Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 20/2015-T
Data da decisão: 2015-09-21   
Valor do pedido: € 219.203,82
Tema: IRS – Retenção na fonte; prestação de serviços; contrato de trabalho
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Processo n.º 20/2015 - T

Requerente: A…, Lda.

Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira

Tema: Retenção na fonte de IRS. Prestação de serviços e contrato de trabalho.

 

Acórdão Arbitral

 

I – Relatório

 

1.     A contribuinte A…, Lda, com o NIPC … (doravante "Requerente"), apresentou, no dia 12 de Janeiro de 2015, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante "RJAT"), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante "AT" ou "Requerida").

2.     A Requerente vem pedir a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade das liquidações de retenção na fonte de IRS, referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, relativamente às quais a acção inspectiva determinou existir IRS não retido na fonte no valor de €91.651,00 (2009), €44.954,00 (2010), €36.896,00 (2011) e €18.447,00 (2012), alegando em síntese que tais liquidações violam o dever de audição prévia, e são ainda ilegais, seja por violação do disposto nos arts. 59º, 1, f) e 3, e 63º, 4 da LGT, seja por erro na qualificação dos rendimentos tributados (como rendimentos de trabalho dependente).

3.     O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 13 de Janeiro de 2015.

4.     Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação em 6 de Março de 2015.

5.     O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 26 de Março de 2015; foi-o regularmente e é materialmente competente, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), 5º, 6º, n.º 1, e 11º, n.º 1, do RJAT (com a redacção introduzida pelo art. 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro).

6.     Nos termos dos n.os 1 e 2 do art. 17º do RJAT, foi a AT notificada, em 2 de Abril de 2015, para apresentar resposta.

7.     A AT apresentou a sua resposta em 12 de Maio de 2015, acompanhada do Processo Administrativo.

8.     Nessa resposta a AT alega, em síntese, a total improcedência do pedido da Requerente.

9.     O Despacho Arbitral de 14 de Maio de 2015 determinou a dispensa da reunião referida no art. 18º do RJAT, solicitando das partes alegações finais escritas e indeferindo o pedido de produção de prova testemunhal, tida por inútil para o objecto do processo (arts. 16º, c) e e) e 19º, 1, do RJAT e arts. 6º e 130º do CPC, ex vi art. 29º do RJAT).

10.  A Requerente apresentou as suas alegações em 22 de Maio de 2015; e, em requerimento de 25 de Maio de 2015, solicitou a junção aos autos de 2 documentos, especificamente contendo a decisão arbitral no Proc. nº 411/2014-T.

11.  A Requerida apresentou as suas alegações em 5 de Junho de 2015.

12.  O Despacho Arbitral de 15 de Agosto de 2015 fixou a data de 23 de Setembro de 2015 como limite para a prolação da Decisão Arbitral.

13.  O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões, prévias ou subsequentes, prejudiciais ou de excepção, que obstem à apreciação do mérito da causa, mostrando-se reunidas as condições para ser proferida decisão final.

14.  A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e o Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.

15.  As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade, nos termos dos arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

II – Fundamentação: a matéria de facto

 

II.A. Factos que se consideram provados

 

a)      A Requerente recebeu as Demonstrações de Liquidação de Retenções na Fonte de IRS, notas de apuramento e respectivos juros compensatórios, relativas aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012.

b)     A Requerente tinha sido objecto de uma acção inspectiva incidindo sobre esses anos, levada a cabo pelos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças do Porto e credenciada pelas Ordens de Serviço n.os … e ….

c)      Dessa inspecção resultaram correcções em sede de IRS não retido na fonte, com liquidações adicionais nos montantes de €91.651,00 (2009), €44.954,00 (2010), €36.896,00 (2011) e €18.447,00 (2012) – valores em dívida acrescidos dos juros compensatórios.

d)     A Requerente foi notificada do projecto de relatório relativo à inspecção em 26 de Novembro de 2013.

