Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 727/2014-T
Data da decisão: 2015-06-24   
Valor do pedido: € 35,96
Tema: IUC – Incidência subjectiva; Presunções legais; Competência do tribunal
Versão em PDF

Decisão Arbitral

 

I. - RELATÓRIO

 

A - PARTES

 

A…, contribuinte fiscal n.º …, doravante designada por “Requerente”, apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado por “RJAT”), tendo em vista a apreciação da seguinte demanda que o opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira (que sucedeu, entre outras, à Direcção-Geral dos Impostos) a seguir designada por “Requerida” ou “AT”.

 

B - PEDIDO

 

1 - O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 20 de Outubro de 2014 e notificado à AT em 23 de Outubro de 2014.

2 - A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o signatário, em 05-12-2014, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa como árbitro de Tribunal Arbitral Singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.

3 - As Partes foram, em 05-12-2014, devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do nº 1, do artigo 11.º e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

4 - Nestas circunstâncias, em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 24-12-2014.

5 - No dia 29 de Maio de 2015, o Tribunal Arbitral, tendo em conta o disposto no art.º 16.º, alínea c) do RJAT, proferiu despacho a dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do mesmo diploma, considerando, por um lado, quer a disponibilidade das partes para o efeito, quer a apresentação de alegações escritas, quer a circunstância das excepções a apreciar e a decidir terem sido decididas por escrito, e, por outro lado, não ter sido requerido pelas partes quaisquer diligências de prova autónomas, mostrando-se junto ao processo os documentos pertinentes, bem como o processo administrativo.

 

6 - A ora Requerente pretende que o presente Tribunal Arbitral:

Declare a ilegalidade e a consequente anulação, quer do acto de liquidação relativo ao Imposto Único de Circulação (de ora em diante designado por IUC), quer do referente aos correspondentes juros compensatórios, respeitantes ao ano de 2013, relativamente ao veículo identificado nos autos, com a matrícula …-…-….

 

C - CAUSA DE PEDIR

 

7 - A Requerente, na fundamentação do seu pedido de pronúncia arbitral, afirma, em resumo, o seguinte:

8 - Que adquiriu o veículo com a matrícula …-…-… em 20 de Dezembro de 2000 e que, em Julho de 2006, celebrou com o Sr. B…, um contrato de compra e venda do referido veículo, tendo, desde então, transmitido a propriedade e a posse de tal viatura.

9 - Que, na sequência da notificação de penhora de bens, em processo de execução fiscal instaurado contra si, e após ter identificado a natureza da dívida, contactou o Serviço de Finanças de … no sentido de informá-lo de que não era sujeito passivo do IUC referente ao mencionado veículo, em virtude de, em Julho de 2006, ter transmitido a propriedade do veículo em referência.

10 - Que informou, igualmente, o referido Serviço de Finanças de que, apesar das várias tentativas junto do adquirente do veículo em causa, para que o mesmo procedesse à regularização de tal veículo, não conseguiu que isso acontecesse, pelo que, em Novembro de 2009, solicitou ao IMTT que iniciasse os procedimentos necessários destinados à apreensão da viatura.

11 - Que, na sequência dos contactos havidos com a AT, foi por ela informada de que o referido veículo ainda se encontrava registado na Conservatória do Registo Automóvel em nome da Requerente, pelo que, nos termos do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, era ela o sujeito passivo do imposto, enquanto proprietária do veículo.

12 - Que após ter sido informada pela AT, por via de um ofício de 29-04-2014, de que o sujeito passivo do imposto era a Requerente, enviou ao Serviço de Finanças de … documentação destinada a provar que tinha efectivamente vendido o veículo em questão ao Sr. B…, requerendo, então, a anulação da dívida de IUC e o levantamento da penhora, o que foi indeferido por despacho, de 25-07-2014, da chefe do referido Serviço de Finanças.

13 - Que, em 24-07-2014, procedeu ao pagamento do IUC referente ao veículo com a matrícula …-…-…, relativo ao ano de 2013.

14 - Que a validade de um negócio jurídico de compra e venda de um veículo automóvel sujeito a registo não se encontra prejudicada pelo facto de tal acto aquisitivo vir ou não a ser registado.

15 - Que, face à natureza real do contrato de compra e venda, a transmissão da propriedade dá-se por mero efeito do contrato, nos termos do art.º 874.º do Código Civil.

16 - Que o art.º 1.º do CIUC dispõe que o IUC obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes, na medida do custo ambiental e viário que provocam, não podendo, assim, haver dúvidas de que a lei pretendeu onerar aqueles a quem poderão ser imputados os mencionados custos ambientais e viários provocados pela circulação dos veículos automóveis.

17 - Que a expressão “considerando-se como tais” utilizada pelo legislador no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, configura uma presunção legal de incidência tributária, sendo necessariamente ilidível, face ao disposto do art.º 73.º da LGT.

18 - Que a declaração de venda, integrante do Doc. N.º 2, junto ao pedido de pronúncia arbitral, deverá ser tida como idónea para ilidir a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, dela também resultando, que a transmissão da propriedade do veículo ocorreu em momento anterior à data da verificação do facto tributário subjacente à liquidação impugnada.

 

 

 

D - RESPOSTA DA REQUERIDA

 

19 - A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira, (doravante designada por AT), apresentou a sua Resposta em 02-02-2015, bem como cópia do Processo Administrativo Tributário (PA), tendo, então, feito apelo às Decisões Arbitrais proferidas nos Processos n.ºs 113/2014-T; 114/2014-T; 170/2014-T; 178/2014-T e 179/2014-T, que menciona no art.º 37.º da sua Resposta, as quais se pronunciam sobre matérias relacionadas com as excepções que suscita.

20 - Na referida Resposta, a AT apresenta a sua defesa suscitando, desde logo, diversas excepções, que se concretizam na :

- Incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, relativamente à falta de objecto do pedido de pronúncia arbitral.

- Incompetência material do Tribunal Arbitral, na medida em que não estamos perante um acto de liquidação oficiosa.

- Intempestiva apresentação do pedido de pronúncia arbitral.

21 - As referidas excepções sustentam e traduzem a defesa da Requerida nos termos seguintes:

 

POR EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA

 

22 - A Requerida entende que o pedido de pronúncia arbitral subjacente ao presente processo decorre de um erro em que a Requerente labora, na medida em que reage contra uma Nota de Cobrança como se fosse uma liquidação oficiosa.

23 - A referida Nota de Cobrança, no entender da Requerida, não configura, indubitavelmente, uma liquidação oficiosa, mas sim um documento de cobrança de IUC, extraído pela Requerente do Portal das Finanças. (Cfr. art.ºs 6.º e 7.º da Resposta)

24 - Considera igualmente que, de forma clara e inequívoca, se extrai do documento em questão que a Requerida não procedeu à emissão ou notificação de qualquer liquidação oficiosa de IUC referente ao ano de 2013, respeitante ao veículo …-…-….

