Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 190/2015-T
Data da decisão: 2015-09-18  IUC  
Valor do pedido: € 14.295,48
Tema: IUC – Incidência subjetiva
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Decisão Arbitral

 

I.                   RELATÓRIO

 

A…, S.A., Requerente, com sede no …, Avenida …, lote …, … andar, em Lisboa, pessoa coletiva …, veio, nos termos do artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico de Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral singular, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante AT ou Requerida, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação dos actos tributários de liquidação de Imposto Único de Circulação infra identificados.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 18 de Março de 2015.

 

Nos termos do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 27 de Maio de 2015.

 

A AT respondeu, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.

 

Em face do teor da matéria contida nos autos, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e a realização de alegações finais.

 

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e estão representadas (artigo 4.º, e n.º 2 do artigo 10 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).

 

Nos termos do artigo 3.º do RJAT, tendo em conta o princípio da simplificação e da economia processuais, a cumulação de pedidos é admissível, considerando que a procedência dos pedidos depende da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios e regras de direito. A tal não obsta, o facto dos actos de liquidação sub judice dizerem respeito a diferentes veículos, com datas de transmissão diferentes, fundamentos de transmissão diferentes e proprietários diferentes, pois, que as circunstâncias de facto são idênticas, prendendo-se com a transmissão da propriedade de veículos.

Não ocorrem quaisquer nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento imediato do mérito da causa.

 

 

II.                MATÉRIA DE FACTO

Com base nos elementos que constam do processo e do processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

 

A)    A Requerente é uma instituição financeira de crédito sujeita à supervisão do Banco de Portugal, que prossegue a sua actividade no ramo do financiamento automóvel, designadamente sob a modalidade de concessão de empréstimos para a aquisição dos veículos ou da celebração de contratos de locação financeira;

B)    A Requerente foi notificada das notas de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) constantes da Tabela anexa à petição arbitral, no valor total de €14.295,48;

C)    A Requerente apresentou reclamação graciosa dos referidos actos de liquidação de IUC;

D)    A 2 de Janeiro de 2015, a Requerente foi notificada do despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada.

E)     A Requerente pagou as notas de liquidação de IUC identificadas.

 

A)    Os veículos identificados na tabela anexa à petição arbitral e nos documentos n.º 51 a 64 juntos pela Requerente, que constituem contratos de locação financeira fazem efectivamente supor a transferência da propriedade e uso dos veículos em causa.

O Tribunal não considerou provados os seguintes factos:

 

A)    Os veículos identificados na tabela anexa à petição arbitral e nos documentos n.º 1 a 50 juntos pela Requerente, que constituem facturas, foram transferidos pela Requerente a terceiros;

 

B)    Os veículos com a matrícula …-…-…, …-…-… e …-…-… identificados na tabela anexa à petição arbitral foram adquiridos pela Requerente posteriormente à data de vencimento do IUC.

Este tribunal firmou a sua convicção na consideração dos documentos juntos aos autos.

 

 

 

III.             MATÉRIA DE DIREITO

As principais questões que se colocam nos presentes autos prendem-se com saber se a Requerente deve ser qualificada como sujeito passivo do IUC, relativamente aos actos de liquidação de IUC já identificados, nas seguintes situações:

 

1.      Relativamente a veículos vendidos pela Requerente (identificados nas primeiras 73 situações descritas na tabela anexa à petição arbitral);

 

2.      Relativamente a veículos objecto de contratos de locação financeira celebrados pela Requerente (identificados nas 30 situações seguintes descritas na tabela anexa à petição arbitral);

 

3.      Quanto a veículos adquiridos pela Requerente posteriormente à data de vencimento do imposto (correspondentes às 8 últimas situações seguintes descritas na tabela anexa à petição arbitral).

