Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 789/2014-T
Data da decisão: 2015-07-30   
Valor do pedido: € 1.649,22
Tema: IUC – Propriedade do veículo; sujeito passivo
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Decisão arbitral

Tema: Imposto Único de Circulação – Propriedade do veículo – Sujeito passivo

Requerente: A…, Lda.

Requerida: AT - Autoridade Tributária e Aduaneira

 

I - RELATÓRIO

1.     Pedido

A…, Lda, pessoa colectiva n.º …, com sede no …, Avenida …, lote ……….., 2º andar, em Lisboa, doravante designada por Requerente, apresentou, em 24-11-2014, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 2º e no art.º 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista a:

-         A anulação de 35 actos de liquidação de Imposto Único de Circulação referentes aos anos de 2013 e 2014.

A Requerente alega, no essencial, o seguinte:

-         Os actos de liquidação impugnados informam de ilegalidade por não se verificam os pressupostos subjectivos da incidência do imposto;

-         Tal erro consubstancia-se em os actos de liquidação impugnados assentarem no pressuposto de que a Requerente era proprietária dos veículos em causa na data dos factos tributários quando, na realidade, a Requerente não era proprietária dos veículos em causa nessas datas.

-         E não era proprietária dos referidos veículos por ter procedido anteriormente à sua alienação.

-         De acordo o artigo 3.º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), é sujeito passivo do imposto de circulação (IUC) o proprietário do veículo. E embora a mesma disposição diga que se considera como proprietário do veículo a pessoa que como tal figure no Registo Automóvel, esta norma deve ser interpretada como uma presunção, em matéria de incidência, que é ilidível, pois o contrário seria uma interpretação incompatível com o princípio da capacidade contributiva vertido na Constituição da República Portuguesa.

-         Teno em conta que o IUC obedece ao “princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam”, uma interpretação segundo a qual a expressão “considerando-se” constitui uma presunção inilidível de propriedade com base no registo chocaria frontalmente com aquele princípio, ao possibilitar que o novo proprietário, e consequente causador do “custo ambiental viário” inerente, ficasse dispensando do pagamento do IUC, continuando a ser onerado o proprietário que o vendeu, e relativamente ao qual o mencionado “pressuposto seleccionado para objecto do imposto” deixou de se verificar.

 

2.     Resposta da Requerida

Em resposta ao pedido de pronúncia apresentado pela Requerente, a Requerida AT -Autoridade Tributária e Aduaneira alega como questões prévias:

2.1.          Que a Requerente não identifica, no pedido, os actos tributários impugnados, como estava obrigada nos termos do artigo 10º, n.º 2, al. b) do RJAT;

2.2.          Que a Requerente não juntou à petição inicial cópias dos actos de liquidação impugnados, o que só podia fazer com a mesma petição inicial, nos termos do 423.º do Novo Código de Processo Civil, o que se traduz numa irregularidade processual.

Alega ainda, quanto ao fundo da causa, que:

2.3.          O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos [veículos] se encontrem registados. Não é de interpretar esta norma, por conseguinte, como uma presunção.

2.4.          O normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros;

2.5.          O legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais (os veículos) se encontrem registados.

2.6.          Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários aqueles que como tal constem do registo automóvel.

2.7.          Também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei.

2.8.          Pois da articulação entre o âmbito da incidência subjectiva do IUC e o  facto  constitutivo  da correspondente  obrigação  de  imposto  decorre  inequivocamente  que  só  as  situações  jurídicas objecto de registo (sem prejuízo, da permanência de um veículo em território nacional por período superior a 183 dias, previsto no n.º 2 do artigo 6.º) geram o nascimento da obrigação de imposto.

2.9.          A interpretação defendida pela Requerente poria em causa, inequivocamente, a segurança e a certeza jurídicas (na medida em que o instituto do registo automóvel deixaria de proporcionar a segurança e a certeza que constituem as suas finalidades principais), assim como o poder-dever de a Requerida liquidar impostos;

2.10.       Mas ainda que se interprete a disposição em causa como contendo uma presunção, a Requerente não consegue fazer prova de que os factos que resultam da presunção registal não são verdadeiros.