e)      Em 10 de Dezembro de 2013 a Requerente apresentou um requerimento solicitando esclarecimentos sobre o âmbito temporal do projecto de relatório, nomeadamente a tomada em consideração de factos do ano de 2008, e solicitando a interrupção do prazo para exercer o direito de audição.

f)      Em 16 de Dezembro de 2013 a Requerida respondeu ao requerimento, tomando posição quanto à questão do âmbito temporal e negando a pretensão de interrupção do prazo de exercício do direito de audição.

g)      A Requerente exerceu o seu direito de audição em 30 de Dezembro de 2013.

h)     Na mesma data, 30 de Dezembro de 2013, a Requerente foi notificada do Relatório de Inspecção (enviado por ofício nº …/0507, datado de 23 de Dezembro de 2013).

i)       Em 16 de Janeiro de 2014 a Requerente foi notificada de despacho que considerou extemporâneo o exercício do direito de audição (ofício nº ../0507).

j)       Por contrato outorgado em 30 de Setembro de 2008 entre a Requerente, por um lado (na altura designada como "B…, Lda"), e por outro a C…, S.A., e a D…, S.A., procedeu-se ao trespasse da unidade económica "E…", transmitindo-se os seus activos para a Requerente.

k)     A F…, Lda, foi criada em 2002 e celebrou um contrato de prestação de serviços com a Requerente em 24 de Outubro de 2008.

l)       A G…, Lda, foi criada em 1996 e celebrou um contrato de prestação de serviços com a Requerente em 24 de Outubro de 2008.

m)    A H…, Lda, foi criada em 1995 e celebrou um contrato de prestação de serviços com a Requerente em 3 de Novembro de 2008.

n)     A I…, Lda, foi criada em 2002 e celebrou um contrato de prestação de serviços com a Requerente em 3 de Novembro de 2008.

o)     A J…, Lda, foi criada em 2002 e celebrou um contrato de prestação de serviços com a Requerente em 3 de Novembro de 2008.

p)     A K…, Lda, foi criada em 1999 e celebrou um contrato de prestação de serviços com a Requerente em 3 de Novembro de 2008.

 

II.B. Factos que se consideram não provados

 

Com base nos elementos documentais disponibilizados nos autos e consensualmente aceites pelas partes, têm-se por factos não provados e com interesse para a decisão da causa:

a)     A existência de relações de trabalho dependente tendo por entidade patronal a Requerente e por trabalhadores os titulares das empresas F…, Lda; G…, Lda; H…, Lda; I…, Lda; J…, Lda; e K…, Lda.

b)     O pagamento, pela Requerente, das liquidações em apreço.

 

 

 

III – Fundamentação: a matéria de Direito

 

III.A. Posição da Requerente

 

a)     A Requerente começa por sustentar que há nulidade do procedimento de inspecção em resultado de um vício de forma, consistente na violação do dever de audição pela Administração.

b)     A Requerente alega que, tendo suscitado em requerimento uma questão relativa à inspecção referente ao ano de 2008, que no seu entender seria crucial à sua defesa, isso conduziu ao despacho da Requerida que considerou extemporâneo o exercício do direito de audição.

c)     No entender da Requerente, essa desconsideração pela Requerida do pedido de esclarecimento é que conduziu à posição de considerar esgotado o prazo de exercício do direito de audição.

d)     Estaria assim violado o direito de audição que assiste à Requerente, o que no entender desta feriria de nulidade o Relatório de Inspecção, as liquidações adicionais e os correspondentes juros compensatórios.

e)     Por outro lado, a posição assumida em 16 de Dezembro de 2013 pela Requerida, a de não se pronunciar sobre a questão do âmbito temporal da inspecção, suscitada pela Requerente em 10 de Dezembro de 2013, constituiria, no entender desta, violação do dever de colaboração imposto pelo art. 59º, 1 e 3, f) da LGT.

f)      Por outro lado ainda, a alegada duplicação de dados constantes do Relatório de Inspecção referente ao ano de 2008 constituiria, no entender da Requerente, uma duplicação de procedimentos inspectivos relativamente a um mesmo período de tempo, em violação do art. 63º, 4 da LGT.