25 - Nestas circunstâncias, a Requerida entende que o objecto do pedido de pronúncia arbitral não se escora sobre um acto de liquidação oficiosa, mas sim num documento de cobrança que a Requerente de forma totalmente voluntária extraiu do Portal das Finanças e sob o qual procedeu ao pagamento. (Cfr. art.º 13.º da Resposta)

 

POR EXCEPÇÃO DILATÓRIA

 

26 - A Requerida entende que não emitiu qualquer acto de liquidação oficiosa de IUC, referente ao veículo …-…-…, relativamente ao ano de 2013, e que aos tribunais arbitrais compete, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT, a declaração de ilegalidade de actos de liquidação, de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta. (Cfr. art.ºs 33.º e 34.º da Resposta)

27 - Considera, assim, a Requerida que não nos encontramos perante actos de liquidação oficiosa, mas sim perante documentos de cobrança, pelo que, não existindo actos de liquidação de tributos, o Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objecto de litígio, subjacente ao presente processo.

28 - A Requerida considera também que, mesmo na hipótese de se entender que estamos perante um acto de liquidação de IUC, o prazo a partir do qual a Requerente poderia reagir contra tal acto de liquidação há muito havia caducado. Com efeito,

29 - A data limite de pagamento, conforme está exarado na Nota de Cobrança, corresponde ao dia 02-12-2013, sendo a partir desta data que a Requerente dispõe de um prazo de 90 dias para apresentar o pedido de pronúncia arbitral, o qual, tendo sido intentado em 17-10-2014, é claramente intempestivo, por violação do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 10.º do RJAT.

 

POR IMPUGNAÇÃO

 

30 - A Requerida entente que as alegações da Requerente não podem de todo proceder, porquanto fazem uma interpretação e aplicação das normas legais, aplicáveis ao caso, notoriamente errada, na medida em que incorre não só “numa enviesada leitura da letra da lei”, como na adopção “de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime” consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal, seguindo ainda uma “interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço”. (Cfr. art.ºs 52.º, 53.º e 54.º da Resposta)

31 - O legislador tributário ao estabelecer no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC, quem são os sujeitos passivos do IUC, estabeleceu expressa e intencionalmente, que os mesmos são os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados, notando que,

32 - O referido legislador não usou a expressão “presume-se” como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”. (Cfr. art.ºs 59.º e 60.º da Resposta)

33 - A redacção do art.º 3.º do CIUC não permite invocar, como faz a Requerente, que o mesmo consagra uma presunção, na medida em que o estabelecido no referido artigo corresponde a uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos do IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel, acrescentando, por um lado, que o entendimento contrário corresponde a uma interpretação contra legem, e que, por outro, é neste sentido que aponta,

34 - O “entendimento já adoptado pela Jurisprudência dos nossos tribunais”, transcrevendo, para tanto, parte da sentença do tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, proferida no Processo nº 210/13.OBEPNF. (Cfr. art.ºs 67.º a 71.º da Resposta)

35 - Sobre o elemento sistemático de interpretação, considera que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio legal. (Cfr. n.º 72.º da Resposta)

36 - Sobre a ignorância da “ratio” do regime, a AT considera que, a interpretação propugnada pela Requerente é manifestamente errada, na medida em que o visado pelo legislador fiscal foi a criação de um imposto assente na tributação do proprietário do veículo, tal como consta do registo automóvel.

37 - Acrescenta que o novo regime de tributação do CIUC veio alterar de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando a ser sujeitos passivos do imposto os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública, passando o Imposto Único de Circulação a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos. (Cfr. n.º 107 da Resposta)

38 - Neste sentido, refere ser este o entendimento inscrito, nomeadamente, na recomendação n.º 6-B/2012, de 22/06/2012, do Senhor Provedor de Justiça dirigida ao Secretário de Estado das Obras Públicas, dos Transportes e das Comunicações.

39 - A interpretação veiculada pela Requerente é, também, para além do que já foi referido, desconforme com a Constituição, designadamente porque entre outros, viola o princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que se traduz num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português de que, quer a Requerente, quer a Requerida fazem parte. (Cfr. n.º 115 da Resposta)

40 - A Requerida acrescenta, ainda, que, quem deu azo à dedução do pedido de pronúncia arbitral foi a própria Requerente só podendo, pois, queixar-se de si mesma quanto à liquidação ora colocada em crise, devendo, consequentemente ser condenada ao pagamento das custas arbitrais nos termos do artigo 527.º, n.º 1 do CPC ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

41 - Por fim, face a toda a argumentação que aduziu, considera que as excepções que suscitou devem ser julgadas procedentes, devendo, por outro lado, o pedido de pronúncia arbitral subjacente ao presente processo ser julgado improcedente, absolvendo-se, em conformidade, a entidade Requerida.

 

E - QUESTÕES DECIDENDAS

 

42 - Cumpre, pois, apreciar e decidir.

43 - Face ao exposto, relativamente às posições das Partes e aos argumentos apresentados, é necessário apreciar e decidir:

a) A excepção peremptória de incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, relativamente à falta de objecto do pedido de pronúncia arbitral;

b) As excepções dilatórias referentes à inexistência de acto de liquidação oficiosa de IUC e à intempestiva apresentação do pedido de pronúncia arbitral;

c) O estabelecimento, ou não, de uma presunção na norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º n.º 1 do CIUC;

d) O valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, particularmente para efeitos da incidência subjectiva deste imposto;

e) Se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado, embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário, o sujeito passivo do IUC, para efeitos do disposto no artigo 3.º, nº. 1, do CIUC, é o anterior proprietário ou o novo proprietário;

 

F - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

44 - O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

45 - As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).

46 - O processo não enferma de vícios que o invalidem.

47 - Tendo em conta, quer o processo administrativo tributário, cuja cópia foi, oportunamente, apresentada pela AT, e a prova documental junto aos autos, quer as alegações produzidas, cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, que se fixa nos seguintes termos.

 

G - DAS DEDUZIDAS EXCEPÇÕES

 

48 - Tendo em conta o disposto nos artigos 97.º, 578.º, 579.º e 608.º, todos do CPC e no artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aqui aplicáveis, respectivamente, por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas c) e e), do RJAT, deverão, as referidas excepções ser conhecidas em primeiro lugar.

 

DA EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA

 

49 - A Requerida, como já atrás se referiu, fundamenta a mencionada excepção no que considera ser um erro em que a Requerente incorre, ao confundir uma nota de cobrança com uma liquidação oficiosa, entendendo que,

50 - O documento n.º 1, identificado nos autos não pode ser tido como corporizador de uma liquidação oficiosa, dado que não foi gerada nem enviada pela Requerida à Requerente.

51 - Tal documento, não tendo sido emitido pela entidade Requerida, mais não é do que uma mera nota de cobrança que a Requerente emitiu e extraiu voluntariamente do Portal das Finanças, através da internet.

