Decisão Arbitral
I. RELATÓRIO:
A… (PORTUGAL), LDA., sociedade com sede em …, Edifício n.º … ….º-B, …-… …, titular do número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva …, doravante simplesmente designada Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante abreviadamente designado por RJAT), peticionando a declaração de ilegalidade dos actos de indeferimento das reclamações graciosas n.ºs … 2014 … e … 2014 … e consequente declaração de ilegalidade e anulação dos 61 (sessenta e um) actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) e juros compensatórios relativos aos anos de 2009 a 2013, referentes a 26 (vinte e seis) veículos automóveis, no valor global de € 10.234,98, bem como a condenação da AT na devolução à Requerente do imposto e juros compensatórios pagos, acrescido de juros indemnizatórios.
Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese:
a) A Requerente é uma sociedade que tem como actividade principal a concessão de financiamentos junto do público com vista à aquisição de veículos automóveis das marcas “A1” e “B”;
b) Para o efeito, a Requerente adquire aos concessionários que comercializam as referidas marcas os veículos que serão objecto dos contratos, entregando-os de seguida ao respectivo cliente, o qual assume a qualidade de locatário e utilizador do veículo;
c) No final de 2013, a Requerente foi notificada das liquidações oficiosas de IUC e juros compensatórios relativas aos anos de 2009 a 2013;
d) À data da verificação do facto gerador do imposto em causa nos presentes autos, a Requerente não era sujeito passivo de imposto, porquanto não tinha a utilização dos veículos em causa;
e) À data do facto gerador do imposto, a Requerente era entidade financiadora e locadora dos veículos com as matrículas …-…-…, …-…-… e …-….-…, não sendo proprietária dos dois últimos veículos - ainda que assim figurasse no registo -, dispondo apenas de reserva de propriedade sobre os mesmos, como garantia do cumprimento dos contratos celebrados;
f) À data do facto gerador do imposto, a Requerente era apenas entidade financiadora e locadora dos veículos com as matrículas …-…-…, …-…-… e …-…-…, não sendo sua proprietária;
g) À data do facto gerador do imposto, a propriedade dos veículos com as matrículas …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-… e …-…-…, já havia sido transmitida pela Requerente;
h) A AT procedeu às liquidações de IUC por ter considerado que a Requerente ainda constava como proprietária dos veículos no registo automóvel;
i) Nos termos do artigo 1.º do CIUC, “o imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”;
j) O n.º 1 do artigo 3.º do CIUC consagra uma mera presunção de que o proprietário do veículo – tal como consta do registo automóvel - será o seu utilizador;
k) Sempre que a propriedade jurídica do veículo não coincida com a respectiva propriedade económica, será o utilizador do veículo o sujeito passivo de IUC;
l) O registo da propriedade automóvel tem carácter meramente declarativo, visando apenas dar publicidade aos factos jurídicos;
m) A AT não se considera um terceiro para efeitos de registo;
A Requerente juntou 7 documentos, não tendo arrolado testemunhas.
No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº1 do RJAT, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa o signatário, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.
O tribunal arbitral foi constituído em 03 de Fevereiro de 2015.
Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, alegando, em síntese, o seguinte:
a) O legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que são sujeitos passivos do IUC os proprietários, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados;
b) O artigo 3.º do CIUC não estabelece qualquer presunção de propriedade, mas uma verdadeira ficção de propriedade – o legislador não diz que se presumem proprietários, antes que se consideram proprietários;
c) A falta de inscrição no registo das alterações de propriedade tem como consequência que a obrigação de pagamento do IUC recaia no proprietário inscrito, não podendo a AT liquidar o imposto com base em elementos que não constem do registo;
d) O IUC é devido pelas pessoas que constam no registo como proprietárias dos veículos;
e) Ainda que sobre os veículos em causa incidissem contratos de locação financeira, cabia à Requerente demonstrar ter dado cumprimento à obrigação acessória imposta no artigo 19.º do CIUC;
f) A factura não é apta a comprovar a celebração do contrato de compra e venda, por se tratar de um documento emitido unilateralmente;
g) A Requerente não juntou cópia do modelo oficial para registo da propriedade automóvel, nem fez prova do recebimento do preço em relação a nenhum dos veículos;
h) A apresentação do contrato de compra e venda também não é suficiente para abalar a fé pública em que assenta o registo;
i) A falta de cumprimento da obrigação de actualização dos registos faz impender sobre a Requerente a responsabilidade pelas custas arbitrais.
A Requerida juntou cópia do processo administrativo, não tendo arrolado nenhuma testemunha.