2.11.       Não consegue fazer provar de que os factos que resultam da presunção registal não são verdadeiros, em primeiro lugar, porque as facturas relativas a vendas dos veículos que são apresentadas não têm força probatória suficiente para provar a transmissão da propriedade e assim ilidir a presunção registal.

2.12.       Além disso, as facturas juntas pela Requerente apresentam descritivos distintos.

2.13.       Com efeito:

-       As facturas correspondentes aos documentos números 1, 4, 13 e 14 contêm a menção “VENDA VIAT NÃO LOC”;

-       As facturas correspondentes aos documentos números 3, 6, 8, 9, 10, 11, 12, 15, 17, 18 e 20 contêm a menção “PERC TOT CLIENTE”, constatando-se terem sido emitidas em nome de companhias de seguros e sem IVA;

-       As facturas correspondentes aos documentos números 5 e 19 contêm a menção “RESCISÃO ANTECIPADA”.

2.14.       Estando-se perante um único tipo contratual – compra e venda – de acordo com a Requerente, seria expectável que as facturas contivessem todas o mesmo descritivo;

2.15.       Tendo as facturas, pelo contrário, diferentes descritivos, é forçoso concluir que as mesmas facturas não podem beneficiar da presunção de veracidade que resulta do artigo 75º da LGT.

3.     Tramitação subsequente

Por proposta e mediante a concordância de ambas as Partes, o Tribunal deliberou prescindir da realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT e conceder prazo para a apresentação pelas Partes de alegações escritas sucessivas.

 

4.     Alegações

A Requerente prescindiu da apresentação alegações escritas.

A Requerida apresentou alegações escritas, em que reiterou toda a argumentação articulada na resposta.

 

II – SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído em 30-01-2015, tendo sido o árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as despectivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n-º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD), e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas.

Não foram identificadas nulidades no processo.

 

III – QUESTÕES A DECIDIR

São as seguintes as questões a decidir pelo Tribunal:

1.     Questões prévia

1.1.          Falta de identificação dos actos tributários sindicados

1.2.          Falta de apresentação de prova quanto aos factos tributários sindicados

2.     Questões de mérito

2.1.          A consagração, no artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, de uma presunção e a sua ilidibilidade

2.2.          A ilisão, no caso concreto, por parte da Requerente, da presunção de propriedade dos veículos objecto de imposto

 

IV – FACTOS PROVADOS

São os seguintes os factos provados considerados relevantes para a decisão:

1º: A Requerente foi notificada das liquidações de IUC identificadas em documento identificado como “tabela anexa”, anexo à petição inicial; 

2º As liquidações de IUC referiam-se a veículos cuja propriedade se encontrava registada em nome da Requerente à data dos factos tributários;

3º A Requerente emitiu facturas de venda dos veículos seguintes, referentes às liquidações também a seguir identificadas:

Veículo

Liquidações

…-…-…

2013 ...

2014 …

…-…-…

2013 …

…-…-…

2013 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2013 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2013 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2014 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2013 …

2014 …

 

Não existem factos não provados com relevância para a decisão da causa.

Os factos considerados provados foram-no com base nos documentos juntos ao processo e com base na livre apreciação da falta de contestação dos factos invocados pela Requerente, nos termos do artigo 110º, n.7 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT.

 

V - FUNDAMENTAÇÃO

1.     Questão prévia - Falta de identificação dos actos tributários sindicados

Ao contrário do que alega a Requerida, consideramos que os actos de liquidação se encontram perfeitamente identificados, através doa números das liquidações, no documento junto à petição inicial e designado “Tabela Anexa”.

O número de cada liquidação tributária é único, constituindo portanto elemento bastante para a sua identificação.

Não se verifica, portanto, no entender do Tribunal, incumprimento do artigo 10.º, n.º 2, al. b) do RJAT.

