Decisão Arbitral
I. - RELATÓRIO
A - PARTES
A..., LDA, contribuinte fiscal n.º …, com sede na Avenida …, n.º …, …-… Lisboa, doravante designada por “Requerente”, apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado por “RJAT”), tendo em vista a apreciação da seguinte demanda que o opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira (que sucedeu, entre outras, à Direcção-Geral dos Impostos) a seguir designada por “Requerida” ou “AT”.
B - PEDIDO
1 - O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 26 de Novembro de 2014 e notificado à AT em 28 de Novembro de 2014.
2 - A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o signatário, em 15-01-2015, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa como árbitro de Tribunal Arbitral Singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
3 - As Partes foram, em 15-01-2015, devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do nº 1, do artigo 11.º e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
4 - Nestas circunstâncias, em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 02-02-2015.
5 - No dia 07 de Julho de 2015, o Tribunal Arbitral considerou dispensada a realização da reunião prevista no art.º 18.º do RJAT, tendo em conta, quer os despachos a este propósito exarados no SGP, quer a circunstância do litígio respeitar, fundamentalmente, a matéria de direito, quer a vontade das partes em dispensar a dita reunião.
6 - A ora Requerente pretende que o presente Tribunal Arbitral:
a) - Declare a ilegalidade e consequente anulação, quer dos actos de liquidação relativos ao Imposto Único de Circulação (de ora em diante designado por IUC), quer dos actos de liquidação dos juros compensatórios que lhe estão associados, inscritos nas notificações de liquidações referenciadas no processo, referentes aos anos de 2013 e 2014, tal como identificados nos autos, respeitantes aos veículos, igualmente, identificados nos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos;
b) - Condene a AT ao reembolso da quantia de € 1.398,06, correspondente ao montante total pago a título de IUC e de juros compensatórios, referente aos anos e veículos atrás referenciados
c) - Condene a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento de juros indemnizatórios pelo pagamento do IUC e dos juros compensatórios, indevidamente liquidados e pagos;
C - CAUSA DE PEDIR
7 - A Requerente, na fundamentação do seu pedido de pronúncia arbitral, afirma, em resumo, o seguinte:
8 - Que é uma sociedade comercial que exerce a actividade de aluguer de veículos automóveis e a prestação de serviços conexos, procedendo, nesse quadro, à celebração de contratos de aluguer de veículos.
9 - Que, na vigência desses contratos de aluguer, aconteceu que alguns dos veículos obejcto de contrato, tal como estão identificados nos autos, foram sinistrados por via da ocorrência de acidentes, tendo, nessas circunstâncias, sido considerados pelas seguradoras como Perda Total.
10 - Que, relativamente a tais veículos, recebeu das Seguradoras as comunicações correlacionadas com os veículos em causa e com as correspondentes indemnizações pela sua Perda Total, altura em que procedeu à entrega, às Seguradoras, de toda a documentação legal tendo em vista o cancelamento das correspondentes matrículas.
11 - Que em 2014 foi notificada para exercer o direito de audição prévia, relativamente às liquidações de Imposto Único de Circulação (IUC) e de Juros Compensatórios (JC) referentes aos anos de 2013 e 2014, relativamente aos dezasseis veículos identificados nos autos.
12 - Que, após tal procedimento, foi notificada das atrás referidas liquidações, no valor global de €1.398,06, tendo, apesar de convicta da sua ilegalidade, procedido, oportunamente, ao pagamento do Imposto Único de Circulação e dos Juros Compensatórios liquidados.
13 - Que o fundamento das referidas liquidações reporta-se ao facto dos veículos em causa se encontrarem registados em seu nome, pelo que, face ao disposto no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, a AT considerou a Requerente como proprietária dos mencionados veículos e, como tal, sujeito passivo do correspondente IUC.
14 - Que o art.º 3.º do CIUC estabelece uma presunção legal ilidível, permitindo que a pessoa inscrita no registo como proprietária do veículo possa demonstrar que tal propriedade está inserida na esfera jurídica de outra pessoa, para quem tal propriedade foi transferida, deixando assim de ser sujeito passivo do imposto, sendo que, por outro lado, o facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo e que, nos termos do estabelecido no n.º 3 do art.º 6.º e n.º 2 do art.º 4.º, ambos do CIUC, o imposto considera-se exigível no primeiro dia do período de tributação, o qual corresponde ao ano que se inicia na data da matrícula ou em cada um dos seus aniversários.
15 - Que, aquando do facto gerador do imposto e da sua exigibilidade, com referência aos anos de 2013 e 2014 e aos veículos identificados nos autos, já não era proprietária de tais veículos.
16 - Que a presunção legal estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC é necessariamente ilidível, dado que as presunções consagradas nas normas tributárias admitem sempre prova em contrário, em conformidade com o disposto no art.º 73.º da LGT.
17 - Que a transmissão da propriedade dos veículos dá-se por mero efeito do contrato, nos termos dos art.ºs 408.º e 874.º do Código Civil, não sendo o registo da sua propriedade mais do que uma presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, que sendo ilidível admite prova em contrário.
18 - Que o n.º 1 do art.º 3.º do CIUC ao consagrar uma presunção juris tantum, permite que a pessoa que, no registo está inscrita como proprietária do veículo, possa apresentar elementos de prova destinados a demonstrar que tal propriedade está inscrita na esfera jurídica de outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida.
