Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 58/2015-T
Data da decisão: 2015-06-09   
Valor do pedido: € 225.992,32
Tema: IRC – Ajustamentos pelo justo valor
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Decisão arbitral

 

 

            Os árbitros Dr. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Sérgio de Matos e Dr. Álvaro José da Silva (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 13-04-2015, acordam no seguinte:

           

            1. Relatório

 

A…, S.A., NIPC …, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral colectivo, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à declaração de ilegalidade das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas n.ºs 2014 … e 2014 …, referentes aos exercícios de 2010 e de 2011.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 04-02-2015.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.° 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo o Exmo. Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, o Dr. Sérgio de Matos e o Dr. Álvaro José da Silva, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 26-03-2015 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 13-04-2015.

A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.

Por despacho de 11-05-2015, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e que o processo prosseguisse com alegações.

As Partes apresentaram alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas excepções.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

 

Com base nos elementos que constam do processo e do processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)     A Requerente é uma sociedade comercial sujeita a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC);

b)    A Requerente submeteu, em 2011 e em 2012, as suas declarações de rendimentos (Modelo 22) de IRC respeitantes, respectivamente, aos exercícios de 2010 e de 2011;

c)    Durante esses exercícios (2010 e 2011), a Requerente deteve participações financeiras, constituídas por acções representativas do capital social do X..., S.A., Y..., W..., U..., Z... e T…, acções essas que representavam menos de 5% do capital social dessas sociedades, sendo que tais acções estavam admitidas à negociação em mercado regulamentado;

d)      A Requerente, nas referidas declarações, considerou como variação patrimonial negativa e como ajustamento de transição do regime do Plano Oficial de Contabilidade (POC) para o regime do SNC, previsto no art.º 5º, n.ºs 1, 5 e 6 do DL 159/2009 de 13 de Julho, o valor de 20% do saldo de ajustamento, no montante de €14.401,79, que inscreveu no campo 705 do Q07 de ambas as declarações modelo 22 de 2010 e de 2011;

e)     O valor considerado pela ora Requerente é composto pelos ajustamentos de transição, efectuados em 31-12-2009, respeitantes ao saldo entre o aumento e a redução do valor da cotação de acções de entidades em que detém uma percentagem de participação inferior a 5% e corresponde a 20% desse saldo (concretizando, €72.008,93 X 0,20= €14.401,79), nos termos do quadro que segue:

(X..., U..., Y..., W..., Z... e T…)

 

f)      Em cumprimento das Ordens de serviço nºsOI2013 … e OI2014 …, foram efectuadas acções inspectivas à ora requerente de âmbito parcial – IRC e relativas aos exercícios de 2010 e 2011;

g)      A Inspecção Tributária, entendeu que, na sequência da aprovação do SNC, as participações sociais negociadas em mercado regulamentado e representativas de menos de 20% do capital social de uma determinada entidade – como é o caso das referidas acções, que representam uma participação no capital inferior a 5% – devem ser mensuradas ao justo valor através de resultados (NCRF 27) que importa relevar em termos fiscais a redução de justo valor, de acordo com o artigo 45.º, n.º 3, do CIRC (redacção à data dos factos);

h)     A Autoridade Tributária e Aduaneira, com base nesta norma, entendeu que os ajustamentos negativos de qualquer componente do capital próprio – incluindo portanto reduções de justo valor relativas a investimentos financeiros sobre acções –, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor, pelo que os ajustamentos aceites para efeitos de IRC dos exercícios referidos serão os seguintes:

(X..., U..., Y..., W..., Z... e T…)

i)      No que respeita às “Perdas por reduções de justo valor em instrumentos financeiros” contabilizadas na conta 661, verificou a Inspecção Tributária que o contribuinte inscreveu na demonstração de resultados, no quadro relativo a aumentos/reduções de justo valor, no ano de 2010 o montante de €179.672,00 e no ano de 2011 o montante de €195.173,08;

j)      Estas perdas respeitam a acções cotadas representativas de menos de 5% do capital do X..., U..., Y..., W..., Z... e T…;

k)     A Inspecção Tributária entendeu que estes ajustamentos concorrem para a formação do lucro tributável nos termos da alínea a) do nº9 do artigo 18º do CIRC e que, embora tais perdas fossem consideradas dedutíveis nos termos da (então) alínea i) do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, a respectiva dedutibilidade estava (então) limitada nos termos da última parte do n.º 3 do então artigo 45.º do mesmo diploma;

