Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 758/2014-T
Data da decisão: 2015-06-12  IRC  
Valor do pedido: € 246.680,14
Tema: IRC – Tributações autónomas
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Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Luís Máximo dos Santos e Henrique Fernando Rodrigues, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, no seguinte

 

 

ACÓRDÃO  ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 4 de Novembro de 2014, A… S.A., doravante designada abreviadamente “Requerente”, pessoa colectiva número …, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o mesmo número, com sede social na Rua …, n.º …, …-… …, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a:

(i)              Anulação parcial da decisão de deferimento parcial do recurso hierárquico n.º …2012… na parte correspondente à tributação autónoma sobre as ajudas de custo e compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador e à correcção da mais-valia apurada com a alienação das acções da B…, S.A. (“B…”);

(ii)            Declaração da ilegalidade parcial do acto tributário de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) de 2007 com o n.º 2009…, na parte correspondente à tributação autónoma incidente sobre os encargos com ajudas de custo e compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador;

(iii)          Declaração da ilegalidade parcial do acto de autoliquidação de IRC e de derrama municipal n.º 2014 … relativo ao exercício de 2007, na parte correspondente à correcção da matéria colectável relativamente à mais-valia apurada pela Requerente com a alienação das acções da B…;

(iv)          Determinação do reembolso à Requerente dos montantes pagos em excesso em resultado das referidas correcções, acrescido de juros indemnizatórios.

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que a tributação autónoma sobre as ajudas de custo e compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador foram devidamente facturadas aos seus clientes e que, tendo o valor da B… sido corrigido, por iniciativa dos Serviços da Administração Tributária, o mesmo deveria, igualmente, ser reflectido no apuramento da mais-valia decorrente da alienação das acções da B... à C... ocorrida em 23 de Setembro de 2008.

 

  1. No dia 5-11-2014, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 2-1-2015, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo qualquer delas manifestado vontade de as recusar.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 20-1-2015.

 

  1. No dia 23-2-2015, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante a Requerida ou AT), devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.

 

  1. No dia 5-3-2015, a Requerente, notificada para o efeito, pronunciou-se sobre a matéria de excepção contida na resposta da AT.

 

  1. Atendendo a que, no caso, não se verificava qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, ao abrigo do disposto nos artigos 16.º, alínea c), e 19.º do RJAT, bem como dos princípios da economia processual e da proibição da prática de actos inúteis, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.

 

  1. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

  1. Foi fixado o prazo de 30 dias para a prolação de decisão final, após a apresentação de alegações da AT, prazo esse que foi prorrogado por mais 30 dias.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-     O período de tributação da Requerente é compreendido entre 1 de Outubro e 30 de Setembro.

2-     Em 26 de Fevereiro de 2009, a Requerente procedeu à autoliquidação do IRC respeitante ao período de tributação de 2007, mediante a entrega da declaração de rendimentos Modelo 22 do período.

3-     Em Março de 2009, a AT emitiu a nota de liquidação, com o n.º 2009 …, (correspondente ao n.º de documento 2009 …), a qual foi objecto de reclamação graciosa por parte da Requerente (em 29 de Março de 2010), com fundamento na utilização de uma taxa de tributação autónoma superior à devida e na não consideração da repartição da colecta pelas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.

4-     Em face do deferimento parcial da reclamação graciosa referida, e não se conformando com a argumentação utilizada pela AT para sustentar a decisão, a Requerente apresentou recurso hierárquico da mesma, em 28 de Junho de 2012, o qual veio a ser integralmente deferido.

5-     No dia 20 de Março de 2014, e na sequência do desfecho favorável à Requerente do procedimento de recurso hierárquico mencionado no ponto anterior, a AT emitiu a nota de liquidação com o n.º 2014 …, nos termos da qual determinou um reembolso de imposto à Requerente no montante de € 90.726,74.

6-     O exercício fiscal de 2007 foi alvo de uma acção inspectiva externa realizada às demonstrações financeiras e declarações fiscais da Requerente, no âmbito da qual foram promovidas diversas correcções ao IRC liquidado.

