Decisão Arbitral
I. Relatório
1. A…, S.A., contribuinte fiscal n.º …, com sede na Rua … n.º …, …, … (doravante abreviadamente designada de “Requerente”) veio, nos termos conjugados dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) e 102.º, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), requerer a constituição de tribunal arbitral para a pronúncia de decisão de anulação da liquidação infra identificada.
2. É Requerida a Autoridade Tributáriae Aduaneira.
3. A Requerente pretende a pronúncia do presente Tribunal com vista:
3.1.à anulação da correção à matéria coletável no montante de €2.927.752,32 e à consequente anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC)n.º 2014 …, referente ao ano de imposto de 2010, no valor global de €15.583,57, a que aquela correção deu origem, e que foi praticada pelo Diretor-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira; e
3.2.à condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no reembolso daquela quantia (€15.583,57) indevidamente paga com respeito à liquidação contestada, acrescida de juros indemnizatórios e de juros de mora se a eles houver lugar.
4. A Requerente optou pela não designação de árbitro.
5. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou o árbitro do tribunal arbitral, o qual comunicou a aceitação daa designação no prazo aplicável.
6. As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
7. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 24-12-2014.
8. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, na qual defende a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
9. Na sua resposta, a Autoridade Tributária e Aduaneira suscitou uma questão prévia respeitante à correção do pedido, com fundamento no facto de a Requerente contestar apenas a correção à matéria coletável de €2.927.752,32, referente à “contabilização indevida como gastos do exercício, relativa a encargos financeiros, no montante de 2.927.752,32€, que, dada a sua natureza e quantificação, não preenchem os requisitos legais para que possam ser fiscalmente dedutíveis, por contrariarem o disposto no artigo 63º do CIRC”.
10. Segundo a Autoridade Tributária e Aduaneira, a liquidação indicada como objeto do pedido é determinada, ainda, por outra correção, que a Requerente não contesta, mostrando-se, por isso, “incorrecto, por não se coadunar com os fundamentos da impugnação, o pedido arbitral formulado, onde se pede a anulação integral da supra identificada liquidação adicional”, pelo que a Autoridade Tributária e Aduaneira veio requerer a redução do pedido em conformidade.
11. A reunião prevista no artigo 18.º do RJAT realizou-se no dia 04-03-2014. Ouvida acerca do requerimento de redução do pedido apresentado pela Requerida, a Requerente não se opôs ao mesmo, pelo que o pedido de anulação integral foi reduzido para pedidode anulação parcial do ato de liquidação identificado supra.
12. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
13. As Partes apresentaram alegações escritas.
14. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (arts. 4.ºe 10.º, n.º 2, do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
15. O processo não enferma de nulidades e não se suscita qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
II. Matéria de facto
a. Factos provados
16. Consideram-se provados os seguintes factos:
16.1.A Requerente é uma pessoa coletiva residente, com uma atividade comercial centrada nas seguintes áreas de negócio: (i) tintas decorativas; (ii) isolamento térmico; e (iii) Repintura Automóvel.
16.2.Em 2004, o capital social da Requerente foi integralmente adquirido por uma sociedade de Direito francês, B… S.A.S. (à data, C… S.A.S.), com sede em…Avenue…, ……, França (doravante, abreviadamente designada de “B…”).
16.3.A B…, tal como a Requerente, integram um grupo económico internacional especializado em várias áreas de negócio, nomeadamente no setor das tintas, onde se enquadra a atividade da Requerente (doravante, “Grupo B”).
16.4.Em 29-10-2004, e para amortizar um empréstimo que tinha contraído junto do Banco Espírito Santo Investimento, a B…, na qualidade de mutuante, e a Requerente, na qualidade de mutuária, celebraram um contrato de mútuo oneroso - o “IntercompanyLoanAgreement” - no montante inicial de € 47.308.663,30 – doravante “Empréstimo”.
16.5.Foram fixados no contrato reembolsos semestrais de capital, até 06-11-2012, prevendo-se, assim, uma maturidade de 8 anos para o empréstimo.
16.6.No que respeita aos juros, previu-se o seu vencimento e pagamento com periodicidades mensais, trimestrais, ou semestrais, conforme notificação prévia por parte da mutuante.
16.7.Previa-se, para o efeito, a aplicação de uma taxa anual de 7,98%.
16.8.Esse contrato foi alterado com efeitos a partir de 27-04-2006.
16.9.Em conformidade com a versão do contrato que, a partir dessa data, regeu a relação entre as empresas, o capital mutuado era de €40.700.000,00.
16.10. O reembolso do capital mutuado devia ser integralmente efetuado no dia06-11-2012.
16.11. Relativamente aos juros, manteve-se a taxa de 7,98% ao ano.
16.12. No que respeita ao seu vencimento, foi acordado que os juros seriam realizados com uma periodicidade mensal, trimestral, semestral ou em nove meses, conforme notificação da entidade mutuante.