52 - Assim, a AT considera que o “objecto do presente pedido de pronúncia arbitral não se escora sobre um acto de liquidação oficiosa emitido pela Requerida, mas sim [sobre] um documento de cobrança que a Requerente de forma totalmente voluntária extraiu do Portal das Finanças, e sob o qual procedeu ao pagamento”, daqui concluindo que, não tendo sido emitido qualquer acto de liquidação, o referido pedido de pronúncia arbitral carece de objecto, pelo que,

53 - Competindo aos tribunais arbitrais, face ao disposto na alínea a), do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT, nomeadamente a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de tributos, não existe, no presente caso, competência do tribunal arbitral constituído para efeitos do presente processo.

54 - Acrescenta ainda que, mesmo que assim não se julgue e se entenda estarmos perante um acto de autoliquidação, a sua impugnação é obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa, conforme estatui o artigo 131.º/1 do CPPT, o que, no presente caso, não se verificou.

Vejamos,

55 - O documento junto ao processo, e no qual a Requerente se fundou para proceder ao pagamento do IUC referente ao veículo identificado no atrás mencionado documento n.º 1 identificado nos autos, para além de estar devidamente identificado por via de numeração própria da AT e ter exarada a data da sua emissão, contem a identificação fiscal e a morada da Requerente, menciona a quantia/valor certo do IUC a pagar e tem, quer a indispensável referência para pagamento, a fim de que o mesmo possa ser concretizado, quer a indicação das várias modalidades possíveis de pagamento, bem como a data limite pare esse efeito.

56 - O valor a pagar, respeitando, embora, à importância resultante do somatório do IUC devido e dos correspondentes juros compensatórios está, todavia, devidamente ventilado no mencionado documento, dado que aí se procede à demonstração das respectivas liquidações, seja, pois, a título de IUC, onde, designadamente, se refere a matrícula do veículo, o ano e mês de matrícula, bem como a sua cilindrada, seja relativamente aos referidos juros.

57 - Aqui chegados, importará lembrar que as liquidações são actos da administração que conjugando um complexo de elementos, que, no caso, correspondem aos que atrás se deixam referidos, determinam o quantum de imposto em dívida.

Por outro lado,

58 - Certo é que a Requerente retirou da sua página, no Portal das Finanças, o documento designável por Nota de Liquidação/Demonstração de Liquidação, que está junto aos autos, e procedeu ao pagamento dos montantes nela inscritos, o que não pode deixar de significar que a correspondente e subjacente liquidação tributária já tinha sido “gerada” (efectuada) com base em programação informática, dado que a sua automaticidade resulta, necessariamente, de um programa informático com claros e precisos objectivos, previamente delineados pelo programador, o mesmo é dizer, pela Administração Tributária.

59 - No caso dos autos, a Requerente teve conhecimento do acto tributário, em conformidade com a sua revelação na “sua página” no Portal das Finanças, tendo procedido ao pagamento da quantia de imposto liquidado, acto que, embora praticado no Sistema Informático, vincula a Administração Tributária.

60 - Nestas circunstâncias, estamos, inequivocamente, perante uma liquidação de IUC efectuada pela AT, levada à esfera de cognoscibilidade da Requerente por via da sua colocação na “página” que “lhe está reservada” no Portal das Finanças, constituindo um acto lesivo que, face ao previsto e estatuído no n.º 2 do art.º 9.º e no n.º 1 do art.º 95.º, ambos da LGT, pode ser impugnado pelos interessados.

61 - Face ao exposto, o tribunal não pode acompanhar o entendimento da Requerida quanto à falta de objecto do pedido de pronúncia arbitral, concluindo, pois, no sentido de que estamos perante a existência de um acto de liquidação de IUC susceptível de impugnação, não procedendo, assim, a excepção peremptória invocada pela AT.

62 - Assim sendo, afastado fica, também, o entendimento de que estamos perante uma situação de autoliquidação, posto que a autoliquidação é a que, de todo, é feita pelos particulares, por contraposição à liquidação que é feita pela Administração Tributária, só podendo falar-se de autoliquidação quando é o próprio contribuinte a fazer as contas/os cálculos do imposto a pagar, ou seja, quando é o sujeito passivo a aplicar a taxa do imposto à matéria colectável, o que, em absoluto, não acontece no caso dos autos (Cfr. designadamente, José Casalta Nabais, in Direito Fiscal - (Reimpressão) Almedina, Coimbra - Março - 2002, p. 252; Vitor Faveiro, in Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, 1.º vol., Coimbra Editora - 1984, pp 409/410 e Pedro Soares Martinez, in Manual de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 1983, pp. 295/296.

63 - A este propósito, cabe notar, à semelhança do que é feito no Acórdão do STA, de 31-05-2006, Proc. JSTA00063227, disponível em www.dgsi.pt., que o “último grito” relativamente ao conceito de autoliquidação está consagrado no art.º 120.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária espanhola, aprovada pela Ley 58/2003, de 17 de Dezembro, quando dispõe que “as autoliquidações são declarações nas quais os obrigados tributários, além de comunicarem à Administração os dados necessários para a liquidação do tributo e outros de conteúdo informativo, fazem por si mesmos as operações de qualificação e quantificação necessárias para determinar e pagar a importância da dívida tributária ou, se for o caso, determinar a quantidade que haja a devolver ou a compensar”.

64 - Nestas circunstâncias, estamos perante um acto de liquidação de IUC, que se integra no elenco das pretensões sujeitas a apreciação pelo tribunal arbitral, tal como decorre do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, pelo que o tribunal arbitral singular constituído é materialmente competente para conhecer do pedido de pronúncia arbitral subjacente ao presente processo.

 

DAS EXCEPÇÕES DILATÓRIAS

 

QUANTO À INEXISTÊNCIA DO ACTO DE LIQUIDAÇÃO

 

65 - Face à tese que vem sustentando, a AT reafirma que não estamos, no caso, perante um acto tributário, mas sim perante um documento de cobrança.

66 - Assim, conclui que o tribunal arbitral singular constituído é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido de pronúncia arbitral subjacente ao presente processo, atendendo à inexistência de um acto de liquidação de IUC emitido pela Requerida, o que consubstancia uma excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa.

67 - A referida questão está intimamente ligada ao entendimento da AT sobre a falta de objecto do pedido de pronúncia arbitral, pelo que afastado que está tal entendimento, resolvida fica, também, a suscitada questão, relativa à incompetência do tribunal arbitral. Com efeito,

68 - Na medida em que estamos perante um acto de liquidação de IUC e dado que o mesmo se integra no elenco das pretensões sujeitas a apreciação pelo tribunal arbitral, tal como decorre do consagrado no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, o tribunal arbitral singular constituído é materialmente competente para conhecer do pedido de pronúncia arbitral subjacente ao presente processo, pelo que improcede, de igual modo, a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria, deduzida pela Requerida.

69 - Os tribunais arbitrais, com efeito, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1, do artigo 2.º, do RJAT, são competentes para apreciar as pretensões de “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de auto-liquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”.

70 - Por outro lado, o n.º 1 do artigo 4.º do RJAT estatui que a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça.

