Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 691/2014-T
Data da decisão: 2015-09-14  IUC  
Valor do pedido: € 23.194,13
Tema: Incidência subjectiva, cumulação ilegal de pedidos
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       Decisão Arbitral

 

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo nº 691/2014-T

Tema: Imposto Único de Circulação, incidência subjectiva, cumulação ilegal de pedidos

 

Requerente: A… – …, S.A.

Requerida: AT - Autoridade Tributária e Aduaneira

 

I - RELATÓRIO

1.     Pedido

A… – …, S. A, contribuinte n.º …, com sede na Rua … …, …, … Porto, doravante designada por Requerente, apresentou, em 24-09-2014, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 2º e no art.º 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista a:

-         Anulação de 391 actos de liquidação de Imposto Único de Circulação referentes aos anos 2013 e 2014.

Para sustentar o seu pedido, a Requerente alega, em síntese:

1.1. Em geral

-       O objecto social da Requerente consiste no financiamento de aquisições a crédito de bens de consumo e equipamentos (locação financeira e crédito), bem como na actividade de Aluguer de Longa Duração (ALD) de veículos automóveis sem condutor, de motociclos e de barcos;

-       No âmbito da actividade que desenvolve, a Requerente celebra com os seus clientes contratos de aluguer de longa duração e contratos de locação financeira, em cujo termo o veículo é transmitido ao locatário, cujo objecto são viaturas automóveis e, bem assim, contratos de mútuo para aquisição de viaturas automóveis nos quais é estabelecida a seu favor uma cláusula de reserva de propriedade;

-       No termo dos contratos de locação financeira, via de regra, o locatário adquire o veículo por um valor residual;

-       A celebração de tais contratos consubstancia, nos termos do art. 5º do Código do Registo da Propriedade Automóvel, um facto sujeito a registo obrigatório;

-       Quanto aos veículos objecto das liquidações de IUC aqui em causa, os beneficiários dos respectivos contratos não sujeitaram a registo a sua condição de locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou mesmo de proprietários;

-       Tal omissão determinou que fosse a Requerente, em todos os casos aqui em causa, a constar do registo da propriedade automóvel como proprietária ou beneficiária de cláusula de reserva de propriedade, razão pelo qual lhe foram liquidados a si os respectivos Impostos Únicos de Circulação;

-       As referidas liquidações respeitam a imposto cujo facto tributário se verificou:

(i)              Em momento em que a ora Requerente era mera beneficiária de uma cláusula de reserva de propriedade estipulada no contrato de mútuo (é o que sucede com as viaturas identificadas no Quadro n.º 1 inserto na petição inicial e que aqui se dá por reproduzido); ou

(ii)            Em momento em que a Requerente já havia procedido à venda do veículo, por regra no termo de um contrato de locação financeira (é o que sucede com as viaturas identificadas no Quadro n.º 2 inserto na petição inicial e que aqui se dá por reproduzido); ou

(iii)          Na pendência de contratos de locação financeira (é o que sucede com as viaturas identificadas no Quadro n.º 3 inserto na petição inicial e que aqui se dá por reproduzido); ou

(iv)          Em momento que se havia verificado a perda total dos veículos em questão por sinistro a coberto de contrato de seguro (é o que sucede com as viaturas identificadas no Quadro n.º 4 inserto na petição inicial e que aqui se dá por reproduzido); ou

(v)            Relativamente a veículos que foram objecto de locação financeira que entraram em incumprimento, estando os processos em contencioso e não sendo, até à data, recuperados os referidos veículos (é o que sucede com as viaturas identificadas no Quadro n.º 5 inserto na petição inicial e que aqui se dá por reproduzido).

 

-       De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”

-       Estabelece ainda o n.º 2 da mesma norma que “São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”

-       Esta disposição deve ser interpretada seguindo os cânones legais que regem a interpretação de normas jurídicas, designadamente o artigo 9.º do Código Civil, havendo que ter em consideração que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”;

-       No artigo 1.º do Código do IUC o legislador estabeleceu o que denomina por princípio da equivalência, de acordo com o qual o imposto aqui em causa procura onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária, e impondo, no âmbito da tributação da circulação automóvel, a lógica do utilizador-pagador;

-       Deverá pois entender-se que o sujeito passivo do IUC é o proprietário do veículo apenas naqueles casos em que o adquirente não esteja onerado com cláusula de reserva de propriedade ou não existam outros titulares do direito de opção de compra por força de contrato de locação, pois nestes casos o imposto é devido por aquele que detém o direito de utilização exclusiva do veículo;

1.2. Quanto às liquidações de IUC sobre veículos com reserva de propriedade a favor da Requerente

-       Nos casos em que a aquisição dos veículos é feita com recurso a financiamento concedido pela Requerente aos respectivos adquirentes, é estabelecida uma cláusula de reserva de propriedade a favor desta, de modo que, assim, o adquirente contrata a compra do veículo com o fornecedor, sendo o preço pago pela Requerente, e a propriedade do veículo só se transmite para o mutuário no termo do contrato de mútuo;

-       A reserva de propriedade a favor da Requerente (mutuante nos contratos em questão) é constituída através de uma sub-rogação da mesma nos direitos do alienante do veículo;

-       A existência de reserva de propriedade sobre um bem determinado a favor da Requerente permite-lhe reservar para si o domínio da coisa (veículo) até ao cumprimento das obrigações que recaiam sobre o devedor (o mutuário) no âmbito do contrato em causa (mútuo). Porém, a posse da coisa passa imediatamente, e por força do contrato, para a esfera do adquirente, sendo este o seu utilizador exclusivo;

-       Reconhecendo este efeito, o legislador previu, no art.º, 3.º, n.º 2 do CIUC, a equiparação a proprietários, para efeitos da determinação da sujeição passiva de IUC, dos adquirentes com reserva de propriedade, o que leva a concluir que as referidas liquidações de imposto se encontram feridas de ilegalidade por erro nos pressupostos de direito, nomeadamente por erro quanto à identificação da Requerente como sujeito passivo do imposto em causa.