16.13. Estabeleceu-se ainda que no último dia de cada período de jurosseriam pagos os juros acumulados.
16.14. Em 22-12-2009 os termos do contrato foram novamente alterados.
16.15. O montante indicado no contrato como capital mutuado continuou a ser de €40.700.000,00.
16.16. A data fixada para o reembolso desse montante – capital mutuado – passou a ser 27-04-2013 (ou seja oito anos e meio desde o início do empréstimo).
16.17. No que respeita aos juros, determinou-se, agora, que os juros acumulados seriam pagos na data do pagamento do capital (27-04-2013).
16.18. Regulou-se, também, a taxa dos juros, fixando-se, no respetivo Anexo I, uma taxa anual, para os anos de 2009 a 2013.
16.19. A taxa de juro praticada, no que respeita ao exercício ora em causa, foi de 8,62%.
16.20. Nesta alteração ao contrato, diversamente do que ocorria nas versões anteriores, não foi feita qualquer referência ao período dos juros (vencimentos).
16.21. É essa a versão do contrato em vigor no ano de 2010, objeto dos presentes autos.
16.22. Em 31-01-2010 o capital em dívida era de €34.330.663,30 e o valor dos juros calculados até 31-12-2009 ascendia a 20.227.179,99, donde resulta que o montante a considerar para cálculo dos juros (à mencionada taxa de 8,62%) era, à data, de €54.557.843,29.
16.23. Em 14-12-2010 foi feito um reembolso parcial do capital mutuado, no valor de €1.000.000.00, passando o capital em dívida a ser de €33.330.663,30 e o montante para cálculo dos juros (que inclui o valor dos juros calculados até 31-12-2009) ascendia a €53.557.843,29.
16.24. Os encargos com juros em 2010 ascenderam a €4.764.133,40.
16.25. Em 2013, foi amortizado o capital remanescente e foi paga a totalidade dos juros do Empréstimo, que apenas se venceram nessa data (a do pagamento do capital em 2013).
16.26. Em 27 de agosto de 2013, nos termos da Ordem de Serviço n.º OI2013…, foi instaurado contra a Requerente um procedimento de inspeção externo, com referência ao exercício de 2010, inicialmente de âmbito parcial e posteriormente alargado.
16.27. Na sequência do pedido de esclarecimentos da AT sobre a taxa de juro aplicada na operação de financiamento, a ora Requerente enviou, no dia 7 de Março de 2014, um relatório elaborado pela D…, o qual conclui que,durante o exercício fiscal de 2010, “os termos e condições acordados e praticados na operação de financiamento de médio e longo prazo com taxa de juro fixa realizada entre a B… e a A…, observam o princípio da plena concorrência, tal como estipulado pelo regime português de preços de transferência” (p. 19 do Relatório).
16.28. A D…elaborou esse relatório em ordem a assistir a ora Requerente “na preparação da documentação de preços de transferência referente à análise económica da operação de natureza financeira estabelecida no seio do grupo B, com referência ao exercício fiscal de 2010”.
16.29. Nesse relatório foi adotado o método do preço comparável de mercado.
16.30. Para o efeito foi pesquisada informação comparável externa recolhida na base de dados Thomson Reuters Eikon.
16.31. Analisado o relatório da D…, concluiu a inspecção tributária – sem pôr em causa adequabilidade da opção, na situação subjudice, pela adoção do método do preço comparável de mercado – não estarmos na presença de operações comparáveis.
16.32. A Inspeção Tributária, na determinação dos preços de transferência da operação em análise, considerou o comparável externo configurado nas taxas de juro mensais publicadas pelo BCE – MFI Interests Rates, com o seguinte fundamento: “tendo presente a natureza da operação em causa (empréstimo) e o objectivo do mesmo (amortizar o empréstimo bancário pré-existente junto de instituição bancária portuguesa), se considerou caber utilizar estas taxas para efeitos da validação da conformidade da operação vinculada em apreciação com o Princípio de Plena Concorrência, pois preenchem, designadamente, os critérios de comparabilidade (natureza e extensão) e de independência”.
16.33. No dia 26-03-2014, a Requerente foi notificada do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (“PRIT”), através do Ofício n.º …, de 20-032014, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 60.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) e 60.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (“RCPIT”), nos termos do qual a AT veio propor as seguintes correções àquele exercício com relevo na decisão da presente causa:
(i). Correção relativa a encargos financeiros:
Correção no montante de € 2.927.752,32, respeitante aos juros contabilizados pela Requerente como gastos do período relativos ao Empréstimo, os quais foram considerados excessivos e, portanto, não dedutíveis ao abrigo do regime dos preços de transferência (cf. art.º 63.º, n.º 1 do Código do IRC); e
(ii). Retenções na Fonte de IRC:
Falta de retenção na fonte de IRC no montante de € 384.594,29, resultante do entendimento propugnado pela AT de que os juros relativos aos Empréstimos se vencem no final de cada exercício económico.