7-     A Requerente foi notificada do relatório final em Dezembro de 2009, no qual a DSIT promoveu, entre outras correcções à matéria colectável, uma correcção relativa à tributação autónoma incidente sobre as despesas com ajudas de custo e de compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, no montante de € 30.440,14.

8-     A referida correcção fundamentou-se:

                                                    i.          Em os procedimentos e critérios adoptados pela Requerente se manterem idênticos aos utilizados em períodos de tributação anteriores;

                                                  ii.          No pedido de informação vinculativa solicitado pela Requerente; e

                                                iii.          Na vinculação dos SIT a proceder em concordância com o despacho emitido em resposta ao pedido de informação vinculativa.

9-     Do relatório de inspecção tributária consta, para além do mais, que “(...) importa aferir da sujeição ou não a tributação autónoma dos registos contabilísticos efectuados nas contas POC # 62227310 – Amount paid per km driven e # 634242100 Wages-Daily cost imputable to customers, cujo valor não é evidenciado na factura emitida, mas tão só nos mapas de controlo das deslocações.

10- Em resultado das correcções supra referidas, as quais vieram reflectidas no relatório final de inspecção tributária, a Requerente foi notificada, em 29 de Dezembro de 2009, da liquidação adicional de IRC n.º 2009 …, relativa ao exercício de 2007, correspondente ao Documento n.º 2009 …, da qual resultava imposto a pagar no montante de € 85.761,16.

11- A citada nota de liquidação foi, depois, objecto de reclamação graciosa por parte da Requerente, a qual formulou os seguintes pedidos:

a.       Revisão do acto tributário de liquidação de IRC com o número 2009 … referente ao exercício de 2007;

b.      Redução parcial da proposta de correcção da matéria colectável de IRC, do exercício fiscal de 2007 de €92.068,05 para €24.742,53, relativa à correcção do saldo da criação líquida de postos de trabalho do ano de 2007;

c.       Anulação total da correcção de IRC em falta, no valor de €30.440,14, referente a tributação autónoma sobre os encargos com ajudas de custo e compensação pela deslocação em viatura própria do colaborador facturados a clientes; e

d.      Correcção da matéria colectável de IRC do exercício fiscal de 2007, no montante de €816.000,00, a favor da Requerente, relativa à anulação da mais-valia apurada decorrente da alienação das acções da B....

12- Na sequência do indeferimento da referida reclamação graciosa, a Requerente decidiu recorrer hierarquicamente, o que deu origem ao recurso hierárquico com o n.º 2015… tendo visto, nesse contexto, as suas pretensões apenas parcialmente deferidas.

13- Em 7 de Agosto de 2014, a Requerente foi notificada da decisão de deferimento parcial do referido recurso hierárquico.

14- No exercício de 2007, a Requerente dispunha de sub-contas autónomas que permitem distinguir as situações em que os custos são facturados a clientes daquelas em que não são facturados a clientes, conforme segue:

                                                    i.          Conta 62.22.7310 “Amount paid per kilometer driven” (Montantes pagos por quilómetro);

                                                  ii.          62.22.7320 “Cost/Km driven not imputable to customer” (Custos/quilómetros não facturados a clientes);

                                                iii.          64.24.2100 “Wages daily costs imputable to customers” (Ajudas de custo facturadas a clientes);

                                                iv.          64.24.2200 “Wages daily costs not imputable to customer” (Ajudas de custo não facturadas a clientes).

15- A Requerente dispõe, para o exercício de 2007, de mapas de controlo das deslocações, que indicam o nome do beneficiário, o local para onde se deslocou, a data da deslocação, o montante diário que lhe foi atribuído, bem como o valor facturado, com indicação dos serviços a que tais custos vão ser imputados.

16- A Requerente dispõe, também para o exercício de 2007, de outros mapas que servem para controlar o valor das ajudas de custo facturado no âmbito das suas prestações de serviços.