19 - Que a documentação apresentada, relativamente aos veículos em questão, evidencia que a transmissão da propriedade dos veículos ocorreu em momento anterior à data da verificação dos factos geradores do imposto, nos anos de 2013 e 2014.
D - RESPOSTA DA REQUERIDA
20 - A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira, (doravante designada por AT), apresentou a sua Resposta em 11-03-2015, bem como cópia do Processo Administrativo Tributário (PA).
21 - Na referida Resposta, a AT entende que as razões de facto e de direito invocadas pela Requerente não podem proceder, porquanto e desde logo,
22 - O legislador tributário ao determinar no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC quem são os sujeitos passivos do IUC, quis e estabeleceu expressa e intencionalmente que tais sujeitos fossem os proprietários, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
23 - Salienta que o legislador não usou a expressão “presume-se” como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”. (Cfr. art.º 14.º da Resposta)
24 - Considera que o entendimento de que o legislador consagrou uma presunção no art.º 3.º do CIUC, como entende a Requerente, seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem. (Cfr. art.º 21.º da Resposta)
25 - Entende que face à redacção do art.º 3.º, n.º 1 do CIUC não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, tratando-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que para efeitos do IUC, sejam considerados proprietários aqueles que, como tal, constem do registo.
26 - Refere que o mencionado entendimento já foi adoptado pela Jurisprudência dos nossos tribunais, transcrevendo, para tanto, parte da sentença do tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, proferida no Processo nº …/13.OBEPNF. (Cfr. art.º 25.º da Resposta)
27 - Referindo-se ao elemento sistemático de interpretação, a AT considera que a solução propugnada pela Requerente é inadmissível, na medida em que não tem qualquer apoio legal, nem no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC, nem noutras nomas consagradas no referido Código.
28 - Considera, igualmente, que à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrada em todo o Código do IUC, a interpretação propugnada pela Requerente, no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário efetivo independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada, na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo, tal como consta do registo automóvel. (Cfr. art.ºs 45.º e 46.º da Resposta)
29 - Acrescenta que o CIUC procedeu a uma reforma do regime de tributação dos veículos em Portugal, alterando de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando os sujeitos passivos do imposto a ser os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública. (Cfr. art.º 48.º da Resposta)
30 - A interpretação veiculada pela Requerente é, também, para além do que já foi referido, desconforme com a Constituição, designadamente porque entre outros, viola o princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que se traduz num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português de que, quer a Requerente, quer a Requerida fazem parte. (Cfr. n.º 61 da Resposta)
31 - Acrescenta que os documentos apresentados como prova pela Requerente, como prova de que os veículos não eram da propriedade à data dos fatos geradores do imposto, na medida em que visam dar-lhe conhecimento dos montantes indemnizatórios que lhe serão pagos pelas Seguradoras, não provam a alteração de propriedade dos veículos, não possuindo valor probatório para ilidir a presunção legal constante do registo.
32 - Refere não ter sido a Requerida quem deu azo ao pedido de pronúncia arbitral, mas sim a Requerente, devendo, consequentemente, ser a Requerente condenada nas custas arbitrais “nos termos do art.º 527.º/1 do Novo Código de Processo Civil ex vi do art.º 29.º/1-e) do RJAT”, salientando, também, não se encontrarem reunidos os pressupostos legais que permitam considerar ilegal a liquidação de juros indemnizatórios, cujo pedido foi formulado pela Requerente.
33 - Considera, a terminar, que, face à argumentação aduzida, o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente, mantendo-se, consequentemente, na ordem jurídica, os actos tributários de liquidação impugnados.
E - QUESTÕES DECIDENDAS
34 - Cumpre, pois, apreciar e decidir.
35 - Face ao exposto, relativamente às posições das Partes e aos argumentos apresentados, as principais questões a decidir são as de saber:
a) - Se a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção.
b) - Qual o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, particularmente para efeitos da incidência subjectiva deste imposto.
c) Se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado, embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário, para efeitos do disposto no artigo 3.º, nº. 1, do CIUC, sujeito passivo do IUC é o anterior proprietário ou o novo proprietário.
F - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
36 - O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
37 - As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).
38 - O processo não enferma de vícios que o invalidem.
39 - Tendo em conta a informação inscrita no processo administrativo, e a prova documental junta aos autos, cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, tal como se fixa nos termos abaixo mencionados.
II - FUNDAMENTAÇÃO
G - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
40 - Em matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:
41 - A Requerente é uma sociedade comercial que exerce a actividade de aluguer de veículos automóveis e a prestação de serviços conexos, procedendo, nesse quadro, à celebração de contratos de aluguer de veículos.
42 - Na vigência dos contratos de aluguer, aconteceu que dezasseis veículos objecto desses contratos, tal como estão identificados nos autos, foram sinistrados, tendo, nessas circunstâncias, sido considerados pelas seguradoras como Perda Total.
43 - A Requerente foi notificada, em 2014, para exercer o direito de audição prévia, relativamente às liquidações de Imposto Único de Circulação (IUC) e de Juros Compensatórios (JC) referentes aos anos de 2013 e 2014, relativamente aos dezasseis veículos identificados nos autos.
44 - Após tal procedimento, foi notificada das atrás referidas liquidações, no valor global de €1.398,06, tendo procedido ao pagamento do Imposto Único de Circulação e dos Juros Compensatórios liquidados.