g)     Ambas as violações de preceitos da LGT determinariam, também elas, no entender da Requerente, a nulidade do Relatório de Inspecção, das liquidações adicionais e dos correspondentes juros compensatórios.

h)     Acrescem a estes argumentos aquele que se reporta a uma alegada errónea qualificação dos rendimentos sobre que incidiu o IRS, e que a Requerente sustenta não serem rendimentos de trabalho dependente, não estando, pois, sujeitos ao regime da retenção na fonte – pelo que tal sujeição violaria os arts. 98º, 99º e 103º do CRIS e a Circular nº 1/2008).

i)      Com efeito, a Requerente alega que todas as situações referenciadas no Relatório de Inspecção e que deram origem às liquidações adicionais integram casos em que há meros prestadores de serviços, ou então trabalhadores dependentes de empresas que prestavam serviços à Requerente.

a.      Isso é alegado relativamente à F…, Lda, e a L… como sócio da F…. Sublinha a Requerente que a F… nem sequer facturou em todos os meses de 2009 e 2010, o que no seu entender seria a demonstração de que não existia a regularidade da remuneração caracterizadora do trabalho dependente – o mesmo sucedendo quanto à ausência de outras remunerações e subsídios, ausência de horário e de período de férias ou de dependência funcional. Sendo ainda que L… não terá sido a única pessoa física a prestar serviços em nome da F….

b.     O mesmo se alega, "mutatis mutandis", quanto à G…, Lda, e M….

c.      E o mesmo quanto a H…, Lda, e a N….

d.     O mesmo ainda quanto à I…, Lda, e a O….

e.      O mesmo igualmente quanto à J…, Lda, e a P....

f.      O mesmo ainda quanto à K…, Lda, e a Q….

j)      A Requerente aduz ainda alguns argumentos contrários aos actos ora impugnados, como:

a.      A irrelevância, para o caso, da sentença proferida no procedimento cautelar na 2ª Vara Mista do Tribunal de Vila Nova de Gaia (Proc. Nº …/…….), relativa à Acção Ordinária …/….TBOER, do Tribunal de Oeiras, anulado posteriormente, em 12 de Janeiro de 2012, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por nele não ter havido qualquer intervenção da Requerente, e portanto a irrelevância das razões aduzidas no Relatório de Inspecção que se estribam naquela sentença.

b.     A irrelevância, pelas mesmas razões, da materialidade alegada na oposição ao referido procedimento cautelar – visto ela só valer no âmbito de um processo que conduziu a uma sentença que foi anulada, não podendo ser tomados como confissão da parte, e muito menos da Requerente, que não foi parte nesse processo.

c.      A Requerente sustenta ainda que foi somente com o trespasse da unidade económica "E…", por contrato outorgado em 30 de Setembro de 2008 entre a Requerente, por um lado (na altura designada como "B…, Lda"), e por outro a C…, S.A., e a D…, S.A., que alguns dos prestadores de serviços entraram para a estrutura da Requerente e passaram a colocar-se em situações de trabalho dependente – o que, no seu entender, tornaria mais nítida a demarcação entre as situações de genuíno trabalho dependente e as demais.

d.     A Requerente alega ainda que foram meras razões de facilidade e celeridade que ditaram a contabilização no diário "CS – Contabilização Salários" de pagamentos efectuados a entidades independentes por prestações de serviços, acrescentando que é possível distinguir situações, nomeadamente através da inscrição contabilística em subcontas da conta "FSE – Fornecimentos e Serviços Externos".

k)     Em conclusão, a Requerente alega que, ao desconsiderar a personalidade jurídica das empresas prestadoras de serviços, para pretender tributar directamente, como dependente, o trabalho prestado pelos seus sócios, a AT esquece que tais empresas foram tributadas já, em IVA, em IRC, e no IRS retido; e, pior, que pretende escamotear a existência de prestações de serviços que já serviram de base à tributação dos prestadores desses serviços.

l)      Além disso, a Requerente questiona a vantagem económica que alegadamente decorreria da dissimulação de situações de trabalho dependente – argumentando que a "poupança" em IRS seria mais do que compensada por onerações tributárias em sede de IVA, IRC e por contribuições para a Segurança Social, sem excluir a tributação em IRS dos rendimentos dos sócios e dos trabalhadores das empresas.

m)   Por fim, a Requerente reclama juros indemnizatórios por erro imputável aos serviços, nos termos do art. 43º da LGT.

n)     A Requerente retoma os mesmos argumentos nas suas alegações, socorrendo-se de alguns dos depoimentos obtidos no Proc. nº 411/2014-T, por entender estarem verificados os requisitos do art. 421º, 1 do CPC.