Na sequência da notificação para o efeito efectuada, a Requerente procedeu à junção aos autos dos contratos de locação financeira, de aluguer e renting e de crédito ao consumo respeitantes aos veículos aqui em causa, num total de 17 documentos.
Atenta a posição assumida pelas partes e não existindo necessidade da realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, foi a mesma dispensada, tendo as partes apresentado alegações escritas, nas quais mantiveram as posições inicialmente defendidas.
II. SANEAMENTO:
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas.
O processo não enferma de vícios que afectem a sua validade.
III. QUESTÕES A DECIDIR:
Atentas as posições assumidas pelas Partes, vertidas nos argumentos expendidos, cumpre:
a. Determinar se a norma de incidência subjectiva prevista no artigo 3º nº 1 do CIUC prevê uma presunção ilidível ou, ao invés, uma ficção legal, insusceptível, por isso, de ser ilidida mediante prova em contrário;
b. Apurar quem é sujeito passivo de IUC quando, na data da verificação do facto gerador do imposto, os veículos automóveis tenham sido objecto de locação financeira ou de qualquer outro contrato que confira opção de compra ou celebrado com reserva de propriedade;
c. Apurar qual o valor jurídico do registo automóvel em sede de IUC, maxime para efeitos da incidência subjectiva do imposto;
d. Determinar se a não actualização do registo automóvel permite considerar, como sujeitos passivos de IUC, as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados;
e. Apurar se os contratos juntos pela Requerente são ou não aptos a ilidir a presunção prevista no nº 2 do artigo 3º do CIUC;
f. Apurar se as facturas juntas pela Requerente são ou não aptas a provar a pretensa alienação dos veículos.
IV. MATÉRIA DE FACTO:
a. Factos provados
Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, deram-se como provados os seguintes factos:
1. A Requerente é uma sociedade que tem como actividade principal a concessão de financiamentos junto do público com vista à aquisição de veículos automóveis das marcas “A1” e “B”;
2. Para o efeito do previsto no número anterior, a Requerente adquire aos concessionários que comercializam as referidas marcas os veículos que serão objecto dos contratos, entregando-os de seguida ao respectivo cliente, o qual assume a qualidade de utilizador do veículo;
3. A Requerente foi notificada de 61 liquidações de IUC e juros compensatórios referentes aos veículos com as matrículas …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-… e …-…-…, relativos aos exercícios de 2009 a 2013, no valor global de € 10.234,99;
4. Nenhum dos vinte e seis veículos a que as liquidações ora postas em crise se referem pertence às categorias F ou G, a que alude o artigo 4.º do CIUC;
5. O veículo de matrícula …-…-… encontrava-se, à data do facto gerador do imposto respeitante ao exercício de 2009, dado em locação, não tendo sido concedida ao locatário qualquer opção de compra do veículo;
6. À data do facto gerador do imposto respeitante ao exercício de 2010, havia sido emitida pela Requerente uma factura de venda do veículo de matrícula …-…-..;
7. À data do facto gerador do imposto, o veículo de matrícula …-…-… encontrava-se dado em locação, não tendo sido concedida ao locatário qualquer opção de compra do veículo;
8. O veículo de matrícula …-…-… encontrava-se, à data do facto gerador do imposto respeitante ao exercício de 2009, em regime de locação financeira;
9. À data do facto gerador do imposto respeitante ao exercício de 2010, havia sido emitida pela Requerente uma factura de venda do veículo de matrícula …-…-…;
10. O veículo de matrícula …-…-… encontrava-se, à data do facto gerador do imposto respeitante ao exercício de 2010, em regime de locação financeira;
11. À data do facto gerador do imposto respeitante ao exercício de 2011, havia sido emitida pela Requerente uma factura de venda do veículo de matrícula …-…-…;
12. À data do facto gerador do imposto, encontrava-se em vigor um contrato de crédito ao consumo, prevendo-se expressamente a reserva de propriedade dos veículos de matrícula …-…-… e …-…-… a favor da Requerente;
13. Na data da ocorrência do facto gerador do imposto respeitante ao exercício de 2011, havia sido emitida pela Requerente uma factura de venda do veículo com a matrícula …-…-…;
14. Na data da ocorrência do facto gerador do imposto respeitante aos exercícios de 2010 e 2011, havia sido emitida pela Requerente uma factura de venda do veículo com a matrícula …-…-…;
15. Na data da ocorrência do facto gerador do imposto, havia sido emitida pela Requerente uma factura de venda dos veículos com as matrículas …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, ...-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-… e …-…-…;
16. A Requerente apresentou reclamação graciosa relativamente a todas as liquidações ora impugnadas;
17. Por ofícios datados de 20/08/2014 e 27/10/2014, a Requerente foi notificada das decisões de indeferimento das reclamações graciosas apresentadas;
18. O pedido de constituição do tribunal arbitral em matéria tributária e de pronúncia arbitral foi apresentado em 21/11/2014;
19. A Requerente pagou os impostos e os juros compensatórios liquidados pela Requerida e espelhados nas liquidações ora impugnadas.