71 - A vinculação referida no mencionado artigo 4.º, n.º 1, do RJAT foi estabelecida pela Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, cujo artigo 1.º vincula à jurisdição dos tribunais arbitrais os serviços da DGCI e DGAIEC, hoje integrantes da actual AT - Autoridade Tributária e Aduaneira.

72 - O artigo 2.º da referida Portaria determina que os mencionados serviços se vinculam à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida, referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro.

73 - Fica, desta forma, claro que para apreciar e decidir a excepção de incompetência deste tribunal é, pois, decisivo o juízo que se fizer relativamente ao problema da administração do IUC, o que implica saber a quem cabe a administração de tal imposto.

74 - Ora, sendo certo que para administrar um imposto, no caso o IUC, é necessário, nomeadamente, ser titular da competência para liquidar e cobrar o tributo em causa (Cfr. n.º 3, do art.º 1.º da LGT), e que o imposto em questão foi liquidado pela Entidade que, para tanto, tinha legalmente competência, não pode deixar de entender-se que o presente tribunal é materialmente competente para conhecer do pedido da Requerente, pelo que a excepção em causa, como atrás já se referiu, não pode proceder.

 

QUANTO À INTEMPESTIVA APRESENTAÇÃO DO PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL

 

75 - Sobre a apresentação do pedido de pronúncia arbitral entende a Requerida que o mesmo foi intempestivamente apresentado, dado que na liquidação mencionada no referido pedido, corporizada no Documento n.º 1 identificado nos autos, consta, em seu entender, uma data limite de pagamento que leva a considerar a não observância do prazo de 90 dias legalmente previsto para o efeito, contado a partir do termo do prazo para pagamento constante naquele documento.

76 - Neste quadro, importa saber qual a data a partir da qual se deve contar o prazo de 90 dias para apresentar o pedido de pronúncia arbitral, relativamente ao veículo com a matrícula …-…-…, identificado nos autos.

Vejamos,

77 - No aludido Documento constam duas datas: uma, referente à data em que o mesmo foi emitido; outra, assinalando a data limite de pagamento.

78 - O citado Documento n.º 1 tem, assim, respectivamente, a data de 23-07-2014 e a de 02-12-2013.

79 - Relativamente à contagem do prazo para efeitos da tempestiva apresentação no CAAD do pedido de pronúncia arbitral, importa ter em conta que a AT, dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação, pode proceder à notificação do contribuinte, pelo que, se relativamente ao documento em causa se considerar a data limite aí exarada para pagamento do imposto, como sendo a data relevante para efeitos de impugnação e não a data em que o mesmo foi emitido pelo sistema informático da AT, estar-se-á a precludir o direito do lesado à reclamação, à impugnação judicial ou ao recurso.

80 - A não ser assim e sendo que, por um lado, a Requerente só teve conhecimento do conteúdo da liquidação em causa na data em que o referido Documento foi emitido e que, por outro, as Notificações podem sempre ser efectuadas dentro do prazo de caducidade, o sujeito passivo ficaria, em definitivo, inibido de defender os atrás referidos direitos dentro do prazo de 90 dias, legalmente estabelecido para o efeito, se o mesmo fosse contado a partir da data limite de pagamento que consta no Documento criado pelo sistema informático e não da data em que esse Documento foi emitido.

Note-se, aliás, que o referido direito de impugnação, para além de estar inscrito no artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4, ambos da Constituição, tem consagração legal no art.º 96.º do CPPT, cujo n.º 1, como ensina Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, Volume II, 6.ª Edição, Áreas Editora, SA, Lisboa, 2011, p. 28, consagra uma opção pela doutrina subjectivista, para a qual a função primacial do contencioso tributário é “[…] a garantia da tutela judicial dos direitos ou interesses legítimos, sendo o objecto do processo judicial a relação jurídica tributária […]”. O mencionado direito de impugnação tem a sua concretização consagrada nos art.ºs 9.º, n.º 1 e 95.º, n.º 1, ambos da LGT, cabendo notar os ensinamentos de Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 824, quando a propósito do referido direito referem que o “[…] relevo dado ao direito de impugnação […] dos actos lesivos explica-se tão só pelo facto de se estar num domínio em que a actividade da Administração é uma actividade essencialmente agressiva dos direitos e interesses legalmente protegidos e não uma actividade de prestação e em que essa agressão é levada a cabo, por via de regra, através de actos de conteúdo positivo desfavorável para o contribuinte (liquidação de tributos) ou de conteúdo negativo igualmente desfavorável (não reconhecimento de benefícios fiscais)”.

81 - Não tendo a Requerente sido notificada, nos termos formais previstos para as Liquidações Oficiosas, a contagem do prazo de 90 dias para a apresentação do pedido de pronúncia arbitral terá por base a data em que tais documentos, (Notas de Liquidação/Demonstração de Liquidação), foram emitidos no Portal da Finanças. (Cfr. Art.º 102.º, n.º 1, alínea f) do CPPT).

82 - Nestas circunstâncias, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado em 17-10-2014, conclui-se pela improcedência da excepção suscitada pela Requerida, relativamente à intempestividade do pedido de pronúncia arbitral, respeitante à liquidação de IUC relativa ao ano de 2013, referente ao veículo identificado nos autos, com a matrícula …-…-…

 

II - FUNDAMENTAÇÃO

 

H - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

83 - Em matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos: 

84 - A Requerente procedeu à venda do veículo identificado no processo, como consta na Declaração de venda apresentada como prova da mencionada transacção, onde, designadamente, estão referenciados o nome do vendedor e do comprador, a data de venda do veículo, bem como o preço da referida venda.

85 - A venda do referido veículo, face à mencionada Declaração de venda, ocorreu em data anterior ao facto gerador do imposto e ao momento da sua exigibilidade.

86 - A Requerente procedeu ao pagamento do IUC, conforme consta da prova de pagamento, integrante do Doc. n.º 8, junto aos autos, referente ao veículo com a matrícula …-…-…, identificado no processo, com base no n.º de referência para pagamento exarado na Demonstração de Liquidação/Nota de Liquidação, disponível na sua “página” no Portal das Finanças.

87 - A Requerida entende que o Documento que suportou o pagamento do IUC, referente ao veículo com a matrícula …-…-…, é uma “mera nota de cobrança” gerada e extraída pela própria Requerente do Portal das Finanças, através da internet.

88 - A Requerente entende que o n.º 1 do art.º 3.º do CIUC consagra uma presunção, e que a Declaração de venda junta aos autos, corporiza um documento idóneo para ilidir a referida presunção.

89 - A Requerida considera que a redacção do art.º 3.º, n.º 1 do CIUC não permite invocar que o mesmo consagra uma presunção, na medida em que o estabelecido no referido artigo corresponde a uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos do IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel.

 

FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

 

90 - Os factos dados como provados estão baseados nos documentos mencionados, relativamente a cada um deles, na medida em que a sua adesão à realidade não foi questionada.

