redação da CGAA, ainda que os atos ou negócios que a compõem sejam, em si mesmos, típicos ou vulgares” (ibidem, pág. 168).
No caso concreto, verificamos que AT sustenta que os negócios jurídicos conduziram à devolução de prestações acessórias (não tributada), ao invés de pagamento de dividendos (tributado) . Como se assinalará adiante, este é o cerne da questão, ou seja, foi, segundo a AT, em razão destes negócios que se concretizou a “vantagem fiscal” em causa.
Terão sido assim, segundo a AT, “(...) os atos/negócios ora em causa realizados pela seguinte ordem cronológica:
1.º Constituição da A…
2.º Venda das ações da B... à A…
3.º O produto/resultado da venda ficou retido na empresa pela constituição de um direito de receber prestações acessórias da A…
4.º Venda do principal ativo da B... e são gerados resultados positivos avultados;
5.º Empréstimo da B... à A…;
6.º Devolução das prestações suplementares pela A...aos sócios;
7.º Venda da B..., seguida da sua incorporação na sociedade compradora, para eliminar o saldo do empréstimo à A…”(...)
[ “(...) pelo que, não se vislumbram razões económicas para a introdução da A…, a não ser a constituição de um crédito a favor dos acionistas para que possam retirar resultados do grupo sem qualquer tributação. O que acontece em 2008, com a devolução aos sócios dos resultados gerados pela reestruturação do grupo, e volta a acontecer em 2011, 2012 e 2013, com a devolução dos resultados gerados com a venda do C…. (...)”].
Como resulta da prova produzida, não se revela evidenciado qualquer “carácter anómalo” em cada um destes negócios jurídicos: sendo o fim prosseguido a criação de uma sociedade tendo por objeto a detenção de ações ou participações de outras sociedades, a forma societária escolhida, SGPS, é a própria; pretendendo a sociedade adquirir as ações necessárias à realização do seu escopo social, a forma escolhida (compra e venda) é a correta, porquanto esta é a forma legal típica que a lei prevê para a aquisição a título oneroso, inter-vivos, de bens e direitos. A sequência dos negócios é, também “normal”: não se compreenderia a criação da sociedade sem a posterior aquisição das ações em causa.
Porém, a inexistência de “negócios jurídicos anómalos”, ou de uma “sequência anómala de negócios jurídicos”, não basta, a nosso ver, para excluir a possível aplicação da CGAA.
É preciso ainda aferir se o conjunto dos negócios praticados não é, em si mesmo artificial, não passou de uma mera fachada a uma realidade diferente suscetível de ser objeto da tributação que aquela fachada excluiu.
Por ora, cumprirá ainda salientar que, existindo diferentes vias legais típicas para a realização de um determinado resultado económico, o contribuinte não é obrigado a escolher a via que, para si, resultaria mais onerosa, maxime em termos fiscais[1].
Assim é que a afirmação de que o mesmo resultado económico poderia ser obtido sem necessidade da constituição da A...é irrelevante em termos de aplicabilidade da CGAA
b) Elemento resultado
“Neste elemento resultado importa apenas demonstrar que o sujeito logrou, pelos seus atos, a verificação de uma certa vantagem fiscal e a equivalência dos efeitos económicos com aqueles do ato normal tributado” (Gustavo Courinha, cit., , pag. 176).
No caso concreto, é patente que os sócios/acionistas da Requerente obtiveram uma significativa vantagem fiscal, que não lograriam se se tivessem abstido de praticar os negócios jurídicos atrás referidos e, portanto, se sujeitassem a receber sob a forma de dividendos o que lhes foi pago pela Requerente sob a forma de restituição de prestações suplementares.
c) Elemento intelectual
Este é, sem dúvida, o pressuposto mais característico da CGAA.
“A manifestação da fraude à lei revela-se na pretensão do contribuinte em obter primordialmente uma vantagem fiscal, dirigindo neste sentido os negócios ou atos que pratica. A finalidade não fiscal que, por seu turno, deve guiar a atuação de qualquer sujeito (…) é aqui substituída, na sua normal preponderância, por uma finalidade fiscal, acabando secundarizada” (ibidem, pág. 179)
No caso concreto temos, como factos provados, a vantagem fiscal - que é, recorde-se, muito significativa embora não, como se verá, para a Requerente mas antes para os seus acionistas - e as consequências jurídico-económicas dos negócios praticados.
Assinale-se que o ónus da prova dos factos alegados para aplicação da cláusula geral antiabuso recai sobre a Autoridade Tributária e Aduaneira [artigo 74.º, n.º 1, da LGT (cfr artigos 414º, do CPC, 346º, do Cód Civil, 100º, do CPPT e 29º-1/c), do RJAT. Defendendo, no essencial, esta orientação, cfr. ainda na Jurisprudência Arbitral, designadamente, os Acs. do CAAD n.ºs 62/2014-T, de 1-9-2014 e 267/2013-T, págs. 34 e 23, respetivamente.]