Por entender e defender que os juros calculados por referência ao exercício de 2010, no valor de € 4.764.133,40, se venceram nesse exercício, a AT propôs a correspondente retenção na fonte (aplicando a taxa de 5%, estabelecida no art.º 87.º, n.º 4, al. g) do Código do Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), aos juros que considerou dedutíveis para efeitos fiscais, e a taxa de 10% prevista no Acordo para evitar a Dupla Tributação entre Portugal e França (“ADT”) aos juros que considerou como não dedutíveis.
16.34. As demais correções propostas não foram questionadas pela Requerente por resultarem de meros lapsos que esta reconheceu e que por isso não contestou.
16.35. Contudo, a Requerente não se conformou com o PRIT na parte respeitante às correções acima referidas, tendo exercido o seu direito de audição prévia.
16.36. Em 30 de abril de 2014, a ora Requerente foi notificada do respetivo RF, através do Ofício n.º …, de 29 de abril de 2014, nos termos do qual foi a mesma informada de que a AT mantinha, na íntegra, as duas correções anteriormente propostas no PRIT e questionadas pela Requerente.
16.37. A Requerente solicitou um novo estudo,agora àE…, no qual se afirma que “[c]om base neste referencial de mercado [construído através da adição do prémio adicional de risco de país aos spreads de mercado obtidos na pesquisa de comparáveis realizada na base de dados Web DealScan e ao referencial de mercado para o indexante apurado com base nas taxas swap] foi possível concluir que o princípio de plena concorrência não foi posto em causa, na medida em que a taxa de juro acordada na operação em análise de 8,62%, se enquadra no respetivo intervalo interquartil, entre o 1.º quartil e a mediana”.
16.38. A AT, por entender que a taxa de juros praticada nos juros calculados em 2010 com referência ao Empréstimo era mais elevada do que a que seria praticada numa operação similar que tivesse lugar entre entidades independentes, desconsiderou aquela taxa e substituiu a taxa praticada e os valores contabilizados pela taxa euribor a 3 meses acrescida de um spread de 2,5%, que considerou ser a taxa de juros que seria praticada entre entidades independentes em condições normais de mercado.
16.39. À taxa considerada pela AT como de plena concorrência (Euribor 3m + 2,5%) os juros calculados em 2010 ascenderiam a € 1.836.381,08, pelo que a AT desconsidera e acresce ao lucro tributável da Requerente a quantia de € 2.927.752,32 (correspondente à diferença entre o valor dos juros contabilizados - € 4.764.133,40 - e o valor dos juros aceites à taxa proposta pela AT).
16.40. Na sequência das referidas correções de preços de transferência levadas a cabo nos termos do art.º 63.º do Código do IRC, a Requerente foi notificada, no dia 21 de maio de 2014, da liquidação de IRC e de juros compensatórios que ora se contesta, da qual resultou um montante a pagar de € 15.583,57, sendo o termo do prazo de pagamento voluntário o dia 16 de julho de 2014.
16.41. A Requerente procedeu ao pagamento voluntário do montante liquidado.
b. Factos não provados
17. Dos factos com interesse para a decisão da causa, não se provaram os que não constam da factualidade descrita supra.
c. Fundamentação da decisão da matéria de facto
18. Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos aos autos.
III. Matéria de direito
A. Síntese dos argumentos das Partes
19. Os fundamentos da Requerente para a sua pretensão encontram-se sintetizados nas conclusões das alegações escritas apresentadas, as quais têm o seguinte teor:
“A. O regime dos preços de transferência não prevê a possibilidade de se recorrer a uma operação comparável interna para efeitos de correções de preços de transferência.
B. No caso sub judicio a AT não aplicou uma operação comparável externa, sendo que a operação comparável utilizada não pode servir de base à comparação das condições (taxas de juro) praticadas entre entidades relacionadas, por um lado e, entre entidades independentes, por outro lado.
C. Ainda que se admitisse a possibilidade de recurso a uma tal operação (in) comparável, - o que não se admite por falta de aderência às normas legais que regulam esta matéria de preços de transferência -, o comparável utilizado pela AT nunca poderia ser aceite, sobretudo tendo em consideração a obrigação de aplicação do mais elevado grau de comparabilidade, pois as duas operações vinculadas têm prazos de maturidade e valores substancialmente distintos, tendo num caso uma taxa fixa e noutro uma taxa variável.
D. O ato de liquidação em crise deve, pois, ser anulado por violar as normas que definem a utilização do método do preço comparável de mercado para determinação dos preços de transferência, designadamente os arts. 63.º, n.º 3, alínea a), do Código do IRC e os arts. 4.º, alínea a), e 6.º, n.º 1, da Portaria n.º 1446-C/2001.
E. A AT incumpriu o dever de fundamentação dos actos tributários, na sua vertente material, violando assim o disposto nos art.ºs 268.º, n.º 3, da CRP, 125º, n.º 2, CPA, e 77.º, n.ºs 1 e 3 da LGT, incumprindo, de uma mesma assentada, o ónus de prova dos factos constitutivos do direito à liquidação a que a mesma se encontrava adstrita nos termos do art.º 74.º, n.º 1, da LGT.