l)      Concluiu a Inspecção Tributária, após análise dos elementos enviados pela ora Requerente (Anexo VI, VII e XIII ao Relatório da Inspecção Tributária), que o mesmo deveria ter acrescido - no “campo 737 – 50% de outras perdas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio (artigo 45.º, n.º 3, parte final)” 1 – 50% dos valores de perdas por redução de justo valor que havia contabilizado na conta “661 - Perdas por reduções de justo valor” nos anos de 2010 e 2011 em apreço;

m)   Ou seja, deveria ter acrescido em 2010 o montante de €89.836,00 e em 2011 o quantitativo de €97.586,54, que correspondem a 50% do saldo registado, nesses anos, na “conta 6610 – Perdas por redução de justo valor em instrumentos financeiros”, respectivamente (repita-se) de €179.672,00 e €195.173,08;

n)     Face ao que, considerando os supra referidos ajustamentos não dedutíveis em 2010 e em 2011, a Inspecção Tributária efectuou as correspondentes correcções aos prejuízos fiscais que a ora requerente havia declarado nesses anos, reduzindo-os nos termos explanados nos quadros 3 a 6 do Relatório da Inspecção Tributária, cujo teor se dá como reproduzido;

o)     Na sequência das correcções referidas a Autoridade Tributária e Aduaneira elaborou as liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas nºs 2014 … e 2014 …, referentes aos exercícios de 2010 e de 2011, respectivamente (documentos n.ºs 1 e 2, juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

n) Em 03-02-2015, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados

 

Não há factos com relevo para a apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos provados baseiam-se no Relatório da Inspecção Tributária, cujo teor se dá como reproduzido e no acordo das Partes, não havendo controvérsia sobre eles.

 

3. Matéria de direito

 

As correcções efectuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira basearam-se na interpretação que fez do regime do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, na redacção vigente em 2010-2011, que entendeu ser aplicável aos ajustamentos decorrentes da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados.

É aceite pelas Partes as participações financeiras em questão deverão ser contabilizadas de acordo com o critério do justo valor e que os ajustamentos foram reconhecidos através de resultados.

Fica, desta forma, devidamente delimitada a questão a resolver nos autos, que é, então, a de saber se a perda contabilística resultante da aplicação retrospectiva do método do justo valor e as perdas contabilísticas verificadas nos exercícios de 2010 e 2011, decorrentes da depreciação da cotação das acções, devidamente contabilizada de acordo com o critério aplicável do justo valor, e reconhecida em resultados, deverão ser atendidas na totalidade, ou apenas em 50%.

 

            3.1.      Quadro normativo

 

O artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, na redacção dada pelo DL 159/2009, de 13 de Julho, estabelece o seguinte:

           

3 – A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.

 

            A norma geral sobre a determinação do lucro tributável de IRC é o artigo 17.º do CIRC que estabelece que

1 – O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.

           

Relativamente aos ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor, o n.º 9 do artigo 18.º do mesmo Código, dispõe que:

9 – Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, excepto quando:

a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social; ou

b) Tal se encontre expressamente previsto neste Código.

 

O artigo 20.º, n.º 1, do CIRC concretiza o conceito de rendimentos estabelecendo, no que aqui interessa, o seguinte:

 “Consideram-se rendimentos os resultantes de operações de qualquer natureza, em consequência de uma acção normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, nomeadamente:

 (...)

f) Rendimentos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;

 (...)

h) Mais-valias realizadas;”.

           

O artigo 23.º, n.º 1, do CIRC define o conceito de «gastos», estabelecendo o seguinte:

 

1 – Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente:

(...)

i)                Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;

 (...)

l) Menos-valias realizadas;”.

 

Relativamente às variações patrimoniais positivas, o artigo 21.º, n.º 1, do CIRC dispõe que:

“Concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais positivas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:

 (...)

b) As mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reavaliação ao abrigo de legislação de carácter fiscal;

 

No que concerne às variações patrimoniais negativas, o artigo 24.º, n.º 1, do CIRC refere que:

Nas mesmas condições referidas para os gastos, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:

(...)

b) As menos-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade;”.