 

FACTOS NÃO PROVADOS

 

91 - Não existem factos dados como não provados, dado que todos os factos tidos como relevantes para a apreciação do pedido foram provados.

 

I - FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

92 - A matéria de facto está fixada, importando agora, não havendo mais excepções a conhecer e a decidir, e fixada que está a competência do tribunal arbitral, entrar na questão de fundo em causa nos presentes autos, que se reconduz à apreciação do acto de liquidação de IUC, referente ao ano de 2013, respeitante ao veículo com a matrícula …-…-…, identificado nos autos, que a Requerente considera ferido de ilegalidade, o que vem impugnado pela AT. Cabe, assim, proceder agora à subsunção jurídica dos factos subjacentes e determinar o Direito aplicável, de acordo com as questões decidendas enunciadas no n.º 43.

93 - A questão que, face ao exposto, sobra como essencial, relativamente à qual existem, aliás, entendimentos absolutamente opostos entre a Requerente e a AT, traduz-se em saber se a norma de incidência subjectiva constante do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC estabelece ou não uma presunção ilidível.

94 - As posições das partes são conhecidas. Com efeito, para a Requerente, aquela norma consagra uma presunção legal ilidível, enquanto para a Requerida o art.º 3.º do CIUC não permite entender que o mesmo consagre uma presunção, na medida em que o estabelecido no referido artigo corresponde a uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos do IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel.

 

J - INTERPRETAÇÃO DA NORMA DE INCIDÊNCIA SUBJECTIVA CONSTANTE DO N.º 1 DO ARTIGO 3.º DO CIUC

 

95 - Importará notar, antes de mais, o pacífico entendimento, na doutrina, de que na interpretação das leis fiscais valem plenamente os princípios gerais de interpretação. Trata-se de um entendimento que tem, aliás, acolhimento no artigo 11.º da Lei Geral Tributária.

96 - É comummente aceite que, tendo em vista a apreensão do sentido da lei, a interpretação deve socorrer-se diversos meios, importando, em primeiro lugar, reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, o que significa, procurar, desde logo, o seu sentido literal. O referido sentido, como também é pacífico, corresponde ao grau mais baixo da actividade interpretativa, importando, por isso, valorá-lo e aferi-lo à luz de outros critérios, intervindo, a esse propósito, os designados elementos de natureza lógica, sejam de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica.

97- A propósito da interpretação da lei fiscal, cabe lembrar, como, aliás, a jurisprudência vem assinalando, nomeadamente nos Acórdãos do STA de 05/09/2012 e de 06/02/2013, processos n.ºs 0314/12 e 01000/12, respectivamente, disponíveis em: www.dgsi.pt, a importância do disposto no artigo 9.º do Código Civil (CC), enquanto preceito fundamental da hermenêutica jurídica, que, neste quadro, não pode deixar de considerar-se.

98 - A actividade interpretativa não é, pois, contornável na resolução das dúvidas suscitadas pela aplicação das normas jurídicas em causa.

99 - No entender de FRANCESCO FERRARA, in Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de MANUEL DE ANDRADE, (2.ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, p. 131, a referida actividade interpretativa “[…] é única [e] complexa, de natureza lógica e prática, pois consiste em induzir de certas circunstâncias a vontade legislativa”, acrescentando, ibidem, p.130, que “Mirando à aplicação prática do direito, a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.

100 - A finalidade da interpretação, diz-nos também o referido autor, ibidem, pp. 134/135, é “[…] determinar o sentido objectivo da lei […]”. A lei, sendo a expressão da vontade do Estado, é uma “[…] vontade que persiste de modo autónomo, destacada do complexo dos pensamentos e das tendências que animaram as pessoas que contribuíram para a sua emanação”. Daí que a actividade do interprete deva ser a de “[…] buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objectivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris”.

101 - Para MANUEL DE ANDRADE, citando FERRARA, in Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, p. 16 (2.ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, “A interpretação procura a voluntas legis, não a voluntas legislatoris […], e procura a vontade actual da lei, não a sua vontade no momento da aplicação: não se trata, pois, de uma vontade do passado, mas de uma vontade sempre presente enquanto a lei não cessa de vigorar. É dizer que a lei, uma vez formada, se destaca do legislador, ganhando consistência autónoma; e, mais do que isso, torna-se entidade viva, que não apenas corpo inanimado […]”. (sublinhado nosso)

 

DO ELEMENTO LITERAL

 

102 - É neste enquadramento que importará encontrar resposta para as questões decidendas, particularmente para a que visa saber se o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção, começando, desde logo, pelo elemento literal.

103 - Sendo o elemento literal o primeiro que importa utilizar, em busca do pensamento legislativo, é, necessariamente, por aí que se deverá começar, procurando alcançar o sentido da expressão considerando-se como tais as pessoas inscritas no referido artigo 3.º, n.º 1 do CIUC.

104 - Dispõe o n.º 1 do referido artigo 3.º do CIUC que “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.” (sublinhado nosso)

105 - A formulação usada no referido artigo, importará notá-lo, antes de mais, socorre-se da expressão “considerando-se”, o que suscita a questão de saber se, a tal expressão, pode ser atribuído um sentido presuntivo, equiparando-se, assim, à expressão “presumindo-se”. Trata-se de expressões frequentemente utilizadas com sentidos equivalentes, como é patente em diversas situações do ordenamento jurídico português.

106 - Na verdade, são imensas as normas que consagram presunções, conjugando, para o efeito, aliás, o verbo considerar de diversas formas. Não é, pois, difícil identificar situações, em diversas áreas do direito, em que se utiliza a expressão “considerando-se” ou “considera-se” com sentido equivalente à expressão “presumindo-se” ou “presume-se”, expressões a que, seja ao nível das presunções inilidíveis, seja no quadro das presunções ilidíveis, é conferido, imensas vezes, um significado equivalente.

107 - Não se afigurando pertinente voltar a referenciar exemplos reveladores dessas situações, dado que tais exemplos estão abundantemente enunciados nalgumas das decisões dos tribunais arbitrais tributários, de que são exemplo as proferidas no quadro dos Processos nºs 14/2013 - T, 27/2013 - T e 73/2013 - T, damos aqui os mesmos por inteiramente reproduzidos.

108 - Nestas circunstâncias, sendo as mencionadas expressões recorrentemente usadas com um propósito e significado equivalentes, pode concluir-se não ser apenas o uso do verbo “presumir” que nos coloca perante uma presunção, mas também o uso de outros termos podem servir de base a presunções, como, designadamente, ocorre com a expressão “considerando-se”, o que, em nosso entender, será justamente o que se verifica no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC.

Trata-se, assim, de um entendimento que, não se afigurando corresponder a uma enviesada leitura da letra da lei, como considera a AT, se revela em sintonia com o disposto no n.º 2 do art.º 9.º do CC, na medida em que assegura, ao pensamento legislativo, o mínimo de correspondência verbal aí exigido.