b. Factos não provados
Com relevância para os autos, não resultou provado que, à data do facto gerador do imposto, a Requerente não fosse proprietária do veículo de …-…-….
c. Fundamentação da matéria de facto
A convicção acerca dos factos tidos como provados formou-se tendo por base a prova documental junta pela Requerente, indicada relativamente a cada um dos pontos, e cuja adesão à realidade não foi questionada, bem como a matéria alegada e não impugnada constante dos requerimentos juntos aos autos.
A convicção sobre os factos dados como não provados teve por base a total ausência de prova efectuada pela Requerente relativamente aos factos alegados.
V. DO DIREITO:
Fixada que está a matéria de facto, cumpre agora, por referência àquela, apurar o Direito aplicável.
Compulsados os argumentos expendidos pelas Partes, facilmente se compreende que a questão de fundo consiste em saber se a norma contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC contém ou não uma presunção legal.
Aquela questão sido abundantemente suscitada, originando profusa jurisprudência – também arbitral – que oportunamente aqui se trará; adianta-se, desde já, não se vislumbrarem motivos substanciais para inverter o que até aqui tem vindo a ser dito sobre a presente temática. Vejamos.
Como se sabe, sob a epígrafe incidência subjectiva, o artigo 3.º do CIUC dispõe que:
“1. – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2. – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.
Ora, dissipar as dúvidas sobre o sentido e o alcance a atribuir a determinada norma jurídica implica levar a cabo uma tarefa interpretativa que permita retirar do enunciado linguístico um concreto sentido ou “conteúdo de pensamento”([1]). Contudo, tal tarefa apenas se pode cumprir – assim se logrando apreender a vis ac potestas legis – através da utilização de um concreto método, que se estriba na interpretação literal, por um lado, e na interpretação lógica ou racional, por outro.
Recorde-se, antes de avançarmos, que de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária, as normas tributárias se interpretam de acordo com os princípios de hermenêutica jurídica comummente aceites, maxime os fixados, entre nós, no artigo 9.º do Código Civil. Prossigamos.
A interpretação literal apresenta-se, então, como o primeiro estádio da actividade interpretativa. Como refere FERRARA, “o texto da lei forma o substrato de que deve partir e em que deve repousar o intérprete”([2]).
Na verdade, uma vez que a lei se encontra expressa em palavras, deve, então, delas ser extraída a significância verbal que contêm, segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais. Porém, sendo as palavras empregues pelo Legislador equívocas ou indeterminadas, será forçoso recorrer à interpretação lógica, que atende ao espírito da disposição a interpretar.
A interpretação lógica, tal como vem sendo pacificamente figurada pela doutrina([3]), estriba-se no elemento racional, no elemento sistemático e no elemento histórico; ponderando-os e deles deduzindo o valor da norma jurídica em apreço.
Por elemento racional há-de entender-se a raison d´être da norma jurídica, i.e., a finalidade para a qual o legislador a instituiu. A descoberta da ratio legis apresenta-se, assim, como um factor de indubitável importância para a determinação do sentido da norma.
Sucede, porém, que uma determinada norma não existe isoladamente, antes convive com as demais normas e princípios jurídicos de forma sistemática e complexa. Assim, natural se torna que o sentido de uma concreta norma resulte claro da confrontação desta com as demais. Como refere BAPTISTA MACHADO, “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.”([4]).
Já o elemento histórico, por seu turno, há-de reportar-se e incluir os materiais conexos com a história da norma, tais como “a história evolutiva do instituto, da figura ou do regime jurídico em causa (…); as chamadas fontes da lei, ou seja os textos legais ou doutrinais que inspiraram o legislador na elaboração da lei (…); os trabalhos preparatórios.”.
Apliquemos o que se vem dizendo ao caso vertente.
Compulsados os argumentos de Requerente e Requerida, e no que tange ao elemento literal, facilmente se compreende que o foco de dissenso reside na expressão “(…) considerando-se como tais (…)”, contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC.
