DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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No dia 06 de Novembro de 2014, A…, LDA., NIPC …, com sede na …, n.º …, …-… …, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos actos tributários de liquidação em sede de IMPOSTO SOBRE O VALOR ACRESCENTADO (IVA) e dos respectivos juros compensatórios, referente aos diversos períodos de tributação dos anos de 2010 e 2011, no valor global de €56.935,25, bem assim da decisão de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa.
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Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que os actos referidos estão feridos de ilegalidade por:
i. erro quanto aos pressupostos de facto e de direito, uma vez que assentarão numa incorrecta interpretação e aplicação do artigo 18.º n.º 1 alínea a) do Código do IVA e da verba 2.6 da lista I anexa;
ii. preterição de formalidades essenciais;
iii. vício de fundamentação.
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No dia 10-11-2014, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, e aquele comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 02-01-2015, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 20-01-2015.
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No dia 20-02-2015, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se unicamente por impugnação.
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No dia 17-04-2015, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram inquiridas as testemunhas, no acto, apresentadas pela Requerente.
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Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
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Foi fixado o prazo de 30 dias para a prolação de decisão final, após a apresentação das alegações.
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O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
Tudo visto, cumpre proferir
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- A coberto de três ordens de inspecção internas – OI…, OI… e OI… – foram efectuadas correcções à Requerente em sede de IVA, das quais a mesma foi notificada em Dezembro de 2013.
2- As correcções efectuadas prendem-se com a aplicação da taxa de IVA reduzida aos implantes e pilares dentários destinados à implantologia dentária.
3- No relatório de inspecção tributária, consta, para além do mais, que:
- na sequência da "análise às taxas médias de imposto evidenciadas nas declarações periódicas apresentadas nos termos do artigo 29.º do Regime do IVA das Transações Intracomunitárias (RITI) resultou inequívoco que, no que respeita a uma parte significativa das aquisições intracomunitárias de bens realizadas nos anos de 2010 a 2012, o imposto foi liquidado pelo sujeito passivo a uma taxa diversa da normal”;
- "Na sequência da análise aos elementos facultados, verificamos que o sujeito passivo efectuou, nos anos de 2010 e 2011, além do mais, ao operador B… SL, (...) aquisições intracomunitárias de diversas tipologias de implantes e pilares dentários, tendo aplicado, na liquidação de imposto com referencia a tais aquisições intracomunitárias de bens, a taxa reduzida a que se refere o artigo18.º n.º 1alínea a) do CIVA.";
- ''Nos termos do disposto na verba 2.6 da Lista I anexa ao CIVA (correspondente a verba 2.5 na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 102/2008, de 20 de Junho) a taxa reduzida do IVA a que se refere o artigo 18.º n.º 1 alínea a) do respectivo C6digo apenas abrange os «... aparelhos, artefactos e demais material de prótese ou compensação destinados a substituir no todo ou em parte, qualquer membro ou órgão do corpo humano... »";
- "no que respeita aos implantes aplicados em medicina dentária, estes não são mais do que meras raízes metálicas osseointegráveis (parte superior da boca) ou na mandíbula (parte inferior e móvel da boca) destinadas exclusivamente a servir de suporte ou de base de uma estrutura de um ou mais dentes artificiais (coroa, ponte, etc.), pelo que, a menos que que sejam transaccionados em conjunto com as peças de ligação e o dente ou conjunto de dentes artificiais (isto é, implante + peças de ligação + dente), não se afiguram susceptíveis de substituir, suprir ou reabilitar as funções do órgão ou órgãos do corpo incapacitados (...) e nessa medida não preenchem as condições necessárias para o correspondente enquadramento da citada verba.";
- "o procedimento adotado pelo sujeito passivo, consubstanciado na aplicação da taxa do IVA diversa da taxa normal para efeitos de liquidação de imposto exigível nas aquisições intracomunitárias de implantes e pilares dentários, carece de qualquer base, por falta de enquadramento de tais bens em qualquer das listas anexas ao CIVA.".
4- Considerou assim a AT que o sujeito passivo manteve a sua actividade de comercialização de aparelhos médicos de ortodontia utilizados na constituição de próteses, tendo procedido à liquidação de IVA à taxa reduzida.