17- No exercício fiscal de 2006 a Requerente celebrou com a B... (sociedade sua subsidiária) um contrato nos termos do qual, a 1 de Outubro de 2006, alienou os activos e passivos relativos à área de negócio IC, pelo montante de € 157.000,00 àquela empresa.

18- Nos termos do contrato celebrado, o valor da transacção foi ajustado face à verificação de que o montante dos passivos transmitidos era superior ao dos activos em € 733.330,90, pelo que a Requerente adicionou numerário no valor de € 733.330,90 aos activos a transmitir à B..., o qual se assume como fazendo parte da transferência de activos.

19- No âmbito de uma inspecção ao exercício fiscal de 2006 (Ordem de Serviço n.º OI…), a DSIT veio efectuar uma correcção no valor de € 1.233.131,94 relativa à referida operação.

20- Considerando que a B... era detida a 100% pela Requerente à data da supra referida transacção, a DSIT considerou que não se encontrava cumprido o princípio da plena concorrência estabelecido no n.º 1 do artigo 58.º do Código do IRC (actual artigo 63.º), uma vez que o contrato celebrado entre as duas entidades em apreço não incorporava a valorização do Goodwill associado à alienação dos activos e passivos da área de negócio IC.

21- Neste contexto, a DSIT efectuou uma correcção à matéria colectável da Requerente no montante de € 1.233.131,94, que resultou, alegadamente, da avaliação do rendimento que seria gerado pelos activos intangíveis da área de negócio IC, de forma a que a operação se encontrasse valorizada pelo seu justo valor.

22- Em 23 de Setembro de 2008 (exercício fiscal de 2007), a Requerente procedeu à alienação das acções que detinha no capital social da B... à C... – (“C...”) pelo montante de € 2.316.000,00.

23- Em resultado desta operação a Requerente apurou uma mais-valia no montante de € 816.000,00, a qual foi integralmente tributada no exercício fiscal de 2007, e que corresponde à diferença entre o valor de alienação das acções (€ 2.316.000,00) e o respectivo valor de aquisição (€ 1.500.000,00).

24- O valor de aquisição das acções da B... de € 1.500.000,00 corresponde às entradas efectuadas pela Requerente para a realização do capital social inicial desta (€ 50.000,00) e ao aumento do capital social efectuado em 10 de Maio de 2007, no montante de € 1.450.000,00.

 

A.2. Factos dados como não provados

 

O valor da B... na data da sua alienação à C... era composto, entre outros elementos, pelo valor dos activos e passivos transmitidos pela Requerente em 1 de Outubro de 2006.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o processo administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

O juízo sobre o facto dado como não provado fundamenta-se na total ausência de prova a seu respeito. Com efeito, nada nos autos permite concluir que o valor dos activos e passivos transmitidos pela Requerente em 1 de Outubro de 2006 se mantinha a 23 de Setembro de 2008, data de alienação da B... à C....

 

 

B. DO DIREITO

 

            Previamente à apreciação das questões relativas ao fundo da causa, haverá que decidir a excepção suscitada pela Requerida, que diz respeito à impugnabilidade da liquidação n.º 2014….

            Conforme resulta da matéria de facto acima assente, a liquidação em causa, foi emitida na sequência da integral procedência do recurso hierárquico interposto do deferimento parcial da reclamação graciosa apresentada pela Requerente em 29 de Março de 2010, relativa à nota de liquidação, com o n.º 2009 … (correspondente ao n.º de documento 2009 …), com fundamento na utilização de uma taxa de tributação autónoma superior à devida e na não consideração da repartição da colecta pelas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.

            Entende a AT que “na medida em que se trata de liquidação de imposto integralmente favorável à Requerente, coloca-se a questão da utilidade da sua impugnabilidade, na medida em que a mesma, não reflectindo qualquer acto tributário desfavorável à Requerente, se limita a concretizar aquilo que por esta havia sido peticionado em sede de recurso hierárquico e de reclamação.”.