 

A este propósito defende a Requerente, sinteticamente, o seguinte:

 

1.      A Requerente não é o sujeito passivo de IUC relativo às matrículas em questão em nenhum dos anos sobre os quais incidiram as liquidações oficiosas agora objecto de pedido de pronúncia arbitral;

 

2.      Em todos os casos abrangidos pelo presente pedido de pronúncia arbitral, o imposto liquidado respeita a veículos já vendidos pela Requerente, a veículos cujo contrato de leasing estava ainda vigente ou imposto que já tinha sido previamente pago, sendo que todos estes casos correspondem a motivos de exclusão de incidência subjectiva do imposto, não atendido pela Autoridade Tributária e Aduaneira em cada uma das liquidações ora objecto de pedido de pronúncia arbitral;

 

3.      As primeiras 73 situações identificadas na tabela anexa partilham a causa de pedir que se constitui no facto de o veículo associado à liquidação ter sido vendido pela Requerente anteriormente à data do vencimento do IUC;

 

4.      De acordo com o artigo 6.º, n.º 3 do Código do IUC, o imposto considera-se exigível ao proprietário (ou outros detentores do veículo equiparáveis) no primeiro dia do período de tributação do veículo, o qual, tem lugar na data em que a matrícula é atribuída;

 

5.      Desse modo, nos termos desse preceito, resulta que na data de vencimento do imposto, a Requerente já não era proprietária dos veículos em questão, pelo que o sujeito passivo deverá ser o novo proprietário de cada veículo, ou outro detentor equiparável.

 

6.      À luz do artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC, os veículos em causa foram vendidos pela Requerente previamente à verificação do facto gerador e consequente exigibilidade do imposto pelo que deve incidir subjectivamente sobre os novos proprietários dos veículos.

 

7.      As 30 situações seguintes, identificadas na tabela em anexo, reconduzem-se à mesma causa de pedir, i.e., o facto de o veículo associado à liquidação ter sido objecto de um contrato de leasing que se encontrava em vigor à data em que se gerou o facto tributável e a correspondente exigibilidade;

 

8.      O n.º 2 do artigo 3.º do Código do IUC acrescenta que “são equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”

 

9.      Cumpre concluir que, estando em curso nas situações assinaladas um contrato de locação financeira durante o período de tributação do veículo e, em particular, no momento em que se despoletaram os factos geradores do imposto, o sujeito passivo de imposto era exclusivamente o locatário financeiro, e não a Requerente;

 

10.  Em abono desta posição tem vindo a sedimentar-se a jurisprudência deste Tribunal Arbitral, como é possível extrair das decisões arbitrais no âmbito dos processos n.º 26/2013-T, de 19.07.2013, n.º 27/2013-T, de 10.09.2013 e n.º 14/2013-T, de 15.10.2013.

 

11.  As 8 últimas situações indicadas na tabela anexa referem-se a liquidações de IUC nas quais os veículos em questão foram adquiridos pela Requerente posteriormente à data de vencimento do imposto;

 

12.  De acordo com o artigo 6.º, n.º 3 do Código do IUC, o imposto considera-se exigível ao proprietário (ou outros detentores de veículos equiparáveis) no primeiro dia do período de tributação do veículo;

 

13.  Desse modo, nos termos desse preceito, resulta que na data de vencimento do imposto, a Requerente ainda não era proprietária dos veículos, pelo que o sujeito passivo deverá ser, em cada caso, o anterior proprietário, ou outro detentor equiparável existente em data anterior à venda, para efeitos do artigo 3.º, n.º 2 do Código do IUC;

Por sua vez a AT alega, em síntese, o seguinte:

 

1.      Não existe qualquer documento respeitante às liquidações de IUC dos veículos com as seguintes matrículas:

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-…-…

·         …-….-…

 

2.      A Requerente juntou também documentos que nada têm a ver com as liquidações em apreciação, como o sejam os relativos às matrículas:

·         …-…-…

·         …-…-…

 

4.      Por outro lado, são juntos contratos de locação financeira que não possuem qualquer data, seja de celebração, seja de início do contrato, ou da sua cessação, como os relativos aos veículos com as matrículas:

·         …-…-…

·         …-…-…

 

5.      Acresce, relativamente a todas as facturas identificadas como 2.ª vias, ser absolutamente relevante o já decidido na decisão arbitral de 30.07.2015, proferida no Processo n.º 79/2015-T CAAD, do mesmo Requerente, no que se refere à menção, constante de todas as facturas, da menção “válido após boa cobrança”, e que citamos:

“Alega a Requerente que, à data em que ocorreram os factos tributários já havia transmitido a propriedade das viaturas para terceiros adquirentes. Para prova disso junta as segundas vias de Faturas, nas quais se menciona a matrícula da viatura, o nº de Cliente, a identificação do destinatário. No descritivo cada documento tem uma menção distinta, por exemplo: no Doc. nº 1 a menção é de “valor residual”, já nos Docs. 3, 7 e 8 a menção é de “venda de bem em crédito”, cujo significado nos deixa muitas dúvidas que possa ter como subjacente uma transmissão de propriedade. Mas, já no doc. nº 5 no descritivo figura ”Perca total seguradora”, cujo sentido também nos suscita muitas dúvidas sobre o tipo de transação subjacente.”

6.      Por fim, no que tange ao valor ou força probatória das facturas juntas, e para além do já referido, levantam-se ainda dúvidas face às discrepâncias evidenciadas. Senão vejamos:

7.      As facturas juntas pela Requerente apresentam no seu descritivo menções distintas.

8.      Assim, em algumas facturas juntas pode-se ler no campo da descrição a menção “VENDA NÃO LOCADO”, “PERCA TOTAL SEGURADORA”, “VALOR RESIDUAL”, “RESCISÃO”, “VENDA DE BEM EM CRÉDITO”, e “VENDA.

 

9.      Ou seja, perante um suposto único tipo contratual (i.e., contrato de compra e venda de veículo automóvel) seria expectável constatar a existência de um descritivo uniforme, o que não se verifica no caso vertente, dado que diversas facturas juntas ao pedido de pronúncia arbitral incluem descritivos diferentes, pelo que forçosamente é-se levado a concluir pela existência de várias realidades distintas.

 

Face ao exposto, relativamente à posição das Partes e aos argumentos apresentados, para determinar se a Requerente deve ser qualificada como sujeito passivo do IUC, em relação aos veículos já identificados, será necessário verificar:

 

a)      Se a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC estabelece ou não uma presunção;

 

b)      Quem é o sujeito passivo de IUC, para efeitos do disposto o artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC quanto às seguintes situações descritas pela Requerente como relativas a:

 

1.      Veículos vendidos pela Requerente – documentos n.º 1 a 50

2.      Veículos objecto de contratos de locação financeira celebrados pela Requerente – documentos n.º 51 a 64;

3.      Veículos adquiridos pela Requerente posteriormente à data de vencimento do imposto.

 

Vejamos o que deve ser entendido.

 

a)      Interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC

 

Estabelece o artigo 3.º do Código do IUC o seguinte:

 

“1-São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”

 

Resulta do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) que a interpretação da lei fiscal deve ser efectuada atendendo aos princípios gerais de interpretação.

 

Os principais gerais de interpretação estão estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil (CC), nos seguintes termos:

 

 

“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

 
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.


3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

 

Estabelece-se, assim, que são três os elementos de interpretação da Lei, a saber: o elemento literal, o elemento histórico e racional e o elemento sistemático.

 

Atendendo ao elemento literal da norma aqui em discussão, importará, em primeiro lugar, reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei. Diz-se no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”

 

Tem sido defendido pela Administração Fiscal que a expressão “considerando-se” não constitui uma presunção legal, sendo intenção do legislador estabelecer expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários) as pessoas em nome das quais os mesmos (veículos) se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.

 

Sucede que, do ponto de vista literal, constata-se que a expressão “considerando-se” ou “considera-se” é muitas vezes utilizada com sentido equivalente à expressão “presumindo-se” ou “presume-se”.