Daí que, neste enquadramento, resultaria, no caso, a ausência de prova quanto à exclusividade ou preponderância do interesse fiscal na prática da sucessão de atos que também conduziram a uma efetiva e significativa poupança fiscal, designadamente a própria constituição da Requerente.
No limite, subsistiria, no mínimo, a dúvida quanto a essa finalidade ou a esse interesse, situação que redundaria em idêntica consequência em termos probatórios (Cfr arts 346º, do ódigo Civil e 414º, do Cód de Processo Civil).
No caso concreto, o peso que deve ser atribuído ao elemento intelectual resulta necessariamente muito valorizado na medida em que o mesmo não resulta preenchido quando fica comprovado que “(...) não se provou que o motivo único ou principal da constituição da Requerente A..., SGPS, tivesse sido a obtenção de vantagens fiscais, designadamente para servir de veículo à distribuição de dividendos da B..., SGPS aos seus acionistas (...)”.
O não preenchimento, in casu, do elemento intelectual afigurar-se-ia, por si relevante para a conclusão quanto à ilegalidade das liquidações e, consequentemente, quanto à procedência do pedido.
Poder-se-ia dar por terminada a fundamentação deste acórdão na sua parte essencial, por dela resultar prejudicada a apreciação dos demais fundamentos invocados pela AT para sustentar as liquidações ora postas em crise.
De todo o modo, porquanto uma fundamentação “esgotante” (ou seja, que abranja também a questão da alegada “ilegitimidade” da Requerente no procedimento tributário), sempre contribuirá melhor para a fundamentação alargada da decisão arbitral, acrescentar-se-á o seguinte:
Continuando a apreciação dos elementos da CGAA e subsunção no caso concreto:
d) Elemento normativo
“Pode dizer-se, em atenção à existência (e exigência) deste elemento, que a CGAA não é, afinal, um mero expediente de obtenção de receita fiscal a qualquer custo, assente no facto de o contribuinte obter uma vantagem fiscal [sublinhado nosso]. A desconsideração fiscal de tais atos ou negócios só sucederá quando, cumulando-se todos os supra referidos requisitos, se demonstre que o efeito fiscal obtido (sempre em atenção aos efeitos identicamente obtidos) merece um juízo de reprovação pelo Direito “ (ibidem, pág. 189).
Começaremos por realçar o seguinte: uma questão, que já ficou abordada, é a da motivação fiscal do negócio ou negócios praticados; outra, diferente, é o de, no pressuposto de que os negócios praticados não sejam anómalos ou artificiais, saber “da contrariedade do resultado ao Direito”. É apenas desta última questão que agora cuidaremos.
Está em causa, como se viu, o tratamento fiscal diferente ou diferenciado da obtenção de rendimentos economicamente equivalentes.
É sabido que as sociedades de cariz empresarial visam obter excedentes financeiros resultantes da sua atividade. Num plano concetual e aplicado é pois relevante a seguinte questão: de que forma pode uma sociedade fazer chegar aos sócios tais excedentes? Existe uma maneira, ou um veículo natural, que se deva necessariamente seguir?
Da literatura que se debruça sobre este tema - trata-se da conhecida área de Corporate Finance ou de Finanças Empresariais – resulta inequívoca a resposta à questão formulada nos seguintes termos: a par com o pagamento de dividendos, existem formas alternativas, cada vez mais usadas pelos administradores financeiros, de fazer chegar aos sócios os excedentes obtidos na atividade societária.
Quer por razões fiscais (em função da eventual divergência no tratamento de dividendos e de mais–valias), quer por motivos financeiros (a compra de ações próprias pode incrementar, coeteris paribus, a rendibilidade do capital próprio); quer por razões de mudança estrutural da atividade da sociedade (a restituição de capital no contexto de forte desinvestimento em determinados negócios), a política financeira da empresas pondera as variadas alternativas que a lei societária faculta quanto às operações de distribuição de excedentes monetários.
Com efeito, a corroborar esta tendência, num dos manuais mais utilizados a nível mundial em cursos de Finanças Empresariais[2], mostra-se o crescimento de formas alternativas ao pagamento de dividendos na distribuição liquidez aos sócios.
Também A. Damodaran[3], professor de Finanças na Unidade de N. York e consagrado autor, considera que as formas alternativas ao pagamento de dividendos apresentam um crescimento notável após a década de 80 do passado século.
Na literatura nacional também é comum observar-se a posição que defende a diversidade de formas de distribuir excedentes aos sócios[4].