5- As referidas correcções perfazem o montante de €53.997,75 para o período de 1012, de €608,35 relativos ao período de 1103 e ainda €1.789,25 referentes ao período de 1105, conforme o seguinte quadro:
6- A Requerente apresentou reclamação graciosa, das referidas liquidações, em 28.04.2014.
7- Ao abrigo do DL 151-A/2013 de 31.10, a Requerente procedeu ao pagamento das liquidações adicionais.
8- Tendo-se formado a presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa, a Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral.
9- Por despacho datado de 26-11-2014, foi anulado o valor de €2.937,50, respeitante a juros compensatórios, uma vez que foram pagos indevidamente, já que o pagamento do imposto ocorreu ao abrigo do regime do DL 151-A/2013 de 31.10.
10- Um dente é composto por duas partes, a raiz (parte interna do dente) e a coroa (a parte externa do dente).
11- Na falta de um ou mais dentes, estes são substituíveis por um implante dentário osteointegrado e uma coroa artificial, sendo o primeiro um substituto da raiz, e a segunda substitui a parte externa e visível do dente.
12- A substituição de um dente implica a implantação das suas duas componentes: a raiz, através de um implante dentário osteointegrado, e o dente artificial, através da coroa artificial, com recurso a um pilar transepitelial.
13- Os implantes dentários foram desenvolvidos para substituir as raízes dos dentes perdidos, existindo em vários tamanhos e formatos, sendo colocados no osso maxilar ou mandibular, e são pré-fabricados em série e adquiridos directamente a fornecedores.
14- O pilar transepitelial pode ser de diferentes formas e tamanhos mas também é pré-fabricado em série e adquirido directamente aos fornecedores.
15- A coroa artificial é produto de processo de natureza artesanal, sendo fabricada especificamente para cada indivíduo por técnico de laboratório especializado, sendo necessário fazer um molde da boca do paciente, que é fornecido pelo médico dentista ao técnico de próteses dentárias.
16- Um implante dentário é assim um dente artificial fixo nas gengivas ou na mandíbula de forma a substituir dentes que se encontrem em falta e consiste numa raiz metálica que, após ser colocada dentro do osso maxilar, acaba por formar com ele uma estrutura única, suportando uma coroa artificial ou servindo de base para uma ponte fixa, restituindo a capacidade mastigatória e fonética.
17- A reabilitação oral com implantes é um procedimento clínico que se desenvolve em quatro fases distintas, espaçadas no tempo de forma a permitir a ligação definitiva entre o implante e o osso - o denominado processo de osteointegração.
18- A primeira fase consiste na colocação do implante dentário, elemento em titânio puro, que garante inclusivamente a sensibilidade proprioceptiva ao paciente.
19- Na segunda fase - o denominado período de osteointegração - o implante repousa dentro de um osso por um período normal de três meses para conseguir uma ligação firme, directa e duradoura entre o implante e o osso.
20- Este processo exige a inexistência de forças sobre o implante, ficando este submergido ou acoplado num dente provisório sem carga.
21- Após o período de osteointegração inicia-se a terceira fase: o implante é exteriorizado, deixando de estar enterrado no osso para passar a atravessar a gengiva através do pilar de ligação - o pilar transepitelial.
22- A quarta fase consiste na aplicação da coroa artificial ou da prótese dentária em cerâmica ou acrílico.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e testemunhal e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Em especial, os factos dados como provados nos pontos 10 a 21, tiveram em conta a prova testemunhal produzida, tendo todas as testemunhas deposto de forma fidedigna, denotando conhecimento directo da matéria sobre a qual se pronunciaram, reflectida nos factos provados.
B. DO DIREITO
Antes de entrar na questão de fundo que se apresenta a resolver, cumpre retirar os efeitos do despacho datado de 26-11-2014, por meio do qual foi anulado o valor de €2.937,50, respeitante a juros compensatórios, uma vez que foram pagos indevidamente, já que o pagamento do imposto efectuado pela Requerente ocorreu ao abrigo do regime do DL 151-A/2013 de 31.10.
Esta revogação, expressamente aceite pela Requerente, ocorreu após a apresentação do pedido de pronúncia arbitral, que ocorreu a 06-11-2014, mas antes da constituição do Tribunal, que se deu a 20-01-2015.
Da mesma decorre, desde logo, que, nessa parte há uma inutilidade da lide, que cumpre declarar.