 

1.3. Das liquidações de IUC sobre veículos já alienados na data da verificação do respectivo facto gerador

-       A norma ínsita no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC, como decorre de jurisprudência arbitral firmada, consagra uma verdadeira presunção legal no âmbito da incidência subjectiva do imposto, susceptível de ilisão.

-       Na compra e venda, a transferência da propriedade dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”.

-       No que concerne à transmissão da propriedade de veículos automóveis, a lei não prevê qualquer forma legal específica pela qual a mesma deva operar-se, podendo o contrato respectivo ser verbal e sendo válidas as declarações negociais respectivas nos termos do artigo 219.º do Código Civil;

-       Não obstante, para efeitos fiscais, devem observar-se certas formalidades, maxime a emissão de factura que titule a venda, contemporaneamente à transmissão em causa, formalidades que a Requerente observou, pelo que devem considerar-se celebrados os contratos de transmissão da propriedade dos veículos aqui em causa na data de emissão das correspondentes facturas;

-       De resto, o facto de a alínea a) do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro (Registo da Propriedade Automóvel) sujeitar a registo público a transmissão do direito de propriedade sobre veículos automóveis não constitui qualquer excepção à regra de que a propriedade se transfere por mero efeito do contrato;

-       O registo não tem efeito constitutivo ou translativo da propriedade dos bens a ele sujeitos. O fim do registo é dar publicidade à situação jurídica dos bens em causa e, por outro lado, as inscrições definitivas no registo têm o valor de meras presunções quer quanto à natureza do direito inscrito, quer quanto à sua titularidade. Tendo as inscrições registrais a natureza de meras presunções legais, as mesmas podem ser ilididas mediante prova em contrário, nos termos do n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil.

-       a Autoridade  Tributária  encontra-se  subtraída  ao  conceito  de  terceiro relevante  para  efeitos no n.º 1 do artigo 5.º do Código do Registo Predial, pelo que não se verifica a excepção de inoponibilidade do registo a terceiros de boa-fé que aí se estabelece;

-       Como decorre das facturas juntas pela Requerente à petição inicial, à data do facto gerador do imposto aqui em causa, a propriedade dos veículos em questão havia já sido transmitida pela Requerente, pelo que o imposto liquidado é da exclusiva responsabilidade dos respectivos adquirentes, para os quais o direito de propriedade sobre as viaturas em causa se transmitiu, sendo estes os correspondentes sujeitos passivos;

 

1.4. Quanto às liquidações de IUC sobre veículos objecto de contratos de locação financeira celebrados pela Requerente

-       Nos casos em que, na data da verificação do facto gerador do Imposto, as viaturas se encontravam locadas ao abrigo de um contrato de locação financeira, não há igualmente qualquer dúvida de que são os respectivos locatários os sujeitos passivos do imposto, ainda que essa sua qualidade de locatários não tem sido sujeita a registo;

-       Nos casos previstos no n.º 2 do artigo 3.º do Código do IUC, só pode concluir-se que os pressupostos de incidência subjectiva do facto tributário se verificam apenas na esfera dos locatários e somente em relação a estes;

-       Assim, atento o valor do Registo Automóvel e a circunstância de as viaturas aqui em causa se encontrarem locadas na data da verificação do facto gerador do imposto, não é a Requerente o respectivo sujeito passivo.

 

1.5. Quanto às liquidações de IUC sobre veículos sinistrados ou definitivamente perdidos

-       Quanto aos veículos em relação aos quais se verificaram sinistros que resultaram na perda total do veículo, a Requerente, enquanto proprietária do veículo, habilitou a sua seguradora com os documentos necessários para comprovar a ocorrência do sinistro, e os respectivos efeitos, ocasião em que recebeu, ao abrigo do correspondente contrato, a indemnização devida;

-       A Requerente habilitou a seguradora com os documentos necessários para que requeresse, como lhe está cometido por força de lei (cf. n.º 8 do artigo 119.º do Código da Estrada), o cancelamento da correspondente matrícula;

-       Por este motivo, à data em que o imposto aqui em causa se tornou exigível já não se verificava o respectivo pressuposto da incidência objectiva;

 

1.6. Quanto às liquidações de IUC sobre veículos que foram objecto de locação financeira que entraram em incumprimento, estando os processos em contencioso e não sendo, até à data, recuperados os referidos veículos

-       No que diz respeito a este grupo de veículos, na data em que o imposto em causa se tornou exigível, o sujeito passivo do imposto é o locatário, por força do disposto no n.º 2 do artigo 3.º do Código do IUC.