F. Conclui-se, pois, que o ato de liquidação de IRC e respetivos juros compensatórios que ora se contesta deverá ser anulado por vício de violação de lei, nomeadamente, ao abrigo do disposto nos art.ºs 100.º, n.º 1, do CPPT e 135.º do CPA.”
20. A AT conclui as suas contra-alegações conforme de transcreve de seguida:
“Tendo presente que o recurso ao método preço comparável de mercado para determinar se a taxa de juro aplicada na operação de financiamento sob análise observou o princípio de plena concorrência não gerou controvérsia, resta apurar do mérito e fiabilidade dos dados comparáveis utilizados.
Ora, quer na recolha de dados, quer no tratamento dos mesmos, por forma a fazer a aproximação possível às características específicas da concreta operação vinculada sob análise, apenas a AT logrou obter uma adequação ao contexto do mercado de operações de financiamento realizada no mercado português e ao contexto das entidades intervenientes.
Ao contrário do que se afirma e repete à saciedade nas alegações da Requerente, a AT não recorreu a um comparável interno consubstanciado numa operação vinculada, baseou-se sim, para suportar a validade dos termos que seriam fixados numa operação similar entre entidades independentes, num processo de cálculo de taxas de juro que a própria credora – B… – aceitou num financiamento obtido junto de uma instituição bancária e que repercutiu num outro financiamento concedido à A….
Todavia, os resultados obtidos com a adopção desse processo de cálculo foram efectivamente balizados pelas taxas de juro médias mensais publicadas pelo BCE aplicadas aos empréstimos no mercado português, em 2010, concluindo-se que o limite superior não ultrapassava o fornecido pelas estatísticas do BCE.
Não subsistem, pois, dúvidas quanto ao cumprimento do dever de fundamentação das correcçõesefectuadas aos gastos com juros ao abrigo das regras sobre preços de transferência, maxime do n.º 1 do art.º 63.º do CIRC.
O que não encontra fundamentação ou justificação é a divergência existente entre a taxa utilizada na operação objecto dos presentes autos (taxa de 8,62% do suprimento 2004), relativamente às taxas publicadas pelo BCE, pois a diferença ultrapassa 5 pontos percentuais e a requerente não logrou demonstrar que a taxa utilizada na remuneração do suprimento é idêntica à que seria contratada, aceite e praticada entre entidades independentes em operações similares.”
B. Quadro normativo vigente
21. O regime geral de preços de transferência encontra-se previsto no art. 63.º do CIRC, o qual, em 2010, tinha a seguinte redação:
“Artigo 63.º
Preços de transferência
1 — Nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras, efectuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.
2 — O sujeito passivo deve adoptar, para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o método ou métodos susceptíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efectua e outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais, tendo em conta, designadamente, as características dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação económica e financeira, a estratégia de negócio, e demais características relevantes dos sujeitos passivos envolvidos, as funções por eles desempenhadas, os activos utilizados e a repartição do risco.
3 — Os métodos utilizados devem ser:
a) O método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado ou o método do custo majorado;
b) O método do fraccionamento do lucro, o método da margem líquida da operação ou outro, quando os métodos referidos na alínea anterior não possam ser aplicados ou, podendo sê-lo, não permitam obter a medida mais fiável dos termos e condições que entidades independentes normalmente acordariam, aceitariam ou praticariam.
4 — Considera-se que existem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, directa ou indirectamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra, o que se considera verificado, designadamente, entre:
a) Uma entidade e os titulares do respectivo capital, ou os cônjuges, ascendentes ou descendentes destes, que detenham, directa ou indirectamente, uma participação não inferior a 10% do capital ou dos direitos de voto;
b) Entidades em que os mesmos titulares do capital, respectivos cônjuges, ascendentes ou descendentes detenham, directa ou indirectamente, uma participação não inferior a 10% do capital ou dos direitos de voto;
c) Uma entidade e os membros dos seus órgãos sociais, ou de quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, e respectivos cônjuges, ascendentes e descendentes;
d) Entidades em que a maioria dos membros dos órgãos sociais, ou dos membros de quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, sejam as mesmas pessoas ou, sendo pessoas diferentes, estejam ligadas entre si por casamento, união de facto legalmente reconhecida ou parentesco em linha recta;
e) Entidades ligadas por contrato de subordinação, de grupo paritário ou outro de efeito equivalente;
f) Empresas que se encontrem em relação de domínio, nos temos em que esta é definida nos diplomas que estatuem a obrigação de elaborar demonstrações financeiras consolidadas;
g) Entidades entre as quais, por força das relações comerciais, financeiras, profissionais ou jurídicas entre elas, directa ou indirectamente estabelecidas ou praticadas, se verifica situação de dependência no exercício da respectivaactividade, nomeadamente quando ocorre entre si qualquer das seguintes situações:
1) O exercício da actividade de uma depende substancialmente da cedência de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de know-how detidos pela outra;
2) O aprovisionamento em matérias-primas ou o acesso a canais de venda dos produtos, mercadorias ou serviços por parte de uma dependem substancialmente da outra;
3) Uma parte substancial da actividade de uma só pode realizar-se com a outra ou depende de decisões desta;
4) O direito de fixação dos preços, ou condições de efeito económico equivalente, relativos a bens ou serviços transaccionados, prestados ou adquiridos por uma encontra-se, por imposição constante de acto jurídico, na titularidade da outra;
5) Pelos termos e condições do seu relacionamento comercial ou jurídico, uma pode condicionar as decisões de gestão da outra, em função de factos ou circunstâncias alheios à própria relação comercial ou profissional.