Na investigação internacional sobre o comportamento das empresas quanto a dividendos, Recep Bildik and Ali Fatemi[5] mostram que o pagamento de dividendos está longe de constituir a forma “natural” ou “ obrigatória” de remuneração societária. No resumo de um artigo publicado no Journal of Banking and Finance, referem os autores: “This study examines the patterns of payout policies worldwide. Utilizing data from a sample of more than 17,000 companies, from 33 different countries, we show that there is a significant worldwide decline in the propensity to pay dividends. Most of the decline is due to the payout policies of smaller and less profitable firms with comparatively more investment opportunities. We find that larger firms, firms with higher profitability, and firms with low growth opportunities have a greater propensity to pay dividends. The proportion of dividend payers varies substantially across industries as well. However, the proportion of firms paying dividends has declined over time, even after firms’ characteristics are controlled for. Moreover, aggregate dividends are highly concentrated, in that they are paid only by a small group of firms. Our findings indicate that there has been a significant decline in the average dividend payout ratios over the years. The decline in the mean dividend payout ratios as well as the proportion of payers is much more pronounced in civil law countries.”
Os dividendos constituem assim uma forma habitual mas seguramente que não a única de fazer chegar excedentes de capital gerados numa empresa aos respetivos sócios havendo que distinguir se estamos em presença de um lucro distribuível de índole regular, proveniente pois de uma atividade que se desenvolve ao longo do tempo, ou antes de excedentes derivados de uma alteração estrutural da atividade e dos ativos a ela afetos.
Ora é este o caso dos autos, resultante da venda do C… e de uma modificação estrutural do património e as necessidades de financiamento da A….
Com efeito, a venda do C… gerou um encaixe de cerca de 200 milhões de euro, e a restituição prestações suplementares ascende a um décimo desse valor (20 milhões de euro).
Mesmo admitindo a tese da AT – segundo a qual seria o aumento de capital próprio da B... que deveria ter reforçado os fundos próprios do grupo que controlava ao C… - são de salientar dois aspetos muito importantes:
1- Esse hipotético reforço de capitais próprios na B..., em 2006, poderia ter-se dado também por via de prestações suplementares. Na verdade, se o Banco de Portugal as aceitou na A…, não se vê por que não as aceitaria na B.... Ora se tais hipotéticas prestações na B... fossem restituídas em 2010, aquando da venda do C…, portanto sem qualquer rendimento gerado na mera restituição, que diferença haveria face ao caso dos autos? Também nenhum imposto haveria a reter na B....
2- Mesmo que se suponha que esse reforço de capital na B... seria efetuado, em 2006, por nova entrada de capital social, os 20 milhões de euro poderiam, em 2010, chegar aos sócios por via de uma redução de capital efetuada ao par. Também nenhum excedente económico se verificaria e não haveria tributação em IRS.
Ou seja, a retenção na fonte que a AT sustenta ser uma obrigação da A...no contexto da aplicação da Cláusula geral anti abuso só existe caso se aceite que o pagamento de dividendos seja a solução única, natural ou obrigatória para uma empresa que, tendo liquidez, a quer fazer chegar aos sócios.
Em suma: para se sustentar que a operação tem de conduzir ao pagamento de um dividendo pela A...e à correspondente retenção na fonte de IRS, tem que de aderir à tese segundo a qual a gestão de uma empresa, perante o objetivo de fazer chegar excedentes de liquidez aos sócios, e dispondo de várias alternativas que o Código das Sociedades Comerciais lhe faculta, tem de optar por aquela que se revela fiscalmente mais onerosa.
Ora não é esta a posição correta.
No caso sub juditio a A...teria outras formas, até financeiramente mais apropriadas (v.g., redução de capital), não sujeitas a tributação, de restituir 20 dos 200 milhões que foram obtidos na venda do C…, a posição da AT segundo a qual a A... estaria obrigada à retenção na fonte sobre os dividendos que, supostamente, deveria ter distribuído carece assim de sustentação económico-financeira.
Ou seja: a CGAA não pode obstar às opções dos contribuintes que, confrontados com a escolha entre dividendos (distribuíveis ou meramente potenciais) optem, mesmo que por razões fiscais, pela obtenção de mais-valias.
Este entendimento é pacífico na doutrina e na jurisprudência arbitral do CAAD, sendo já numerosos os acórdãos proferidos com incidência sobre este tema, os quais, com uma única exceção que nos apercebamos, vão no sentido que preconizamos.
Decisões essas que concluíram, em suma, que é absolutamente legítima a opção[6] do contribuinte em organizar os seus negócios jurídicos de forma a realizar mais-valias não tributadas mesmo quando, v. g., a única motivação da alteração da forma societária tenha sido de natureza fiscal (cf., p. ex., Acs Arbitrais, CAAD n.ºs 123/2012, de 9/05/2013, 124/2012, de 06/06/2013, 138/2012, de 12/07/2013 e 139/2013, de 19/12/2013, este último subscrito também pelo presidente deste colégio arbitral).