109 - Na perspectiva literal, face ao que se deixa exposto, dúvidas não há de que a interpretação que considera estabelecida uma presunção ilidível no n.º 1 do art.º 3.º tem total respaldo na formulação aí consagrada, face à mencionada equivalência entre a expressão “considerando-se como tais” e a expressão “presumindo-se como tais”.

O elemento linguístico, como atrás se referiu, sendo o primeiro que deve ser utilizado em busca do pensamento legislativo, deve, porém, a fim de se encontrar o verdadeiro sentido da norma, ser submetido ao controlo dos demais elementos de interpretação de natureza lógica. (sejam tais elementos de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica).

110 - Com efeito, como se retira da obra de MANUEL DE ANDRADE, atrás citada, p. 28, “[…] a análise puramente linguística dum texto legal é apenas o começo […], o primeiro grau […] ou o primeiro acto da interpretação. Por outras palavras, só nos fornece o provável pensamento e vontade legislativa […] ou, melhor, a delimitação gramatical da possível consistência da lei […], o quadro dentro do qual reside o seu verdadeiro conteúdo”.

111 - Assim sendo, vejamos, então o elemento racional (ou teleológico).

 

DO ELEMENTO HISTÓRICO E RACIONAL (OU TELEOLÓGICO)

 

112 - Atendendo aos elementos de interpretação de pendor histórico, cabe, desde logo, lembrar o que, expressamente, vem exarado na exposição de motivos da Proposta de Lei N.º 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei n.º 22-A/2007 de 29/06, quando aí se refere que a reforma da tributação automóvel é concretizada por via da deslocação de parte da carga fiscal do momento da aquisição dos veículos para a fase de circulação e visa “formar um todo coerente” que, embora destinado à angariação de receita pública, pretende que a mesma seja angariada na “medida dos custos ambientais que cada indivíduo provoca à comunidade”, acrescentando-se, a propósito do imposto em causa e dos diferentes tipos e categorias de veículos, que “como elemento estruturante e unificador […] consagra-se o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”.

113 - Neste quadro, parece claro que a racionalidade do novo sistema de tributação automóvel só poderá conviver com um sujeito passivo do imposto, no pressuposto de ser esse, e não outro, o real e efectivo sujeito causador dos danos viários e ambientais, tal como decorre do princípio da equivalência, inscrito no art.º 1.º do CIUC.

114 - O referido princípio da equivalência, que informa o actual Imposto Único de Circulação, tem, ao menos na parte em que especificamente respeita ao ambiente, subjacente o princípio do poluidor - pagador, e concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar. O referido princípio tem, aliás, de algum modo, assento constitucional, na medida em que representa um corolário do disposto na alínea h) do n.º 2 do art.º 66.º da Constituição.

115 - O que se visa alcançar por via do referido princípio é internalizar as externalidades ambientais negativas, o que, afinal, no caso dos autos, mais não significa do que fazer com que os prejuízos que advêm para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus proprietários, enquanto sujeitos “económico - utilizadores”, como custos que só eles deverão suportar.

116 - Regressando ao mencionado princípio da equivalência, dir-se-á que o mesmo tem, na economia do CIUC, um papel absolutamente estruturante, nele se alicerçando o edifício normativo do Código em questão. O referido princípio não pode, pois, deixar de constituir um fim que se pretende legalmente prosseguir, corporizando, nessa medida, um sentido legal que tem de ser considerado pelo intérprete.

117 - Relativamente ao referido princípio, cabe notar o que nos diz Sérgio Vasques, quando, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, Coimbra, 2001, p. 122, a propósito da concretização técnica desse princípio considera que “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve corresponder ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública; ou ao custo que o contribuinte imputa à colectividade pela sua própria actividade”.

118 - Abordando especificamente o IUC, acrescenta o mencionado autor, op. cit., que ”Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também”, acrescentando que a concretização do dito princípio “[…] dita outras exigências ainda no tocante à incidência subjectiva do imposto […]”.

119 - Face ao que vem de referir-se, resulta claro que a tributação dos reais e efectivos poluidores corresponde a um importante fim visado pela lei, no caso pelo CIUC, fim que, no dizer de Francesco Ferrara, in Interpretação e Aplicação das Leis, 2ª Edição, Arménio Amado, Editor, Sucessor, Coimbra, 1963, p. 130, deve estar sempre diante dos olhos do jurista, dado que, como o mencionado autor aí refere, “[…] a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.

120 - Assim, deve notar-se que, seja face aos referidos elementos históricos, seja à luz dos elementos de carácter racional ou teleológico de interpretação que se deixam referenciados, impõe-se, igualmente, concluir que o n.º 1 do art.º 3.º do CIUC só poderá consagrar uma presunção ilidível.

121 - Caberá ainda considerar o elemento sistemático de interpretação.

 

DO ELEMENTO SISTEMÁTICO

 

122 - Sobre o elemento sistemático diz-nos BAPTISTA MACHADO, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183, que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico”.

123 - É sabido que um princípio jurídico, no caso o princípio da equivalência, não existe isoladamente, antes está ligado por um nexo íntimo com outros princípios que integram, ao nível mais global, o respectivo ordenamento jurídico, no caso, com os demais princípios corporizados no sistema inscrito no CIUC. Nesse sentido, cada artigo de um dado diploma legal, no caso o CIUC, só será compreensível se o situarmos perante os demais artigos que o seguem ou antecedem.

124 - No que à sistematização do CIUC diz respeito, as preocupações de ordem ambiental foram determinantes para que o mencionado princípio da equivalência fosse, desde logo, inscrito no primeiro artigo do referido Código, o que, necessariamente conduz a que os artigos subsequentes, na medida em que têm assentamento em tal princípio, sejam por ele influenciados. Foi o que ocorreu, designadamente, com a base tributável, que passou a ser constituída por diversos elementos, particularmente pelos respeitantes aos níveis de poluição, e com as taxas do imposto, estabelecidas nos artigos 9.º a 15.º, que foram influenciadas pela componente ambiental, e, naturalmente, também com a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º do CIUC, que não poderá furtar-se à influência referida.

125 - O elemento sistemático de interpretação e a interacção entre os diversos artigos e princípios que integram o sistema inscrito no CIUC, apelam também ao entendimento de que o estabelecido no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC não pode deixar de consubstanciar uma presunção.

126 - Dispõe o n.º 1 do art.º 9.º do CC que a procura do pensamento legislativo deverá ter “[…] sobretudo em conta […] a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, circunstâncias e condições essas, que, hoje mais do que nunca, são de sensibilidade pelo ambiente e de respeito pelas questões com ele relacionadas.

Neste contexto, as considerações formuladas sobre os mencionados elementos de interpretação, sejam de carácter literal ou de pendor histórico, sejam de natureza racional ou sistemática, apontam no sentido de que o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, estabelece uma presunção, ou seja, a ratio legis dessa norma, enquanto razão ou fim que razoavelmente lhe deve ser atribuído, não pode deixar de perspectivar a expressão “considerando-se como tais”, utilizada no referido artigo, como reveladora do estabelecimento de uma presunção, o que significa que os sujeitos passivos do IUC sendo, em princípio, os proprietários dos veículos, considerando-se, como tais, as pessoas em nome dos quais os mesmos se encontrem registados, poderão, a final, ser outros.