No que diz respeito às mais e menos-valias, dispõe o artigo 46.º/1 do mesmo Código, que:

1 – Consideram-se mais-valias ou menos-valias realizadas os ganhos obtidos ou as perdas sofridas mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere e, bem assim, os decorrentes de sinistros ou os resultantes da afectação permanente a fins alheios à actividade exercida, respeitantes a:

 (...)

b) Instrumentos financeiros, com excepção dos reconhecidos pelo justo valor nos termos das alíneas a) e b) do n.º 9 do artigo 18.º”

           

3.2. Análise da questão

 

Na análise desta questão seguir-se-á de perto a fundamentação do acórdão arbitral de 25-11-2013, proferido no processo n.º 108/2013-T, que merece a concordância dos signatários.

O referido artigo 45.º, n.º 3, do CIRC decorre da renumeração do anterior artigo 42.º, n.º 3, efectuada pelo Decreto-Lei DL 159/2009.

            Este n.º 3 do artigo 42.º em causa, por sua vez, foi introduzido pela Lei 32-B/2002, de 30 de Dezembro, com a seguinte redacção:

 

       “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.”.

           

De acordo com o Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento de Estado de 2003 (p. 33), a intervenção legislativa na área em causa (IRC) guiou-se por “duas prioridades, a saber, o combate à fraude e evasão fiscais e o alargamento da base tributável”, enquadrando-se a alteração que aqui interessa no âmbito do “Alargamento da base tributável e medidas de moralização e neutralidade” (p. 51).

            A redacção actual da norma em análise, resultou já da alteração implementada pela Lei 60-A/2005 de 30 de Dezembro, sendo que nos termos do correspondente Relatório do Ministério das Finanças (p.31), a medida em causa se enquadrou no âmbito do “COMBATE À EVASÃO E FRAUDE FISCAIS E OUTRAS MEDIDAS DIRECCIONADAS À CONSOLIDAÇÃO ORÇAMENTAL”.

            Já o n.º 9 do artigo 18.º do CIRC aplicável, obtém directamente a sua justificação no preâmbulo do DL 159/2009, de 13 de Julho, que o introduziu no referido Código, onde se pode ler:

“Ainda no domínio da aproximação entre contabilidade e fiscalidade, é aceite a aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, mas apenas nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada. Assim, excluem-se os instrumentos de capital próprio que não tenham um preço formado num mercado regulamentado. Além disso, manteve-se a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados. (...)

No mesmo sentido, identificam-se como activos abrangidos pelo regime das mais-valias e menos-valias fiscais os activos fixos tangíveis, os activos intangíveis, as propriedades de investimento, os instrumentos financeiros, com excepção daqueles em que os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor concorrem para a formação do lucro tributável no período de tributação.”.

           

Estas intenções expressas têm correspondência naquela norma do n.º 9 do artigo 18.º, bem como na introdução, pelo mesmo diploma legal, das alíneas f) e i) do número 1 dos artigos 20.º e 24.º do CIRC, bem como da alínea b) do n.º 1 do artigo 46.º.

            Dentro do conjunto de alterações introduzidas pelo referido Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho, cumpre ainda salientar que onde até aí se falava de proveitos e ganhos (artigo 20.º), passou-se a falar de rendimentos, e onde antes se falava de custos ou perdas (artigo 23.º), passou-se a falar de gastos.

            Previamente à adopção do justo valor, as variações patrimoniais relativas aos instrumentos financeiros eram irrelevantes do ponto de vista da formação do lucro tributável de cada período, por efeito da norma do artigo 21.º, n.º 1, alínea b), do CIRC, que estabelecia que não concorriam para a formação do lucro tributável «as mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reabilitação legalmente autorizadas». Apenas no momento da realização da mais ou menos-valia é que assumia relevância fiscal a variação patrimonial verificada.

            Este enquadramento fiscal, que se reconduzia uma tributação única (que ocorria uma só vez ao longo de todo o período de detenção dos instrumentos financeiros), dependente de uma actuação voluntária do sujeito passivo (na medida em que a transacção dos instrumentos geradores da variação patrimonial, condição da relevância tributária daquela, apenas se daria se e quando o sujeito passivo assim o quisesse) e em que a valorimetria da variação patrimonial era fixada em função da concreta transacção que desencadeava a sua relevância tributária propiciavam um terreno fértil para manipulações contabilísticas e fiscais, já que o sujeito passivo podia optar por desencadear a relevância tributária no momento e termos em que tal lhe fosse fiscalmente mais proveitoso.