A mesmo não se repercute no valor da causa, que se entende ser o indicado pela Requerente no seu Requerimento Inicial, nem na distribuição das custas, já que se considera, com o Ilustre Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (CPPT- 6ª edição, volume II, página 310), que “quando um acto é anulado ou declarada a sua nulidade ou inexistência, será de entender que foi a administração tributária que deu causa ao processo ao praticar um acto em desconformidade com a lei”.
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A Requerente coloca à apreciação do Tribunal, em suma, as seguintes questões:
i. erro quanto aos pressupostos de facto e de direito, uma vez que os actos tributários objecto do presente processo assentarão numa incorrecta interpretação e aplicação do artigo 18.º n.º 1 alínea a) do Código do IVA e da verba 2.6 da lista I anexa;
ii. preterição de formalidades essenciais nos actos tributários impugnados, por desconsideração do dever de audiência prévia; e
iii. vício de falta de fundamentação.
Não tendo sido arguidos vícios que conduzam à nulidade ou inexistência do acto impugnado, nem tendo sido expressamente requerido que, na apreciação das questões suscitadas, o Tribunal siga uma ordem determinada, cumprirá conhecer, nos termos do artigo 124.º do CPPT, do vício “cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos”, o que no caso será o da alegada falta de preenchimento dos pressupostos de facto e de direito dos acto objecto do presente processo.
Vejamos então.
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Em causa está saber se será aceitável a interpretação que a Autoridade Tributária e Aduaneira faz da verba 2.6 da Lista I anexa ao CIVA, e por via da qual considera que a taxa reduzida do IVA apenas se aplica à unidade única de implante.
Efectivamente, entende a AT que se deverá considerar que “os bens que consistam em peças, partes e acessórios daquelas próteses não sejam abrangidos pela verba 2.6, dado que, para além de não serem próteses, não são aptos a cumprir, considerados individualmente, a função de substituição de uma parte do corpo ou da sua função”.
Para a AT, “a verba 2.6 apenas abrange a transmissão do artigo que, em si, configure uma peça artificial que substitua o órgão do corpo humano ou parte dele, ou seja, autonomamente ou unitariamente”.
Na perspectiva da AT, “o implante de titânio e o pilar são apenas componentes, cada um desempenhando a função para a qual foram concebidos, de suporte e fixação da prótese, mas que, de per si, objectivamente considerados, não desempenham nem substituem a função do órgão dentário.”, “são componentes, peças, partes, fracções ... daquilo que será, depois de colocada no paciente, a prótese”.
Mais considera a AT que “o legislador se refere a material de prótese e não a material para prótese (para aplicação numa prótese), o que indica excluir as peças de ligação ou fixação de próteses, como as transaccionadas pelo sujeito passivo.”.
Assim, ainda na mesma perspectiva, a isenção de IVA que ora nos ocupa reportar-se-á unicamente a “«bens completos» como sendo aqueles que, por si mesmos, podem substituir um órgão ou membro do corpo humano e não quaisquer elementos que sejam utilizados individualmente no processo de substituição.”, “produtos especificamente concebidos para a correcção ou compensação de deficiências ou para a substituição, total ou parcial, de órgãos ou membros do corpo humano.”, pelo que “No caso em apreço, ora em discussão, a questão deve estar centrada no facto de se perceber se as diferentes peças que compõem uma prótese dentária fixa, na fase de comercialização, devem estar sujeitas à taxa de IVA reduzida.”, sendo que, sempre na opinião da AT, “se estamos a falar da neutralidade sobre a tributação dos diferentes tipos de prótese temos de comparar a transmissão da prótese amovível com a da prótese fixa. E não com a da prótese fixa acrescida de peças de fixação e de ligação.”
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Diga-se, liminarmente, que não se subscreve, nos seus vários níveis, o entendimento porfiado pela AT.
Com efeito, não se subscreve esse entendimento, desde logo, no que diz respeito a um sugerido condicionamento da isenção á fase final da cadeia de transmissões dos bens em questão, excluindo do âmbito daquela, a “fase de comercialização”. Entende-se que a circunstância de a Requerente ser uma intermediária, e, como tal, vender tais bens, não ao seu destinatário final, mas a profissionais que, por sua vez, os venderão, aplicando-os, aos destinatários finais, não a exclui do âmbito da isenção, uma vez que nada na lei permite sustentar tal restrição.