Em síntese:
- Constitui planeamento fiscal legítimo, face à CGAA, os sujeitos passivos praticarem negócios jurídicos que tenham como resultado a realização de mais-valias não sujeitas [ao tempo] a tributação em IRS, mesmo quando a realização de tais negócios tenha como motivação exclusiva ou principal a economia fiscal assim lograda.
- Os negócios jurídicos praticados pelos sujeitos passivos com tal desiderato só serão passíveis de censura, ao abrigo da CGAA, quando forem uma mera “fachada”, originem apenas uma mera alteração jurídico-formal da situação anterior, que, no essencial, se manteve inalterada.
- Não se verificam pois, no caso concreto, os elementos meio, normativo e intelectual cuja verificação, cumulativamente com o elemento resultado (que aconteceu), é condição necessária para o preenchimento da tipicidade da CGAA.
A questão da “ilegitimidade procedimental”[7]
No cerne desta questão está saber como se operam ou quais são, na realidade, as consequências da desconsideração pela AT, para efeitos fiscais, da sobredita cadeia de operações e atos que serviriam de “fachada” para ocultar ou esconder a real substância dos mesmos e que seria a distribuição de dividendos aos acionistas da B..., SGPS (simultaneamente acionistas da Requerente).
A existirem vantagens fiscais indevidas na situação em apreço, designadamente por as quantias recebidas deverem ser tributadas a título de dividendos, como defende a Autoridade Tributária e Aduaneira, é manifesto que quem as obteve foram os accionistas, que receberam as quantias sem qualquer dedução de imposto, e não a Requerente, que pagou integralmente as quantias em causa.
Ora sendo os accionistas os reais beneficiários das vantagens referidas, a aplicação da cláusula geral antiabuso nos termos em que foi efectuada não permite afastar essas vantagens, pois, impondo à Requerente o pagamento das quantias equivalentes a essas vantagens, é apenas a ela que é imposto estes ónus, permanecendo os accionistas na titularidade intacta das quantias recebidas.
É certo que se pode aventar que, mais cedo ou mais tarde, o prejuízo patrimonial com a tributação que é imposta à sociedade se repercutirá sobre os accionistas, mas é também evidente que isso pode não suceder em relação aos accionistas que beneficiaram das vantagens indevidas, pois podem deixar de ser accionistas antes de o prejuízo imposto à sociedade ter uma efectiva repercussão no valor das suas acções.
A interpretação da parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, como norma jurídica tributária de que resulta a imposição de tributação, não pode deixar de ter em conta a característica da generalidade, indispensável nas normas de tributação por força do disposto no artigo 5.º, n.º 2, da LGT, que é corolário do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos. Por isso, a interpretação correcta do artigo 38.º,
n.º 2, terá de valer generalizadamente, em relação a qualquer tipo de sociedades anónimas, inclusivamente as cotadas em bolsa em que a estrutura accionista se altera constantemente, relativamente às quais é evidente que a imposição da tributação à sociedade por com a sua intermediação os accionistas terem criado para si próprios vantagens fiscais indevidas não ter qualquer efeito sobre quem usufruiu dessas vantagens e deixou, depois, de ser accionista.
Ora, a esta luz, é evidente que o alcance daquele artigo 38.º, n.º 2, ao estabelecer como efeito necessário da aplicação da cláusula geral antiabuso a não produção das vantagens fiscais, pressupõe o entendimento legislativo de que a «tributação de acordo com as normas aplicáveis» incida sobre quem obteve as vantagens e não sobre quem meramente teve intervenção nos actos de que elas resultam sem beneficiar
daquelas, pois só assim, é possível garantir o efeito pretendido de não se produzirem as vantagens fiscais especialmente ou genericamente referidas.
Na verdade, conclui-se da parte final do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redacção da Lei n. 30-G/2000, que a cláusula geral antiabuso não tem em vista meramente atribuir à Administração Tributária compensação por actos que lhe tenham provocado perda de receita fiscal, antes visa, concomitantemente, eliminar as vantagens fiscais ilegítimas que alguém obteve, o que revela que lhe estão subjacentes preocupações de igualdade e justiça tributária, que só podem satisfazer-se com a imposição da tributação omitida a quem obteve essas vantagens.
De resto é esta a única interpretação que se compatibiliza com o princípio constitucional da tributação segundo a capacidade contributiva (artigo 104.º, n.º 2, da CRP) e o princípio da tributação com respeito pela justiça material (artigo 5.º, n.º 2, da LGT).