45 - Relativamente aos dezasseis veículos identificados nos autos, a Requerente recebeu das Seguradoras as comunicações correlacionadas com os veículos em causa e com as correspondentes indemnizações pela sua Perda Total, altura em que lhes remeteu toda a documentação legal desses veículos, tendo em vista o cancelamento das correspondentes matrículas.
46 - O fundamento das referidas liquidações reporta-se ao facto dos dezasseis veículos em causa se encontrarem registados em nome da Requerente, pelo que, face ao disposto no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, a AT considerou a Requerente como proprietária dos mencionados veículos e, como tal, sujeito passivo do correspondente IUC.
47 - Aquando dos factos geradores do imposto e da sua exigibilidade, com referência aos anos de 2013 e 2014 e aos veículos identificados nos autos, a Requerente já não era proprietária desses veículos, tendo apresentado como prova, para esse efeito, os Documentos/Comunicações das empresas Seguradoras, correlacionadas com os veículos em causa e com as correspondentes indemnizações pela sua Perda Total.
FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
48- Os factos dados como provados estão baseados nos documentos mencionados, relativamente a cada um deles, na medida em que a sua adesão à realidade não foi questionada.
FACTOS NÃO PROVADOS
49 - Não existem factos dados como não provados, dado que todos os factos tidos como relevantes para a apreciação do pedido foram provados.
H - FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO
50 - A matéria de facto está fixada, importando agora proceder à sua subsunção jurídica e determinar o Direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões decidendas enunciadas no n.º 34.
51 - A questão decisiva nos presentes autos, relativamente à qual existem entendimentos absolutamente opostos entre a Requerente e a AT traduz-se em saber se a norma de incidência subjectiva constante do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC estabelece ou não uma presunção ilidível.
52 - As posições das partes são conhecidas. Com efeito, para a Requerente o art.º 3.º do CIUC, quando dispõe que são sujeitos passivos do IUC aqueles em nome dos quais os veículos se encontram registados, estabelece uma presunção legal ilidível, permitindo que a pessoa inscrita no registo como proprietária do veículo possa demonstrar que tal propriedade está inserida na esfera jurídica de outra pessoa, para quem tal propriedade foi transferida, a qual passará, assim, a ser sujeito passivo do imposto.
53 - A Requerida, por seu lado, considera que a interpretação defendida pela Requerente é manifestamente errada, na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo, tal como consta do registo automóvel, não sendo manifestamente possível entender que o art.º 3.º, n.º 1 do CIUC consagra uma presunção.
I - INTERPRETAÇÃO DA NORMA DE INCIDÊNCIA SUBJECTIVA CONSTANTE DO N.º 1 DO ARTIGO 3.º DO CIUC
54 - Importará notar, antes de mais, ser pacífico o entendimento, na doutrina, de que na interpretação das leis fiscais valem plenamente os princípios gerais de interpretação. Trata-se de um entendimento que tem, aliás, acolhimento no artigo 11.º da Lei Geral Tributária.
55 - É comummente aceite que, tendo em vista a apreensão do sentido da lei, a interpretação socorre-se de diversos meios, importando, em primeiro lugar, reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, o que significa, procurar, desde logo, o seu sentido literal. O referido sentido, como também é pacífico, corresponde ao grau mais baixo da actividade interpretativa, importando, por isso, valorá-lo e aferi-lo à luz de outros critérios, intervindo, a esse propósito, os designados elementos de natureza lógica, sejam de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica.
56 - A propósito da interpretação da lei fiscal, cabe lembrar, como, aliás, a jurisprudência vem assinalando, nomeadamente nos Acórdãos do STA de 05/09/2012 e de 06/02/2013, processos nºs 0314/12 e 01000/12, respectivamente, disponíveis em: www.dgsi.pt, a importância do disposto no artigo 9.º do Código Civil (CC), enquanto preceito fundamental da hermenêutica jurídica, que, neste quadro, não pode deixar de considerar-se.
57 - A actividade interpretativa não é, pois, contornável na resolução das dúvidas suscitadas pela aplicação das normas jurídicas em causa.
58 - No entender de FRANCESCO FERRARA, in Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de MANUEL DE ANDRADE, (2.ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, p. 131, a referida actividade interpretativa “[…] é única [e] complexa, de natureza lógica e prática, pois consiste em induzir de certas circunstâncias a vontade legislativa”, acrescentando, ibidem, p.130, que “Mirando à aplicação prática do direito, a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.
59 - A finalidade da interpretação, diz-nos também o referido autor, ibidem, pp. 134/135, é “[…] determinar o sentido objectivo da lei […]”. A lei, sendo a expressão da vontade do Estado, é uma “[…] vontade que persiste de modo autónomo, destacada do complexo dos pensamentos e das tendências que animaram as pessoas que contribuíram para a sua emanação”. Daí que a actividade do interprete deva ser a de “[…] buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objectivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris”.
60 - Para MANUEL DE ANDRADE, citando FERRARA, in Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, p. 16 (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, “A interpretação procura a voluntas legis, não a voluntas legislatoris […], e procura a vontade actual da lei, não a sua vontade no momento da aplicação: não se trata, pois, de uma vontade do passado, mas de uma vontade sempre presente enquanto a lei não cessa de vigorar. É dizer que a lei, uma vez formada, se destaca do legislador, ganhando consistência autónoma; e, mais do que isso, torna-se entidade viva, que não apenas corpo inanimado […]”.