h) Uma entidade residente ou não residente com estabelecimento estável situado em território português e uma entidade sujeita a um regime fiscal claramente mais favorável residente em país, território ou região constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças.
5 — Para efeitos do cálculo do nível percentual de participação indirecta no capital ou nos direitos de voto a que se refere o número anterior, nas situações em que não haja regras especiais definidas, são aplicáveis os critérios previstos no n.º 2 do artigo 483.º do Código das Sociedades Comerciais.
6 — O sujeito passivo deve manter organizada, nos termos estatuídos para o processo de documentação fiscal a que se refere o artigo 130.º, a documentação respeitante à política adoptada em matéria de preços de transferência, incluindo as directrizes ou instruções relativas à sua aplicação, os contratos e outros actos jurídicos celebrados com entidades que com ele estão em situação de relações especiais, com as modificações que ocorram e com informação sobre o respectivo cumprimento, a documentação e informação relativa àquelas entidades e bem assim às empresas e aos bens ou serviços usados como termo de comparação, as análises funcionais e financeiras e os dados sectoriais, e demais informação e elementos que tomou em consideração para a determinação dos termos e condições normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes e para a selecção do método ou métodos utilizados.
7 — O sujeito passivo deve indicar, na declaração anual de informação contabilística e fiscal a que se refere o artigo 121.º, a existência ou inexistência, no período de tributação a que aquela respeita, de operações com entidades com as quais está em situação de relações especiais, devendo ainda, no caso de declarar a sua existência:
a) Identificar as entidades em causa;
b) Identificar e declarar o montante das operações realizadas com cada uma;
c) Declarar se organizou, ao tempo em que as operações tiveram lugar, e mantém, a documentação relativa aos preços de transferência praticados.
8 — Sempre que as regras enunciadas no n.º 1 não sejam observadas, relativamente a operações com entidades não residentes, deve o sujeito passivo efectuar, na declaração a que se refere o artigo 120.º, as necessárias correcções positivas na determinação do lucro tributável, pelo montante correspondente aos efeitos fiscais imputáveis a essa inobservância.
9 — Nas operações realizadas entre entidade não residente e um seu estabelecimento estável situado em território português, ou entre este e outros estabelecimentos estáveis daquela situados fora deste território, aplicam-se as regras constantes dos números anteriores.
10 — O disposto nos números anteriores aplica-se igualmente às pessoas que exerçam simultaneamente actividades sujeitas e não sujeitas ao regime geral de IRC.
11 — Quando a Direcção-Geral dos Impostos proceda a correcções necessárias para a determinação do lucro tributável por virtude de relações especiais com outro sujeito passivo do IRC ou do IRS, na determinação do lucro tributável deste último devem ser efectuados os ajustamentos adequados que sejam reflexo das correcções feitas na determinação do lucro tributável do primeiro.
12 — Pode a Direcção-Geral dos Impostos proceder igualmente ao ajustamento correlativo referido no número anterior quando tal resulte de convenções internacionais celebradas por Portugal e nos termos e condições nas mesmas previstos.
13 — A aplicação dos métodos de determinação dos preços de transferência, quer a operações individualizadas, quer a séries de operações, o tipo, a natureza e o conteúdo da documentação referida no n.º 6 e os procedimentos aplicáveis aos ajustamentos correlativos são regulamentados por portaria do Ministro das Finanças.”
22. Ao abrigo do n.º 13 do art. 63.º do CIRC foi aprovada a Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro, que prevê designadamente o seguinte:
“Artigo 4.º
Determinação do método mais apropriado
1 - O sujeito passivo deve adoptar, para determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o método mais apropriado a cada operação ou série de operações, tendo em conta o seguinte:
a) O método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado ou o método do custo majorado;
b) O método do fraccionamento do lucro, o método da margem líquida da operação ou outro método apropriado aos factos e às circunstâncias específicas de cada operação que satisfaça o princípio enunciado no n.º 1 do artigo 1.º desta portaria, quando os métodos referidos na alínea anterior não possam ser aplicados ou, podendo sê-lo, não permitam obter a medida mais fiável dos termos e condições que entidades independentes normalmente acordariam, aceitariam ou praticariam.
