Decisão Arbitral
I. Relatório
1. A…, contribuinte n.º …, divorciado, residente em …, n.º …, ... …, …, …, …, na República Popular da China, B…., contribuinte n.º …, casado sob o regime da comunhão de adquiridos com C…, contribuinte n.º …, residente em …, …, …, distrito de …, Pequim, na República Popular da China e D…, contribuinte n.º …, casada sob o regime da comunhão de adquiridos com E…, contribuinte n.º …, residente em …, …, …, …, distrito de …, …, na República Popular da China, doravante designados por Requerentes, vieram, nos termos nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral singular.
2. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por AT).
3. O pedido de pronúncia arbitral vem deduzido contra os atos de liquidação de IMI referentes ao ano de 2013, com data de 09/03/2014, relativos às frações autónomas que fazem parte integrante do empreendimento “Aldeamento Turístico F…”, descritas com as letras “AS”, cujo proprietário é o Requerente A…, e com as letras “AX” e “X”, cujos coproprietários são os Requerentes B… e D….
4. Os Requerentes pedem a anulação dos atos de liquidação identificados supra e o reembolso dos montantes pagos, bem como o pagamento de juros indemnizatórios por considerar que os referidos imóveis beneficiam de isenção de IMI nos termos do artigo 47.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF).
5. A Requerente optou pela não designação de árbitro.
6. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou o árbitro do tribunal arbitral, o qual comunicou a aceitação daa designação no prazo aplicável.
7. As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
8. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 15-04-2015.
9. A Requerida apresentou resposta, com defesa por exceção e por impugnação, na qual sustenta a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
10. Por despacho de 08-07-2015, o Tribunal decidiu dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e dispensar a produção de alegações finais.
Sobre a exceção invocada pela Requerida
11. A Requerida apresentou defesa por exceção, na qual sustenta a incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar a matéria relativa à isenção de IMI, requerendo, à cautela e sem prescindir, que o tribunal se abstenha “de apreciar quaisquer questões relativas à apreciação da isenção prevista no artigo 47.º do EBF ao caso concreto e ser ordenado o desentranhamento de todos artigos do pedido de pronúncia arbitral relativos à apreciação desta matéria” (art. 15º da Resposta).
12. A alegada incompetência do Tribunal Arbitral decorre, segundo a Requerida, do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do art. 4.º do RJAT, que permitem concluir que “não estão abrangidos no âmbito da competência material do Tribunal Arbitral o conhecimento da matéria relativa ao reconhecimento de isenções tributárias” (art. 12.º da resposta).
13. Escreve a Requerida que “[a] incompetência do tribunal constitui uma excepção dilatória de conhecimento oficioso nos termos do artigo 576.º e alínea a) do art.º 577.º do CPC aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, o que desde já se requer”.
14. Os Requerentes, tendo sido notificados para, caso desejassem, apresentarem resposta escrita à defesa por exceção, não o fizeram.
15. Tendo em vista a decisão da exceção, entende o Tribunal que objeto dos autos não é uma questão de reconhecimento de uma isenção, mas sim uma questão de transmissão de uma isenção objetiva a que os Requerentes consideram ter direito, que foi desconsiderada pela Requerida, daqui resultando a prática dos atos de liquidação de IMI ora impugnados.
16. Assim, improcede a exceção e julga-se este Tribunal materialmente competente para dirimir o litígio e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.
17. Quanto à coligação de autores, o Tribunal entende estarem verificados os pressupostos para a sua admissão, definidos no art. 104.º do Código do Procedimento e Processo Tributário – identidade do tributo; identidade do órgão competente para a decisão; identidade dos fundamentos de facto e de direito invocados.
18. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
19. Não se vislumbra qualquer nulidade.
II. Matéria de facto
a. Factos provados
20. Consideram-se provados os seguintes factos:
20.1. Por Despacho de …/2010 de 31.12.2010 do Secretário de Estado do Turismo foi atribuída utilidade turística a título definitivo ao empreendimento turístico “Aldeamento Turístico F…”.
20.2. Em 07/01/2011 a sociedade G… – Empreendimentos Turísticos, S.A formulou pedido de isenção relativa ao artigo matricial … da freguesia de …, o qual foi deferido pelo período de 2010 a 2016 por Despacho de 10/01/2011.
20.3. No dia 26 de novembro de 2013, o ora Requerente, A…, adquiriu à G…, através de escritura pública, a fração autónoma identificada pelas letras “AS”.
20.4. No dia 23 de dezembro de 2013, os ora Requerentes, B… e D…, adquiriram à G…, também através de escritura pública, as frações autónomas identificadas pelas letras “AX” e “X”.
20.5. As referidas frações fazem parte integrante do empreendimento “Aldeamento Turístico F…”.
20.6. Os Requerentes foram notificados pela AT para o pagamento da primeira prestação do IMI referente ao ano de 2013, incidente sobre os imóveis descritos supra, tendo esse pagamento sido feito em 29/04/2014.