DO ELEMENTO LITERAL
61 - É neste enquadramento que importará encontrar resposta para as questões decidendas, particularmente para a que visa saber se o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção, começando, desde logo, pelo elemento literal.
62 - Sendo o elemento literal o primeiro que importa utilizar, em busca do pensamento legislativo, é, necessariamente, por aí que se deverá começar, procurando alcançar o sentido da expressão considerando-se como tais as pessoas inscritas no referido artigo 3.º, n.º 1 do CIUC.
64 - Dispõe o n.º 1 do referido artigo 3.º do CIUC que “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.” (sublinhado nosso)
65 - A formulação usada no referido artigo, importará notá-lo, antes de mais, socorre-se da expressão “considerando-se”, o que suscita a questão de saber se, a tal expressão, pode ser atribuído um sentido presuntivo, equiparando-se, assim, à expressão “presumindo-se”. Trata-se de expressões frequentemente utilizadas com sentidos equivalentes, como é patente em diversas situações do ordenamento jurídico português.
66 - Na verdade, são imensas as normas que consagram presunções, conjugando, para o efeito, aliás, o verbo considerar de diversas formas. Não é, pois, difícil identificar situações, em diversas áreas do direito, em que se utiliza a expressão “considerando-se” ou “considera-se” com sentido equivalente à expressão “presumindo-se” ou “presume-se”, expressões a que, seja ao nível das presunções inilidíveis, seja no quadro das presunções ilidíveis, é conferido, imensas vezes, um significado equivalente.
67 - Não se afigurando pertinente voltar a referenciar exemplos reveladores dessas situações, dado que tais exemplos estão abundantemente enunciados nalgumas das decisões dos tribunais arbitrais tributários, de que são exemplo as proferidas no quadro dos Processos nºs 14/2013 - T, 27/2013 - T e 73/2013 - T, damos aqui os mesmos por inteiramente reproduzidos.
68 - Nestas circunstâncias, sendo as mencionadas expressões recorrentemente usadas com um propósito e significado equivalentes, pode concluir-se não ser apenas o uso do verbo “presumir” que nos coloca perante uma presunção, mas também o uso de outros termos podem servir de base a presunções, como, designadamente, ocorre com a expressão “considerando-se”, o que, em nosso entender, será justamente o que se verifica no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC.
Trata-se, assim, de um entendimento que, não se afigurando corresponder a uma enviesada leitura da letra da lei, como considera a AT, se revela em sintonia com o disposto no n.º 2 do art.º 9.º do CC, na medida em que assegura, ao pensamento legislativo, o mínimo de correspondência verbal aí exigido.
69 - Na perspectiva literal, face ao que se deixa exposto, dúvidas não há de que a interpretação que considera estabelecida uma presunção ilidível no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC tem total respaldo na formulação aí consagrada, face à mencionada equivalência entre a expressão “considerando-se como tais” e a expressão “presumindo-se como tais”.
O elemento linguístico, como atrás se referiu, sendo o primeiro que deve ser utilizado em busca do pensamento legislativo, deve, porém, a fim de se encontrar o verdadeiro sentido da norma, ser submetido ao controlo dos demais elementos de interpretação de natureza lógica. (sejam tais elementos de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica).
70 - Com efeito, como se retira da obra de MANUEL DE ANDRADE, atrás citada, p. 28, “[…] a análise puramente linguística dum texto legal é apenas o começo […], o primeiro grau […] ou o primeiro acto da interpretação. Por outras palavras, só nos fornece o provável pensamento e vontade legislativa […] ou, melhor, a delimitação gramatical da possível consistência da lei […], o quadro dentro do qual reside o seu verdadeiro conteúdo”.
71 - Assim sendo, vejamos, então o elemento racional (ou teleológico).
DO ELEMENTO HISTÓRICO E RACIONAL (OU TELEOLÓGICO)
72 - Atendendo aos elementos de interpretação de pendor histórico, cabe, desde logo, lembrar o que, expressamente, vem exarado na exposição de motivos da Proposta de Lei N.º 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei n.º 22-A/2007 de 29/06, quando aí se refere que a reforma da tributação automóvel é concretizada por via da deslocação de parte da carga fiscal do momento da aquisição dos veículos para a fase de circulação e visa “formar um todo coerente” que, embora destinado à angariação de receita pública, pretende que a mesma seja angariada na “medida dos custos ambientais que cada indivíduo provoca à comunidade”, acrescentando-se, a propósito do imposto em causa e dos diferentes tipos e categorias de veículos, que “como elemento estruturante e unificador […] consagra-se o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”.
73 - Neste quadro, parece claro que o sentido teleológico e racional do novo sistema de tributação automóvel só poderá conviver com um sujeito passivo do imposto, no pressuposto de ser esse, e não outro, o real e efectivo sujeito causador dos danos viários e ambientais, tal como decorre do princípio da equivalência, inscrito no art.º 1.º do CIUC.
74 - O referido princípio da equivalência, que informa o actual Imposto Único de Circulação, tem, ao menos na parte em que especificamente respeita ao ambiente, subjacente o princípio do poluidor - pagador, e concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar. O referido princípio tem, aliás, de algum modo, assento constitucional, na medida em que representa um corolário do disposto na alínea h) do n.º 2 do art.º 66.º da Constituição.