2 - Considera-se como método mais apropriado para cada operação ou série de operações aquele que é susceptível de fornecer a melhor e mais fiável estimativa dos termos e condições que seriam normalmente acordos, aceites ou praticados numa situação de plena concorrência, devendo ser feita a opção pelo método mais apto a proporcionar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações vinculadas e outras não vinculadas e entre as entidades seleccionadas para a comparação, que conte com melhor qualidade e maior quantidade de informação disponível para a sua adequada justificação e aplicação e que implique o menor número de ajustamentos para efeitos de eliminar as diferenças existentes entre os factos e as situações comparáveis.
3 - Duas operações reúnem as condições para serem consideradas comparáveis se são substancialmente idênticas, o que significa que as suas características económicas e financeirasrelevantes são análogas ou suficientemente similares, de tal modo que as diferenças existentes entre as operações ou entre as empresas nelas intervenientes não são susceptíveis de afectar de forma significativa os termos e condições que se praticariam numa situação normal de mercado ou, sendo-o, é possível efectuar os necessários ajustamentos que eliminem os efeitos relevantes provocados pelas diferenças verificadas.
4 - Sempre que existam dúvidas fundadas acerca da fiabilidade dos valores que seriam obtidos com a aplicação de um dado método, o sujeito passivo deve tentar confirmar tais valores mediante a aplicação de outros métodos, de forma isolada ou combinada.
5 - Se, no âmbito de aplicação de um método, a utilização de duas ou mais operações não vinculadas comparáveis ou a aplicação de mais de um método considerado igualmente apropriado conduzir a um intervalo de valores que assegurem um grau de comparabilidade razoável, não se torna necessário proceder a qualquer correcção, caso as condições relevantes da operação vinculada, nomeadamente o preço ou a margem de lucro, se situarem dentro desse intervalo.
Artigo 5.º
Factores de comparabilidade
Para efeitos do artigo anterior, o grau de comparabilidade entre uma operação vinculada e umaoperação não vinculada deve ser avaliado, tendo em conta, designadamente, os seguintesfactores:
a) As características específicas dos bens, direitos ou serviços que, sendo objecto de cadaoperação, são susceptíveis de influenciar o preço das operações, em particular as característicasfísicas, a qualidade, a quantidade, a fiabilidade, a disponibilidade e o volume de oferta dos bens, aforma negocial, o tipo, a duração, o grau de protecção e os benefícios antecipados pela utilizaçãodo direito e a natureza e a extensão dos serviços;
b) As funções desempenhadas pelas entidades intervenientes nas operações, tendo emconsideração os activos utilizados e os riscos assumidos;
c) Os termos e condições contratuais que definem, de forma explícita ou implícita, o modo como serepartem as responsabilidades, os riscos e os lucros entre as partes envolvidas na operação;
d) As circunstâncias económicas prevalecentes nos mercados em que as respectivas partesoperam, incluindo a sua localização geográfica e dimensão, o custo da mão-de-obra e do capitalnos mercados, a posição concorrencial dos compradores e vendedores, a fase do circuito decomercialização, a existência de bens e serviços sucedâneos, o nível da oferta e da procura e ograu de desenvolvimento geral dos mercados;
e) A estratégia das empresas, contemplando, entre os aspectossusceptíveis de influenciar o seufuncionamento e conduta normal, a prossecução de actividades de pesquisa e desenvolvimento denovos produtos, o grau de diversificação da actividade, o controle do risco, os esquemas depenetração no mercado ou de manutenção ou reforço de quota e, bem assim, os ciclos de vida dosprodutos ou direitos;
f) Outras características relevantes quanto à operação em causa ou às empresas envolvidas.
Artigo 6.º
Método do preço comparável de mercado
1 - A adopção do método do preço comparável de mercado requer o grau mais elevado de comparabilidade com incidência tanto no objecto e demais termos e condições da operação como na análise funcional das entidades intervenientes.
2 - Este método pode ser utilizado, designadamente, nas seguintes situações:
a) Quando o sujeito passivo ou uma entidade pertencente ao mesmo grupo realiza uma transação da mesma natureza que tenha por objecto um serviço ou produto idêntico ou similar, em quantidade ou valor análogos, e em termos e condições substancialmente idênticos, com uma entidade independente no mesmo ou em mercados similares;
b) Quando uma entidade independente realiza uma operação da mesma natureza que tenha por objecto um serviço ou um produto idêntico ou similar, em quantidade ou valor análogos, e em termos e condições substancialmente idênticos, no mesmo mercado ou em mercados similares.
3 - Sempre que uma operação vinculada e uma operação não vinculada não sejam substancialmente comparáveis, o sujeito passivo deve identificar e quantificar os efeitos provocados pelas diferenças existentes nos preços de transferência, que devem ser de natureza secundária, procedendo aos ajustamentos necessários para os eliminar, por forma a determinar um preço ajustado correspondente ao de operação não vinculada comparável.”