 

Assim, a título exemplificativo, veja-se o artigo 191.º, n.º 6, do CPPT, entre outros artigos assinalados nas decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 14/2013-T, 27/2013-T, 73/2013-T ou 170/2013-T.

 

Deste modo, pode dizer-se que a expressão “considerando-se” tem “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, devendo reconhecer-se a tal vocábulo uma correspondência corrente e normal a esse sentido presuntivo (Vide decisão arbitral proferida, no âmbito do processo n.º 286/2013-T).

 

Atendendo ao elemento histórico de interpretação, importa considerar que a proposta de lei n.º 118/X, de 7.03.2007, subjacente à Lei n.º 22-A/2007, de 29.06 consagra “como elemento estruturante e unificador (…) o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os Requerentes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária.”

 

Neste contexto, parece-nos claro que o legislador pretendeu tributar o sujeito passivo real e efectivo causador de danos viários e ambientais e não um qualquer detentor de registo automóvel.

 

Tal como já foi por diversas vezes salientado em várias decisões arbitrais, o princípio da equivalência visa internalizar as externalidades ambientais negativas, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, e foi erigido em princípio fundamental da tributação dos veículos automóveis em circulação.

 

Como defende Sérgio Vasques, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, Coimbra, 2001, p. 122, “Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também”, acrescentando que a concretização do dito princípio “(…) dita outras exigências ainda no tocante à incidência subjectiva do imposto (…)”.

 

Tendo em conta os fundamentos subjacentes à criação do actual Código do IUC, em especial, a erupção do princípio da equivalência em princípio estruturante e unificador da tributação dos veículos em circulação, parece-nos que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC não pode ser interpretado como um comando fechado, mas antes como uma presunção ilidível, que tem por base a assunção de que na realidade o agente responsável pelos danos ambientais é, em regra, o proprietário registado do automóvel. Assunção essa que não poderá deixar de ser desconsiderada, caso na realidade seja outro o agente responsável, isto é, o sujeito passivo de IUC.

 

 

Do ponto de vista sistemático, importará reforçar novamente que logo no artigo 1.º do Código do IUC se estabelece que “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os Requerentes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.”

 

Como defende A. Brigas Afonso e Manuel T. Fernandes, in Imposto sobre Veículos e Imposto Único de Circulação, Códigos Anotados, pp. pag. 183, “o legislador procura legitimar a tributação dos veículos automóveis com base nas externalidades negativas por eles causadas (na saúde pública, no ambiente, na segurança rodoviária, no congestionamento das vias de comunicação e na paisagem urbana) desmistificando a ideia de que a tributação auto é muito elevada em Portugal.”

 

 

Segundo Batista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183, o elemento sistemático “compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda ao lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.”

 

Esta é, aliás, a solução mais justa se considerarmos que a unidade do sistema fiscal não pode deixar de ser encontrada no princípio da verdade material e no princípio da proporcionalidade (Vide Saldanha Sanches, in Princípios do Contencioso Tributário, pp. pág. 21, e Alberto Xavier, in Conceito e Natureza do Acto Tributário, pp. 147 e seg.).

 

Na verdade, a interpretação aqui defendida é não só aquela que melhor de coaduna com o princípio da verdade material, como também a única que serve os propósitos de justiça fiscal.

 

Considerando-se que o direito tributário existe para regular os conflitos de interesses entre as pretensões do Estado de prosseguir o interesse público de obter receitas e as pretensões dos contribuintes de manterem a integridade do seu património, não deverá, em regra, servir como critério interpretativo da norma tributária, a salvaguarda do interesse patrimonial ou financeiro do Estado.

 

Em suma: com base no artigo 9.º do CC, considera-se que todos os elementos de interpretação (literal, histórico e sistemático) apontam no sentido de que o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC estabelece uma presunção ilidível. Tal significa que os sujeitos passivos de IUC sendo, em princípio, os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas em nome dos quais os mesmos se encontrem registados, poderão, afinal, ser outros, se forem efectivamente outros os provocadores dos danos ambientais, enquanto utilizadores dos veículos em circulação.