Por outro lado, e atenta a relevância da vontade do sujeito passivo no mecanismo de relevância tributária da variação patrimonial, o sistema estabelecido adequava-se à adopção de mecanismos de condicionamento daquela vontade, no sentido de a conformar a comportamentos economicamente mais desejáveis, que, no caso, passam pela preferência de realização de mais-valias, em detrimento da realização de menos-valias.

É neste quadro que se explica o surgimento da norma do anterior artigo 42.º, n.º 3, do CIRC, que precede o actual artigo 45.º, n.º 3, do mesmo.

Tal norma, quer na sua redacção primitiva, resultante da Lei 32-B/2002, de 30 de Dezembro, quer na que lhe foi dada pela Lei 60-A/2005 de 30 de Dezembro, explica-se objectiva e subjectivamente (ou seja, face à motivação expressa pelo legislador) por necessidades ligadas ao combate à fraude e evasão fiscais e ao alargamento da base tributável, dirigidas à almejada consolidação orçamental das contas públicas.

A aceitação da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, operada pelo Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho, veio introduzir, na parte abrangida, um modelo radicalmente diferente, quer de valorização quer de relevância tributária das variações patrimoniais relativas à detenção daqueles instrumentos.

Com efeito, a intenção do legislador aquando do acolhimento do modelo do justo valor, devidamente evidenciada, foi, assumida e expressamente, a de manter “a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados”.

Já relativamente a “instrumentos financeiros” que correspondam a menos “de 5 % do capital social”, “cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, (...) nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada”, a intenção legislativa foi a de aceitar “a aplicação do modelo do justo valor”, excluindo o princípio da realização.

Em consonância com esta intenção legislativa, o artigo 18.º, n.º 9, do CIRC veio dispor que, por regra, “Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados.”, o que consubstancia um afloramento evidente e deliberado do assumido princípio da realização.

Contudo, a mesma norma, na sua alínea a), estabelece a excepção a este regime, «quando: a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social;”.

Ou seja, quando os “rendimentos ou gastos (...) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor”, “concorrem para a formação do lucro tributável” “desde que”:

a)                       Sejam reconhecidos “através de resultados”;

b)                      Se tratem “de instrumentos do capital próprio”;

c)                       “tenham um preço formado num mercado regulamentado”; e

d)                      “o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social”.

Cumpridas estas condições:

a)                        consideram-se rendimentos os resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros [artigo 20.º, n.º 1, alínea f), do CIRC]; e

b)                        consideram-se gastos os resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros [artigo 23.º, n.º 1, alínea i) do CIRC].

 

Deste modo, onde antes tínhamos uma relevância tributária única, aquando da transacção daqueles instrumentos, agora passamos a ter uma relevância tributária continuada. Ou seja, face às novas normas integrantes do regime da relevância tributária da contabilização pelo justo valor de instrumentos financeiros, os rendimentos ou gastos resultantes da aplicação do justo valor a estes passam a relevar directamente para a formação do lucro tributável [artigos artigo 20.º, n.º 1, alínea f), e artigo 23.º, n.º 1, alínea i), do CIRC] do próprio ano em que se verificam, cumpridas que sejam determinadas condições (artigo 18.º, n.º 9, do CIRC), que incluem a formação do preço num mercado regulamentado, não sendo tributadas as variações patrimoniais verificadas como mais ou menos-valias [artigo 46.º, n.º 1, alínea b), do CIRC].

            Neste quadro, deixam de se verificar quaisquer necessidades relativas ao combate da fraude e evasão fiscais, não só porquanto a relevância tributária das variações patrimoniais deixa de estar condicionada por um acto de vontade do sujeito passivo, mas também porquanto a valorimetria é objectivamente fixada.

Por outro lado, e pelas mesmas razões, carece igualmente de sentido qualquer medida de condicionamento da vontade do sujeito passivo, no sentido de favorecer comportamentos economicamente mais “desejáveis” e, como tal, conformes aos interesses do alargamento da base tributável e consolidação orçamental.