Dir-se-á, aliás, que o estabelecimento da presunção na mencionada norma corresponderá à única interpretação que se coaduna com o princípio da equivalência, atrás mencionado.

127 - Ainda a propósito da presunção que vem sendo referida e que se entende estar consagrada no n.º 1 do art.º 3.º, do CIUC, cabe notar o que vem escrito no preâmbulo do recém-publicado Decreto-Lei n.º 177/2014, de 15 de Dezembro, quando, referindo-se aos veículos automóveis, considera que “A não regularização do registo de propriedade apresenta graves consequências, quer para quem permaneceu proprietário no registo, quer para quem adquiriu e não promoveu o registo a seu favor, como também para as diversas entidades públicas que assentam as suas decisões sobre titularidades que presumem ser substantivamente verdadeiras”. (sublinhado nosso)

128 - Aqui chegados, cabe lembrar o disposto no art.º 73.º da LGT, quando estabelece que “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”, (sublinhado nosso), o que significa que a presunção legal, que se afigura estar estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, será necessariamente ilidível.

129 - Neste quadro, os sujeitos passivos do imposto são, presumivelmente, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, ou seja, os referidos sujeitos passivos são, em princípio, e apenas em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados.

130 - Com efeito, se o proprietário em nome do qual o veículo se encontra registado, vier, como ocorre no presente processo, indicar e provar quem era o proprietário do veículo em causa, nada justifica, em nosso entendimento, que o anterior proprietário seja responsabilizado pelo pagamento do IUC que for devido.

131 - Acresce, ser esta interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC a que, em nossa opinião, melhor se ajusta aos princípios a que a AT deve subordinar a sua actividade, nomeadamente ao princípio do inquisitório, em ordem à descoberta da verdade material.

132 - A propósito do referido princípio do inquisitório, cabe aludir aos ensinamentos de Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488/489, quando, em anotações ao citado art.º 58.º, referem que cabe à administração um papel dinâmico na recolha dos elementos com relevância para a decisão, acrescentando que a “[…] falta de diligências reputadas necessárias para a construção da base fáctica da decisão afectará esta não só na hipótese de serem obrigatórias (violação do princípio da igualdade), mas também se a materialidade dos factos considerados não estiver comprovada ou se faltarem, nessa base, factos relevantes, alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a Administração deveria ter colhido […]”.

O princípio do inquisitório, acrescentam os referidos autores, op. cit, “[…] tem a ver com os poderes (-deveres) de a Administração proceder às investigações necessárias ao conhecimento dos factos essenciais ou determinantes para a decisão […]”.

133 - A verdade material, consubstanciada, no presente caso, na circunstância da propriedade do veículo, identificado no pedido de pronúncia arbitral, ter sido alienada pelo Requerente em momento anterior ao da exigibilidade do imposto, ou seja, à data a partir da qual o credor tributário podia fazer valer, perante o devedor, o seu direito ao pagamento do imposto, era, face aos elementos inscritos no processo administrativo, do conhecimento da AT.

 

L - DA AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE DO VEÍCULO E DO VALOR DO REGISTO

 

134 - Antes de mais, deve acrescentar-se, face ao que adiante, explicitamente, se dirá sobre o valor do registo, que os adquirentes dos veículos tornam-se proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, com registo ou sem ele.

135 - São três os artigos do Código Civil que importa ter em conta, a propósito da aquisição da propriedade de um veículo automóvel. São eles, desde logo, o art.º 874.º, que estabelece a noção de contrato de compra e venda, como sendo “[…] o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”; o art.º 879.º, em cuja alínea a) se estatui, como efeitos essenciais do contrato de compra e venda, “a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito” e o art.º 408.º, que tem por epígrafe os contratos com eficácia real, e estabelece no seu n.º 1, que “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”. (sublinhado nosso)

Estamos, com efeito, no domínio dos contratos com eficácia real, o que significa que a sua celebração provoca a transmissão de direitos reais, no caso, veículos automóveis, determinada por mero efeito do contrato, como decorre expressamente da norma anteriormente mencionada.

136 - A propósito dos referidos contratos com eficácia real, cabe notar os ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela, quando, em anotações ao art.º 408.º do CC, nos dizem que “Destes contratos ditos reais (quoad effectum), por terem como efeito imediato a constituição, modificação ou extinção dum direito real (e não apenas as obrigações tendentes a esse resultado) distinguem-se os chamados contratos reais (quoad constitutionem), que exigem a entrega da coisa como elemento da sua formação (cfr. arts. 1129.º, 1142.º e 1185.º) ”.

Estamos, assim, perante contratos em que a propriedade da coisa vendida se transfere, sem mais, do vendedor para o comprador, tendo, como causa, o próprio contrato.

137 - Também da jurisprudência, designadamente do Acórdão do STJ n.º 03B4369 de 19/02/2004, disponível em: www.dgsi.pt, se retira que, face ao disposto no art.º 408.º, n.º 1, do C. Civil, "a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei". É o caso do contrato de compra e venda de veículo automóvel (art.ºs 874.° e 879.º al. a) do C. Civil), o qual não depende de qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal - conf. Ac do STJ de 3-3-98, in CJSTJ, 1998, ano VI, Tomo I, pág. 117”. (sublinhado nosso)

138 - Tendo o contrato de compra e venda, face ao que se deixa referido, natureza real, com as mencionadas consequências, há que considerar, também, o valor jurídico do registo automóvel objecto desse contrato, na medida em que a transação do referido bem está sujeita a registo público.

139 - Estabelece, com efeito, o n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, relativo ao registo de veículos automóveis, que “O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. (sublinhado nosso)

140 - Ficando claro, face à referida norma, qual a finalidade do registo, não há, porém, clareza, no âmbito do referido Decreto-lei, sobre o valor jurídico desse registo, importando considerar o artigo 29.º do mencionado diploma legal, relativo ao registo de propriedade automóvel, quando aí se dispõe que “São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, […]”. (sublinhado nosso)

141 - Neste quadro, para que possamos alcançar o procurado conhecimento sobre o valor jurídico do registo de propriedade automóvel, importa ter em conta o que se estabelece no Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 06 de Julho, quando dispõe no seu artigo 7.º que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define”. (sublinhado nosso)

142 - A conjugação do disposto nos artigos atrás mencionados, particularmente o estabelecido no n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e no art.º 7.º do Código do Registo Predial, permite considerar, por um lado, que a função fundamental do registo é a de dar publicidade à situação jurídica dos veículos, permitindo, por outro lado, presumir que o direito existe e que tal direito pertence ao titular a favor de quem o mesmo está registado, nos precisos termos em que está definido no registo.