 

 

III.B. Posição da Requerida

 

a)     Na sua resposta, a AT mantém o entendimento de que as liquidações controvertidas consubstanciam uma correcta aplicação do Direito, não enfermando de qualquer vício.

b)     Em reforço desse entendimento, a Requerida analisa as consequências do trespasse ocorrido em 30 de Setembro de 2008, que fez entrar na esfera da Requerente as posições de empregador que cabiam à C…, S.A.

c)     Especificamente, a Requerente sustenta que do Relatório de Inspecção Tributária (doravante, "RIT") se concluía que transitaram para a Requerente situações já detectáveis na C… (Portugal), de existência de relações de trabalho dependente dissimuladas como prestações de serviços por sociedades detidas por esses trabalhadores, contra a correspondente emissão de facturas que não correspondem à relação existente.

d)     Dessa constatação decorreu o apuramento dos montantes em dívida, correspondentes à retenção na fonte de IRS que foi omitida.

e)     Quanto à alegada violação do direito de audição prévia, a Requerida argumenta que foram estritamente observados todos os prazos, nomeadamente o decorrente do art. 60º da LGT, e que foi a Requerente que não os aproveitou – antes procurando obter uma interrupção de prazo com um argumento que não o consentia (seja porque a referência a factos de 2008 não interfere sobre os factos e questões de direito que relevam; seja porque essa referência a factos de 2008 é crucial para se avaliar a situação dos anos subsequentes). E remete para os argumentos que foram expendidos, e comunicados à Requerente, no Despacho de 16 de Janeiro de 2014, referente à extemporaneidade do exercício do direito de audição.

f)      Quanto ao alegado vício de violação da lei por incumprimento do art. 59º, 1 e 3, f) e do art. 63º, 4 da LGT, a Requerida sustenta que não só não houve qualquer falta de colaboração, como também que não houve qualquer duplicação nos procedimentos inspectivos.

g)     No primeiro caso, porque no entender da Requerida não havia qualquer questão que justificasse interrupção do prazo de exercício do direito de audição prévia; no segundo caso, não terá havido duplicação de procedimentos, sendo que, no entender da Requerida, as referências a 2008 no RIT demonstram precisamente o contrário (a referência ao que já era conhecido como forma de evitar a repetição de indagações).

h)     Quanto ao alegado vício de violação de lei por errónea qualificação dos rendimentos como de trabalho dependente, a AT remete para as conclusões alcançadas no RIT, em que se demonstrava que os pagamentos por "serviços de consultoria" não eram contrapartidas contratuais de prestações de serviços por empresas, mas antes remunerações de funcionários da própria Requerente.

i)      Não sendo as facturas emitidas correspondentes à verdadeira relação existente, compreende-se que do RIT tenha resultado a desconsideração dessas formas que furtavam tais relações contratuais da incidência do IRS e das prestações para a segurança social, e que resultaram na circunstância de esses rendimentos não terem sido contabilizados de acordo com a sua verdadeira natureza, nem comunicados como rendimentos sujeitos a retenção, nem sujeitos a efectiva retenção na fonte.

j)      Mais, entende a AT que em nenhuma das situações elencadas pela própria Requerente esta fez prova, como lhe competia, de factos que contraditassem as conclusões já tiradas no RIT quanto à natureza das relações subjacentes.

k)     A Requerida sustenta que a materialidade revelada no procedimento cautelar na 2ª Vara Mista do Tribunal de Vila Nova de Gaia, indiciadora da existência de genuínas relações de trabalho dependente, vale apenas nos limites da boa fé processual, sem colisão com os princípios do caso julgado.