Não obstante estas alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho, o anterior artigo 42.º/3 do CIRC, renumerado para artigo 45.º/3, manteve a respectiva vigência, com a sua redacção inalterada.

Daí que se questione, como ocorre nos autos, se tal norma se aplicará, ou não, às depreciações relativas a instrumentos financeiros, que concorram para a formação do lucro tributável, nos termos do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC.

Numa primeira análise, baseada exclusivamente no teor literal do n.º 3 do artigo 45.º é sugerida uma resposta afirmativa e esta questão, em face da abrangência de previsão desta norma.

Mas, uma interpretação atenta e coordenada dos normativos relevantes para a análise da questão, que se indicaram, conduz a uma conclusão diferente.

Na verdade, o artigo 45.º, n.º 3, do CIRC refere que:

A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.”

 

A análise do texto normativo revela com clareza que o legislador elegeu, para nele incluir, três tipos de situações que se deverão ter, em função da presunção de boa técnica legislativa, por distintas, a saber:

a)                       “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital”;

b)                       “outras perdas (...) relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”;

c)                       “outras (...) variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”.

 

Vejamos, então, se a situação dos autos se reconduz a alguma das elencadas situações.

A situação aludida sob a alínea a) supra, será manifestamente inaplicável, não só porque não houve qualquer realização operada mediante transmissão onerosa, mas também porque o artigo 46.º, n.º 1, alínea b), do CIRC exclui as situações descritas no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do conceito de mais-valias realizadas.

Deste modo, restam as possibilidades de integração da situação dos autos em alguma das situações elencadas nas alíneas b) e c) supra.

A aparente abrangência indiscriminada das previsões em causa, poderá, contudo, ser razoavelmente mitigada se se atentar que “perdas” e “outras variações patrimoniais negativas”, serão conceitos, não redundantes, mas dotados de um sentido próprio e distinto.

Para compreender tal facto, será necessário recuar aos artigos 23.º e 24.º do mesmo Código, atentando na evolução terminológica operada pelo artigo 159/2009, de 13 de Dezembro.

 Com efeito, antes da entrada em vigor deste último diploma, os artigos referidos do CIRC referiam, respectivamente, que:

– “Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os seguintes: (...)”;

– “Nas mesmas condições referidas para os custos ou perdas, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício, excepto: (...)”.

 

Verifica-se, deste modo, que aquando da consagração da redacção actual do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, este Código distinguiu expressamente, para o que aqui releva, três tipos de situações, a saber:

a)     Custos;

b)     Perdas;

c)     Variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício.

 

A previsão do artigo 42.º, n.º 3 (predecessor do actual 45.º, n.º 3), dever-se-á considerar, assim, por reportada a estes conceitos, definidos nos artigos 23.º e 24.º, nas redacções anteriores ao Decreto-Lei n.º 159/2009.

Deste modo, e por razões óbvias, da previsão daquela norma dever-se-ão ter por excluídos os custos relativos “a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”, incluindo-se ali, unicamente, as perdas (tal como definidas no artigo 23.º) e variações patrimoniais negativas (tal como definidas no artigo 24.º), relativas àquelas partes.

E que assim é, ou seja, que a expressão “outras perdas ou variações patrimoniais negativas” utilizada no actual artigo 45.º, n.º 3, do CIRC não tem um sentido indiscriminadamente abrangente, mas antes um sentido preciso, definido nos artigo 23.º e 24.º, decorre desde logo do facto de o legislador ter empregado a mesma distinção.

Para além disso, a inclusão no âmbito da norma em causa não só das perdas (tal como definidas no artigo 23.º) e variações patrimoniais negativas (tal como definidas no artigo 24.º), mas também dos custos (tal como definidos no artigo 23.º na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 159/2009), levaria a que, por exemplo, o custo de aquisição de partes de capital apenas concorresse em metade do respectivo valor para o apuramento do lucro tributável, o que seria, obviamente, inconcebível num legislador minimamente razoável.