            Por sua vez, a Requerente entende que “sendo certo que as notas de liquidação n.º 2014 … e 2009 … (Documento n.º 2009 …) têm origem em procedimentos administrativos distintos, é verdade também que ambas respeitam ao exercício fiscal de 2007 e que, nesse sentido, a liquidação mais recente irá, necessariamente, reflectir o apuramento constante da liquidação precedente.”.

            Entende-se que assiste razão à AT. Com efeito, como esta refere, “não se pode afirmar (...) que a liquidação nº 2014… corresponde a “acto de autoliquidação de IRC”, já que a liquidação relativa à autoliquidação é (...) a liquidação nº 2009…”.

            Nesta matéria decidiu-se no Ac. do TCA-Sul de 30-04-2014, proferido no processo 05376/12[1], que:

“viii.   A impugnação judicial subsequente a uma reclamação graciosa tem por objecto não só os vícios próprios da decisão administrativa (objecto imediato) que recaiu sobre a reclamação mas também os vícios próprios da liquidação (objecto mediato), em relação aos quais não existe qualquer efeito preclusivo associado à falta de arguição na reclamação graciosa.

ix.        Contudo, como o acto tributário de liquidação é divisível, a falta da sua total e oportuna impugnação (por via administrativa e ou contenciosa) impede que os segmentos do acto que não foram objecto da reclamação graciosa possam ser atacados na impugnação judicial que lhe seja subsequente, porque neste caso se verifica uma situação de caso resolvido ou decidido em relação a tais segmentos.

x.         A preclusão do direito à impugnação de segmentos da liquidação na sequência de reclamação graciosa, na qual os mesmos não foram atacados, não viola os direitos constitucionais de acesso à justiça e de impugnação contenciosa dos actos lesivos.

xi.        Uma nova liquidação, que se limita a revogar parte de anterior liquidação, não tem natureza de acto substitutivo porque não cria um novo quadro jurídico regulador de uma situação concreta, tratando-se antes de um acto que se limita a expurgar uma parte do acto primitivo e que, por isso, não inovando na ordem jurídica na parte não revogada, tem natureza meramente confirmativa que não admite impugnação autónoma.”.

            Podendo ler-se, ainda no mesmo aresto, que:

“Como é sabido, o acto tributário é divisível. Quer isto dizer que para efeitos de impugnação contenciosa o interessado pode atacar todo o acto ou, conformando-se com parte dele, impugná-lo parcialmente.

A falta de impugnação do acto no prazo estipulado por lei implica a caducidade do direito de acção, pelo que o acto – não deixando de, eventualmente, padecer de ilegalidades intrínsecas – consolida-se na ordem jurídica. Esta conclusão vale para os casos em que só uma parte do acto é impugnada, em que a caducidade do direito de acção pelo decurso do respectivo prazo consolida a parte não abrangida pela impugnação.

Se isto é assim para os casos de impugnação directa do acto tributário, então a mesma solução deve ser adoptada para os casos de impugnação indirecta ou seja, precedida de reclamação graciosa, sob pena de se introduzir no sistema uma incoerência que certamente o legislador não previu nem quis.

É que ao permitir que em caso de indeferimento da reclamação graciosa ou do recurso hierárquico que dessa decisão for interposto o interessado possa atacar o acto de liquidação o legislador não só prolonga efectivamente o prazo para a impugnação contenciosa desta como impede que tal acto se consolide na ordem jurídica como caso resolvido ou decidido; mas essa impossibilidade de consolidação do acto de liquidação que a reclamação graciosa determina só se verifica em relação à parte do acto que foi reclamada.

Isto não significa que o objecto da impugnação fique circunscrito aos vícios invocados na reclamação: na verdade, este subdivide-se em dois: o imediato que respeita aos vícios próprios da decisão da autoridade tributária e o mediato, no que concerne aos vícios próprios da liquidação.