Não se subscreve igualmente o entendimento da AT, segundo o qual os implantes dentários osteointegráveis e os pilares transepitelial serão “peças, partes e acessórios” das próteses, não sendo “aptos a cumprir, considerados individualmente, a função de substituição de uma parte do corpo ou da sua função”, sendo “apenas componentes, cada um desempenhando a função para a qual foram concebidos, de suporte e fixação da prótese”.
Efectivamente, afigura-se tal entendimento como contraditório nos seus próprios não se alcançando como é que, considerando-se que é próprio da prótese “a função de substituição de uma parte do corpo ou da sua função”, se pode considerar que, nos moldes em que o faz a AT, que os implantes e pilares são meros meios “de suporte e fixação da prótese”, uma vez que sem os implantes e os pilares, a parte restante do que seja – para a AT – a prótese, não será, igualmente, susceptível de assegurar individualmente “a função de substituição de uma parte do corpo ou da sua função”, pelo que no fundo... não existiria prótese. Ou seja: de acordo com a tese sustentada pela AT, não existiriam próteses dentárias fixas, uma vez que cada um dos elementos que a integram, considerados e aplicados individualmente (sendo certo que a sua aplicação conjunta, de uma só vez, é clinicamente impossível), não será susceptível de assegurar a substituição da função corporal que visam, em conjunto, suprir.
Não se tratarão assim, julga-se, os implantes e pilares, de “acrescentos” de fixação e de ligação, na medida em que não acrescentam nada à prótese, desde logo porquanto sem eles a prótese não existe.
Deste modo, considera-se que a prótese, enquanto objecto destinado a assegurar “a função de substituição de” um dente, por meio de um implante fixo, integra o implante osteointegrável, o pilar transepitelial e a coroa artificial. É este conjunto, no seu todo, que assegura a “a função de substituição de” um dente, e não apenas um daqueles elementos, desligados dos restantes.
Também não se subscreve o entendimento, sugerido pela AT, de que o implante osteointegrável e o pilar transepitelial serão, no fundo, meros materiais adquiridos para o fabrico da prótese. Considera-se, antes, que aqueles bens, são já partes acabadas da própria prótese, já que os mesmos não têm qualquer outro fim, aplicação ou utilidade que não a sua inserção no corpo humano, de modo a assegurar “a função de substituição de” um dente, e que, pela sua própria natureza, a prótese em questão não tem qualquer possibilidade de ser “completada” senão aquando da sua implantação no corpo humano, e no decurso de um processo que se prolonga, substancialmente, no tempo. De facto, não se vislumbra que se possa sustentar que, quer o implante osteointegrável, quer o pilar transepitelial, devidamente acabados, se equiparem, por exemplo, ao titânio bruto que vai ser transformado no primeiro, ou a qualquer outro elemento, matéria-prima, ou componente que, por meio de um processo de transformação, ou mesmo de montagem, se vá tornar na prótese. Pelo contrário, considera-se que quer o implante osteointegrável, quer o pilar transepitelial, devidamente acabados, são partes da prótese final, não sendo o processo da sua implantação no corpo humano, com vista à substituição do dente, um processo de transformação, ou mesmo de montagem, mas, verdadeiramente, um processo de aplicação da prótese naquele mesmo corpo, de acordo com os procedimentos medicamente necessários para o efeito.
De resto, discorda-se, também, da leitura apresentada pela AT, relativa ao texto da norma que nos ocupa, quando refere que “o legislador se refere a material de prótese e não a material para prótese (para aplicação numa prótese), o que indica excluir as peças de ligação ou fixação de próteses, como as transaccionadas pelo sujeito passivo.”. Com efeito, entende-se que ao referir-se a “material de prótese”, e não, simplesmente, a “prótese”, está o legislador, precisamente, a dar a indicação oposta à apresentada pela AT, querendo, expressamente, não se cingir apenas à prótese, enquanto objecto singular (“bem completo”, na terminologia da AT).
Este mesmo entendimento foi já unanimemente adoptado, relativamente a questão em tudo idêntica à dos presentes autos, no processo 429/2014-T do CAAD[1], onde se considerou em suma que:
“Importa salientar que o sentido e alcance da taxa reduzida aplicada neste domínio deverá ter consideração as boas regras da hermenêutica, tendo em conta não só o elemento gramatical, como o respectivo contexto, razão de ser e finalidades prosseguidas pela verba 2.6, devendo resultar numa interpretação declarativa (e não restritiva, ao contrário do que sustenta a AT).