l)      Por outro lado, a Requerida tem por reveladora da mesma materialidade subjacente a existência de uma lista de "pessoas autorizadas a entrar no sistema informático da C…" que foi anexada ao contrato de trespasse; e de haver disposições expressamente destinadas a remunerar valores correspondentes aos subsídios de férias e de Natal..

m)   Finalmente, a Requerida afasta a hipótese de cabimento de juros indemnizatórios, visto recusar a existência de erro imputável aos serviços, requisito do art. 43º, 1 da LGT.

n)     Rematando a AT com a posição de que a presente acção deve ser julgada improcedente, sendo absolvida do pedido.

o)     Em contra-alegações, a Requerida opõe-se ao uso, nas alegações da Requerente, dos depoimentos obtidos no Proc. nº 411/2014-T, por entender que tal prática viola o disposto no Despacho de 14 de Maio de 2015, proferido no presente processo e que não admite a produção de prova testemunhal.

p)     No restante das contra-alegações, a Requerida retoma os argumentos já aduzidos na sua resposta.

 

III.C. Questões a decidir

 

III.C.1 Violação do direito de audição prévia

 

A primeira questão decidenda é a que diz respeito ao vício de forma consistente na alegada violação do direito de audição pela Administração, sustentada pela Requerente

 

A Requerente alega que, tendo suscitado em requerimento uma questão relativa à inspecção referente ao ano de 2008, que no seu entender seria crucial à sua defesa, isso conduziu ao despacho da Requerida que considerou extemporâneo o exercício do direito de audição. No entender da Requerente, essa desconsideração pela Requerida do pedido de esclarecimento é que conduziu à posição de considerar esgotado o prazo de exercício do direito de audição. Estaria assim violado o direito de audição que assiste à Requerente, o que no entender desta feriria de nulidade o Relatório de Inspecção, as liquidações adicionais e os correspondentes juros compensatórios.

 

Entende o Tribunal que, nesta matéria, não assiste razão à Requerente.

 

Em primeiro lugar assinala-se a ausência da indicação pela Requerente de norma que sustente a alegada nulidade, sendo que a regra, nos procedimentos administrativos, é a da anulabilidade, nos termos previstos no Código do procedimento Administrativo.

 

Subscreve-se, nesta matéria, a fundamentação do Acórdão Arbitral do Processo n.º 411/2014-T, segundo a qual a dúvida suscitada pela Requerente «não era nem fundada nem susceptível de comprometer o exercício do direito de audição que lhe foi, efectivamente, facultado, já que, desde logo, sempre poderia a Requerente ter optado pela pronúncia sobre os factos relativos a 2008 que entendesse relevantes, sem que daí lhe adviesse qualquer prejuízo», pelo que se considera que não foi violado o dever de audição prévia.

 

III.C.2 Falta de colaboração

 

Uma segunda questão decidenda é a que se prende com a alegada violação do dever de colaboração pela Administração, sustentada pela Requerente.

 

Segundo a Requerente, o facto de a Administração ter decidido não se pronunciar acerca da questão por si colocada – a de saber se a sua audição deveria incidir sobre os factos relativos a 2008 – configura uma violação da norma contida no art. 59,º, n.ºs 1 e 3, al. f) da LGT.

 

O n.º 1 do artigo 59.º da LGT prevê que «[o]s órgãos da administração tributária e os contribuintes estão sujeitos a um dever de colaboração recíproco». E o n.º 3 do mesmo artigo da LGT dispõe que essa colaboração compreende, designadamente, «[o] esclarecimento regular e atempado das fundadas dúvidas sobre a interpretação e aplicação das normas tributárias» [alínea f)].

 

Ora, na questão colocada pela Requerente à Administração não estava em causa uma dúvida «sobre a interpretação e aplicação das normas tributárias», mas sim, tal como é referido no Acórdão Arbitral do Processo n.º 411/2014-T, sobre o “teor do relatório notificado”, pelo que não se pode considerar que a Administração tenha violado o dever de colaboração previsto no art. 59.º da LGT.