75 - O que se visa alcançar por via do referido princípio é internalizar as externalidades ambientais negativas, o que, afinal, no caso dos autos, mais não significa do que fazer com que os prejuízos que advêm para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus proprietários, enquanto sujeitos “económico - utilizadores”, como custos que só eles deverão suportar.
76 - Regressando ao mencionado princípio da equivalência, dir-se-á que o mesmo tem, na economia do CIUC, um papel absolutamente estruturante, nele se alicerçando o edifício normativo do Código em questão. O referido princípio constitui, pois, um fim legalmente consagrado que o intérprete não pode deixar de perseguir.
77 - Relativamente ao referido princípio, cabe notar o que nos diz Sérgio Vasques, quando, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, Coimbra, 2001, p. 122, a propósito da concretização técnica desse princípio considera que “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve corresponder ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública; ou ao custo que o contribuinte imputa à colectividade pela sua própria actividade”.
78 - Abordando especificamente o IUC, acrescenta o mencionado autor, op. cit., que ”Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também”, acrescentando que a concretização do dito princípio “[…] dita outras exigências ainda no tocante à incidência subjectiva do imposto […]”.
79 - Face ao que vem de referir-se, resulta claro que a tributação dos reais e efectivos poluidores corresponde a uma importante finalidade visada pela lei, no caso pelo CIUC, finalidade que, no dizer de Francesco Ferrara, in Interpretação e Aplicação das Leis, 2ª Edição, Arménio Amado, Editor, Sucessor, Coimbra, 1963, p. 130, deve estar sempre diante dos olhos do jurista, dado que, como o mencionado autor aí refere, “[…] a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.
80 - Assim, deve notar-se que, seja face aos referidos elementos históricos, seja à luz dos elementos de carácter racional ou teleológico de interpretação que se deixam referenciados, impõe-se, igualmente, concluir que o n.º 1 do art.º 3.º do CIUC só poderá consagrar uma presunção ilidível.
81 - Caberá ainda considerar o elemento sistemático de interpretação.
DO ELEMENTO SISTEMÁTICO
82 - Sobre o elemento sistemático diz-nos BAPTISTA MACHADO, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183, que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico”.
83 - É sabido que um princípio jurídico, no caso o princípio da equivalência, não existe isoladamente, antes está ligado por um nexo íntimo com outros princípios que integram, ao nível mais global, o respectivo ordenamento jurídico, no caso, com os demais princípios corporizados no sistema inscrito no CIUC. Nesse sentido, cada artigo de um dado diploma legal, no caso do CIUC, só será compreensível se o situarmos perante os demais artigos que o seguem ou antecedem.
84 - No que à sistematização do CIUC diz respeito, as preocupações de ordem ambiental foram determinantes para que o mencionado princípio da equivalência fosse, desde logo, inscrito no primeiro artigo do referido Código, o que, necessariamente conduz a que os artigos subsequentes, na medida em que têm assentamento em tal princípio, sejam por ele influenciados. Foi o que ocorreu, designadamente, com a base tributável, que passou a ser constituída por diversos elementos, particularmente pelos respeitantes aos níveis de poluição, e com as taxas do imposto, estabelecidas nos artigos 9.º a 15.º, que foram influenciadas pela componente ambiental, e, naturalmente, também com a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º do CIUC, que não poderá furtar-se à influência referida.
85 - O elemento sistemático de interpretação e a interacção entre os diversos artigos e princípios que integram o sistema inscrito no CIUC, apelam também ao entendimento de que o estabelecido no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC não pode deixar de consubstanciar uma presunção.
86 - Dispõe o n.º 1 do art.º 9.º do CC que a procura do pensamento legislativo deverá ter “[…] sobretudo em conta […] a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, circunstâncias e condições essas, que, hoje mais do que nunca, são de sensibilidade pelo ambiente e de respeito pelas questões com ele relacionadas.
Neste contexto, as considerações formuladas sobre os mencionados elementos de interpretação, sejam de carácter literal ou de pendor histórico, sejam de natureza racional ou sistemática, apontam no sentido de que o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, estabelece uma presunção, ou seja, a ratio legis dessa norma, enquanto razão ou fim que razoavelmente lhe deve ser atribuído, não pode deixar de perspectivar a expressão “considerando-se como tais”, utilizada no referido artigo, como reveladora do estabelecimento de uma presunção, o que significa que os sujeitos passivos do IUC sendo, em princípio, os proprietários dos veículos, considerando-se, como tais, as pessoas em nome dos quais os mesmos se encontrem registados, poderão, a final, ser outros.
Dir-se-á, aliás, que o estabelecimento da presunção na mencionada norma corresponderá à única interpretação que se coaduna com o princípio da equivalência, atrás mencionado.
87 - Ainda a propósito da presunção que vem sendo referida e que se entende estar consagrada no n.º 1 do art.º 3.º, do CIUC, cabe notar o que vem escrito no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 177/2014, de 15 de Dezembro, quando, referindo-se aos veículos automóveis, considera que “A não regularização do registo de propriedade apresenta graves consequências, quer para quem permaneceu proprietário no registo, quer para quem adquiriu e não promoveu o registo a seu favor, como também para as diversas entidades públicas que assentam as suas decisões sobre titularidades que presumem ser substantivamente verdadeiras”. (sublinhado nosso)
88 - Aqui chegados, cabe lembrar o disposto no art.º 73.º da LGT, quando estabelece que “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”, (sublinhado nosso), o que significa que a presunção legal, que se afigura estar estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, será necessariamente ilidível.