Ora, desde logo, a letra do preceito parece indicar que os implantes dentários se enquadram na referida lista, estando nós perante material de prótese destinado a substituir um órgão do corpo humano, no caso, o aparelho dentário.
Com efeito, nada na letra da lei nos leva a restringir a sua aplicação às situações de transmissões de “bens completos” de implante, na acepção que a AT pretende veicular.
Acresce que resulta dos factos dados como provados que tal conceito não existe enquanto tal, existindo sim implantes constituídos pelas três peças de que ora tratamos – coroa, implante e pilar, que, de acordo com a técnica cirúrgica, são introduzidas por fases na boca do paciente, dando então origem, no seu conjunto, a um implante. Na realidade, estas três peças são incindíveis e inutilizáveis salvo para a composição de um implante enquanto prótese composta.
Não existindo tais “bens completos” de implante, na acepção que a AT pretende veicular, o entendimento da Administração Fiscal acaba por negar o benefício da taxa reduzida a este tipo de próteses, pondo assim em causa, sem um motivo racional atendível, a ratio legis que presidiu ao acolhimento desta verba nos termos em que se encontra redigida – a protecção da saúde pública. Com efeito, a acolher-se tal entendimento introduzir-se-ia um tratamento discriminatório arbitrário entre as diferentes próteses dentárias. Por um lado, as próteses compostas por uma única peça beneficiariam da taxa reduzida de 6%, por outro lado, as próteses “compostas” seriam tributadas à taxa normal. Tal facto é discriminatório, atentando, desde logo, nomeadamente, contra o disposto nos artigos 5.º, n.º 2 e 7.º, n.º 3 da LGT. Com efeito, de acordo com o previsto no primeiro normativo, de epígrafe, “Fins da tributação”, a tributação respeita os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material. Por sua vez, de acordo com o disposto no artigo 7.º, n.º3, “A tributação não discrimina qualquer profissão ou actividade nem prejudica a prática de actos legítimos de carácter pessoal, sem prejuízo dos agravamentos ou benefícios excepcionais determinados por finalidades económicas, sociais, ambientais ou outras”.
Mas estaríamos essencialmente perante uma intolerável ofensa ao princípio da neutralidade que rege este imposto ao nível do Direito da União Europeia, tratando-se bens iguais de forma distinta sem qualquer motivo racional atendível, facto que viola as regras que regem este imposto bem como toda a jurisprudência do TJUE a que aludimos.
Como é sabido, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 11.º da LGT, sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei. Por sua vez, no n.º3 do referido normativo determina-se que, persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários. Ora, o que o legislador comunitário, a Comissão europeia e a jurisprudência do TJUE determinam é que, na utilização dos conceitos empregues para efeitos de aplicação das taxas reduzidas, os Estados membros deverão atender aos efeitos económicos em causa de forma a não se pôr em causa o princípio essencial da neutralidade do imposto.
Ou seja, a acolher-se o entendimento veiculado pela AT no caso concreto teríamos uma diferença de tratamento para realidades idênticas resultantes não da Directiva IVA mas sim de uma deficiente aplicação da mesma por parte da Administração Fiscal.
É certo que as normas de derrogação, como é o caso da norma que possibilita aos Estados membros a aplicação de taxas reduzidas do imposto, devem ser aplicada restritivamente, mas não devemos confundir tal facto com uma aplicação selectiva, realidade completamente distinta que põe em causa as mais básicas características do imposto.
Neste contexto, importa ainda salientar que a invocação, por parte da AT, do argumento da Nomenclatura Combinada não procede, porquanto esta Nomenclatura foi criada para efeitos estatísticos e de aplicação da pauta aduaneira comum e não tem qualquer relevo em matéria de classificação de bens e serviços para efeitos de IVA em Portugal.
O único caso em que no CIVA se recorre à Nomenclatura Combinada para definir o alcance do regime tributário dos bens vem previsto no respectivo artigo 14.º, n.º 1, alínea i), para efeitos de determinação do regime de isenção (completa ou taxa zero), de acordo com o qual são isentas as “transmissões de bens de abastecimento postos a bordo das embarcações de guerra classificadas pelo código 8906 00 10 da Nomenclatura Combinada, quando deixem o país com destino a um porto ou ancoradouro situado no estrangeiro”, dispositivo este não aplicável na situação em apreço.