A alteração normativa implementada pelo Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho, não terá alterado nada de relevante na matéria em causa. Com efeito, não obstante o corpo do artigo 23.º ter passado a referir-se unicamente a gastos, o certo é que o CIRC continua a utilizar a expressão “perdas”, incluindo no próprio artigo 23.º (cfr. n.º 1, alínea h)). Tal ocorre em coerência, aliás, com o SNC, que nos termos do ponto 2.1.3.e) do anexo ao Decreto-Lei 158/2009 de 12 de Julho, mantém a distinção entre “gastos” e “perdas”.

Deste modo, conclui-se que o artigo 45.º, n.º 3, do CIRC se reportará a:

a)                       diferenças negativas entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital;

b)                       outras perdas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio; e

c)                       outras variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

 

Sendo que por “perdas” se deve entender os factos qualificáveis como tal à luz do CIRC, e por “variações patrimoniais negativas” se deverá entender variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício, tal como definidas no artigo 24.º.

            Não se incluirão deste modo, no âmbito da norma em causa, os factos qualificáveis como “gastos”, à luz do CIRC, ainda que relativos a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

            A própria AT parece reconhecer isto mesmo, já que no “Manual de Preenchimento do Quadro 07, Modelo 22”[1], a propósito do campo 737, refere que “Neste campo são inscritas, em 50%, as importâncias relativas a outras perdas (que não sejam menos-valias, dado que estas obedecem ao “mecanismo” das mais-valias e menos-valias) relativas a partes de capital ou outras componentes de capital próprio. São, por exemplo, acrescidas neste campo 737 as importâncias correspondentes a 50% das perdas por reduções de justo valor, quando estas se enquadrem no âmbito do artigo 23.º, n.º 1, alínea i), por força do disposto no art.º 18.º, n.º 9, alínea a)”.

Sucede que o artigo 23.º, n.º 1, alínea i), do CIRC não se refere às importâncias em causa como “perdas”, mas como “gastos”, pelo que será incorrecta a sua inscrição no campo em causa.

De resto, e se dúvidas houvesse, caso o legislador, aquando da entrada em vigor do Decreto-Lei 159/2009 de 13 de Dezembro, pretendesse abranger as situações elencadas no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC, no âmbito do artigo 45.º, n.º 3, do mesmo, teria:

-                      incluído os “Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, não no artigo 23.º, mas no artigo 24.º do CIRC ( [2] ); ou

-                      referido tais situações como “perdas resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros” e não como “gastos”.

 

No quadro que se acaba de expor, deve-se então considerar que o Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho, veio introduzir, no que respeita à parte abrangida pela aceitação da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, um regime especial de relevância para o cômputo do lucro tributável, justificado quer pela sua objectividade própria quer pela confessada intenção de aproximação da contabilidade à fiscalidade.

Esta circunstância não é, face à redacção actual do CIRC, susceptível de gerar qualquer tipo de dúvidas, como se verifica, designadamente, pela redacção dos artigos 20.º, n.º 1, alíneas f) e h), 23.º, n.º 1, alíneas i) e l), e, em especial 46.º, n.º 1, alínea b), face aos quais se evidencia de uma forma clara a intenção do legislador afastar os ajustamentos decorrentes da aplicação do critério do justo valor em instrumentos financeiros, nos termos reconhecidos pelo CIRC, do regime das mais-valias e menos-valias.

            Já o regime resultante da conjugação dos artigos 45.º, n.º 3, e 46.º do CIRC, apenas faz sentido na perspectiva da atendibilidade das variações patrimoniais em causa sob o prisma do referido princípio da realização.

            É que, estando em causa, face a tal princípio, a aferição da variação patrimonial em função de uma transacção, haverá sempre um factor voluntário em relação àquela.

            Ou seja, no regime para o qual foi pensada e instituída a norma do artigo 45.º, n.º 3, a realização de menos-valias, e demais situações elencadas estava dependente de uma actuação voluntária correspondente à realização das mesmas. Ora, neste quadro, será compreensível que o legislador institua mecanismos de desincentivo a uma actuação susceptível de ser considerada como desvaliosa, no caso a realização de menos-valias ou outras variações patrimoniais negativas. Ao dispor que tais situações apenas relevarão em 50% do montante contabilizado, o legislador fiscal está, objectivamente, a condicionar as actuações abrangidas pela previsão legal, impondo um incentivo negativo às mesmas.