2.     Questão prévia: Falta de apresentação de prova quanto aos factos tributários sindicados

A liquidação de um tributo é um acto administrativo que é do conhecimento e que se encontra na posse da parte aqui Requerida.

O documento em que o mesmo acto se corporiza integra o processo administrativo relativo ao acto impugnado. Deste modo, estava a Administração Tributária obrigada, nos termos do artigo 17.º, n.º2 do RJAT.

Por conseguinte, entende o Tribunal que o acto impugnado não precisa de ser provado pela Parte impugnante, embora contribua para a boa economia processual que o documento que o corporiza acompanhe a instrução do pedido.

Não tendo, a Administração Tributária, instada para o fazer, procedido à remessa do processo administrativo, aplica-se, por força do artigo 29º, n.º 1, al. a) do RJAT, o artigo 110º do Código do Procedimento e de Processo Tributário.

Nos termos do n.º 7, “o juiz aprecia livremente a falta de contestação especificada dos factos”.

No caso, concreto, é entendimento do Tribunal que é verdadeiro o que a Requerente alega como conteúdo dos actos tributários identificados.

Não se verifica portanto, também neste aspecto, qualquer irregularidade processual cometida pela Requerente.

 

3.     Sobre o mérito

 

1.1.          A consagração, no artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, de uma presunção e a sua ilidibilidade

Esta questão foi objecto já de inúmeras decisões arbitrais. No sentido de que o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC consagra uma presunção, pronunciaram-se as decisões arbitrais proferidas nos processos n.º 230/2014- T, nº 414/2014-T, nº 350/2014-T, 336/2014-T, nº 333/2014-T, n.º 220/2014-T, n.º 150/2014-T e 63/2014-T, entre outros. No mesmo sentido se pronunciou o Tribunal Central Administrativo do Sul, em acórdão de 19-3-2015 (Processo n.º 08300/14).

Na última decisão arbitral citada, cuja fundamentação perfilhamos, diz-se a propósito desta questão:

 “O art. 11º, n.º 2 da Lei Geral Tributária constitui o ponto de partida quanto a esta questão, dizendo que “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei”.

Há pois que averiguar se resulta inequivocamente do disposto no art.º 3º do CIUC que o legislador pretendeu aí estabelecer um conceito de “proprietário de veículo” próprio do direito fiscal, que englobe pessoas que não sejam titulares de tal direito segundo as regras do direito civil.

Ora, será que a “liberdade de conformação legislativa” de que goza o legislador, que a Requerida refere no parágrafo 17º da sua Resposta, pode ir tão longe, ao ponto de determinar taxativamente quem é proprietário de um veículo, ainda que para efeitos meramente fiscais, dissociando radicalmente essa qualificação fiscal da qualificação do direito civil?

E, na sequência da questão anterior, outra pergunta se impõe: por que razão o legislador não teria então estipulado simplesmente - pois obteria exactamente o mesmo efeito útil mas eliminando toda e qualquer margem de insegurança ou incerteza jurídicas - que “são sujeitos passivos do imposto as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados, seja como proprietários, seja como locatários financeiros, como adquirentes com reserva de propriedade, ou como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”? Questão tanto mais pertinente, e hipótese tanto mais atractiva, quanto o legislador conhecia a experiência, negativa, e que volta repetir-se, do anterior Imposto de Circulação?

A resposta parece evidente: porque, nesta última hipótese, que o legislador não seguiu, a incidência subjectiva do imposto poderia ficar totalmente desligada de qualquer substância económica e ficaria dependente exclusivamente de uma aparência jurídica.

Ora, se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjectiva do imposto numa ficção legal, em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjectiva.

É certo que a eficiência da tributação determina a necessidade de o IUC assentar no registo automóvel e, por conseguinte, exige que a administração fiscal possa confiar no mesmo registo automóvel.

Mas o princípio da eficiência da tributação não pode sobrepor-se em absoluto ao princípio da capacidade contributiva, ao ponto de o eliminar como critério de incidência subjectiva. E também é certo que o legislador fiscal teria ao seu dispor outros meios de responsabilizar o vendedor do veículo, faltoso quanto ao seu dever de comunicar a venda do veículo, pelo pagamento do imposto, sem ser como contribuinte directo (configurando, v.g., um caso de responsabilidade tributária por dívida de terceiro).