Pergunta-se – como de resto se fez na Decisão Arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 73/2013-T([5]): “O facto do legislador ter optado pelo vocábulo “considerando-se” destrói a possibilidade de estarmos perante uma presunção?”. Não. É a resposta que se impõe. E nem se venha dizer que tal conclusão vai infirmada pela circunstância de o legislador não ter utilizado o vocábulo “presumem-se”, que empregou no vetusto Regulamento do Imposto Sobre Veículos.
Também aqui não podemos deixar de acompanhar o que naquela decisão ficou dito: “examinando o ordenamento jurídico português, encontramos imensas normas que consagram presunções utilizando o verbo considerar, muitas das quais empregues no gerúndio (“considerando” ou mesmo “considerando-se”). São disso exemplos as normas a seguir enumeradas: No Código Civil, entre outras, os artigos 314.º, 369.º n.º 2, 374.º n.º 1, 376.º n.º 2, 1629.º (…). Também no ordenamento jurídico tributário se pode encontrar o verbo “considerar”, nomeadamente o termo “considera-se” com um sentido presuntivo. E ali se acrescenta o ensinamento de LEITE DE CAMPOS, SILVA RODRIGUES e LOPES DE SOUSA que, pela clareza de exposição, igualmente se transcreve. Assim, escrevem os Autores que “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, revelada pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”.
A este propósito, JORGE LOPES DE SOUSA([6]) refere que no n.º 1 do artigo 40.º do Código do IRS se utiliza a expressão “presume-se”, ao passo que no n.º 2 do artigo 46.º do mesmo diploma se faz uso do vocábulo “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal.
E que dizer do n.º 4 do artigo 89.º-A? Acaso dúvidas subsistem de que se trata de uma presunção? E tal conclusão sai fragilizada pelo facto de ali se empregar o verbo considerar? Não nos parece.
Assim, e ao que aqui nos interessa, revela-se admissível assimilar o verbo considerar ao verbo presumir. Com efeito, podemos estar perante uma presunção mesmo quando o legislador haja optado por outros verbos, nomeadamente pelo considerar. Na verdade, e ao invés do propugnado pela Requerida, é esta a conclusão que menos belisca a coerência sistemática postulada pelo ordenamento jurídico como um todo.
Mas mais: também o elemento racional autoriza semelhante conclusão.
Convoquemos a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 118/X, de 07/03/2007, que originou a Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho. Resulta clara a ratio legis.
Pretendeu-se empreender uma “reforma global e coerente dos impostos ligados à aquisição e propriedade dos veículos automóveis” em função da “necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.
Assim, “os dois novos impostos que agora se criam, o imposto sobre veículos e o imposto único de circulação, constituem muito mais do que o prolongamento técnico das figuras criadas nos anos 70 e 80 que os antecederam, voltadas predominantemente para a angariação da receita, indiferentes ao custo social resultante da circulação automóvel. Constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade.”
De forma congruente àquela motivação, o legislador veio a consagrar, no artigo 1.º do CIUC, o princípio da equivalência, ficando claro “que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária. É este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate”.
Pode, aliás, dizer-se que as preocupações ambientais e energéticas são tão impressivas em sede de IUC, que o princípio da equivalência molda não apenas a base tributável, mas também, e sobretudo, a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º.
Uma vez mais se convoca a Decisão Arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 73/2013-T: “Tendo em conta quer o lugar sistemático que o princípio da equivalência ocupa (artigo 1.º do CIUC) – elemento sistemático – quer o elemento histórico corporizado pela Proposta de Lei n.º 118/X (fonte de lei), quer o racional (ou teleológico) acabado de analisar, todos apontam no sentido da conclusão preliminar a que chegámos aquando da análise do elemento gramatical, só fazendo sentido conceber no contexto do artigo 3.º do CIUC a expressão “considerando-se como tais” como reveladora da presença de uma presunção ilidível (…). Na verdade, a ratio legis do imposto antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o proprietário económico, no dizer de DIOGO LEITE DE CAMPOS, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade”.
Assente que fica a natureza jurídica da norma contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, cumpre agora clarificar a questão da incidência subjectiva do imposto quando os veículos tenham sido objecto de locação financeira ou de qualquer outro contrato que confira opção de compra ou celebrado com reserva de propriedade.
Antes, porém, e para melhor dilucidar a questão que ora nos ocupa, deve sublinhar-se que, na vigência de um contrato de locação financeira ou de qualquer outro contrato que confira a opção de compra ou celebrado com reserva de propriedade, não obstante o sujeito activo do mesmo mantenha na sua esfera jurídica a propriedade do bem, apenas ao sujeito passivo do contrato assiste o direito de gozar, de forma exclusiva, o bem, o que resulta da leitura conjugada do artigo 1.º, da alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º, todos do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho.