89 - Neste quadro, os sujeitos passivos do imposto são, presumivelmente, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, ou seja, os referidos sujeitos passivos são, em princípio, e apenas em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados.
90 - Com efeito, se o proprietário em nome do qual o veículo se encontra registado, vier, como ocorre no presente processo, indicar e provar quem eram os proprietários dos veículos em causa, nada justifica, em nosso entendimento, que o anterior proprietário seja responsabilizado pelo pagamento do IUC que for devido.
91 - Acresce, ser esta interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC a que, em nossa opinião, melhor se ajusta aos princípios a que a AT deve subordinar a sua actividade, nomeadamente ao princípio do inquisitório, em ordem à descoberta da verdade material.
92 - A propósito do referido princípio do inquisitório, cabe aludir aos ensinamentos de Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488/489, quando, em anotações ao citado art.º 58.º dessa Lei, referem que cabe à administração um papel dinâmico na recolha dos elementos com relevância para a decisão, acrescentando que a “[…] falta de diligências reputadas necessárias para a construção da base fáctica da decisão afectará esta não só na hipótese de serem obrigatórias (violação do princípio da igualdade), mas também se a materialidade dos factos considerados não estiver comprovada ou se faltarem, nessa base, factos relevantes, alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a Administração deveria ter colhido […]”.
O princípio do inquisitório, acrescentam os referidos autores, op. cit, “[…] tem a ver com os poderes (-deveres) de a Administração proceder às investigações necessárias ao conhecimento dos factos essenciais ou determinantes para a decisão […]”.
93 - A verdade material, consubstanciada, no presente caso, na circunstância da propriedade dos veículos, identificados no pedido de pronúncia arbitral, não serem propriedade da Requerente no momento da exigibilidade do imposto, ou seja, à data a partir da qual o credor tributário podia fazer valer, perante o devedor, o seu direito ao pagamento do imposto, era, face aos elementos constantes do processo, do conhecimento da AT.
J - DA AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE DO VEÍCULO E DO VALOR DO REGISTO
94 - Antes de mais, deve acrescentar-se, face ao que adiante, explicitamente, se dirá sobre o valor do registo, que os adquirentes dos veículos tornam-se proprietários desses mesmos veículos por via da transmissão da respectiva propriedade, com registo ou sem ele.
95 - São três os artigos do Código Civil que importa ter em conta, a propósito da aquisição da propriedade de um veículo automóvel. São eles, desde logo, o art.º 874.º, que estabelece a noção de contrato de compra e venda, como sendo “[…] o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”; o art.º 879.º, em cuja alínea a) se estatui, como efeitos essenciais do contrato de compra e venda, “a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito” e o art.º 408.º, que tem por epígrafe os contratos com eficácia real, e estabelece no seu n.º 1, que “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”. (sublinhado nosso)
Estamos, com efeito, no domínio dos contratos com eficácia real, o que significa que a sua celebração provoca a transmissão de direitos reais, no caso, veículos automóveis, determinada por mero efeito do contrato, como decorre expressamente da norma anteriormente mencionada.
96 - A propósito dos referidos contratos com eficácia real, cabe notar os ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela, quando, em anotações ao art.º 408.º do CC, nos dizem que “Destes contratos ditos reais (quoad effectum), por terem como efeito imediato a constituição, modificação ou extinção dum direito real (e não apenas as obrigações tendentes a esse resultado) distinguem-se os chamados contratos reais (quoad constitutionem), que exigem a entrega da coisa como elemento da sua formação (cfr. arts. 1129.º, 1142.º e 1185.º) ”.
Estamos, assim, perante contratos em que a propriedade da coisa vendida se transfere, sem mais, do vendedor para o comprador, tendo, como causa, o próprio contrato.
97 - Também da jurisprudência, designadamente do Acórdão do STJ n.º 03B4369 de 19/02/2004, disponível em: www.dgsi.pt, se retira que, face ao disposto no art.º 408.º, n.º 1, do C. Civil, "a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei". É o caso do contrato de compra e venda de veículo automóvel (art.ºs 874.° e 879.º al. a) do C. Civil), o qual não depende de qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal - conf. Ac do STJ de 3-3-98, in CJSTJ, 1998, ano VI, Tomo I, pág. 117”. (sublinhado nosso)
98 - Tendo o contrato de compra e venda, face ao que se deixa referido, natureza real, com as mencionadas consequências, há que considerar, também, o valor jurídico do registo automóvel objecto desse contrato, na medida em que a transação do referido bem está sujeita a registo público.