            Por outro lado, e estando em causa instrumentos financeiros de valor não objectivamente quantificável, a desconsideração em 50% das variações patrimoniais negativas verificadas, teria também uma função de “compensar” a natural tendência dos operadores económicos para, ao nível fiscal, inflacionarem os prejuízos.

            Contudo, aqueles aspectos não se verificarão já nas situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a). Aqui, estando-se perante ajustes decorrentes da contabilização do justo valor, determinado por critérios objectivos (com “um preço formado num mercado regulamentado”), não há qualquer dúvida ou intervenção da vontade do sujeito passivo na verificação do ajustamento patrimonial negativo ou positivo. Ou seja, estes ocorrerão ou não, independentemente da actuação e da vontade do sujeito passivo.

            Ora, penalizar, nestes casos, o sujeito passivo com uma desconsideração de 50% do gasto incorrido, seria de todo injustificado, quer de um ponto de vista económico, quer de um ponto de vista jurídico.

            É que, recorde-se, esta situação de penalização contingente (aleatória, até) injustificada, só se daria por força da excepção das situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC ao regime do princípio da realização. Ou seja, se relativamente a essas situações se aplicasse o regime geral do corpo do artigo 18.º. n.º 9, segundo o qual as mesmas não concorreriam “para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados”, a apontada incoerência não se verificaria, já que o facto que desencadearia a concorrência para a formação do lucro tributável apenas se daria por vontade do sujeito do passivo, pelo que caberia a este optar por realizar a variação patrimonial negativa, com a consequente penalização fiscal, ou diferir esta para um momento em que fosse menos volumosa ou, até positiva, diminuindo ou eliminando a penalização decorrente da operação para si e para o Erário Público. É a excepção da alínea a), ao retirar as situações aí previstas do âmbito do princípio da realização, que justifica o novo regime de relevância para o lucro tributável, que foi instituído.

            Evidência de tudo o que vem de se dizer, apresenta-se no quadro elaborado de seguida, o qual demonstra a irrazoabilidade da aplicação da norma do artigo 45.º, n.º 3, às situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a):

 

Ano

Valor Inv. Financeiro

Variação Patrimonial

Aplicação do artigo 45.º/3 do CIRC

0

Valor de aquisição (V.A.)

0

0

1

V.A.+ 40

+ 40

+40

2

V.A.+ 20

-20

-10

3

V.A

-20

-10

4

V.A.-40

-40

-20

5

V.A.

+40

+40

6

V.A. -20

-20

-10

 

            A não aplicação da norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC aos gastos, e concretamente aos “Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, com a consideração plena das repercussões patrimoniais verificadas, sejam positivas ou negativas, leva a uma coerência da tributação qualquer que seja a altura em que se verifique a alienação do instrumento financeiro. Ou seja, em qualquer altura que se escolha para proceder à alienação do instrumento financeiro, as alterações patrimoniais positivas e negativas compensam-se, de modo que, a final, o sujeito passivo apenas tenha acrescentado ou diminuído ao seu lucro tributável a diferença entre o valor de aquisição e o valor de venda.

            Já se se aplicasse a norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, como pretende a ATA, a partir do momento em que se verifique uma alteração patrimonial negativa, haverá uma discrepância entre a relevância fiscal das variações patrimoniais negativas e positivas, sem qualquer justificação, como se disse, uma vez que aquelas variações ocorrem de forma objectiva e independente da actuação ou vontade do sujeito passivo. Assim, se ao fim do segundo ano o sujeito passivo do exemplo supra procedesse à realização do instrumento financeiro em causa, não obstante ter realizado uma mais-valia de apenas 20 (que seria tributada como tal ao abrigo do princípio da realização), teria, afinal, pago imposto sobre 30 (40-10). Do mesmo modo, se procedesse àquela realização ao fim do terceiro ano, teria pago imposto sobre 20, não obstante não ter tido qualquer acréscimo patrimonial com a operação. E se procedesse à mesma realização ao fim do sexto ano, teria pago imposto como se tivesse tido um acréscimo patrimonial de 30 (80-50), não obstante ter tido uma variação patrimonial efectiva de -20, que, ao abrigo do princípio da realização consagrado no CIRC, seria atendível, ainda que em apenas 50% do respectivo valor (-10)!