 

2.     Resposta

Na sua Resposta, a Requerida AT – Autoridade Tributária e Aduaneira, além de impugnar as alegações de ilegalidade da Requerente, suscita as seguintes excepções:

           

(i)              Ilegalidade da cumulação de pedidos

-       Segundo a Requerida, a cumulação de pedidos é ilegal por não se encontrar verificado o requisito da “coincidência quanto às circunstâncias de facto”, requerida como condição para admissibilidade da cumulação de pedidos pelo artigo 3.º, n.º 1 do RJAT, pois estamos perante situações fácticas díspares consubstanciadas em: (i) veículos diferentes; (ii) com datas de transmissão diferentes; (iii) fundamentos de transmissão diferentes; (iv) fundamentos de tributação diferentes; e (v) proprietários diferentes.

 

(ii)            Ilegitimidade parcial da Requerente

-       Segundo a Requerida, as liquidações formalizadas nos documentos 4, 9 a 11, 13, 14, 16 a 19, 21 a 56, 61 a 75, 76, 82 a 85, 87 a 93 e 96 a 99 juntos à PI (e cujo teor aqui se dá por reproduzido) têm como sujeito passivo a sociedade B… – …, SA, e não a Requerente, pelo que é esta parte ilegítima para impugnar contenciosamente tais liquidações.

 

(iii)          Falta de objecto e incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria

-       Alega a Requerida que os actos correspondentes aos documentos 3, 4, 47 a 56, 60, 71 a 75 e 94 a 99 não são liquidações oficiosas, não sendo, portanto, actos da Administração Tributária.

-       Os documentos em apreço são meras notas de cobrança geradas pelo próprio sujeito passivo, as quais não consubstanciam actos tributários.

-       Não existindo, nos casos indicados, actos tributários, verifica-se quanto a esses casos uma situação de falta de objecto, a qual constitui uma excepção peremptória nos termos do disposto no artigo 577.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.

-       Não sendo as notas de cobrança em causa actos tributários mas meros actos em matéria tributária, o meio de reacção contra aqueles actos deverá ser a acção administrativa especial, pelo que o Tribunal Arbitral Singular constituído é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objecto do litígio sub judice no que tange a tais actos.

 

(iv)           Preterição de reclamação graciosa prévia

-       Caso não se entenda que os actos impugnados são meras notas de cobrança mas autoliquidações geradas pelos próprios sujeitos passivos no Portal das Finanças, então o presente pedido de pronúncia arbitral não poderá proceder.

-       Sendo que nos termos do artigo 16.º/2 do CIUC, «A liquidação do imposto é feita pelo próprio sujeito passivo através da internet, nas condições de registo e acesso às declarações electrónicas”, sendo obrigatória para as pessoas colectivas, e não tendo existindo liquidação oficiosa, a haver liquidação ela só poderia ser uma autoliquidação, cuja impugnação contenciosa requer reclamação prévia, nos termos do artigo 131.º, n.º1 do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT).

-       E assim sendo, as liquidações em causa estão também excluídas da jurisdição dos tribunais arbitrais formados sob o patrocínio do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), nos termos do artigo 2.º, n.º 1, al. a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Já por impugnação, a Requerida aduziu os seguintes argumentos, em síntese:

-       O legislador tributário, ao definir no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC, estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados;

-       O legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal;

-       O artigo 3.º do CIUC não contém qualquer presunção susceptível de ilisão;

-       Além disso, a presunção da propriedade automóvel decorre única, directa e exclusivamente do próprio regime registal automóvel, e não da legislação fiscal sobre automóveis que constitui um aspecto colateral àquele regime, pelo que a ilisão da presunção da propriedade automóvel necessariamente terá de ser dirigida ao próprio registo automóvel, e não contra o mero efeito fiscal que decorre da informação registal automóvel como, no fundo, acaba por querer fazer a Requerente;

-       Também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra igualmente que a solução propugnada pela Requerente é insustentável;

-       Da articulação entre o âmbito da incidência subjectiva do IUC e o facto constitutivo da correspondente obrigação de imposto decorre inequivocamente que só as situações jurídicas objecto de registo (sem prejuízo da permanência de um veículo em território nacional por período superior a 183 dias, previsto no n.º 2 do artigo 6.º) geram o nascimento da obrigação de imposto;

-       O elemento teleológico da interpretação aponta no mesmo sentido. A ratio do regime consagrado no CIUC constitui prova clara de que aquilo que o

-       Legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel;

-       A ser aceite a interpretação veiculada pela Requerente, então a mesma mostra-se contrária à Constituição, na medida em que tal interpretação se traduz na violação do princípio da confiança, do princípio da segurança jurídica, do princípio da eficiência do sistema tributário e do princípio da proporcionalidade.

Sem prescindir, quanto à ilisão das presunções resultantes do registo automóvel, a Requerida impugna nos seguintes termos:

(i)              Quanto às liquidações referentes a veículos vendidos com reserva de propriedade:

-       não se extrai da prova documental oferecida que tal reserva tenha sido constituída;

-       para que a Requerente pudesse usufruir do regime do artigo 3.º/2 do CIUC, seria  necessário  que  as  supostas  reservas  de  propriedade  tivessem  sido  levadas  a registo, o que não é demonstrado.

 

(ii)            Quanto às liquidações referentes a veículos alienados à data do facto gerador do imposto

-       as  pretensas  facturas  juntas como prova pela Requerente não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático   como  é  a  compra  e  venda,  pois  tais  documentos  não revelam  por  si  só  uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e. , a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes.