143 - Assim, o registo definitivo mais não constitui do que a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos exactos termos do registo, mas presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo, a este propósito, ver-se, entre outros, os Acórdãos do STJ nºs 03B4369 e 07B4528, respectivamente, de 19/02/2004 e 29/01/2008, disponíveis em: www.dgsi.pt.

144 - A função legalmente reservada ao registo é, assim, por um lado, a de publicitar a situação jurídica dos bens, no caso, dos veículos e, por outro lado, permitir-nos presumir que existe o direito sobre esses veículos e que o mesmo pertence ao titular, como tal inscrito no registo, o que significa que o registo não tem uma natureza constitutiva do direito de propriedade, mas apenas declarativa, daí que o registo não constitua condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador.

145 - Assim, se os compradores dos veículos, enquanto seus “novos” proprietários, não promoverem, desde logo, o adequado registo do seu direito, presume-se, para efeitos do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC e do disposto no art.º 7.º do Código do Registo Predial, que os veículos continuam a ser propriedade da pessoa que os vendeu e que no registo se mantém seu proprietário, sendo essa pessoa o sujeito passivo do imposto, na certeza, porém, que tais presunções são ilidíveis, seja por força do estabelecido no n.º 2 do art.º 350.º do CC, seja à luz do disposto no art.º 73.º da LGT. Daí que, a partir do momento em que se afastem as presunções em causa, mediante prova da respectiva venda, a AT não poderá persistir em considerar como sujeito passivo do IUC o vendedor do veículo, que, no registo, continua a constar como seu proprietário.

 

L - DOS MEIOS DE PROVA APRESENTADOS

 

146 - Não sendo legalmente exigível a forma escrita para o contrato de compra e venda de veículos automóveis, a prova da venda correspondente poderá fazer-se por qualquer meio, nomeadamente por via documental, desde que a mesma seja indiciadora da venda dos veículos, e exiba quer a matrícula do veículo, quer o nome e a morada do vendedor e do comprador, como se retira do estabelecido no n.º 2 do seu artigo 2.º, do disposto no Decreto-Lei n.º 177/2014, de 15 de Dezembro.

147 - Como meio de prova de que procedeu à venda do veículo com a matrícula …-…-…, identificado no presente processo, em data anterior à da exigibilidade do imposto, a Requerente juntou uma declaração de venda, assinada, que configura um contrato de compra e venda do veículo em referência, celebrado no dia 13 de Julho de 2006. Com efeito, o referido documento contém quer a identificação da Requerente, enquanto vendedora do veículo, plenamente identificada, quer o nome do comprador, Sr. B…, devidamente identificado, quer os necessários elementos alusivos à venda, designadamente os que respeitam à identificação do veículo e ao valor da transação em causa.

148 - O referido documento goza da presunção de veracidade, face ao disposto no n.º 1 do art.º 75.º da LGT, sendo os factos inscritos no aludido documento e a transmissão do veículo ao seu adquirente tidos como verdadeiros, cabendo à AT, face ao disposto no art.º 75.º, n.º 2 da LGT, no quadro das fundadas e objectivas razões que tivesse, demonstrar que tal venda, na realidade, não ocorreu.

149 - O aludido documento, apresentado pela Requerente, enquanto meio destinado a fazer prova da transacção do veículo em causa, gozando, assim, da mencionada presunção de veracidade, afigura-se com idoneidade bastante, em ordem à demonstração da venda do veículo com a matrícula …-…-…, constituindo, a nosso ver, um meio de prova adequado e capaz de ilidir a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC.

150 - Face ao que vem de referir-se, e tendo em conta, quer a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, quer a transferência de propriedade do veículo em questão, por mero efeito do contrato, antes da data da exigibilidade do imposto, quer o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, os actos tributários em crise, (IUC e Juros Compensatórios) não podem merecer o nosso acordo, seja porque não se teve em conta uma adequada interpretação e aplicação das normas legais de incidência subjectiva, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de direito, seja porque os referidos actos assentaram numa matéria de facto, claramente divergente da efectiva realidade, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de facto.

151 - Nestas circunstâncias, tendo em conta, por um lado, que a presunção consagrada no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC foi ilidida e que, por outro, a propriedade do veículo em questão foi transmitida em data anterior à data da exigibilidade do imposto, temos que, face ao disposto no n.º 3 do artigo 6.º, conjugado com o n.º 2 do artigo 4.º, ambos do CIUC, a Requerente não era sujeito passivo do imposto em questão.

152 - A AT, quando entende que o sujeito passivo do IUC é, em definitivo, a pessoa em nome de quem o veículo automóvel se encontra registado, sem considerar que o art.º 3.º, n.º 1 do CIUC consubstancia uma presunção, nem tendo em conta os elementos probatórios que lhe foram apresentados, como resulta do processo administrativo, está a proceder à liquidação ilegal do IUC, assente na errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjectiva do Imposto Único de Circulação, constantes do referido art.º 3.º do CIUC, seja ao nível da previsão, seja da estatuição, o que configura a prática de um acto tributário falho de legalidade por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que determina a anulação dos actos tributários em questão, por violação de lei.

 

CONCLUSÃO

153 - No quadro circunstancial que se tem vindo a referir, a AT, ao praticar os actos de liquidação em causa no presente processo, fundados na ideia de que o artigo 3.º, nº.1, do CIUC não consagra uma presunção ilidível, faz errada interpretação e aplicação desta norma, cometendo um erro sobre os pressupostos de direito, o que constitui violação de lei.

154 - Por outro lado, porque a AT, à data da ocorrência do facto tributário, considerou a Requerente proprietária do veículo referenciado no presente processo, considerando-a, como tal, sujeito passivo do imposto, quando tal propriedade, relativamente ao veículo em questão, já não estava inscrita na sua esfera jurídica, baseando-se, assim, em matéria de facto divergente da efectiva realidade, comete um erro sobre os pressupostos de facto, e portanto de violação de lei.

 

III - DECISÃO

 

155 - Destarte, atento a todo o exposto, este Tribunal Arbitral decide:

- Julgar procedente, por provado, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de pronúncia arbitral no que concerne à anulação do acto de liquidação de IUC e de juros compensatórios, respeitantes ao veículo identificado nos autos, com referência ao ano de 2013;

- Anular, consequentemente, quer o acto de liquidação de IUC, quer o acto de liquidação dos juros compensatórios que lhe estão associados, referentes ao ano de 2013, respeitantes ao veículo, tal como atrás se deixa mencionado;

- Condenar a AT a pagar as custas do presente processo.

VALOR DO PROCESSO

Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, nº 2 do CPC (ex-315.º, nº 2) e 97.º - A, n.º 1 do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 35,96.

 

CUSTAS

De harmonia com o disposto no artigo 12.º, n.º 2, in fine, no art.º 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I, que a este está anexa, fixa-se o montante das custas totais em € 306,00.

 

Notifique-se.

Lisboa, 24 de Junho de 2015

 

O Árbitro

António Correia Valente

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (ex-138.º, n.º 5), aplicável por remissão do artigo 29.º n.º 1 alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)