Entender-se, porém, que o objecto mediato abarca não só os vícios da liquidação mas também as partes que não foram administrativamente impugnadas é efectuar uma indevida interpretação conjugada dos artigos 68.º, n.º 1, e 70.º, n.º 1, do CPPT, que postulam uma estreita ligação entre a reclamação graciosa e a impugnação judicial. Essa ligação é de tal modo forte que o n.º 2 do art.º 70.º proíbe a apresentação de reclamação graciosa quando tiver sido apresentada impugnação judicial com o mesmo fundamento. Isto significa que se o contribuinte pode reagir contra o acto de liquidação atacando-o numa parte através de impugnação judicial e noutra através de reclamação; mutatis mutandis, a parte que não for objecto da reclamação graciosa não pode ser, posteriormente, objecto da impugnação, porque a conclusão óbvia que se extrai destas normas é de que os fundamentos da reclamação graciosa não podem ser alargados na impugnação judicial subsequente ao desfecho daquela, porque não tendo sido incluídos na mesma a sua dedução é impedida pela preclusão resultante da extinção do prazo para interpor a impugnação (cfr. art.º 102.º, n.º 1, do CPPT).

O inverso já não é verdadeiro: apresentada impugnação judicial o interessado dispõe ainda de um prazo suplementar (cfr. art.º 70.º, n.º 1, do CPPT) para deduzir reclamação com outros fundamentos que não tenha alegado na impugnação. Mas também esta possibilidade demonstra que só podem ser objecto de impugnação judicial deduzida na sequência de insucesso de reclamação graciosa os fundamentos (leia-se, “as partes da liquidação”) que nesta tenham sido questionadas e não quaisquer outras.”

            Aderindo-se à jurisprudência transcrita, entende-se que a liquidação n.º 2014… apenas seria impugnável na parte em que é inovatória, e já não na parte em que é meramente confirmatória.

            Ora, a parte em que aquela liquidação inovou na ordem jurídica foi integralmente favorável à Requerente.

            Já na parte restante, onde se poderia incluir a parte cuja anulação é peticionada pela Requerente, aquela liquidação é meramente confirmatória, pelo que não é impugnável.

            Assim, e face ao exposto, tendo em conta o disposto no artigo 51.º do CPTA, aplicável por força do artigo 2.º, alínea c), do CPPT, deve proceder esta excepção invocada pela AT, ficando, prejudicado, o conhecimento da outra excepção invocada por aquela, relativa à incompetência material do CAAD para apreciação do pedido de ilegalidade da liquidação n.º 2014….

 

*

            Posto isto cumpre apreciar, seguindo a ordem indicada pela Requerente, os pedidos relativos à anulação parcial da decisão de deferimento parcial do recurso hierárquico n.º …2012… e à declaração da ilegalidade parcial do acto tributário de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) de 2007 com o n.º 2009…, objecto daquele, ambos na parte correspondente à tributação autónoma sobre as ajudas de custo e compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador.

            À data dos factos regia na matéria o artigo 81.º n.º 9, do CIRC, na redacção dada pelo artigo 29.º, n.º 1, da Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro, que dispunha:

“9 - São ainda tributados autonomamente, à taxa de 5%, os encargos dedutíveis relativos a despesas com ajudas de custo e com compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não facturadas a clientes, escrituradas a qualquer título, excepto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respectivo beneficiário, bem como os encargos não dedutíveis nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 42.º suportados pelos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no exercício a que os mesmos respeitam”.

            Entende a AT que “para demonstrar os pressupostos da norma do CIRC aqui em causa, teria a então Reclamante, ora Requerente, de demonstrar que, embora não facturados ao cliente, esses valores estavam, de facto, incluídos no “preço”, e que “Aquela norma, ao recorrer à expressão “não facturadas a clientes”, visou expressamente obrigar os contribuintes a fazer constar nas facturas emitidas o montante correspondente a ajudas de custo e aos quilómetros percorridos.”.