            Parece claro que tais resultados, meramente aleatórios e sem qualquer justificação substancial que os sustente, não poderão ter sido queridos por um legislador razoável, que, por imperativo do artigo 104.º, n.º 2, da CRP, tem de fazer assentar a tributação das empresas fundamentalmente sobre o seu rendimento real.

            É certo que a solução alternativa, que exclui a aplicação do artigo 45.º, n.º 3, leva a que, no caso de se verificar, a final, uma menos-valia, esta acabe por ter sido considerada a 100%, e não a 50%, como ocorreria ao abrigo do princípio da realização. Seria o caso de, no exemplo do quadro supra, a realização ocorrer nos anos 4 ou 6. Contudo, esta discriminação positiva (ou melhor, não discriminação negativa) pela opção pelo critério do justo valor, poderá justificar-se, desde logo, porquanto no regime do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), deixa de fazer sentido qualquer desincentivo à realização de menos-valias, uma vez que as mesmas relevarão fiscalmente independentemente da sua efectiva realização. Não se deverá desconsiderar igualmente que, por um lado, a contabilização pelo justo valor é considerada mais conforme à aproximação entre a contabilidade e a fiscalidade, finalidade confessadamente prosseguida pelo legislador do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, e, por outro, a circunstância de estarmos perante realidades objectivamente avaliadas, sem que haja margem significativas para manipulações fiscalmente convenientes.

Ou seja, como se havia adiantado já, não se verificam as razões de combate à fraude e evasão fiscal, nem as razões de consolidação orçamental, que demonstradamente estiveram na génese da norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC.

Assim, tem de se concluir devem afastar-se do campo de aplicação deste artigo 45.º, n.º 3, as situações em que não vale a sua razão de ser, em sintonia com a velha máxima “cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)”. ( [3] ). “O método teleológico tem-se vindo a deslocar cada vez mais para um primeiro plano em relação à interpretação literal. Segundo o princípio de há longa data conhecido: cessante ratione legis, cessat lex ipsa, deve importar mais o fim e a razão de ser que o respectivo sentido literal. A ratio deve impor-se, não apenas dentro dos limites de um teor literal muitas vezes equívoco, mas ainda rompendo as amarras desse teor literal ou restringindo uma fórmula legal com alcance demasiado amplo”. ( [4] )

Deste modo, e em suma, em obediência às imposições hermenêuticas do artigo 9.º do Código Civil, segundo as quais “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (n.º 1), e “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” (n.º 3), entende-se ser de interpretar o artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, no sentido de na sua previsão não se incluírem os gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros, que relevem para a formação do lucro tributável nos termos da alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º.

Nestes termos, considerando-se que o artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC aplicável impõe a concorrência “para a formação do lucro tributável”, sem reservas ou limitações, dos “rendimentos ou gastos” que “(...) respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor”, “desde que” sejam reconhecidos “através de resultados”; se tratem “de instrumentos do capital próprio”; “tenham um preço formado num mercado regulamentado”; e “o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social”, não se aplicando, nestes casos, o artigo 45.º, n.º 3, do referido Código, na medida em que não estão abrangidos pela previsão normativa do mesmo, entende-se que merece provimento o pedido.

Consequentemente, as correcções efectuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira que estão subjacentes às liquidações impugnadas enfermam de vício de violação de lei, por errada interpretação do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, pelo que se justifica declaração da sua ilegalidade.

 

4. Decisão

 

   De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em

 

Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IRC n.ºs 2014 … e 2014 …, referentes aos exercícios de 2010 e de 2011, respectivamente, por errada aplicação do regime do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, que constitui vício e violação de lei.

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 225.992,32.

 

6. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

Lisboa, 09 de Junho de 2015

 

 

 

Os Árbitros

 

(Jorge Manuel Lopes de Sousa)

 

 

 

(Sérgio de Matos)

 

 

(Álvaro José da Silva)

 



[1]             Disponível em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/NR/rdonlyres/BAFFC60A-E1B8-4217-89E1-17440629A6BA/0/ ManualQ07201104052V.pdf, p. 31.

[2]             Em rigor, tal seria incoerente, na medida em que o artigo 18.º/9/a) refere-se a “instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados”, e o artigo 24.º se refere, como se viu a “variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício”.

[3]             BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso legitimador, página 186.

[4]             KARL ENGISCH, Introdução ao pensamento jurídico, página 120.