 

(iii)          Quanto às liquidações referentes a veículos objecto de locação financeira

-       Nem todos os documentos juntos mostram a existência de contratos de locação financeira;

-       Ainda que se concluísse estarmos perante contratos de locação financeira outorgados pela Requerente, sempre cabia a esta última demonstrar ter dado cumprimento à obrigação acessória imposta pelo artigo 19.º do CIUC, no qual se estabelece que «para efeitos do artigo 3.º do presente código (...), ficam as entidades que procedam à locação financeira, locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-geral dos Impostos os dados relativos à identificação dos utilizadores dos veículos locados;

-       A Requerente não fez nenhuma prova quanto ao cumprimento desta obrigação, como aliás lhe competia, pelo que necessariamente terá de improceder a pretendida ilisão do artigo 3.º aqui em causa;

 

(iv)           Quanto às liquidações referentes a veículos sinistrados ou definitivamente perdidos

-       O sinistro ou a perda total de veículos não determina, por si só, o fim da propriedade sobre o veículo sinistrado ou totalmente perdido;

-       o recebimento  de  uma  indemnização  pelo  sinistro  ou  pela perda por parte do segurado (in casu, a Requerente) não se traduz, sem mais, numa venda do  objecto segurado ou na transferência da propriedade do objecto segurado para a seguradora.

-       a Requerente não fez nenhuma prova sobre a pretensa transferência da propriedade dos automóveis  sinistrados  ou  totalmente  perdidos  a  favor  da(s)  seguradora(s)  quando  podia  e devia  tê-lo  feito.

 

(v)             Quanto às liquidações referentes a veículos objecto de locação financeira em face de incumprimento/contencioso

-       Os documentos juntos como prova não mostram estar-se perante contratos de locação financeira em todos os casos;

-       Nos casos em que se possa concluir estarmos perante contratos de locação financeira outorgados pela Requerente, sempre cabia a esta última demonstrar ter dado cumprimento à obrigação acessória imposta pelo artigo 19.º do CIUC, no qual se estabelece que «para efeitos do artigo 3.º do presente código (...), ficam as entidades que procedam à locação financeira, locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-geral dos Impostos os dados relativos à identificação dos utilizadores dos veículos locados;

-       Nenhuma prova fez a Requerente quanto ao cumprimento desta obrigação, como aliás lhe competia, pelo que necessariamente terá de improceder a pretendida ilisão do artigo 3.º aqui em causa.

 

3.     Pronúncia das Partes sobre as questões de natureza exceptiva

Em face do número e complexidade das questões de natureza exceptiva suscitadas pela Requerida na sua resposta, o Tribunal decidiu, ao abrigo do princípio da livre condução do processo estabelecido no artigo 19.º do RJAT, ouvir as partes sobre as mesmas, concedendo primeiro à Requerente um prazo para se pronunciar por escrito sobre essa matéria – o que esta fez em 5-6-2015 – e dando em seguida à Requerida a possibilidade de exercer o contraditório em relação à pronúncia da Requerente, o que aquela fez, também por escrito, em 8-6-2015.

3.1.          Pronúncia da Requerente

Na sua pronúncia, apresentada a 4-6-2015, a Requerente sustentou a improcedência das excepções suscitadas pela Requerida, nos seguintes termos:

(i)              Quanto à alegada ilegalidade da cumulação de pedidos

-       A celebração de contratos de longa duração e a transferência do gozo e posse para terceiros é a base principal e transversal a todas as liquidações impugnadas, uma vez que é essa a questão que obsta a que seja a Requerente o sujeito passivo do imposto em causa.

(ii)            Excepção de ilegitimidade parcial da Requerente

-       Em 7 de Dezembro de 2005, a Requerente incorporou, por fusão, a B… – …, S.A.

-       Com a incorporação da B… – …, S.A., e uma vez registada a fusão em 30 de Dezembro de 2005, aquela cessou a sua actividade para efeitos fiscais nessa mesma data, sucedendo-lhe a ora Requerente em todos os seus direitos e obrigações.

(iii)          Excepção de falta de objecto e incompetência do Tribunal Arbitral

-       O facto de algumas das notas de cobrança de IUC não corresponderem a liquidações oficiosas não justifica a falta de objecto ou a incompetência do tribunal arbitral;

-       Em primeiro lugar porque as notas de cobrança sempre acabariam por ser notificadas à Requerente;

-       Em segundo lugar porque a liquidação oficiosa só tem lugar quando se verifique uma falta ou aviso de liquidação por parte do sujeito passivo;

-       Foi a Requerida e não a Requerente quem determinou o sujeito passivo dos actos tributários em crise;

-       A nota de cobrança é um acto de liquidação para todos os efeitos legais, não se trata de autoliquidação alguma mas de um pagamento voluntário que não implica o recurso prévio a reclamação graciosa.

(iv)           Preterição de reclamação graciosa prévia

-       O artigo 131.º do CPPT prevê, no seu n.º 3, que “quando estiver exclusivamente em causa matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, não há lugar à reclamação necessária prevista no nº 1”.

-       O Supremo Tribunal Administrativo interpretou esta norma no sentido de que as duas condições aí referidas são disjuntivas, e não cumulativas, bastando verificar-se uma delas para que possa dispensar-se a reclamação graciosa.

-       Tendo em conta que em causa está a declaração de ilegalidade das liquidações de IUC, com fundamento na falta do pressuposto de incidência subjectiva, pode facilmente concluir-se que está em causa a discussão de matéria de direito.

3.2.          Pronúncia da Requerida

Em pronúncia apresentada em 16-6-2015, a Requerida reiterou o que já alegara na Resposta.

Acrescentou ser seu entendimento, contrariamente ao arguido pela Requerente, não estar em causa no caso vertente, unicamente, a discussão de matéria de direito, já que a questão da ilisão da alegada presunção contida no artigo 3.º do CIUC é uma questão de facto.