E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1 só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto.”

Acompanha-se assim a decisão citada, concluindo no sentido de que o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC contem uma presunção “juris tantum”, ilidível.

 

1.2.          A ilisão, no caso concreto, por parte da Requerente, da presunção de propriedade dos veículos objecto de imposto

A Requerente pretende que as liquidações de IUC impugnadas sejam anuladas por vício de violação de lei, decorrente de se não se verificarem os pressupostos da incidência subjectiva do imposto.

No entender da Requerente, não se verificam os pressupostos de incidência subjectiva do imposto porque a Requerente não era, à data dos factos tributários, proprietária dos veículos sobre os quais incidiu o imposto.

E não era proprietária desses veículos por ter procedido à sua sua venda, em momento anterior ao facto gerador do imposto (parágrafo 12º da Petição Inicial).

O facto “venda do veículo” constitui, portanto, em relação a cada um dos 35 pedidos cumulados, a causa de pedir.

Cabe à Requerente provar os factos que constituem a causa de pedir, de acordo com o artigo 10º, n.º 2, al. d) do RJAT.

Ora, a Requerente junta, como prova dos factos alegados – venda dos veículos – facturas de venda dos seguintes veículos:

 

Veículo

Liquidações

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2013 …

…-…-…

2013 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2013 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2013 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2014 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2013 …

2014 …

…-…-…

2013 …

2014 …

 


Em relação aos restantes veículos, a Requerente junta documentos que, pelo seu descritivo, não podem considerar-se como facturas relativas a vendas.

Com efeito, dos restantes documentos constam os descritivos “PERC TOT CLIENTE”, e “RESCISÃO ANTECIPADA”.

Quanto aos veículos com as matrículas …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, e …-…-…, por conseguinte, os documentos juntos como prova não são de todo idóneos a provar os factos que constituem a causa de pedir, pelo que, em relação a estes não se pode considerar provada a compra e venda.

Quanto aos restantes veículos:

Sobre a questão da prova necessária à ilisão da presunção de propriedade, há que começar por trazer à equação a questão da presunção resultante do registo automóvel.

A propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório. E de acordo com o artigo 7.º do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel,[1] o registo da propriedade de um veículo origina presunção de que o titular do direito de propriedade é a entidade a favor de quem o mesmo direito se encontra registado.

Se é certo que a presunção do art.º 3º, n.º 1 do CIUC é estabelecida tendo em vista os fins da tributação, já a presunção estabelecida pela lei registal tem em vista a segurança jurídica em geral, não existindo nenhum fundamento para julgar que essa presunção não se aplica no âmbito de relações jurídicas tributárias.

Portanto, existindo uma presunção registal de propriedade a favor da Requerente, esta, a fim de afastar a sua qualificação como proprietária, tem de afastar a presunção que resulta do registo automóvel.

Como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-3-2011 (processo n.º 195/09.8TBPTS.L1-2), “o registo predial prossegue, a um tempo, fins de natureza privada e fins de natureza caracteristicamente pública. Prossegue fins de natureza privada, dado que garante a segurança no domínio dos direitos privados, especificamente no plano dos direitos com eficácia real – segurança do comércio jurídico (…), globalmente considerado – facilita o tráfico e o intercâmbio de bens, e assegura o cumprimento da função social dos direitos reais; prossegue finalidades de interesse público, enquanto instrumento da certeza do direito, da tutela de terceiros e da segurança do comércio jurídico, e de garante da atualização do registo face ao facto publicitado”.

 

Questão idêntica a esta foi decida pelo Tribunal Central Administrativo no recente acórdão já citado. Diz-se aí:

Nestes termos, refira-se que nos encontramos perante meros documentos particulares e unilaterais, cuja emissão não supõe a intervenção da contraparte no alegado acordo, assim tendo um reduzido valor para provar a existência de um contrato sinalagmático, como é a compra e venda”.