20.7. Em 01/09/2014 os Requerentes apresentaram o presente pedido de pronúncia arbitral.
20.8. Os Requerentes foram entretanto notificados para o pagamento da segunda prestação do IMI referente ao ano de 2013, o que foi feito 27/11/2014.
b. Factos não provados
21. Dos factos com interesse para a decisão da causa, não se provaram os que não constam da factualidade descrita supra.
c. Fundamentação da decisão da matéria de facto
22. Os factos foram dados como provados com base na prova documental.
III. Matéria de direito
23. A questão decidenda consiste em saber se os Requerentes têm direito à isenção de IMI prevista no art. 47.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF).
24. Os Requerentes afirmam na Petição Inicial, em síntese, que estamos perante uma isenção objetiva, que visa beneficiar os “prédios integrados em empreendimentos a que tenha sido atribuída a utilidade turística”, pelo que, tendo a isenção sido reconhecida à anterior proprietária, e mantendo-se inalterada a situação objetiva das frações entretanto adquiridas pelos ora Requerentes, se mantém a isenção.
25. Segundo aos Requerentes, «por se tratar de uma isenção objetiva, a isenção “persegue” o prédio, pelo que, não se revela necessário haver impulso por parte do adquirente».
26. Os Requerentes invocam, ainda, a ausência de despacho de revogação do título constitutivo de utilidade turística, bem como o facto de nunca se ter verificado a subtração das frações à exploração unitária do empreendimento, para além de que a isenção de IMI não decorre diretamente do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, de 5 de Dezembro mas sim do n.º 1 do artigo 47.º do EBF.
27. Consideram assim os Requerentes que as liquidações de IMI ora contestadas enfermam de ilegalidade, pelo que pedem o reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.
28. A Requerida apresentou resposta, na qual sustenta, em síntese, que «os Requerentes adquiriram as respectivas fracções tendo em vista não a instalação mas sim a exploração», sendo que a «isenção de IMI só tem justificação relativamente a quem procede à instalação do empreendimento e o coloca no mercado e não em relação a todos os que o utilizam e exploram, ainda que através da compra das suas unidades».
29. O entendimento da Requerida assenta numa interpretação conjugada do art. 47.º do EBF e das disposições contidas no Decreto-Lei n.º 423/83, de 5 de dezembro, a qual, ainda segundo a Requerida, é a que foi adotada no Acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 3/2013, de 23 de Janeiro, publicado no Diário da República de 4 de Março de 2013, e em diversas decisões arbitrais.
30. Acrescenta a Requerida que «nos termos do artigo 15.º do EBF os benefícios fiscais não são transmissíveis entre vivos, pelo que improcede a tese dos Requerentes no sentido que o pedido de isenção que foi concedido ao promotor do investimento lhes pudesse ser transmitido».
31. Deste modo, a Requerida sustenta a total improcedência do pedido.
32. Para a decisão revela-se decisiva a norma contida no artigo 47.º do EBF, cujo texto é o seguinte:
«Artigo 47.º
Prédios integrados em empreendimentos a que tenha sido atribuída a utilidade turística
1 - Ficam isentos de imposto municipal sobre imóveis, por um período de sete anos, os prédios integrados em empreendimentos a que tenha sido atribuída a utilidade turística.
2 - Os prédios integrados em empreendimentos a que tenha sido atribuída a utilidade turística a título prévio beneficiam da isenção prevista no número anterior, a partir da data da atribuição da utilidade turística, desde que tenha sido observado o prazo fixado para a abertura ou reabertura ao público do empreendimento ou para o termo das obras.
3 - Os prédios urbanos afectos ao turismo de habitação beneficiam de isenção de imposto municipal sobre imóveis, por um período de sete anos contado a partir do termo das respectivas obras.
4 - Nos casos previstos neste artigo, a isenção é reconhecida pelo chefe de finanças da área da situação do prédio, em requerimento devidamente documentado, que deve ser apresentado pelos sujeitos passivos no prazo de 60 dias contados da data da publicação do despacho de atribuição da utilidade turística.
5 - Se o pedido for apresentado para além do prazo referido no número anterior, a isenção inicia-se a partir do ano imediato, inclusive, ao da sua apresentação, cessando, porém, no ano em que findaria, caso o pedido tivesse sido apresentado em tempo.
6 - Em todos os aspectos que não estejam regulados no presente artigo ou no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Decreto-Lei n.º 423/83, de 5 de Dezembro.»
33. O n.º 1 do art. 47.º do EBF prevê uma isenção objetiva, que atende à situação do imóvel – «prédios integrados em empreendimentos a que tenha sido atribuída a utilidade turística» – e não a qualquer qualidade do sujeito passivo.
34. Contrariamente ao que sucede com o texto do n.º 1 do art. 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, o legislador não faz, no n.º 1 do art. 47.º do EBF qualquer exigência relativamente ao destino do imóvel, pelo que carece de sentido, neste contexto, desenvolver a questão da distinção entre instalação e exploração.