Como tal, nunca poderia a Requerente ter preterido, como preteriu, a reclamação graciosa prévia à impugnação contenciosa.

4.     Decisão interlocutória

Considerando que as excepções suscitadas, se procedentes, seriam passíveis de influenciar o desenrolar do processo, o Tribunal entendeu dever pronunciar-se sobre elas em decisão interlocutória.

Nesta conformidade, e dizendo algumas das excepções suscitadas respeito apenas a alguns dos pedidos cumulados, deveria ser apreciada em primeiro lugar a excepção de ilegalidade da cumulação de pedidos.

Em decisão interlocutória proferida em 14-7-2015, o Tribunal julgou procedente a excepção de ilegalidade da cumulação de pedidos.

Considerou-se existirem cinco diferentes fundamentações de facto para os 391 pedidos, correspondentes a cinco diferentes quadros factuais determinantes de outras tantas causas de pedir.

Em consequência, nos termos do artigo 47º, n.º 5 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (aplicável ex vi do art. 29º, n.º 1, al. c) do RJAT), o Tribunal convidou a Requerente a indicar, no prazo de 10 dias, quais os pedidos que pretendesse ver apreciados no processo, sob pena de, não o fazendo, haver lugar à absolvição da Requerida da instância quanto a todos os pedidos.

A decisão interlocutória conclui nos seguintes temos:

“A Requerente deve indicar os pedidos que pretende ver apreciados de acordo com a divisão que ela própria faz dos fundamentos de facto, ou seja deve indicar um dos seguintes grupos:

A)    Ser a Requerente mera beneficiária de uma cláusula de reserva estipulada em contrato de mútuo;

B)    Ter a Requerente procedido à venda do veículo;

C)    Pendência de contratos de locação financeira em relação a alguns dos veículos;

D)   Ter-se verificado a perda total dos veículos em questão;

E)    Terem os contratos de locação financeira sobre os veículos entrado em incumprimento, estando os processos em contencioso e não sendo, até à data, recuperados os referidos veículos. “

 

5.      Reacção da Requerente

Em requerimento dirigido ao Tribunal em 6.8.2015, a Requerente veio reiterar a sua posição quanto à questão da legalidade da cumulação de pedidos, alegando, em síntese:

-       As circunstâncias de facto e de direito em que assentam todos os pedidos residem na actividade quotidiana da Requerente, que, como é sabido, se dedica à locação de viaturas automóveis, nas mais diversas modalidades;

-       Com excepção, porventura, dos casos em que financia a aquisição directa das viaturas pelos seus clientes (casos em que estipula a seu favor uma cláusula de reserva de propriedade), a razão pela qual a Requerente não é sujeito passivo do imposto em causa resulta do facto de cada um dos veículos (pelas mais diversas razões e vicissitudes normais na sua actividade) se encontrar registado em seu nome ainda que o utilizador do veículo, e aquele sobre quem o legislador pretendeu fazer recair o encargo do imposto, ser uma entidade diversa;

-       A teoria de que as circunstâncias de facto e de direito em que a Requerente não é devedora do imposto são diferentes nos casos em que existe uma opção de compra a favor do locatário ou em que foi celebrado um contrato de locação financeira, ou nos casos em que o veículo é um salvado em que a companhia de seguros que o adquiriu o devia ter eliminado do registo ou em que, no final do contrato, o locatário adquiriu a viatura, não só é uma teoria altamente penalizadora dos direitos de defesa dos contribuintes (que, por esta ordem de razões, se vêem obrigados a multiplicar processos, taxas de justiça e honorários de advogados), como é um teoria ilegal e claramente violadora dos princípios da arbitragem tributária, muito distintos dos que vigoram no processo judicial tributário;

-       Quanto a este ultimo ponto, basta atentar na formulação legal dos requisitos da validade da cumulação de pedidos no RJAT e contrapô-la à do CPPT.

-       Com efeito, o art. 104º do CPPT determina que “Na impugnação judicial podem, nos termos legais, cumular-se pedidos e coligar-se os autores em caso de identidade da natureza dos tributos, dos fundamentos de facto e de direito invocados e do tribunal competente para a decisão;”

-       Já o art. 3º do RJAT prevê apenas que “A cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos e a coligação de autores são admissíveis quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito;”

-         É portanto evidente que o CPPT, à semelhança do processo civil, é muito mais exigente em matéria de cumulação de pedidos do que a arbitragem;

-       Ainda assim, é entendimento pacífico do STA que este preceito tem de ser interpretado com flexibilidade e tendo em conta o princípio de economia de meios;

-       A este respeito cita o Acórdão de 16.11.2011, o qual, ao considerar os argumentos invocados pela impugnante (nulidade das liquidações adicionais de IRS, invalidade das liquidações adicionais de IRS referentes aos anos de 2000 a 2005 e a caducidade do direito à liquidação do IRS referente aos anos de 2000 a 2003) conclui o seguinte: “Obstará, contudo, o artigo 104.º do CPPT a que, sendo invocados fundamentos de facto e de direito comuns a todas as liquidações impugnadas, se invoque em relação a algumas delas algum fundamento específico, no caso dos autos a caducidade do direito à liquidação? Não nos parece. A invocação de fundamentos de anulação específicos de alguma das liquidações impugnadas, a par de fundamentos comuns a todas elas, não obsta a que haja identidade de fundamentos de facto e de direito invocados e que se realizam os fins tidos em vista com a admissibilidade da cumulação de impugnações de atos tributários diversos – razões de economia de meios e de uniformidade de decisões, como já se disse.”