99 - Estabelece, com efeito, o n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, relativo ao registo de veículos automóveis, que “O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. (sublinhado nosso)
100 - Ficando claro, face à referida norma, qual a finalidade do registo, não há, porém, clareza, no âmbito do referido Decreto-lei, sobre o valor jurídico desse registo, importando considerar o artigo 29.º do mencionado diploma legal, relativo ao registo de propriedade automóvel, quando aí se dispõe que “São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, […]”. (sublinhado nosso)
101 - Neste quadro, para que possamos alcançar o procurado conhecimento sobre o valor jurídico do registo de propriedade automóvel, importa ter em conta o que se estabelece no Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 06 de Julho, quando dispõe no seu artigo 7.º que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define”. (sublinhado nosso)
102 - A conjugação do disposto nos artigos atrás mencionados, particularmente o estabelecido no n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e no art.º 7.º do Código do Registo Predial, permite considerar, por um lado, que a função fundamental do registo é a de dar publicidade à situação jurídica dos veículos, permitindo, por outro lado, presumir que o direito existe e que tal direito pertence ao titular a favor de quem o mesmo está registado, nos precisos termos em que está definido no registo.
103 - Assim, o registo definitivo mais não constitui do que a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos exactos termos do registo, mas presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo, a este propósito, ver-se, entre outros, os Acórdãos do STJ nºs 03B4369 e 07B4528, respectivamente, de 19/02/2004 e 29/01/2008, disponíveis em: www.dgsi.pt.
104 - A função legalmente reservada ao registo é, assim, por um lado, a de publicitar a situação jurídica dos bens, no caso, dos veículos e, por outro lado, permitir-nos presumir que existe o direito sobre esses veículos e que o mesmo pertence ao titular, como tal inscrito no registo, o que significa que o registo não tem uma natureza constitutiva do direito de propriedade, mas apenas declarativa, daí que o registo não constitua condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador.
105 - Assim, se os adquirentes dos veículos, enquanto seus “novos” proprietários, não promoverem, desde logo, o adequado registo do seu direito, presume-se, para efeitos do art.º 7.º do Código do Registo Predial e do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, que os veículos continuam a ser propriedade da pessoa que no registo se mantem seu proprietário, sendo essa pessoa o sujeito passivo do imposto, na certeza, porém, que tais presunções são ilidíveis, seja por força do estabelecido no n.º 2 do art.º 350.º do CC, seja à luz do disposto no art.º 73.º da LGT. Daí que, a partir do momento em que se afastem as presunções em causa, mediante prova da respectiva transmissão, a AT não poderá persistir em considerar como sujeito passivo do IUC o transmitente do veículo, que, no registo, continua a constar como seu proprietário.
L - DOS MEIOS DE PROVA APRESENTADOS
106 - Não sendo legalmente exigível a forma escrita para a transmissão da propriedade de veículos automóveis, a prova dessa transmissão poderá fazer-se por qualquer meio, nomeadamente por via testemunhal ou documental, nesta se incluindo, designadamente, as facturas-recibo relativas às vendas dos veículos.
107 - Como meio de prova de que os dezasseis veículos identificados nos autos não eram sua propriedade na data da exigibilidade do imposto, a Requerente juntou “Comunicações” das Seguradoras correlacionadas com os veículos em causa e com as correspondentes indemnizações pela sua Perda Total.
108 - Sobre as referidas “Comunicações” deve salientar-se que todas elas exibem idênticas informações, que se corporizam, nomeadamente, no seguinte: identificação do veículo; montante relativo ao valor do Salvado e ao valor da indemnização por Perda Total; identificação da empresa seguradora e da Requerente; IVA incidente sobre o valor do Salvado e identificação da factura relativa ao seu adquirente, bem como os dados da Requerente para a correspondente transferência bancária.
109 - As empresas de seguros, de harmonia com o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 94-B/98 de 17.04, «[…] são instituições financeiras que têm por objecto exclusivo o exercício da actividade de seguro directo e ou de resseguro, salvo naqueles ramos ou modalidades que se encontrem legalmente reservados a determinados tipos de seguradoras, podendo ainda exercer actividades conexas ou complementares de seguro ou resseguro, nomeadamente no que respeita a actos e contratos relativos a salvados […]»; (sublinhado nosso)
110 - A aquisição de salvados pelas empresas seguradoras e a sua subsequente alienação, normalmente a sucateiros, é uma actividade complementar das operações de seguro, como resulta da norma anteriormente mencionada, na medida em que o que está em causa é que no quadro de situações resultantes de sinistros, em que se verifique a Perda Total dos veículos, tais empresas são obrigadas a indemnizar os lesados, monetariamente, nos termos do contrato de seguro que com estes celebraram, quando o veículo é tido como não reparável, tomando, por outro lado, os veículos sinistrados e procedendo, posteriormente, à venda dos mesmos no estado em que os adquiriram.
111 - De facto, No quadro do Sistema Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, constante do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto, entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de Perda Total, como se dispõe no n.º 1 do art.º 41.º do referido diploma legal, quando a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, sempre que se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável.
112 - No caso dos autos foi o que aconteceu, na medida em que, por um lado, as Seguradoras após as correspondentes peritagens entenderam regularizar a situação dos veículos sinistrados como Perda Total e, por outro, tal como, designadamente, resulta da documentação junta aos autos, relativa à troca de informações/ofícios entre as Seguradoras e a Requerente, os Salvados em questão, por força do contrato de seguro automóvel, entraram na esfera patrimonial das empresas seguradoras, tendo a Requerente, enquanto lesada, sido indemnizada.
113 - A propósito do pagamento dos montantes inscritos nas “Comunicações” das Seguradoras, referentes aos veículos em causa, tendo em conta que os “veículos” não permaneceram na posse do seu proprietário, importa salientar que tais montantes são integrados por duas componentes, quais sejam: o valor do Salvado e o valor da indemnização pela Perda Total, o que não deixa dúvidas, sobre a transferência da titularidade dos Salvados da Requerente para as Empresas Seguradoras.