E mais adiante:

E recorde-se que qualquer dos documentos contabilísticos em causa não prova, sequer, o pagamento do preço pelo comprador. Tanto a factura como a nota de débito constituem documentos contabilísticos elaborados no seio da empresa e que se destinam ao exterior. A factura deve visualizar-se como o documento contabilístico através do qual o vendedor envia ao comprador as condições gerais da transacção realizada. Por sua vez, a nota de débito consiste no documento em que o emitente comunica ao destinatário que este lhe deve determinado montante pecuniário. Ambos os documentos surgem na fase de liquidação da importância a pagar pelo comprador, assim não fazendo prova do pagamento do preço pelo mesmo comprador e, por consequência, prova de que se concluiu a compra e venda”.

 

Concluindo o Tribunal:

Assim sendo, deve concluir-se que a sociedade recorrida nem sequer produziu prova relativa à alegada venda dos veículos, sendo que teria que provar que não era proprietária das viaturas à data a que dizem respeito as liquidações, o que implicaria, no caso concreto, provar quem era o actual proprietário.”

Sublinha-se da doutrina exposta o seguinte aspecto: o que a Requerente tem que provar, para afastar a sua qualificação como proprietária, não é que alienou um veículo, num dado momento, mas sim que não era proprietária do veículo no momento dos factos tributários, o que são factos jurídicos distintos. Estamos no domínio de prova por presunção plena, que não pode ser afastada por juízos de mera probabilidade.

A esta argumentação, com a qual concordamos por inteiro e perfilhamos, acrescenta-se apenas o seguinte. Sendo unanimemente aceite e até do senso comum que a factura ou qualquer documento particular e unilateral não é suficiente para provar a celebração de um contrato de compra e venda, quanto mais a propriedade ou não propriedade, a isto acresce que a ilisão da presunção da verdade registral é particularmente exigente.”

 

Sobre o assunto, diz Mouteira Guerreiro (Mouteira Guerreiro, J. A., Noções de Direito Registral, 2ª ed. Coimbra, 1994, p. 70): “A protecção conferida pelo registo traduz-se no nosso sistema, numa presunção elidível. Mas, não o podemos esquecer, trata-se de uma presunção legal. (…) O que o registo revela não pode ser impugnado, mesmo em juízo, sem que simultaneamente se peça o cancelamento”.

O mesmo autor (Ibidem, p. 71) acrescenta: “Decorre do princípio da presunção de verdade ou da exactidão a regra prevista no art.º 8º do CRP. Se o registo definitivo faz presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito “nos precisos termos em que o registo o define”, não faria sentido atacar judicialmente essa verdade publicitada, sem simultaneamente atacar o próprio registo. Por isso, quem pretender contestar a veracidade dos factos tabularmente consignados terá igualmente de pedir o cancelamento do registo. Se o não fizer, a acção não prosseguirá após os articulados, porque haveria o risco de chegar a uma efectiva contradição: por um lado, ter uma sentença declarando juridicamente irrelevantes ou inverídicos certos factos e, pelo outro, existir um registo a fazer presumir erga omnes a veracidade e validade desses mesmos factos”.

O entendimento exposto encontra-se sancionado pela jurisprudência dos tribunais superiores. Vejam-se os acórdãos anteriormente citados, nos quais se afirma que, para afastar a presunção de propriedade que decorre do Registo Automóvel, é necessário provar que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem, mas tal não bastando, sendo ainda necessário pedir-se, simultaneamente o respectivo cancelamento (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-01-2013, proc. n.º 3654/03.2TBLRA.C1; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3-06-2008, proc. n.º 245-B/2002.C1).

 

VI. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, este Tribunal decide julgar totalmente improcedente o presente pedido arbitral.

 

Valor da utilidade económica do processo: Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em 1649,22 euros.

Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em  306,00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.

Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 30 de Julho de 2015

 

O Árbitro

(Nina Aguiar)

 



[1] DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.