-       A identidade estrita de fundamentos de fato e de direito não é necessária na arbitragem tributária, apenas se exigindo que a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias e da aplicação dos mesmos princípios jurídicos, o que, justamente, é o que está em causa no presente processo,

-       Em que, como reiterada e repetidamente já se explicitou, se pretende que o tribunal conclua que a Requerente, enquanto instituição de crédito que financia a utilização e a aquisição de viaturas automóveis, não é sujeito passivo do IUC que incide sobre tais viaturas;

-       Entende a Requerente que não pode conformar-se com a decisão do tribunal e que não pode, consequentemente, praticar qualquer ato susceptível de indiciar que a ela aderiu.

A Requerente conclui declarando manter a formulação inicial dos pedidos, solicitando ao tribunal que, ao abrigo do princípio da livre condução do processo e da autonomia do julgador, reveja a sua decisão.

 

II. Saneamento

O Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído em 29-12-2014, tendo sido o Árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as despectivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n-º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD), e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e encontram-se regularmente representadas.

Não foram identificadas nulidades no processo.

 

III. Fundamentação

  1. Questões a decidir

São questões a decidir pelo Tribunal Arbitral:

A)   Quanto à matéria exceptiva:

-       A ilegalidade da cumulação de pedidos;

-       A ilegitimidade parcial da Requerente;

-       A falta de objecto e incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria;

-       A preterição de reclamação graciosa prévia;

 

B)    Quanto ao mérito da causa

-       A existência, no artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2 do CIUC, de presunções quanto à titularidade do direito de propriedade dos veículos e de outras posições jurídicas relativamente aos mesmos;

-       A ilisão, nos casos concretos, de tais presunções.

 

  1. Matéria de facto

São os seguintes os factos considerados provados com relevância para a decisão:

(i)              A Requerente foi notificada de trezentas e oitenta liquidações de IUC, referentes aos anos de 2013 e 2014;

(ii)            A Requerente emitiu facturas relativas a venda dos veículos …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-… e …-…-…;

(iii)          A Requerente emitiu cinco facturas relativas a venda de “equipamento locado”;

(iv)          A Requerente outorgou, na qualidade de locadora, um contrato de locação financeira do veículo com a matrícula …-…-…, com início a 8 de Junho de 2010 e com um período de duração de 97 meses.

Não existem outros factos provados com relevância para a causa.

 

  1. Excepções

Quanto à matéria de excepção, entende-se que deve começar-se pela que diz respeito à legalidade da cumulação de pedidos, uma vez que o juízo sobre a mesma poderá tornar inútil a apreciação de qualquer outra questão.

3.1.          Ilegalidade da cumulação de pedidos

O artigo 3.º, n.º1 do RJAT diz sobre esta matéria que «a cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos e a coligação de autores são admissíveis quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.”

A norma exige portanto dois requisitos cumulativos: o primeiro, que a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto; e o segundo, que a procedência dos pedidos dependa essencialmente da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.

Vejamos em primeiro lugar o que não deve entender-se por “mesmas circunstâncias de facto”.

Por “mesmas circunstâncias de facto” não deve, salvo melhor opinião, entender-se restritivamente e exactamente “os mesmos factos”. Segundo esta interpretação restritiva, poderia existir cumulação de pedidos apenas quando o mesmo facto – a venda do veículo X – estivesse em causa em relação a várias liquidações de imposto relativas a vários anos. Pensamos que não deve interpretar-se assim, desta forma restritiva, a norma em causa porque a expressão “circunstâncias de facto” não é equivalente a “factos”.

Para encontrar o preciso alcance da norma, é útil ter em conta a interpretação que doutrina tem feito do preceito que se refere à cumulação de pedidos no processo tributário. Dispõe sobre esta matéria o artigo 104.º do CPPT, nos termos do qual, “na impugnação judicial podem, nos termos legais, cumular-se pedidos e coligar-se os autores em caso de identidade da natureza dos tributos, dos fundamentos de facto e de direito invocados e do tribunal competente”.

Quanto à identidade dos fundamentos de facto, diz Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6ª ed., Vol. II, Áreas, Lisboa, 2011, p. 183 que “não é necessário para ser viável a cumulação e a coligação que haja uma identidade absoluta das situações fácticas, bastando que seja idêntica a questão jurídico-fiscal a apreciar.

Sobre a mesma questão, mas em comentário ao artigo 71.º (cumulação de pedidos na reclamação graciosa), o mesmo Autor reafirma que “não é necessária para a cumulação de pedidos uma identidade absoluta das situações fácticas, bastando que seja idêntica a questão jurídico-fiscal a apreciar”, acrescentando: “Para essa identidade, o que será necessário é que a questão jurídica a apreciar seja fundamentalmente a mesma e que a situação fáctica seja semelhante nos pontos que relevem para a decisão. Os factos serão essencialmente os mesmos quando forem comuns às pretensões de todos os autores, de forma a que se possa concluir que, se se provarem os alegados por um dos autores, existirá o suporte fáctico total ou parcialmente necessário para a procedência das pretensões de todos eles. Assim, por exemplo, um caso em que haja liquidação de contribuição autárquica relativa a um ano em que se considere sujeito passivo deste imposto um titular de direito de uso e habitação de um imóvel será idêntico, para efeitos de reclamação graciosa, a outro em que se trate de apreciar a mesma questão relativamente ao mesmo interessado quanto a outro prédio de que seja titular de idêntico direito, ou quanto a outro ano relativamente ao mesmo prédio.”