114 - As mencionadas “Comunicações” das Empresas Seguradoras, ou seja, da Companhia de Seguros Bonança, SA; da Companhia de Seguros Fidelidade, SA; da Companhia de Seguros Fidelidade - Mundial, SA; da Companhia de Seguros Tranquilidade; da Companhia de Seguros Allianz e da Ocidental Companhia de Seguros, SA, revelam que todos os factos ocorridos e que atrás se referem, designadamente a transferência da titularidade dos Salvados para as empresas seguradoras, ocorreram entre os anos de 2003 a 2012.
115 - Sobre os factos inscritos nas aludidas “Comunicações”, importa também notar que, face à presunção de veracidade que no n.º 1 do art.º 75.º da LGT lhes é conferida, caberia à AT, atento o disposto no art.º 75.º, n.º 2 da LGT, no quadro das fundadas e objectivas razões que tivesse, demonstrar que as informações inscritas nessas “Comunicações” não correspondem à realidade.
116 - Nestas circunstâncias, estando a AT a exigir o IUC referente aos anos de 2013 e 2014, e não sendo a Requerente nestes anos proprietária dos veículos em causa, considera-se que as mencionadas “Comunicações” das Empresas Seguradoras, conjugadas com as informações/ofícios constantes dos autos, são prova adequada e capaz para ilidir as presunções em causa nos autos, ou seja, a presunção estabelecida no art.º 7.º do Código do Registo Predial e a consagrada no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, o que significa que, na altura em que o imposto era exigível, em todos o casos, a Requerente não era sujeito passivo do IUC.
A propósito dos mencionados ofícios das Empresas Seguradoras para a Requerente, note-se que os mesmos, para além de, designadamente, referirem a identificação do veículo e a data em que ocorreu o acidente, referem igualmente a colocação à disposição da Requerente do montante resultante da indemnização, que é integrado pelo valor da Perda Total acrescido do valor do Salvado, o qual, de acordo com as garantias contratualmente estabelecidas, é referido como ficando na posse da seguradora.
M - REEMBOLSO DO MONTANTE PAGO E JUROS INDEMNIZATÓRIOS
117 - Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 24º do RJAT, e em conformidade com o que aí se estabelece, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - “Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.” (sublinhado nosso)
118 - Trata-se de comandos legais que se encontram em total sintonia com o disposto no art.º 100.º da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT, no qual se estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.” (sublinhado nosso)
119 - O caso constante nos presentes autos, suscita a manifesta aplicação das mencionadas normas, posto que na sequência da ilegalidade dos actos de liquidação, referenciados neste processo, terá, por força dessas normas, de haver lugar ao reembolso dos montantes pagos, quer a título de imposto, quer de juros compensatórios, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, montantes esses que no caso dos autos totalizam €1.398,06.
120 - Quanto aos juros indemnizatórios, afigura-se manifesto, que, face ao estabelecido no artigo 61.º do CPPT e preenchidos que estão os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no n.º 1 do art.º 43.º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de €1.398,06.
CONCLUSÃO
121 - No quadro circunstancial que se tem vindo a referir, a AT, ao praticar os actos de liquidação em causa no presente processo, fundados na ideia de que o artigo 3.º, nº.1, do CIUC não consagra uma presunção ilidível, faz errada interpretação e aplicação desta norma, cometendo um erro sobre os pressupostos de direito, o que constitui violação de lei.
122 - Por outro lado, porque a AT, à data da ocorrência dos factos tributários, entendeu que a Requerente era a proprietária dos veículos referenciados no presente processo, considerando-a, como tal, sujeito passivo do imposto, quando tal propriedade, relativamente aos veículos em questão, já não estava inscrita na sua esfera jurídica, baseando-se, assim, em matéria de facto divergente da efectiva realidade, comete um erro sobre os pressupostos de facto, e portanto de violação de lei.
III - DECISÃO
123 - Destarte, atento a todo o exposto, este Tribunal Arbitral decide:
- Julgar procedente, por provado, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de pronúncia arbitral no que concerne à anulação dos actos de liquidação de IUC, respeitantes aos veículos identificados nos autos, referentes aos anos de 2013 e 2014;
- Anular, consequentemente, os actos de liquidação de IUC, referentes aos anos de 2013 e 2014, respeitantes aos veículos atrás mencionados;
- Condenar a AT ao reembolso da quantia de € 1.398,06, referente ao IUC e aos juros compensatórios que foram pagos, respeitantes aos anos de 2013 e 2014, e ao pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde a data do pagamento da referida quantia, até ao integral reembolso da mesma;
- Condenar a AT a pagar as custas do presente processo.
VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, nº 2 do CPC (ex-315.º, nº 2) e 97.º - A, n.º 1 do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 1.398,06.
CUSTAS
De harmonia com o disposto no artigo 12.º, n.º 2, in fine, no art.º 22.º, nº 4, ambos do RJAT, e no art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I, que a este está anexa, fixa-se o montante das custas totais em € 306,00.
Notifique-se.
Lisboa, 28 de Julho de 2015
O Árbitro
António Correia Valente
(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (ex-138.º, n.º 5), aplicável por remissão do artigo 29.º n.º 1 alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)