Com efeito, estes princípios impõem que seja tributado em impostos sobre o rendimento quem obteve os rendimentos e não quem os não obteve e o valor da justiça material é claramente violado quando, numa situação em que existam vantagens fiscais indevidas, vá ser exigida a quantia correspondente a quem não beneficiou diretamente dessas vantagens, deixando intocados os que indevidamente delas beneficiaram.
Na verdade, a existir dever de retenção na fonte a título definitivo nos pagamentos a efectuar pelo substituto tributário, não há qualquer disposição legal que lhe assegure a possibilidade de reaver a quantia que tiver de pagar, mesmo que não tenha efectuado a retenção, pois a responsabilidade do substituído é meramente subsidiária, por força do disposto no n.º 3 do artigo 103.º do CIRS, e não existe qualquer disposição legal que
assegure direito de regresso do responsável originário em relação ao subsidiário.
Nestas situações enquadráveis no n.º 3 do artigo 103.º do CIRS, vale plenamente a regra do artigo 21.º do mesmo Código, em que se estabelece que «quando, através de substituição tributária, este Código exigir o pagamento total ou parcial do IRS a pessoa diversa daquela em relação à qual se verificam os respectivos pressupostos, considera-se a substituta, para todos os efeitos legais, como devedor principal do imposto, ressalvado o disposto no artigo 103.º». (…)
Por outro lado, nem mesmo é de aventar a possibilidade de, com fundamento na lei civil, a Requerente reaver o que pagou na medida do enriquecimento dos accionistas, com fundamento em enriquecimento sem causa, pois a aplicação da cláusula geral antiabuso apenas permite considerar ineficazes os negócios ou actos «no âmbito do direito tributário», como resulta do texto do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, pelo que os negócios celebrados mantêm a sua plena eficácia para efeitos cíveis e, em termos do direito civil, a recepção integral das quantias recebidas pelos accionistas tem causa jurídica, pois é a contrapartida da transmissão das acções destes para a Requerente, no âmbito da compra e venda.
Sendo assim, é seguro que a redacção do n.º 2 do artigo 38.º da LGT introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, ao determinar como efeito da aplicação da cláusula geral antiabuso a não produção das vantagens fiscais indevidas, pressupõe que o destinatário da aplicação seja quem delas usufrui, pois os efeitos da aplicação não são transmissíveis do substituto para o substituído. (…)
Por isso, no caso em apreço, não tendo a Requerente usufruído qualquer vantagem fiscal, está afastada a possibilidade de ser responsabilizada pelo pagamento das quantias correspondentes às vantagens fiscais indevidas que a Autoridade Tributária e Aduaneira invoca.
O tratamento fiscal, como se fossem dividendos, das quantias pagas pela Requerente a título de reembolsos de prestações suplementares não podia ser decidido pela própria Requerente nos momentos em que fez os pagamentos, pois, independentemente do que a Requerente pudesse entender sobre a verificação dos requisitos da aplicação da cláusula geral antiabuso, esta aplicação e a consequente ineficácia fiscal dos negócios efectivamente praticados tinha de ser precedidas obrigatoriamente de autorização do dirigente máximo do serviço (artigo 63.º, n.º 7, do CPPT) que, obviamente, não podia existir no momento em que a Requerente fez os pagamentos.
Isso significa que, mesmo que entendesse que se verificavam os requisitos da aplicação da cláusula geral antiabuso, nos momentos em que a Requerente fez os pagamentos não tinha qualquer fundamento legal para efectuar a retenção na fonte sobre pagamentos que eram e são reembolsos de créditos em termos de direito civil, o que conduz necessariamente à conclusão de que não existia dever legal de retenção na fonte.
Isto é, o próprio regime legal da aplicação da cláusula geral antiabuso, que depende de uma autorização prévia obrigatória do dirigente máximo do serviço, é incompatível com a sua aplicação retroactiva a normas de conduta («regula agendi») impostas aos sujeitos passivos dos tributos, como é o caso das normas que obrigam a retenção na fonte, pois a própria natureza destas normas impõe que a sua aplicação só se faça depois de estarem reunidos os requisitos legais da sua aplicação.
As normas de direito fiscal que vão dirigidas à vontade dos sujeitos das relações jurídicas tributária, visando determinar os seus comportamentos, não podem ter a pretensão inviável de influenciar condutas que são anteriores à verificação dos pressupostos da sua aplicação.
Por isso, tendo o cumprimento de deveres de retenção na fonte de tributos de ser contemporâneo dos actos de pagamento previstos na lei, esses deveres só podem ser impostos por regulae agendi, normas eficazes no momento em que se devem materializar esses deveres, nunca podendo ser determinados a posteriori, depois de ultrapassado o momento em que os actos de pagamento se concretizaram, por efeito de uma decisão casuística do dirigente máximo do serviço, proferida ao abrigo de uma regula decidendi, dirigida ao aplicador do direito, como é a do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, que, pela sua natureza, não pode influenciar condutas ocorridas anteriormente.