 

Assim sendo, entende o Tribunal que, também nesta matéria, não assiste razão à Requerente.

 

 

 

 

III.C.3 Duplicação de procedimentos inspectivos

 

Segundo a Requerente, é «excessivo e violador dos direitos da Requerente», a «cópia de 84 páginas do relatório relativo ao ano de 2008, já que esta matéria já foi alvo de pronúncia por parte da Requerente, bem assim da respectiva impugnação», daí concluindo pela existência de uma duplicação de procedimentos de inspecção contra si pelos mesmos factos, pelo que sustenta a nulidade do procedimento de inspecção a partir da elaboração do projecto de relatório, por violação do art. 63.º, n.º 4, da LGT, que prevê o seguinte:

 

«O procedimento da inspecção e os deveres de cooperação são os adequados e proporcionais aos objectivos a prosseguir, só podendo haver mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se a fiscalização visar apenas a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspecção ou inspecções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas».

 

O Tribunal entende que, também nesta questão, não tem razão a Requerente.

 

Na verdade, e tal como é referido no Acórdão Arbitral do Processo n.º 411/2014-T, «a utilização de factos apurados na inspecção ao ano de 2008, na inspecção aos anos de 2009 a 2012, consubstanciada na notificação no âmbito desta, do relatório daquela, não integra uma nova inspecção aos factos daquele primeiro ano, até porque não se visaram nem se suscitaram quaisquer factos novos», pelo que não se pode considerar violada a norma contida no art. 64.º, n.º 3, da LGT.

 

 

 

 

III.C.4 Errónea qualificação dos rendimentos como de trabalho dependente

 

Questão central no processo é a que se refere à alegada errónea qualificação dos rendimentos em causa como rendimentos de trabalho dependente.

 

De acordo com a AT, a acção inspectiva em discussão «foi aberta na sequência das conclusões alcançadas no âmbito da acção inspectiva ao exercício de 2008, ao abrigo da ordem de serviço nº OI …, por se ter verificado a contabilização de facturas ou documentos equivalentes que não correspondiam nem correspondem à verdadeira relação entre a Requerente e as entidades que as emitiram (cfr. fl. 9 do RIT)».

 

Sustenta a AT que «[d]a análise efectuada pelos SIT, nomeadamente do teor das cláusulas contratuais, foi possível concluir que os trabalhadores da Requerente, antes trabalhadores da C… Portugal, recebiam a sua remuneração correspondente às funções que exerciam a título individual através de sociedades por si detidas, sob a forma dissimulada de prestação de serviços de consultadoria contra a correspondente emissão de facturas que não correspondem à relação verdadeiramente existente entre as partes (cfr. fl. 159 do RIT)», concluindo que foi omitida a retenção na fonte do IRS, devida nos termos do nº 1 e nº 4 do art. 103º do CIRS.

 

Entende a AT que a Inspecção Tributária «recolheu indícios fortes e suficientes que colocam em causa a veracidade das operações subjacentes às facturas, cumprindo, como lhe impõem o artigo 342° do Código Civil e 74.º da LGT, o ónus da prova da verificação dos pressupostos da tributação», e que «competia à Requerente demostrar, clara e inequivocamente, que, não obstante os factos apurados, se tratou de efectivas prestações de serviços de consultoria com tributação em sede de IVA e sem qualquer reflexo em sede de IRS, o que não logrou fazer».

 

Nos termos do art. 74.º, n.º 1 da LGT, «[o] ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque».

 

Assim, conforme reconhece a AT, cabia-lhe a si o ónus da prova «da verificação dos pressupostos da tributação».

 

Importa, então, identificar os pressupostos da tributação cuja prova teria que ser feita no processo.

 

Entende a AT que estamos perante rendimentos de trabalho dependente, pagos pela Requerida, e como tal sujeitos a retenção na fonte por força do disposto no art. 103.º do CIRS.