35. A questão sub judice é, pois, distinta daquela sobre a qual se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 3/2013, de 23 de Janeiro, publicado no Diário da República de 4 de Março de 2013 – aí estava em causa a interpretação e aplicação do preceito contido no n.º 1 do art. 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, referente à isenção de sisa (atualmente, a IMT) e de imposto sobre sucessões e doações (atualmente, Imposto do Selo).
36. Na decisão arbitral n.º 342/2014-T é, aliás, afirmado que «contrariamente ao que faz no n.º 1 do art. 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, o legislador não faz depender a isenção em sede de IMI do destino dado aos imóveis adquiridos», acrescentando-se que «se o legislador faz essa distinção, não cabe ao intérprete desconsiderá-la».
37. Conforme referem Carlos Paiva e Mário Januário, «desde que verificados os requisitos inerentes à qualificação de um empreendimento, como de utilidade turística, nos termos do Decreto-Lei n.º 423/83, de 5 de Dezembro, os prédios neles integrados são susceptíveis de beneficiar de isenção de IMI, de acordo com a previsão do citado artigo 47.º do EBF, enquanto se mantiverem os pressupostos elencados naquele diploma [atendendo à possibilidade de revogação da utilidade turística» (Os Benefícios Fiscais nos Imposto sobre o Património, Coimbra, Almedina, 2014, p. 102).
38. Não tendo sido revogada a utilidade turística, os imóveis com essa qualificação continuam a beneficiar da isenção de IMI prevista no art. 47.º do EBF mesmo que entretanto a respetiva propriedade tenha sido transmitida.
39. Note-se que a transmissão inter vivos de benefícios fiscais objetivos que sejam indissociáveis do regime jurídico aplicável a certos bens é expressamente admitida pelo n.º 2 do art. 15.º do EBF.
40. Deste modo, os Requerentes não tinham que requerer o reconhecimento de uma isenção que havia já sido reconhecida para os imóveis em causa.
41. A remissão que é feita no n.º 6 do art. 47.º do EBF para o Decreto-Lei n.º 423/83 visa sujeitar o reconhecimento e manutenção das isenções previstas no art. 47.º do EBF à concessão da utilidade turística, que deve ser feita nos termos definidos naquele Decreto-Lei.
42. Essa remissão não tem por objetivo sujeitar as isenções previstas no art. 47.º do EBF aos requisitos definidos no Decreto-Lei n.º 423/83 para os benefícios fiscais previstos neste diploma.
43. Assim, o disposto no art. 21.º do Decreto-Lei n.º 423/83 apenas é aplicável aos benefícios fiscais previstos neste diploma.
44. Em conclusão, os imóveis em causa continuam a beneficiar da isenção de IMI previstas no art. 47.º do EBF até ao termo do prazo de 7 anos, pelo que a liquidação de IMI relativa a 2013, referente a esses imóveis, enferma de ilegalidade.
45. Concluindo-se pela ilegalidade dos atos de liquidação contestados nos autos, o Tribunal deve decidir uma segunda questão, que se prende com saber se são ou não devidos à Requerente juros indemnizatórios.O n.º 1 do art. 43.º da Lei Geral Tributária prevê que:
“[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
46. Considera-se que “[o] erro imputável aos serviços que operaram a liquidação fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou a impugnação dessa mesma liquidação e o erro não for imputável ao contribuinte” (DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES, JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária. Anotada e comentada, 4.ª ed., Lisboa, 2012, p. 342).
47. A lei determina ainda, no art. 100.º da Lei Geral Tributária, que:
“A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”
48. Conforme é afirmado no Acórdão do STA de 11/02/2009, recurso n.º 1003/08,
“Tendo o legislador adoptado a indemnização sobre a forma de juros indemnizatórios, na sequência de decisão anulatória de acto de liquidação, presumindo o prejuízo patrimonial derivado da privação da quantia paga na sequência de um acto de liquidação ilegal, a interpretação do art. 100.º da LGT conforme à Constituição é a de que nele se reconhece o direito a juros indemnizatórios desde a data em que ocorreu a privação da quantia ilegalmente liquidada e não apenas a contar do termo do prazo de execução da decisão anulatória.”
49. No presente processo estamos perante liquidações de IMI fundadas em erro imputável aos serviços, donde resultaram pagamentos indevidos de prestações tributárias pelos Requerentes, pelo que se reconhece a estes o direito a juros indemnizatórios.
50. De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), “[o]s juros são contados desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito, em que são incluídos”.
IV. Decisão
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar procedente o pedido de anulação dos atos de liquidação impugnados, com todas os efeitos legais;
b) Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, nos termos previstos nos artigos 43.º da Lei Geral Tributária e 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
V. Valor do processo
Procede-se à correção do valor do processo indicado pelos Requerentes no pedido de pronúncia arbitral (€ 627,56), uma vez que a pretensão incide sobre os atos de liquidação e não sobre os documentos de pagamento referentes a uma das prestações do imposto. Assim, o valor do processo é fixado em € 839,44, o qual corresponde ao valor total das liquidações impugnadas, em conformidade com o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e Processo Tributário e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI. Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 306,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Lisboa, 03 de setembro de 2015
O Árbitro,
Paulo Nogueira da Costa