Ora, uma vez que é ao sujeito passivo destes contratos que assiste o potencial de utilização do veículo, e atento o princípio informador do IUC – consagrado no artigo 1.º do respectivo Código –, facilmente se compreende que seja o sujeito passivo do contrato o onerado com a obrigação de pagamento de imposto por via da sua qualificação como sujeito passivo de imposto, através da sua equiparação a proprietário. É este, ao que ora nos importa, o sentido a retirar dos n.º 1 e 2 do artigo 3.º do CIUC.
Em face do que antecede e à luz do disposto no n.º 2 do artigo 3.º do CIUC, dúvidas não subsistem: se à data da verificação do facto gerador do imposto vigorar um contrato de locação financeira ou qualquer outro contrato que confira opção de compra ou celebrado com reserva de propriedade, cujo objecto seja um veículo automóvel, o sujeito passivo do imposto é o sujeito passivo desse contrato; nunca o sujeito activo.
E que dizer se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo automóvel objecto do contrato de locação financeira ou de qualquer outro contrato que confira opção de compra ou celebrado com reserva de propriedade houver sido alienado?
Há que dizer, a título prévio, que a venda ao sujeito passivo destes contratos é uma situação que sucede amiúde na economia deste tipo de contratos, como aliás também sucede nos presentes autos.
Ora, sendo a compra e venda celebrada, o sujeito passivo destes contratos será instituído, ex contratu, na posição de proprietário, consequentemente passando a ser-lhe aplicável o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC; i.e., o novo proprietário mantém, para efeitos de IUC, a posição de sujeito passivo do imposto, mas já não por via da norma que lhe atribuía tal qualidade enquanto locatário (n.º 2 do artigo 3.º do CIUC).
E tal solução impõe-se desde o momento da perfeição do contrato de compra e venda, não apenas porque o Código do IUC o determina – ao afirmar que são sujeitos passivos do imposto os proprietários –, mas também pelo facto de entre nós vigorar o princípio da consensualidade, que importa que a transmissão da propriedade ocorra por mero efeito do contrato, como resulta em primeira linha do n.º 1 do artigo 408.º do Código Civil.
Nem se diga, como faz a Requerida, que a celebração do contrato poderia ser provada através da prova do recebimento do preço.
Salvo o devido respeito, parece a Requerida incorrer aqui numa manifesta petição de principio.
Com efeito, ao contrário do defendido pela Requerida – e, aliás, também por jurisprudência que não podemos subscrever – o recebimento do preço ou, melhor dizendo, o pagamento do preço, é, não um elemento constitutivo do contrato de compra e venda, mas um efeito do mesmo, conforme resulta do disposto no artigo 879º do Código Civil.
E o que se vem de dizer releva para sustentar a nossa posição no que tange ao valor jurídico do registo automóvel. Recorde-se, porém, que de acordo com a regra geral acima vista, a transferência do direito se produz ex contratu, sem necessidade de qualquer acto material ou de publicidade([7]).
Perante o silêncio do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, quanto à questão do valor jurídico do registo automóvel, torna-se necessário lançar mão da disciplina do registo predial; operação ademais autorizada pelo artigo 29.º daquele Decreto-Lei.
Ora, atendendo ao Código do Registo Predial – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 125/13, de 30 de Agosto –, maxime ao seu artigo 7.º, e conjugando esta norma com o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 54/75, rapidamente se infere a função primacial do registo (automóvel): dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor.
Pode então afirmar-se que o registo não tem natureza constitutiva, antes meramente declarativa, permitindo apenas presumir a existência do direito e a sua titularidade. Note-se: presumir e não ficcionar, podendo assim ser ilidida mediante prova em contrário.
E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408.º do Código Civil, e salvas as excepções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente de qualquer acto subsequente, e.g., inscrição no registo.
Desta feita, não prevendo a lei qualquer excepção para o contrato de compra e venda de veículo automóvel, a eficácia real produz normalmente os seus efeitos, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo.
Ora, se independentemente do registo o adquirente passa a ser o proprietário, o titular inscrito deixa concomitantemente de o ser; pese embora no registo figure como tal.
In casu, e não obstante a falta de inscrição no registo, as transmissões efectuadas são oponíveis à Requerida, não podendo esta prevalecer-se do disposto no n.º 1 do artigo 5º do Código do Registo Predial.
Desde logo pelo facto de a Requerida não ser, para efeitos do disposto naquela norma, havida como terceiro para efeitos de registo.