 

b)      Sujeito passivo de IUC, para efeitos do disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Código do IUC relativamente às seguintes situações descritas pela Requerente:

 

                                                                            i.      Veículos vendidos pela Requerente – documentos n.º 1 a 50;

                                                                          ii.      Veículos objecto de contratos de locação financeira celebrados pela Requerente – documentos n.º 51 a 64;

                                                                        iii.      Veículos adquiridos pela Requerente posteriormente à data de vencimento do imposto.

 

Tendo em conta o exposto em a) supra, entende-se que a disposição em análise estabelece uma presunção de propriedade em favor das pessoas em nome de quem se encontrem registados os veículos.

 

Nos termos do artigo 73.º da LGT, “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.”

 

Como defendem Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, pp. pág. 652, 4.ª Edição, “o que se pretende “sempre” é tributar rendimentos reais e não inexistentes e é por esta razão, de se querer sempre tributar valores reais, que o artigo 73.º da LGT permite “sempre” ilidir presunções.

 

É esta a interpretação que está em sintonia, por um lado, com o princípio enunciado no artigo 11.º, n.º 3, da LGT de que, nos casos de dúvida sobre a interpretação das normas tributárias "deve atender-se à substância económica dos factos tributários” e, por outro lado, com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, que impõe que a tributação da generalidade dos contribuintes, sempre que possível, assente na realidade económica subjacente aos factos tributários e não se compagina com a existência de casos especiais de tributação com base em valores fictícios em situações em que é conhecido ou é apurável o valor real dos factos tributários.

                

Assim vejamos:                          

 

·         Veículos vendidos pela Requerente (identificados nas primeiras 73 situações descritas na tabela anexa à petição arbitral)

 

A Requerente manteve-se no registo como proprietária dos veículos identificados na lista anexa à petição arbitral, pretendendo, por isso, a AT imputar-lhe a responsabilidade pelo pagamento do IUC relativo aos anos 2009 a 2012, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC.

 

Alega, contudo, a Requerente que, na verdade, os veículos em questão foram vendidos anteriormente à data de vencimento do IUC.

 

Para provar tal transferência do direito de propriedade, a Requerente juntou apenas os documentos n.º 1 a 50, que são facturas de venda dos veículos.

 

Entende, contudo, o Tribunal que apenas com tais documentos, não ficou demonstrada a transferência de propriedade dos veículos, uma vez que não foram juntos quaisquer comprovativos de pagamento, declarações de venda ou outros documentos demonstrativos da transferência de propriedade.

 

Em consequência, com base nos documentos juntos, está o Tribunal convencido que quanto aos actos de liquidação de IUC identificados na lista anexa à petição arbitral, a responsabilidade pelo seu pagamento é imputável à Requerente.

 

·         Veículos objecto de contratos de locação financeira celebrados pela Requerente (identificados nas 30 situações seguintes descritas na tabela anexa à petição arbitral)

 

A Requerente manteve-se no registo como proprietária e locadora dos veículos referidos na Tabela junta com a petição arbitral, pretendendo, por isso, a AT imputar-lhe a responsabilidade pelo pagamento do IUC, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC.

Alega, contudo, a Requerente que, na verdade, as viaturas se encontravam locadas ao abrigo de contratos de locação financeira.

 

Para provar tal facto, a Requerente juntou os contratos de locação financeira correspondentes aos veículos em causa e documentação conexa (documentos n.º 51 a 64).

 

Com base nos documentos juntos, a Requerente defende que no momento da constituição do facto tributário relevante para efeitos de vencimento do respectivo IUC, isto é, nos anos 2009 a 2012, os pressupostos de incidência subjectiva do facto tributário se verificam apenas na esfera dos locatários e somente em relação a estes.