C. Apreciação
23. Dainterpretação do art. 63.º do CIRC, em conformidade com os princípios constitucionais da legalidade e da capacidade contributiva,resulta que as correções ao lucro tributável feitas pela AT devem observar, cumulativamente, os seguintes pressupostos:
i) A existência de relações especiais entre o contribuinte e outra pessoa;
ii) A prática, entre ambos, de condições diferentes das que normalmente seriam acordadas entre entidades independentes;
iii) Que as relações especiais sejam causa adequada de tais condições;
iv) Que essas condições tenham conduzido a um lucro apurado diverso do que se apuraria na sua ausência[1].
24. Ambas as Partes reconhecem a existência de relações entre a B… e a A…, à luz do disposto no n.º 4 do art. 63.º do CIRC.
25. Quanto às condições praticadas, a Requerente, com base nos relatórios da D… e da E…, sustenta que “a taxa de juro estabelecida na operação financeira que ora se discute conformou-se com o princípio da plena concorrência, situando-se no intervalo de taxas que seriam aplicáveis num contexto de ausência de relações especiais”.
26. A AT sustenta, em sentido oposto, e transcrevendo parte do Relatório Inspetivo, que:
“Em face do exposto, conclui-se não estarmos em presença de operações comparáveis, quer quanto a sua natureza quer quanto a sua extensão territorial, que permita validar as taxas praticadas entre entidades relacionadas, pelo que não se encontra cumprido o critério de comparabilidade imprescindível para a avaliação do cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 63.º do CIRC.
Efetivamente a operação que aqui está em causa, consiste num empréstimo em dinheiro efetuado pela sócia e cuja finalidade foi amortizar outro empréstimo existente à data (2004), entre a A… e um Banco Português. Afigura-se assim que a análise efetuada pelo contribuinte, com intuito de determinar uma taxa de juro de mercado comparável com a aplicada aos suprimentos, não se revela comparável, dada a variedade e complexidade de títulos de divida abrangidos pela amostra bem como os mercados em que os mesmos são transacionados, o que torna os termos e as condições praticadas nessas transações bastante diferentes dos praticados na operação em análise.
Qualificando-se as entidades supra referidas, nos termos já explanados, enquanto entidades relacionadas, a pesquisa apresentada pela A… como operação comparável para a aferição do Princípio de Plena Concorrência na concessão dos suprimentos efetuados pela B…, não cumpre o critério da comparabilidade requerido para este efeito, pelo que, a análise exibida pelo sujeito passivo não poderá ser considerada”.
27. A AT adotou o comparável externo configurado nas taxas de juro mensais publicadas pelo BCE – MFI Interests Rates, com o seguinte fundamento: “tendo presente a natureza da operação em causa (empréstimo) e o objectivo do mesmo (amortizar o empréstimo bancário pré-existente junto de instituição bancária portuguesa), se considerou caber utilizar estas taxas para efeitos da validação da conformidade da operação vinculada em apreciação com o Princípio de Plena Concorrência, pois preenchem, designadamente, os critérios de comparabilidade (natureza e extensão) e de independência” (§ 116.º da Resposta).
28. Daqui resultou a consideração pela AT da taxa euribor a 3 meses acrescida de um spread de 2,5%como a taxa de juros que seria praticada entre entidades independentes em condições normais de mercado.
29. Ou seja a escolha do comparável foi feita em função de i) a operação configura um empréstimo e ii) o objetivo do mesmo ser a amortização de outro empréstimo (bancário).
30. Ora, para a AT utilizar a taxa euribor a 3 meses acrescida de um spread de 2,5%, teria que provar ser este o melhor preço comparável, atendendo aos fatores enumerados no art. 5.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro.
31. De acordo com a AT, a operação em causa teve o exclusivo propósito de substituir o empréstimo bancário existente à data, e é a partir da ideia de “finalidade específica” da operação que desenvolve a sua argumentação.
32. Todavia, não basta invocar essa “finalidade específica”, juntamente com a natureza daoperação – “um empréstimo” –, para fundamentar a escolha do comparável.
33. Importa sublinhar que a correção ao lucro tributável não pode assentar em meros indícios ou presunções, sob pena de violação do princípio da legalidade, exigindo-se da AT a prova da verificação dos respetivos pressupostos normativos.
34. Note-se, além do mais, que nos termos do art. 6.º da Portaria n.º 1446-C/2001 “a adoção do método do preço comparável de mercado requer o grau mais elevado de comparabilidade com incidência tanto no objecto e demais termos e condições da operação como na análise funcional das entidades intervenientes”.
35. Conforme é afirmado na Decisão Arbitral de 24-12-2012, proferida no âmbito do Processo n.º 55/2012-T “(...) só é legal a utilização deste método quando existirograu mais elevado de comparabilidade e esta tem de incidir cumulativamente no objecto, termos e condições da operação, para além da análise funcional das entidades intervenientes. Com efeito, aquela palavra «tanto» evidencia que não se está perante um arrolamento alternativo de requisitos, mas sim cumulativo”.