O que se reconduz a que, pela própria natureza do dever de retenção na fonte, a aplicação da cláusula geral antiabuso, dependente de uma verificação a posteriori dos requisitos da sua aplicação, não pode originar deveres de retenção na fonte que não existiam no momento em que foram praticados os actos ou negócios considerados abusivos de que emergiu uma vantagem fiscal indevida, à face circunstancialismo factual e jurídico existente nesse momento.
De qualquer modo, é esta a única interpretação constitucionalmente admissível pois, se a norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT fosse interpretada como admitindo a oponibilidade dos efeitos da aplicação da cláusula geral antiabuso ao substituto tributário, designadamente a imposição dos efeitos do incumprimento de um dever de retenção na fonte que não existia à face do negócio efectivamente celebrado, num contexto em que não está legalmente assegurada a viabilidade de reaver as quantias não retidas cujo dever de retenção é determinado a posteriori, seria materialmente inconstitucional, à face dos princípios da proporcionalidade e do direito a propriedade (artigos 18.º, n.º 2, e 62.º, n.º 1, da CRP).
Com efeito, estando a existência de um dever de retenção na fonte dependente da natureza jurídica dos pagamentos efectuados e só sendo possível considerar ineficaz para efeitos fiscais o negócio celebrado depois de uma autorização casuística do dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência, o potencial substituto tributário ficaria juridicamente impossibilitado de impeder uma diminuição patrimonial provocada por dívidas fiscais de outrem, pois, no momento em que efectuou os pagamentos, não tinha fundamento legal para efectuar retenção na fonte e esse dever só surgiria, com efeito retroactivo, na sequência da aplicação da cláusula geral antiabuso que permitisse considerar fiscalmente ineficaz o negócio celebrado, sem possibilidade de reaver o que teria de pagar, nos casos de retenção a título definitivo em que o substituo é o devedor originário.
Nestes termos, tem de se concluir, também por esta via, pela ilegalidade dos actos impugnados por violação do artigo 38.º,n.º 2, da LGT.
Vícios de conhecimento prejudicado
Pelo que se disse, o acto impugnado enferma de vício de erro sobre os pressupostos de direito e de facto, que justifica a sua anulação (artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo), devendo o pedido ser julgado – como irá ser – totalmente procedente.
Trata-se de anulação com fundamento em vício que atribui à Requerente estável e eficaz tutela dos seus interesses, já que dela decorre, em relação à Requerente, inviabilidade da renovação dos actos cuja declaração de ilegalidade pediu.
Sendo assim, em conformidade com o preceituado no artigo 124.º, n.º 2, do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, fica prejudicado o conhecimento dos outros vícios imputados aos actos que são objecto do presente processo, pois o estabelecimento de uma ordem de conhecimento de vícios só se justifica pelo entendimento legislativo de que, procedendo a impugnação com fundamento num vício que proporcione eficaz e estável tutela dos interesses do impugnante, deixa de se conhecer dos restantes.
III – Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral por, nos termos expostos supra, não se verificarem em relação à Requerente alguns dos pressupostos legais de aplicação da cláusula geral antiabuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT;
b) Declarar a ilegalidade dos atos de liquidação de retenções na fonte de IRS n.ºs 2014 …, 2014 … e 2014 … (no valor global de € 4.645.650,00) e de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2014 … a 2014 … e 2014 … a 2014 … (no valor global de € 361.778,64), referentes aos exercícios de 2011, 2012 e 2013, no valor global € 5.007.428,64
c) Anular as liquidações referidas;
d) Considerar prejudicado e não tomar conhecimento dos restantes vícios imputados aos actos cuja declaração de ilegalidade foi pedida.
Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC de 2013, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 5.007.428,64.
Custas
Não tendo o Tribunal sido constituído nos termos previstos no nº 1 e na alínea a) do nº 2, do artigo 6º, do RJAT, não tem lugar a fixação do montante das custas e sua repartição pelas partes (Cfr artigo 22º-4, do RJAT).