 

Nos termos do art. 2.º, n.º 1, do Código do IRS, «consideram-se rendimentos do trabalho dependente todas as remunerações pagas ou postas à disposição do seu titular provenientes de:

 

a) Trabalho por conta de outrem prestado ao abrigo de contrato individual de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado;

 

b) Trabalho prestado ao abrigo de contrato de aquisição de serviços ou outro de idêntica natureza, sob a autoridade e a direção da pessoa ou entidade que ocupa a posição de sujeito ativo na relação jurídica dele resultante;

 

c) Exercício de função, serviço ou cargo públicos;

 

d) Situações de pré-reforma, pré-aposentação ou reserva, com ou sem prestação de trabalho, bem como de prestações atribuídas, não importa a que título, antes de verificados os requisitos exigidos nos regimes obrigatórios de segurança social aplicáveis para a passagem à situação de reforma, ou, mesmo que não subsista o contrato de trabalho, se mostrem subordinadas à condição de serem devidas até que tais requisitos se verifiquem, ainda que, em qualquer dos casos anteriormente previstos, sejam devidas por fundos de pensões ou outras entidades, que se substituam à entidade originariamente devedora.»

 

Assim, a tributação de determinados rendimentos como rendimentos de trabalho dependente pressupõe que os mesmos serão originados por alguma das situações tipificadas nas alíneas do n.º 1 do art. 2.º do CIRS.

 

No presente processo, não estamos, manifestamente, perante o exercício de função serviço ou cargos públicos, nem estamos perante qualquer situação de pré-reforma, pré-aposentação ou reserva, pelo que se afasta, desde já, a possibilidade de estarmos perante rendimentos tributáveis ao abrigo das alíneas c) e d) do n.º 1 do art. 2.º do CIRS.

 

Não estamos também, no presente processo, perante a situação descrita na alínea b) do n.º 1 do art. 2.º do CIRS, que se a refere à prestação de serviços pelo sujeito passivo, mas sob a autoridade e direcção da entidade que ocupa a posição de sujeito activo na respectiva relação jurídica, o que nos remete para a problemática dos “falsos recibos verdes” (cfr. José Guilherme Xavier de Basto, IRS: incidência real e determinação dos rendimentos líquidos, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 57-58). Ainda assim, sublinha-se o facto de nestas situações ter que ser feita prova de que se está perante trabalho prestado sob a autoridade e a direcção de outrem, de outro modo os rendimentos em causa serão tributados como rendimento da categoria B – rendimentos empresariais e profissionais.

 

Conclui-se, então, que a AT, no caso vertente, teria que provar a existência de uma verdadeira relação jurídica de trabalho, subsumível à alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do CIRS para poder qualificar os rendimentos em causa como rendimentos do trabalho dependente, tributáveis de acordo com as regras da categoria A do IRS e sujeitos às regras de retenção na fonte correspondentes. 

 

Conforme é afirmado em jurisprudência do STJ, o contrato de trabalho caracteriza-se «essencialmente pelo estado de dependência jurídica em que o trabalhador se coloca face à entidade empregadora, sendo que o laço de subordinação jurídica resulta da circunstância do trabalhador se encontrar submetido à autoridade e direcção do empregador que lhe dá ordens, enquanto na prestação de serviço não se verifica essa subordinação, considerando-se apenas o resultado da actividade» (Acórdão do STJ de 04/02/2015, no Processo n.º 437/11.0TTOAZ.P1.S1).

 

Afirma ainda o STJ, no mesmo acórdão, o seguinte:

 

«Ora, como vem sendo repetidamente afirmado, a extrema variabilidade das situações concretas dificulta muitas vezes a subsunção dos factos na noção de trabalho subordinado, implicando a necessidade de, frequentemente, se recorrer a métodos aproximativos, baseados na interpretação de indícios.