 

Analisados os documentos juntos, que constituem os contratos de locação financeira, constata o Tribunal que os veículos em causa, à data da verificação do facto tributário, eram objecto de contratos de locação financeira.

 

Em consequência, entende o Tribunal que tais contratos de locação financeira fazem supor a transferência da propriedade e uso dos veículos em causa.

 

 

Por isso, com base nos documentos juntos, está o Tribunal convencido que a responsabilidade pelo pagamento de IUC é imputável aos locatários e proprietários desses veículos e não à Requerente, como resulta do disposto no artigo 3.º, n.º 2 do Código do IUC, devendo ser anulados os actos de liquidação correspondentes aos veículos identificados nos documentos juntos com os n.º 51 a 64).

 

 

·         Quanto a veículos adquiridos pela Requerente posteriormente à data de vencimento do imposto (correspondentes às 8 últimas situações seguintes descritas na tabela anexa à petição arbitral

 

 

A Requerente alega a este propósito que as viaturas identificadas foram adquiridas, em regime de retoma, após a data de vencimento dos respectivos IUC´s.

 

Não obstante, a Requerente não junta qualquer documento para provar tais factos.

 

Em consequência, entende-se que se presume a propriedade dos veículos referidos pela Requerente.

 

 

IV.             DECISÃO

 

Assim, o Tribunal decide:

 

Julgar parcialmente procedente a petição arbitral, nos seguintes termos:

 

A)    Julgar procedente, por provado, o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência declarar ilegal e anular os seguintes actos de liquidação do Imposto Único de Circulação e de juros compensatórios, no valor total de €3.889,71:

 

1.    Acto de liquidação n.º 2011 …;

2.    Acto de liquidação n.º 2012 …;

3.    Acto de liquidação n.º 2009 …;

4.    Acto de liquidação n.º 2011 …;

5.    Acto de liquidação n.º 2012 …;

6.    Acto de liquidação n.º 2011 …;

7.    Acto de liquidação n.º 2012 …;

8.    Acto de liquidação n.º 2010 …;

9.    Acto de liquidação n.º 2009 …;

10. Acto de liquidação n.º 2009 …;

11. Acto de liquidação n.º 2010 …;

12. Acto de liquidação n.º 2011 …;

13. Acto de liquidação n.º 2009 …;

14. Acto de liquidação n.º 2010 …;

15. Acto de liquidação n.º 2011 …;

16. Acto de liquidação n.º 2012 …;

17. Acto de liquidação n.º 2010 …;

18. Acto de liquidação n.º 2011 …;

19. Acto de liquidação n.º 2012 …;

20. Acto de liquidação n.º 2010 …;

21. Acto de liquidação n.º 2011 …,

22. Acto de liquidação n.º 2012 …;

23. Acto de liquidação n.º 2009 …;

24. Acto de liquidação n.º 2010 …;

25. Acto de liquidação n.º 2011 …;

26. Acto de liquidação n.º 2009 …;

27. Acto de liquidação n.º 2010 …;

28. Acto de liquidação n.º 2011 …;

29. Acto de liquidação n.º 2012 …;

30. Acto de liquidação n.º 2009 ….

 

B)    Julgar improcedente, por não provado o pedido relativamente aos restantes actos de liquidação de IUC.

 

C)    Julgar improcedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, conquanto, relativamente aos actos de liquidação ilegais, nada se apurou quer quanto ao registo dos contratos de locação financeira, quer quanto ao cumprimento pela Requerente da obrigação que lhe assistia, por força do artigo 19.º do Código do IUC.

 

 

V.                VALOR DO PROCESSO

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, 97.º-A do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária o valor do pedido é fixado em €14.295,48.

 

VI.             CUSTAS

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €918,00, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerente e da Requerida, na proporção de 73% e 27%, respectivamente, de acordo com o artigo 22.º, n.º 4 do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 18 de Setembro de 2015

 

A Árbitro

Magda Feliciano

 

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)