Lisboa, 28 de outubro de 2015
O Tribunal Arbitral Colectivo,
José Poças Falcão
(Presidente)
António Marins
(Vogal)
Manuel Pires
(Vogal)
[Vencido nos termos da declaração anexa]
DECLARAÇÃO DE VOTO
Decidida a ilegitimidade procedimental da REQUERENTE, reveste-se, no presente processo, o que ora interessa, de natureza inútil a apreciação do julgado sobre a questão substancial, para cuja devida decisão, aliás, teriam contribuído designadamente uma referência fáctica mais ampla - v.g., a constituição do tipo de sociedades em causa, nas circunstâncias, não ser solução de agrado geral dos relativos interessados e, segundo julgo, não ter sido provado que com a sociedade B… não se teria atingido o dito objectivo pretendido com a constituição da A… -, um aprofundamento da análise dos princípios constitucionais e das regras da hermenêutica jurídica, bem como e não é o menos importante, uma visão compósita ou holística do caso a decidir. É, portanto, de relevar negativamente ter-se julgado sobre a substância antes de se apreciar a questão da ilegitimidade, decidindo-se,assim, sobre a questão do abuso quando tal era indiferente e sem qualquer utilidade face à decisão favorável quanto à inexistência de obrigação fiscal na esfera da REQUERENTE, decisão que deveria implicar deixar de se conhecer os outros vícios que aos actos objecto do processo foram imputados (artigo 124.º, n.º 2 do CPPT), conforme, aliás, se menciona no presente acórdão, mas depois de se ter concluído pela não verificação, no caso, de elementos da CGAA. Deste modo, repete-se, limitamo-nos às razões invocadas para a ilegitimidade, sem prejuízo do já acima assinalado.
Quanto às vantagens, e porque continuo a não encontrar algo que me convença do contrário, repito o que escrevi no âmbito do acórdão no Processo n.º 200/2014-T - acórdão, aliás, invocado no presente julgado - e conforme com a correcta aplicação das regras da interpretação jurídica: «O argumento das “vantagens fiscais” constante no acórdão é improcedente, visto não só não ter atendido, na sua inteireza, à evolução do citado artigo 38.º, n.º 2 – a parte final invocada surge concomitantemente com o estabelecimento do segundo objectivo do negócio abusivo, não aqui aplicável, aditado pela modificação do preceito, o que, aliás, é reforçado com o qualificativo “referidas” relativo às “vantagens” aditadas, conforme resulta da redacção, e não a algo não mencionado – como não considerou a natureza disjuntiva e não copulativa da conjunção na primeira inclusão das “vantagens” (a segunda inclusão antecedida por “e” tem de ser interpretada com subordinação à disjuntiva principal e ainda mais, repete-se, pela inclusão do vocábulo “referidas”, isto é, conexionado com o segundo objectivo incluído na modificação). E, aliás, antes da enunciação do segundo objectivo do abuso, não se utiliza, como teria sido no caso de se ter querido consagrar, como se escreveu no acórdão, a generalização das vantagens, o determinativo “outras” vantagens ou ainda “quaisquer outras” vantagens. Portanto, a distinção entre os objectivos incluídos na disposição sob exame não é aparente, mas efectiva, reportando-se as «referidas vantagens» ao segundo objectivo enunciado.
Aliás, ao contrário da decisão, a diminuição patrimonial, resultante da retenção, não fica, em qualquer dos casos visando os objectivos mencionados, limitada ao substituto (caso de retenção definitiva, referida no acórdão), atento o substituto ter direito de regresso disponibilizado pelos princípios do nosso ordenamento jurídico aplicáveis conforme as circunstâncias concretas, sendo esse direito integrante do regime da substituição e a final quem sofre a diminuição patrimonial é quem auferiu o rendimento".
Relativamente a eventuais prejuízos para a entidade que coloca os rendimentos à disposição, esquece-se o direito de regresso existente na disciplina do instituto da substituição e já acima assinalado, conjugado com os princípios existentes no ordenamento jurídico português devidamente interpretados e aplicados e sem postergação da autonomia do direito fiscal. Repito o que escrevi no meu voto anterior: "Entender que tal [possibilidade de exercer o direito de regresso,adito] pode não suceder – em virtude de se poder deixar de ter a qualidade de sócio por parte do substituído – é por em causa todo o instituto da substituição não só para o caso da aplicação do artigo 38.º, n.º 2 LGT – argumento ad consequentiam ou ad terrorem que só por si não convence – como para qualquer outro, importando sublinhar que, se o substituto não recuperar o que pagou, a situação resultará de uma omissão a ele imputável, porque se a retenção tivesse sido feita conforme a lei, tal não aconteceria, não existindo sequer a necessidade do direito de regresso. Aliás, o instituto da substituição pode implicar legalmente, no caso de impossibilidade de exercício do direito de regresso, a não existência de capacidade contributiva por parte de quem vem a suportar definitivamente a tributação. Daí que a invocação" de princípios constitucionais "não seja procedente, dado a situação, sendo patológica, ter sido criada por quem sofre as consequências [proporcionais, posso acrescentar] do seu procedimento [ainda posso acrescentar, não se procedendo assim é que se violariam princípios constitucionais]. Também o disposto no artigo 21.º do CIRS, conjugado com a remissão para o artigo 103.º do mesmo Código, não prejudica o que tem vindo a ser referido - eles regulam unicamente as posições face ao sujeito activo e não as relações do substituto perante o substituído. Entender-se de outro modo e considerando todo o escrito, repete-se, tornaria inaplicável o instituto da substituição não só aos casos de aplicação do artigo 38.º, n.º 2 mas também em geral".