 

Nos casos limite, a doutrina e a jurisprudência aceitam a necessidade de fazer intervir indícios reveladores dos elementos que caracterizam a subordinação jurídica, os chamados indícios negociais internos (a designação dada ao contrato, o local onde é exercida a actividade, a existência de horário de trabalho fixo, a utilização de bens ou utensílios fornecidos pelo destinatário da actividade, a fixação da remuneração em função do resultado do trabalho ou em função do tempo de trabalho, direito a férias, pagamento de subsídios de férias e de Natal, incidência do risco da execução do trabalho sobre o trabalhador ou por conta do empregador, inserção do trabalhador na organização produtiva, recurso a colaboradores por parte do prestador da actividade, existência de controlo externo do modo de prestação da actividade laboral, obediência a ordens, sujeição à disciplina da empresa) e indícios negociais externos (o número de beneficiários a quem a actividade é prestada, o tipo de imposto pago pelo prestador da actividade, a inscrição do prestador da actividade na Segurança Social e a sua sindicalização).

 

Cada um daqueles indícios tem naturalmente um valor muito relativo e, por isso, o juízo a fazer é sempre um juízo de globalidade (MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, p. 145), a ser formulado com base na totalidade dos elementos de informação disponíveis, a partir de uma maior ou menor correspondência com o conceito-tipo.»

 

Ora, tendo em linha de conta o conceito de contrato de trabalho, bem como os diversos indicadores que permitem testar a existência de uma relação jurídica de trabalho dependente, conclui este Tribunal que a Requerida não fez prova de que a Requerente tivesse pago os rendimentos em causa ao abrigo de relações de trabalho dependente.

 

E não estando provada a existência de tais relações, não pode a requerida exigir os montantes correspondentes a retenções que seriam devidas em virtude do pagamento de rendimentos de trabalho dependente.

 

No mesmo sentido, embora sob um perspectiva distinta, conclui o Tribunal Arbitral no Processo n.º 411/2014-T quando, relativamente aos mesmos factos, afirma que no elenco probatório «não se descortinam factos que sustentem a conclusão da AT, de que é “possível concluir que os trabalhadores da Requerente, antes trabalhadores da «B…», recebiam a sua remuneração correspondente às funções que exerciam a título individual através de sociedades por si detidas, sob a forma dissimulada de prestação de serviços de consultadoria contra a correspondente emissão de facturas que não correspondem à relação verdadeiramente existente entre as partes” [citação das alegações da AT no respetivo processo]».

 

Conforme é afirmado pelo Tribunal Arbitral no Processo n.º 411/2014-T, «[e] fectivamente, não é possível, face ao acervo probatório apurado, detectar “factos indiciantes, dos quais se procurará extrair, com o auxílio das regras de experiência comum, da ciência ou da técnica, uma ilação quanto aos factos indiciados (...) através de um juízo de relacionação normal entre o indício e o tema de prova”[citação do Acórdão do TCA-S de 05-02-2015, proferido no processo 08097/14]».

 

Face ao exposto, conclui o Tribunal pela procedência do pedido de anulação das liquidações adicionais de IRS, por errónea qualificação dos rendimentos como de trabalho dependente.

 

 

III.C.5 Juros indemnizatórios

 

O processo de impugnação judicial (em que se inclui a arbitragem tributária) apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial.

 

Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

 

Todavia, no caso sub juditio, não está demonstrado que a requerente tenha procedido ao pagamento das liquidações.

 

Daí que, não ocorrendo esse necessário pagamento, não há obviamente lugar à condenação em juros indemnizatórios.

 

Improcederá, por isso, nesta parte, o pedido.

 

IV. Decisão

Em face de tudo quanto antecede, decide-se:

 

a) Julgar procedente o pedido de anulação, por ilegalidade, das liquidações de retenção na fonte de IRS e juros compensatórios, referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012 objeto dos autos, nas importâncias de €108.033,79, €51.138,37, €40.497,15 e €19.534,51, condenando a AT a proceder à sua imediata anulação com as consequências legais inerentes;

 

b) Julgar improcedente o pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios, absolvendo a Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira desse pedido.

 

V. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 219.203,82

 

VI. Custas

 

Fixa-se o montante das custas em € 4.284,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, ficando o respectivo pagamento a cargo da Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 21de Setembro de 2015

 

Os Árbitros

 

 

José Poças Falcão

(Presidente)

 

Paulo Nogueira da Costa

 

Fernando Araújo