            Com efeito, como se escreveu no Ac. proferido no processo 85/2012-T do CAAD[2]:

“A letra da alínea f) do n.º 1 do art. 42.º do CIRC, ao fazer referência a despesas “não facturadas a clientes”, não exige explicitamente que o montante das ajudas de custo e compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador seja discriminado nas facturas.

Por outro lado, não é requisito das facturas relativas às prestações de serviços, a discriminação de cada um dos custos necessários para os prestar, como se infere do art. 35.º do CIVA vigente em 2011/2002 (actual art. 36.º).

O facto de se prever, na parte final daquela alínea f), que não é dedutível a totalidade das despesas desses tipos quando a empresa não disponha «por cada pagamento efectuado, um mapa através do qual seja possível efectuar o controlo das deslocações a que se referem aquelas despesas, designadamente os respectivos locais, tempo de permanência e objectivo, excepto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respectivo beneficiário» revela que é legalmente exigível uma comprovação completa relativa à identificação dessas despesas «por cada pagamento efectuado», mas não implica que essa indicação tenha de constar das facturas. Pelo contrário, a imposição da existência de um «mapa através do qual seja possível efectuar o controlo das deslocações a que se referem aquelas despesas através do qual seja possível efectuar o controlo das deslocações a que se referem aquelas despesas» aponta no sentido de não ser necessária a indicação expressa nas facturas, já que o mapa assegurará a possibilidade do controlo visado.(...)

De qualquer modo, não foi por falta do mapa que a Administração Tributária efectuou a correcção, mas sim com fundamento apenas na não indicação expressa em cada factura das despesas daqueles tipos nelas englobadas.

Por isso, não sendo requisito das facturas relativas a prestação de serviços a indicação discriminada de todas as despesas necessárias para os prestar (o que, aliás, seria praticamente inviável, em face da existência de múltiplas despesas gerais cujo reflexo em determinado serviço é impossível de determinar com rigor), a interpretação adequada da referida alínea f) é a de que o acréscimo de 20% aí previsto se reporta apenas a despesas com ajudas de custo e compensação por uso de viatura do trabalhador cujo valor não seja englobado em facturas, pelo que não se justifica a correcção efectuada, com o fundamento invocado pela Autoridade Tributária e Aduaneira.” .

            Também na decisão do processo 733/2014T do CAAD[3], entre as mesmas partes do presente processo, se escreveu:

“16. É assim claro que não se encontra exigido por lei que os valores de ajudas de custo tenham de estar expressamente discriminados na factura. Refere-se  apenas que os mesmos têm de ser “facturados”, ou seja, têm de estar incluídos no preço a pagar pelo cliente.

17. De modo algum se pode entender que a expressão “facturado” significa “expressamente discriminado na factura”, requisito que não se encontra legalmente previsto.

18. Entende-se, por isso, que os documentos pertencentes à contabilidade da Requerente são suficientes para aferir do pagamento das ajudas de custo, não havendo por isso motivo para a correcção a que procedeu a Autoridade Tributária.”

            Efectivamente, do próprio relatório de inspecção tributária consta que “(...) importa aferir da sujeição ou não a tributação autónoma dos registos contabilísticos efectuados nas contas POC # 62227310 – Amount paid per km driven e # 634242100 Wages-Daily cost imputable to customers , cujo valor não é evidenciado na factura emitida, mas tão só nos mapas de controlo das deslocações.”.

            Estando, portanto, o valor das ajudas de custo cobradas ao cliente evidenciado na contabilidade da Requerente, conjugada com os mapas de controlo disponibilizados, haverá que concluir pelo não verificação do pressuposto da não facturação ao cliente, pressuposto pela tributação autónoma ora em questão, sendo, portanto, ilegais nessa parte os actos tributários acima identificados, que deverão ser anulados.

 

*

            Pede ainda a Requerente a anulação parcial da decisão de deferimento parcial do recurso hierárquico n.º …2012… na parte correspondente à correcção da mais-valia apurada com a alienação das acções da B…, S.A. (“B...”).