Também não procede o argumento de ser impossível a retenção antes de ter sido decidida administrativamente a aplicação da cláusula geral antiabuso. Mais uma vez se transcreve: "Por último, a invocada impossibilidade da retenção, antes de ser declarada a aplicação da cláusula geral antiabuso. Também aqui a decisão não merece concordância porque se trata a situação como se fosse insusceptível de lhe ser aplicável o regime da cláusula antiabuso. Ao invés, se a situação for a ela subsumida, a conclusão terá de ser contrária. O regime legal do artigo 38.º, n.º 2 é claro: a tributação efectua-se “de acordo com as normas aplicáveis na sua [dos meios artificiosos ou fraudulentos] ausência” e isto significa que, nesse caso, deveria existir retenção aquando da colocação do rendimento à disposição e se é só possível em momento posterior ao disposto legalmente, tal resulta de facto imputável ao substituto [ que, assim, não é nem presumido nem ficcionado, adito], aplicando-se o regime da falta ou atraso no cumprimento. Dizer-se que a retenção seria impossível antes de saber que a cláusula em causa seria aplicável é esquecer o que deveria ter ocorrido se não tivesse sido praticado o abuso. Não se trata de uma actuação conforme a lei, trata-se de algo que não deveria ter sido praticado, de um abuso. E o raciocínio e o tratamento não podem ser idênticos para casos de abuso e não abuso. Não há, pois, retroactividade, é como se a situação não tivesse ocorrido e ab initio tudo tivesse sido conforme com o que a lei dispõe. Aspecto fundamental neste tipo de casos é as pessoas envolvidas terem desde o início conhecimento pleno – não sendo apenas razoavelmente conhecedoras – do carácter oculto da distribuição de rendimentos, da verdadeira natureza dos rendimentos que foram disponibilizados, não sendo, a fortiori, invocável a ignorância. É claro - repete-se - que o escrito aplica-se se à actuação tiver sido aplicada a disposição antiabuso".
Deste modo, com a posição sustentada no presente acórdão, não se atende nem ao disposto no citado artigo 38.º, n.º 2 nem ao instituto da substituição, aos seus fundamentos e regime, ocorrendo, portanto, uma não correcta aplicação da referida norma legal e do instituto em causa.
Manuel Pires
[1] Nos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Autrália, Suécia, entre outros, desenvolveu-se "... a doutrina do 'propósito comercial' (business purpose), que sinaliza no sentido de que se caracteriza a elisão abusiva (abusive tax avoidance) quando o contribuinte se afasta do propósito mercantil de suas atividades para procurar predominantemente obter benefícios na área fiscal".
[2] R. Brealey, S. Myers, Princípios de finanças empresariais, Lisboa, McGraw Hill, 1998, p. 419 e segs
[3] A. Damodaran, Applied corporate finance, London, Wiley, 2011, cap 11, p. 546 e segs
[4] Veja-se, entre outros, António Martins, Mário Augusto, Paulo Gama, Isabel Cruz, Patrícia Silva, Manual de Gestão Financeira empresarial. com 2009, Coimbra, Coimbra Editora, p. 278 e segs, que sublinham: “Para a sua distribuição (de lucros) a empresa poderá seguir diferentes caminhos. Não cabendo aqui uma revisão exaustiva de todas as modalidades que podem ser seguidas para alcançar tal objectivo, destaquem-se as principais: (i) distribuição em dinheiro (dividendos); (ii) distribuição gratuita de novas acções (stock dividend) acompanhada ou não do fraccionamento das acções existentes (stock split) e (iii) compra de acções próprias.”
[6] “Nenhum principio do direito fiscal implica que as escolhas dos contribuintes se façam pela via mais tributada. O contribuinte pode perfeitamente erigir uma construção jurídica que desemboque numa tributação relativamente moderada. O abuso do direito não condena a habilidade fiscal, mesmo que esta conduza a construções jurídicas pouco ortodoxas” (Bergerès, apud, Nuno Sá Gomes, “Evasão Fiscal, Infracção Fiscal e Processo Penal Fiscal” (Lições), Editora Rei dos Livros, 2000, pg. 71)
[7] Segue-se muito de perto a decisão proferida no proc nº 200/2014-T, do CAAD (in www.caad.org.pt) , atento o paralelismo das situações e a total adesão aos argumentos aí desenvolvidos.