A noção de terceiros para efeitos de registo é-nos dada pelo n.º 4 do mesmo artigo 5.º: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si; donde fatalmente se retira não ser este, manifestamente, o caso dos autos.
E o mesmo raciocínio se aplicará, naturalmente, às hipóteses de locação financeira ou de qualquer outro contrato que confira opção de compra ou celebrado com reserva de propriedade, em relação às quais também o registo não tem qualquer eficácia constitutiva, mais não passando de uma presunção de que o direito existe. Presunção ilidível, do mesmo passo, mediante prova em contrário.
E, da mesma forma, a falta de inscrição no registo destes contratos não significa que estes não existam.
Ora, pese embora à data das liquidações de imposto a Requerente ainda pudesse figurar no registo como proprietária dos veículos, a verdade é que alega ser, à data do facto gerador do imposto, apenas (i) sua locatária financeira; (ii) encontrar-se apenas inscrita a seu favor a reserva de propriedade ou (iii) já não ser, por qualquer forma, sua proprietária, por já os haver alienado.
Assim, e uma vez que a presunção resultante do registo é, como vimos, ilidível, vejamos se os documentos juntos pela Requerente são aptos a cumprir tal desiderato.
Quanto aos contratos de aluguer juntos pela Requerente, verifica-se que dos mesmos não resulta qualquer direito de opção de compra a favor do locatário, não tendo os mesmos, da mesma forma, sido celebrados com reserva de propriedade.
Assim, atenta a redacção do nº 2 do artigo 3º do CIUC, não poderá considerar-se o simples locatário sem opção de compra como proprietário do veículo, para efeito de ser este sujeito passivo do IUC.
Por essa razão, terá de improceder na íntegra o pedido formulado relativamente ao imposto respeitante ao veículo de matrícula …-…-…, uma vez que, quanto a este veículo, à data do facto gerador do imposto, sobre o mesmo apenas incidia um contrato de aluguer, sem qualquer opção de compra a favor do locatário.
O mesmo se diga em relação ao veículo de matrícula …-…-…, no que respeita ao imposto do exercício de 2009, já que, na data do facto gerador do imposto respeitante a este ano, apenas incidia sobre este veículo um contrato de aluguer, sem qualquer opção de compra a favor do locatário.
No que diz respeito aos veículos de matrículas …-…-… e ….-…-…, foram juntos aos autos contratos de aluguer, por onde se verifica que a Requerente se obrigou, mediante retribuição, a ceder à locatária o gozo temporário do veículo por esta adquirido sob indicação da locatária, tendo sido estabelecido o direito de opção de compra do veículo por parte da locatária, mediante o preço fixado nas condições particulares.
Verifica-se, assim, ter sido celebrado entre as partes, quanto a estes veículos, um contrato de locação financeira, contratos esses que se encontravam em vigor à data do facto gerador do imposto.
Pelo que, em relação a estes veículos, o sujeito passivo do imposto é o locatário, conforme expressamente previsto no nº 2 do artigo 3º do CIUC.
No que diz respeito ao veículo de matrícula …-…-…, foi junto aos autos pela Requerente um contrato de crédito ao consumo, pelo qual se verifica a consagração de uma reserva de propriedade a favor da Requerente – cfr. cláusula quinta do contrato junto.
Pelo que, em relação a este veículo, dúvidas não restam de que o terceiro é adquirente com reserva de propriedade, sendo, pois, este terceiro adquirente o sujeito passivo do imposto, nos termos do disposto no artigo 3º nº 2 do CIUC.
Já quanto ao veículo de matrícula …-…-…, foi junto aos autos um contrato de crédito celebrado entre a Requerente e um terceiro.
Da análise deste contrato, verifica-se que, subjacente ao mesmo, se encontra um contrato de compra e venda, celebrado entre o mesmo terceiro e o fornecedor do veículo, nos termos do qual este reserva para si a propriedade do veículo.
A reserva de propriedade a favor do fornecedor foi transmitida para a Requerente, por sub-rogação, o que resulta da cláusula 12ª do contrato de crédito junto.
Pelo que, à semelhança do veículo de matrícula …-…-…, o terceiro não passa de um adquirente com reserva de propriedade, sendo, por isso, este terceiro o sujeito passivo do imposto, nos termos do disposto no artigo 3º nº 2 do CIUC.
Por seu turno, encontram-se juntas aos autos facturas de venda dos veículos de matriculas …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-… e …-…-…, todas emitidas em data anterior à data do facto gerador do imposto.