            O entendimento da Requerente relativamente a esta matéria assenta, essencialmente, no pressuposto de que o valor da B... na data da sua alienação à C... era composto, entre outros elementos, pelo valor dos activos e passivos transmitidos pela Requerente em 1 de Outubro de 2006, incluindo o goodwill que esteve subjacente às correcções efectuadas pela AT aos resultados da Requerente no exercício de 2006.

            Contudo, como acima se viu, nada se provou a este respeito, designadamente que esse mesmo goodwill se tenha mantido entre 1-10-2006 e 23-9-2008. Ou seja, e em suma, de forma alguma se demonstrou nos autos que o valor da B... à data de 23-9-2008 era o mesmo que se verificava a 1-10-2006.

            Por outro lado, alega a Requerente que[4]:

“76.º Caso os bens tivessem sido transferidos para a B... através de uma operação de entrada em espécie no seu capital, havendo lugar a um reflexo da operação no seu capital próprio, esta alteração teria obrigatoriamente um impacto directo no custo de aquisição da B... na esfera da Requerente, tanto numa perspectiva contabilística, como numa perspectiva fiscal.

77.º Ou seja, o custo de aquisição da participação social detida na B... sofreria um aumento no montante de € 1.233.131,94, diminuindo, deste modo, a mais-valia fiscal a apurar na alienação da referida participação social pelo mesmo montante. (...)

80.º De facto, tendo em conta que a B... não dispunha de meios monetários para fazer face ao pagamento do valor adicional de € 1.233.131,94, a Requerente teria de registar na sua contabilidade um activo relativo à dívida a receber da B..., pelo mesmo montante (o qual corresponderia consequentemente a um passivo na esfera da B... relativo a uma dívida a pagar).

81.º Neste contexto, num cenário de venda da participação detida pela Requerente no capital social da B..., a Requerente poderia optar por duas situações: (i) venderia a participação social juntamente com o crédito que tinha a receber no montante de € 1.233.131,94; ou (ii) venderia apenas a participação social.

82.º Caso se optasse pela primeira hipótese, o valor de realização da transacção seria alocado primeiramente ao valor da dívida que a B... teria para com a Requerente no montante de € 1.233.131,94, pelo que do montante total de realização obtido com a operação de venda da participação social de € 2.316.000,00, apenas o montante de € 1.082.868,06 seria alocado às acções vendidas.

83.º Neste sentido, e dado que o custo de aquisição da participação em apreço ascendia a € 1.500.000,00, conforme referido anteriormente, a Requerente apuraria uma menos-valia fiscal no montante de € 417.131,94.

84.º Por outro lado, caso se optasse pela segunda hipótese, o novo accionista da B... teria de dotar esta sociedade de fundos suficientes para que lhe fosse possível liquidar a dívida que apresentava perante a Requerente, no montante de € 1.233.131,94.

85.º Deste modo, e como seria de esperar, o valor de realização a contratualizar na venda da participação social detida na B... sofreria uma diminuição no montante de € 1.233.131,94, correspondente ao valor adicional de fundos a disponibilizar pelo novo accionista, pelo que mesmo neste cenário a Requerente apuraria uma menos-valia fiscal no montante de € 417.131,94.

86.º Em resultado desta correcção, a Requerente deixaria de apurar uma mais-valia de € 816.000,00 e passaria a apurar uma menos-valia no montante de € 417.131,94, a qual não concorre para a formação do lucro tributável da Requerente relativo ao exercício fiscal de 2007, uma vez que a alienação da B... foi realizada a uma entidade relacionada, nos termos da alínea a) do n.º 4 do artigo 58.º do Código do IRC.”

            Conforme se verifica das passagens sublinhadas, a pretensão da Requerente assenta em meras hipóteses ou suposições, evidenciadas pelos tempos verbais condicionais empregues.

            Ora, as decisões jurídicas assentam na aplicação de normas a factos, e não em hipóteses ou suposições, sendo certo que, no caso, nada se prova (por nenhum facto ter sido, a esse respeito, alegado) relativamente à matéria a que se reportam as alegações da Requerente.