 Pode esta interpretação aplicar-se ao artigo 3.º, n.º 1 do RJAT? Nesta disposição fala-se em “mesmas circunstâncias de facto”, enquanto o preceito do CPPT fala em “fundamentos de facto”. Mas não pode deixar de se considerar que as circunstâncias de facto a que o artigo 3.º do RJAT se refere são as circunstâncias de facto que relevam para a causa de pedir, e apenas essas. Nessa medida, uma vez que as circunstâncias de facto que relevam para a causa de pedir são aquelas em que assenta a fundamentação de facto, as expressões são equivalentes. 

Portanto, o que deve relevar para a questão da admissibilidade da cumulação de pedidos no âmbito do RJAT não são quaisquer características dos factos alegados no pedido, mas apenas as características que têm conexão com a causa de pedir. Existirá, destarte, identidade das circunstâncias de facto quando as circunstâncias factuais sejam tão similares que a fundamentação de facto seja idêntica para todos os pedidos, de modo que a apreciação que o julgador tenha que fazer sobre a matéria de facto seja idêntica em todos eles.

Os exemplos dados por Lopes de Sousa na passagem transcrita ajustam-se a este critério, ao mesmo tempo que traduzem uma interpretação relativamente restrita do conceito de “identidade dos fundamentos de facto”. Nos dois casos sugeridos como exemplo, é idêntica, como diz o Autor, a questão jurídico-fiscal a apreciar: a questão de saber se a titularidade de um direito de uso e habitação determina a sujeição a imposto.

O citado Autor vai ainda mais longe, afirmando ser necessário que, ao provarem-se os factos que servem de base a um dos pedidos, fique provado o “suporte fáctico total ou parcialmente necessário para a procedência de todos eles.”

A interpretação que o Autor faz do preceito, através destes exemplos é, como se disse anteriormente, uma interpretação relativamente restrita, que se justifica pela própria ratio da norma, a qual reside na economia de meios e uniformidade de decisões (STA, acórdão de 16-11-2011, proc. n.º 0608/11). Ora, tal economia de meios e uniformidade de decisões só será realizada quando o julgador esteja perante diferentes pedidos para os quais valham os mesmos juízos quer sobre a matéria de facto quer sobre a matéria de direito. Por outras palavras, embora colocado perante uma multiplicidade de factos, o julgador tem que realizar os mesmos juízos para todos os factos.

Vejamos agora a situação nos presentes autos.

A Requerente alega que a possibilidade de cumulação de pedidos no domínio da arbitragem tributária é mais lata que no domínio do CPPT, mas não oferece qualquer argumento jurídico para basear esta sua alegação. Afirma que:

“A identidade estrita de fundamentos de facto e de direito não é necessária na arbitragem tributária, apenas se exigindo que a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação  das mesmas circunstâncias e  da  aplicação  dos  mesmos  princípios  jurídicos,  o  que, justamente, é  o que está em causa no presente processo, em que, como reiterada e repetidamente já se explicitou, se pretende que o tribunal conclua que a Requerente,  enquanto  instituição  de  crédito  que  financia  a  utilização  e  a  aquisição  de  viaturas automóveis, não é sujeito passivo do IUC que incide sobre tais viaturas.”

Analisemos o argumento.

 “A apreciação dos pedidos deve depender essencialmente das mesmas circunstâncias (de facto)”, diz a Requerente, e com razão, porquanto este é o teor do art.º 3.º, n.º 1 do RJAT. Mas quais são as circunstâncias de facto de cuja apreciação depende a procedência de todos os pedidos, de acordo com a Requerente?

Nas palavras da Requerente, essas circunstâncias seriam que “a Requerente, enquanto instituição de crédito que financia a utilização e a aquisição de viaturas automóveis, não é sujeito passivo do IUC que incide sobre tais viaturas”. Portanto, a Requerente pretende que o Tribunal conclua o seguinte: “a Requerente é uma instituição de crédito que financia a utilização e a aquisição de viaturas automóveis, logo, não é sujeito passivo do IUC que incide sobre tais viaturas, independentemente da situação jurídica dessas viaturas”!

Não são necessárias desenvolvidas elucubrações para concluir que a argumentação não tem um mínimo de consistência, pois o facto de a Requerente ser uma instituição de crédito que financia a utilização e a aquisição de viaturas automóveis não tem qualquer relevância para a determinação da sua qualidade como sujeito passivo do imposto, e muito menos poderia depender de tal circunstância a procedência do pedido.

Portanto, a Requerente, embora afirme que se verifica o requisito de a apreciação dos pedidos cumulados depender essencialmente das mesmas circunstâncias de facto, não identifica as circunstâncias de facto das quais depende a procedência dos pedidos e que são comuns a todos eles.

A Requerente alega, na sua primeira pronúncia sobre a matéria de excepção, remetida ao processo em 4-6-2015, que a “celebração de contratos de longa duração e a transferência do gozo e posse para terceiros é a base principal e transversal a todas as liquidações impugnadas, uma vez que é essa a questão que obsta a que seja a Requerente o sujeito passivo do imposto em causa”.

Como é sobejamente evidente, a asserção é inexacta, ie. a celebração de contratos de longa duração e a transferência do gozo e posse para terceiros não são a base principal e transversal a todas as liquidações impugnadas. A base principal e transversal a todas as liquidações impugnadas é a existência de um registo de propriedade dos veículos sujeitos a imposto em nome da Requerente.