36. Sucede que as operações de financiamento em causa (a operação que a AT elegeu como comparável e a operação vinculada) revestem características distintas que resultam num deficiente grau de comparabilidade, face ao grau de comparabilidade exigido por lei.
37. Em primeiro lugar, no caso da operação comparável interna está em causa um período de maturação de 3 anos enquanto na operação vinculada o período de maturação é de 9 anos.
38. Em segundo lugar, os montantes mutuados a considerar são significativamente diferentes na operação vinculada e na “operação comparável” atendendo a que na operação vinculada o montante mutuado é manifestamente superior ao da operação comparável (€5.300.000,00).
39. Deste modo, conclui-se que AT não faz prova da prática, na operação vinculada, de condições diferentes das que normalmente seriam acordadas entre entidades independentes.
40. Por outro lado, a rejeição, pela AT, das conclusões do Relatório da D… alicerça-se no facto de o mesmo se ter baseado num “conjunto de 291 observações genericamente comparáveis”, não tendo sido tomada emconsideração (por, alegadamente,aD… ter “incorrido em erro”) a finalidade específica da operação, o que se julga ser manifestamente insuficiente para provar a desadequação do comparável selecionado por aquela entidade.
41. Com efeito, a AT sustentaque: “A justificação apresentada pelo contribuinte [relativa à taxa de juro aplicada na operação de financiamento ora em crise] foi extraída de uma base de dados que agrega informação relativa às taxas de juro utilizadas na remuneração de títulos de dívida diversos, emitidos nos mercados a nível mundial, ao longo do ano de 2010.” (p. 10/28 do RF).
42. E conclui “não estarmos em presença de operações comparáveis, quer quanto à sua natureza quer quanto à sua extensão territorial, que permita validar as taxas praticadas entre entidades relacionadas (...)” (p. 10/28 do RF).
43. A AT não explica, todavia, as razões pelas quais entende que as operações da amostra considerada no Relatório da D… não são comparáveis com a operação vinculada sob teste, não justificando qual é a diferente natureza entre o Empréstimo e um financiamento obrigacionista que os torne incomparáveis ou qual seria a extensão territorial aceitável.
44. Recorde-se que competia à AT fazer prova da verificação dos pressupostos para as correções previstas no art. 63.º do CIRC[2]. Todavia não o faz.
45. Assim, e em conclusão, julga-se ilegal a correção efetuada pela AT, por deficiente aplicação das normas referentes aos preços de transferência.
46. O ato de liquidação que assentou na supramencionada fixação da matéria tributável enferma, pois, do vício de erro sobre os pressupostos de direito, o que justifica a sua anulação, nos termos do artigo 163.º do CPA, aplicável nos termos previstos no art.º 29.º, alínea c), do RJAT.
47. Concluindo-se pela ilegalidade do ato de liquidação contestado, o Tribunal deve decidir uma segunda questão, que se prende com saber se são ou não devidos à Requerente juros indemnizatórios.
48. O n.º 1 do art. 43.º da Lei Geral Tributária prevê que:
“[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
49. Considera-se que “[o] erro imputável aos serviços que operaram a liquidação fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou a impugnação dessa mesma liquidação e o erro não for imputável ao contribuinte” (DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES, JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária. Anotada e comentada, 4.ª ed., Lisboa, 2012, p. 342).
50. A lei determina ainda, no art. 100.º da Lei Geral Tributária, que:
“A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”
50. Conforme é afirmado no Acórdão do STA de 11/02/2009, recurso n.º 1003/08,
“Tendo o legislador adoptado a indemnização sobre a forma de juros indemnizatórios, na sequência de decisão anulatória de acto de liquidação, presumindo o prejuízo patrimonial derivado da privação da quantia paga na sequência de um acto de liquidação ilegal, a interpretação do art. 100.º da LGT conforme à Constituição é a de que nele se reconhece o direito a juros indemnizatórios desde a data em que ocorreu a privação da quantia ilegalmente liquidada e não apenas a contar do termo do prazo de execução da decisão anulatória.”
51. No presente processo estamos perante uma liquidaçãofundada em erro de direito imputável aos serviços, donde resultou o pagamento indevido de prestação tributária pela Requerente, pelo que se reconhece a esta o direito ao reembolso da quantia indevidamente paga e a juros indemnizatórios.
52. De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), “[o]s juros são contados desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito, em que são incluídos”.
IV. Decisão
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, anular a liquidação contestada, com todos os efeitos legais;
b) Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, nos termos previstos nos artigos 43.º da Lei Geral Tributária e 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
V. Valor do processo
O valor do processo é fixado em € 15.583,57, conforme o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e Processo Tributário e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI. Custas
De acordo com o disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 918,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Lisboa, 08 de maio de 2015
O Árbitro,
Paulo Nogueira da Costa
[1] Neste sentido, cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 09-04-2002, proc. 1573/98.
[2]Cfr., entre outros, o Acórdão do TCA Sul, de 18 de Dezembro de 2008, proferido no âmbito do Processo n.º 02515/08.