Encontram-se ainda juntas aos autos facturas de venda dos veículos de matrículas …-…-…, …-…-… e …-…-… emitidas, respectivamente, em 13/07/2009, 12/02/2009 e 29/01/2010.
Vejamos agora o valor probatório das facturas juntas pela Requerente.
Conforme resulta dos factos provados – cfr. ponto 4 -, nenhum dos veículos em causa nos presentes autos pertence às categorias F ou G a que alude o artigo 4º do CIUC, pelo que o facto gerador do imposto ocorre na data da respectiva matrícula ou em cada um dos seus aniversários.
A Requerida sustenta que a factura não é documento apto a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, porquanto tal documento não revela por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade por parte do pretenso adquirente.
Acrescentando que “não faltam casos de emissão de faturas referentes a transmissões de bens e/ou de prestações de serviços que nunca ocorreram”.
É certo, como invoca a Requerida, que muitas situações existem em que as facturas não titulam qualquer negócio jurídico. No caso dos autos, porém, nenhum elemento permite formar a convicção de que as facturas juntas não titulem negócio algum, sendo certo que a sua falsidade não foi sequer arguida pela Requerida, que se limitou a invocar existirem várias situações dessas, sem concretamente referir que a situação dos autos se subsumia a tal.
Deste modo, e à míngua de quaisquer elementos que permitam concluir o contrário, terá de aceitar-se a veracidade dos documentos juntos.
Assente a veracidade das facturas juntas pela Requerente, bem como o seu conteúdo, teremos de considerar, sem necessidade de quaisquer outras indagações, serem estas documentos aptos a provar a alienação dos veículos em causa.
Com efeito, não prevendo a lei qualquer forma específica para a celebração de um contrato de compra e venda de um bem móvel, terá, necessariamente, de se aceitar como prova do dito contrato a factura emitida nos termos legais.
Temos, pois, que à data do facto gerador do imposto (data da matrícula ou de cada um dos seus aniversários), a Requerente havia já alienado os veículos de matrículas …-…-…,...-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, ...-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-… e ...-…-….
Da mesma forma, à data do facto gerador do imposto respeitante ao exercício de 2010, o veículo de matrícula …-…-… já havia sido alienado. Note-se que, a factura de venda relativa a este veículo foi emitida em 13/07/2009, pelo que, ocorrendo a data do facto gerador do imposto em Abril (aniversário da matrícula), não poderá, quanto ao exercício de 2009, considerar-se que o veículo não fosse propriedade da Requerente.
O mesmo se diga em relação aos veículos de matrícula …-…-… e …-…-…, cujas facturas de venda foram emitidas, respectivamente, em 12/02/2009 e 29/01/2010.
Assim, quanto ao veículo de matrícula …-…-…, a Requerente não era sua proprietária à data do facto gerador do imposto respeitante aos exercícios de 2010 e 2011, já o sendo, porém, quanto ao exercício de 2009, atento o facto de o veículo ter sido alienado em data posterior à data do facto gerador do imposto (Janeiro).
Da mesma forma, quanto ao veículo de matrícula …-…-…, a Requerente não era sua proprietária à data do facto gerador do imposto respeitante ao exercício de 2011, já o sendo, porém, quanto ao exercício de 2010, atento o facto de o veículo ter sido alienado em data posterior à data do facto gerador do imposto (Janeiro).
Ainda no que a este veículo respeita, importa apenas referir que, embora a factura de venda tenha sido emitida em 29/01/2010, a verdade é que, atento o disposto no nº 3 do artigo 6º do CIUC, o imposto é exigível no primeiro dia do mês de aniversário, in casu, o dia 01 de Janeiro. Pelo que, sendo a Requerente, no dia 01 de Janeiro de 2010 sua proprietária, é sobre esta que recai a obrigação de pagamento do imposto respeitante a este ano.
Já no que toca ao veículo de matrícula …-…-…, muito embora seja alegado pela Requerente a sua alienação em data anterior ao facto gerador do imposto, o certo é que não se encontra junto aos autos qualquer documento comprovativo do alegado. Pelo que, não tendo a Requerente logrado provar que tal viatura tinha sido alienada em data anterior à ocorrência do facto gerador do imposto, não pode este tribunal considerar como provado não ser esta sujeito passivo de imposto.
Em síntese, a Requerente é sujeito passivo do imposto respeitante aos veículos e exercícios que a seguir se discriminam:
a) Veículo de matrícula …-…-…: exercício de 2009;
b) Veículo de matrícula …-…-…: exercício de 2009;
c) Veículo de matrícula …-…-…: exercícios de 2009 e 2010;
d) Veículo de matrícula …-…-…: exercícios de 2010, 2011 e 2012;
e) Veículo de matrícula …-…-…: exercício de 2010.