A própria petição inicial estrutura a fundamentação de facto e de direito em cinco quadros factuais (factos jurídicos) distintos que são os seguintes:

-       Nos parágrafos 28º a 41º, a Requerente articula a fundamentação de facto referente às situações em que é beneficiária de uma cláusula de reserva estipulada em contrato de mútuo;

-       Nos parágrafos 42º a 67º, a Requerente expõe a fundamentação de facto referente às situações em que os veículos foram alienados;

-       Nos parágrafos 68º a 77º, a Requerente expõe a fundamentação de facto referente às situações em que está em vigor um contrato de locação financeira sobre os veículos;

-       Nos parágrafos 78º a 81º, a Requerente expõe a fundamentação de facto respeitante às situações de perda total dos veículos.

-       E finalmente, nos parágrafos 82º a 89º, a Requerente expõe a fundamentação de facto respeitante às situações de contratos de locação financeira que se encontram em incumprimento.

Nos cinco quadros factuais descritos, a procedência do pedido não depende, essencialmente, das mesmas circunstâncias de facto.

Vejamos.

Em relação às situações em que a Requerente alega ser beneficiária de uma reserva de propriedade, a procedência do pedido depende:

-       de se provar a existência de uma aquisição com reserva de propriedade para cada um dos veículos em causa (o que, refira-se de passagem, não se encontra provado em nenhum dos casos);

-       de se provar que a situação de aquisição com reserva de propriedade se mantinha, apesar de não se encontrar registada, à data dos factos tributários, para cada veículo;

-       de se discutir e esclarecer a relevância que a falta de comunicação da aquisição de propriedade à Requerida tem para efeitos de aplicação do artigo 3.º. n.º 1 do CIUC, questão que não se encontra ainda esclarecida pela jurisprudência ou pela doutrina;

-       Eventualmente, de se esclarecer se essa comunicação foi ou não efectuada;

Em relação às situações em que a Requerente alega ter procedido à alienação dos veículos, a procedência do pedido depende:

-       de se provar que a Requerente não é proprietária dos veículos, à data dos factos tributários, ao contrário do que resulta do registo automóvel;

-       de se discutir como pode e deve ser feita essa prova, à luz do valor probatório da presunção da inscrição registal;

Em relação às situações em que a Requerente alega estarem em vigor contratos de locação financeira, a procedência do pedido depende:

-        de se provar estarem em vigor contratos de locação financeira sobre os veículos em causa (o que apenas se prova, diga-se de passagem, em relação a um veículo);

-       Discutir a relevância que o não cumprimento da obrigação imposta aos locatários pelo artigo 19.º do CIUC tem sobre a incidência do imposto;

-       Eventualmente provar que a Requerente cumpriu a obrigação acessória imposta pelo artigo 19.º do CIUC.

Em relação às situações em que a Requerente alega ter ocorrido perda total dos veículos, a procedência do pedido depende:

-       De se provar a perda total dos veículos

-       De esclarecer de que modo esse facto afecta a incidência do imposto:

a)     se por via de uma alteração da incidência subjectiva, por translação desta para a companhia seguradora, o que implicaria provar a transferência da propriedade para esta;

b)     se por via do desaparecimento do objecto da incidência real do imposto, o que implicaria discutir a relevância da falta de regularização dessa situação em termos de registo;

Em relação às situações em que a Requerente alega a existência de contratos de locação financeira que se encontram em incumprimento:

-       Provar a existência de tais contratos;

-       Provar a pendência de tais litígios;

-       Determinar a situação jurídica dos veículos na pendência de tais litígios;

-       Determinar a relevância da situação jurídica dos veículos para a incidência do imposto.

Do que fica exposto, é forçoso concluir que a procedência dos 391 pedidos cumulados não depende, essencialmente, da apreciação das mesmas circunstâncias de facto, nem são as mesmas as questões jurídico-fiscais a apreciar. Não existe nenhuma questão jurídico-fiscal central comum a todos os pedidos.

Consideramos, pois, não se verificarem, no caso, as condições exigidas pelo artigo 3.º, n.º 1 do RJAT para a cumulação de pedidos, com a consequência de não ser admissível a cumulação de todos os pedidos formulados pela Requerente, facto que consubstancia uma excepção dilatória prevista no artigo 89º, al. g) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável ex vi do art. 29º, n.º 1, al. c) do RJAT, de conhecimento oficioso, que obsta ao conhecimento do mérito da causa (artigo 576.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 29º, n.º 1, al. e) do RJAT) e conduz à absolvição da Demandada da instância.

 

IV. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, julga-se legalmente inadmissível a cumulação de todos os pedidos formulados pela Requerente.

Tendo sido a Requerente convidada, por decisão arbitral interlocutória de 14-7-2015, nos termos do artigo 47º, n.º 5 do CPTA (aplicável ex vi do art. 29º, n.º 1, al. c) do RJAT), a indicar quais os pedidos que pretendesse ver apreciados no processo, e tendo a Requerente recusado expressamente essa possibilidade, absolve-se a Demandada AT- Administração Tributária e Aduaneira da instância em relação a todos os pedidos, em conformidade com o artigo 4.º, n.º 3 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável ex vi do artigo 29º, n.º 1, al. c) do RJAT,

Valor da utilidade económica do processo: Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em 23 194,13 euros.

Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 1 224,00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.

 

Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 14 de Setembro de 2015

 

 

O Árbitro

(Nina Aguiar)