            Não se verifica, assim, e face à matéria de facto apurada neste processo, ao contrário do que pretende a Requerente, que, à data de 23-9-2008, houvesse mais alguma circunstância a considerar no cálculo do valor de aquisição das acções da B... do que as entradas efectivamente efectuadas pela Requerente para a realização do capital social inicial desta (€ 50.000,00) e o aumento do capital social efectivamente efectuado em 10 de Maio de 2007, no montante de € 1.450.000,00.

            Não resulta demonstrada, igualmente, qualquer “dupla tributação”, seja em que sentido for, já que como resulta de tudo quanto se expôs, não se apura, por qualquer forma que um mesmo facto tributário haja dado causa, mais de que uma vez, à sujeição de um mesmo imposto, pelo que não se verificará, também, a alegada violação do princípio constitucional da tributação pelo rendimento real, consagrado no n.º 2 do artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa.

            Não há, também, que “restabelecer a justiça da situação tributária da Requerente, em virtude de a primeira transacção (alienação dos activos e passivos à B...) ser indissociável da segunda (alienação das acções da B... à C...), bem como a eliminação da dupla tributação sobre uma mesma realidade económica”, uma vez que, como já se assinalou,  não resulta demonstrada a relação entre as duas transacções, nem, muito menos, a identidade da realidade económica, que assenta no pressuposto – indemonstrado – da equivalência da situação da B... nas datas de 1-10-2006 e 23-9-2008.

            Assim, e face a tudo quanto se expôs, deverá improceder o pedido arbitral ora em apreço.

 

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Cumula a Requerente com o pedido anulatório dos actos tributários objecto dos presentes autos, o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios sobre a quantia por si paga na sequência das liquidações que sejam anuladas.

É pressuposto da atribuição de juros compensatórios que o erro em que laborou a AT lhe seja imputável (cfr. artigo 43.º da LGT).

No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade do acto de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) de 2007 com o n.º 2009…, na parte correspondente à tributação autónoma sobre as ajudas de custo e compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, pelas razões que se apontaram anteriormente, há lugar a reembolso do imposto pago pela Requerente, por força do disposto nos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.

É também claro nos autos que a ilegalidade do acto de liquidação de imposto impugnado é directamente imputável à Requerida, que, por sua iniciativa, o praticou sem suporte legal, padecendo de uma errada apreciação dos factos juridicamente relevantes e consequente aplicação das normas jurídicas ao caso concreto.

Assim, a Requerente tem direito ao recebimento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT.

Os juros indemnizatórios são devidos à Requerentes desde data em que efectuou o pagamento da prestação do imposto em causa nos autos até ao integral reembolso do montante pago, à taxa legal.

 

 

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar parcialmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)     Julga-se procedente a excepção da impugnabilidade da liquidação n.º 2014…, suscitada pela AT;

b)     Anula-se, parcialmente, a decisão de deferimento parcial do recurso hierárquico n.º …2012… e o acto tributário de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) de 2007 com o n.º 2009…, objecto daquele, ambos na parte relativa à tributação autónoma sobre as ajudas de custo e compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, correspondente ao valor de € 30.440,14;

c)     Condena-se a AT a restituir o referido valor, indevidamente pago pela Requerente, acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data daquele pagamento até à data da sua integral restituição;

d)     Julgam-se improcedentes os restantes pedidos arbitrais;

e)     Condenam-se as partes nas custas do processo, na proporção do respectivo decaimento, fixando-se a parte a cargo da AT no montante de €528,35 e a parte a cargo da Requerente no montante de €3755,65.

 

D. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 246.680,14, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €4.284,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelas partes na proporção do respectivo decaimento, acima fixada, uma vez que o pedido foi parcialmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa

 

12 de Junho de 2015

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho - Relator)

 

O Árbitro Vogal

(Luís Máximo dos Santos)

 

O Árbitro Vogal

(Henrique Fernando Rodrigues)