Não sendo em consequência, sujeito passivo do imposto respeitante aos demais exercícios e veículos.
Detenhamo-nos agora, sobre a questão suscitada pela Requerida, relativa ao artigo 19.º do CIUC, que estabelece o seguinte:
“Para efeitos do disposto no artigo 3º do presente código (…) ficam as entidades que procedam à locação financeira, à locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados”.
A Requerida, sustentando que a Requente incumpriu a obrigação declarativa decorrente do artigo 19.º do CIUC, vem sustentar dever de tal retirar-se consequências intra e extraprocessuais. As primeiras redundariam na responsabilização da Requerente pelas custas arbitrais inerentes ao presente processo; as segundas materializar-se-iam na responsabilização desta a título contra-ordenacional.
Cumpre referir, em abstracto, que a inobservância do disposto no artigo 19.º do CIUC pode, efectivamente, configurar a contra-ordenação p. e p. no artigo 117.º do Regime Geral das Infracções Tributárias. Não é isto, contudo, o que se discute nos presentes autos.
A latere, sempre se dirá que o citado artigo 19.º se insere no Capítulo III do CIUC, respeitante a obrigações acessórias, fiscalização e regime contra-ordenacional, sendo a obrigação dali resultante meramente declarativa e não tendo qualquer virtualidade de alterar as regras de incidência subjectiva do imposto, previstas no Capítulo I sob a epígrafe “Princípios e regras gerais”.
E que assim é resulta, também, do facto de o próprio artigo 19.º não prever essa sanção para o seu incumprimento. De onde se retira, sem qualquer margem para dúvidas, que o incumprimento desta obrigação não determina, sem mais, que o sujeito passivo do imposto passe a ser o locador.
De tudo quanto se expendeu resulta clara a existência de fundamento legal para as liquidações de imposto único de circulação e juros compensatórios, relativas aos veículos de matrículas …-…-… – na parte referente ao ano de 2009 -; …-…-… – na parte referente ao ano de 2009; …-…-… – na parte referente ao exercício de 2010 – e …-…-…; …-…-….
Já quanto às demais liquidações impugnadas, não existe fundamento legal para as mesmas, impondo-se, por via disso, a sua anulação, com as demais consequências legais.
VI. DISPOSITIVO
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar improcedente o pedido de anulação dos actos de liquidação de IUC impugnados relativamente aos seguintes veículos e exercícios
(i) Veículo de matrícula …-…-…: exercício de 2009;
(ii) Veículo de matrícula …-…-…: exercício de 2009;
(iii) Veículo de matrícula …-…-…: exercícios de 2009 e 2010;
(iv) Veículo de matrícula …-…-…: exercícios de 2010, 2011 e 2012;
(v) Veículo de matrícula …-…-…: exercício de 2010.
b) Julgar procedente o pedido de anulação dos demais actos de liquidação de IUC impugnados e em consequência condenar a Requerida a proceder ao reembolso à Requerente do valor indevidamente pago, no montante global de € 8.401,06;
c) Julgar procedente o pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios.
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Fixa-se o valor do processo em € 10.234,98, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
***
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, bem como do n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 4 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar pelas partes na proporção do respectivo decaimento (17,92% para a Requerente e 82,08% para a Requerida).
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Registe e notifique.
Lisboa, 17 de Julho de 2015.
O Árbitro,
Alberto Amorim Pereira
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Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.
([1]) Cf. BAPTISTA MACHADO, JOÃO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1982, p. 175.
([2]) FERRARA, FRANCESCO, Interpretação e Aplicação das Leis, 1921, Roma; Tradução de MANUEL DE ANDRADE, Arménio Amado, Editor, Sucessor – Coimbra, 2.ª Edição, 1963, p. 138 e ss.
([3]) Vide, por todos, BAPTISTA MACHADO, JOÃO, op. cit., p. 181.
([4]) BAPTISTA MACHADO, JOÃO, op. cit., p. 183.
([5]) Cf. Decisão Arbitral de 5 de Dezembro de 2013, proferida no âmbito do Processo n.º 73/2013, p. 21.
([6]) Cf. LOPES DE SOUSA, JORGE, Código do Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Vol. I, 6ª Edição, Áreas Editora, Lisboa, 2011, p. 589.
([7]) Cf. EWALD HÖRSTER, HEINRICH, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 2ª Reimpressão da Edição de 1992, p. 467.