Sendo certo que, de acordo com o estatuído no artigo 98.º, n.º 3, da DIVA, os Estados membros podem utilizar a Nomenclatura Combinada para delimitar com exactidão cada categoria sujeita à taxa reduzida, igualmente certo é que o legislador português não acolheu esta opção.
Ou seja, para efeitos de IVA é irrelevante a classificação que os implantes, as coroas e os pilares mereçam na Nomenclatura Combinada.
Ora, neste contexto, importa uma vez mais salientar que, como ficou provado, as três “peças” ora em apreço – implante, coroa e pilar – não podem ser utilizados separadamente, sendo especialmente concebidos e fabricados para a produção de uma peça que se designa por implante. Com efeito, contrariamente ao que a AT alega, não existe a peça única implante no sentido fáctico que lhe quer conceder, mas apenas o implante constituído, enquanto tal, por implante, coroa e pilar, peças incindíveis tendo em vista esta realidade.
É por demais evidente que o facto de tais peças serem comercializadas separadamente, tal como no caso citado, o simples facto de ocorrer facturação segregada (com códigos separados) ou autónoma (em facturas separadas) não pode afectar o enquadramento e qualificação para efeitos de IVA, fazendo-se prevalecer a forma sobre a substância.
Na realidade, o que está em causa nos presentes autos e ficou provado subsume-se na previsão legal da verba 2.6 da Lista I anexa ao CIVA, consubstanciando-se como um “… aparelhos, artefactos e demais material de prótese ou compensação destinados a substituir, no todo ou em parte, qualquer membro ou órgão do corpo humano”.
E, volte-se a salientar, a ratio legis que leva o legislador a acolher a aplicação da taxa reduzida do IVA em tais situações – a protecção da saúde – é exactamente a mesma que nos leva a esta interpretação.
De notar, por último que, da jurisprudência vinda de citar, ainda que supostamente existissem, tal como a AT pretende, “bens completos” de implante, na acepção que pretende veicular, sempre teríamos que reconhecer que a coroa, o pilar e o implante se configurariam como uma peça única ou, em último caso, ainda que erroneamente assim não se entendesse, como peças acessórias, e como tal, deveriam ser tributadas à taxa reduzida, seguindo o tratamento da operação principal.
Isto é: quer apenas por recurso às regras comunitárias quer por aplicação simples das boas regras da hermenêutica, o resultado é o mesmo – só poderá concluir-se que na verba 2.6 da Lista I anexa ao CIVA se incluem quer os implantes constituídos por uma peça única quer os implantes compostos.
Com efeito, todos os elementos de interpretação das normas fiscais convocáveis para o efeito, bem como as características do IVA e a interpretação que das mesmas o TJUE tem vindo a fazer, nos levam a concluir que, no caso presente, se deverá aplicar a taxa reduzida do IVA prevista na verba 2.6 da Lista I anexa ao CIVA à transmissão dos implantes, coroas e pilares ora sob análise, termos em que se dá razão à Requerente.
Em face do exposto, conclui-se que as liquidações de IVA impugnadas enfermam de erro sobre os pressupostos de direito, por errada interpretação desta verba 2.6 da Lista I ao CIVA.”
Conclui-se, assim, que as liquidações objecto dos presentes autos enfermam de vício nos respectivos pressupostos de facto e de direito, conforme arguido pela Requerente, devendo, como tal, ser anuladas na íntegra, e ficando dessa forma prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas.
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Cumula a Requerente com o pedido anulatório do acto tributário objecto dos presentes autos, o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios sobre a quantia por si paga na sequência da notificação das liquidações ora anuladas.
É pressuposto da atribuição de juros compensatórios que o erro em que laborou a AT lhe seja imputável (cfr. artigo 43.º da LGT).
No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos actos de liquidação, pelas razões que se apontaram anteriormente, há lugar a reembolso do imposto pago pela Requerente, por força do disposto nos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.
É também claro nos autos que a ilegalidade do acto de liquidação de imposto impugnado é directamente imputável à Requerida, que, por sua iniciativa, o praticou sem suporte legal, padecendo de uma errada apreciação dos factos juridicamente relevantes e consequente aplicação das normas jurídicas ao caso concreto.
Assim, a Requerente tem direito ao recebimento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT.
Os juros indemnizatórios são devidos à Requerentes desde data em que efectuou o pagamento da prestação do imposto em causa nos autos, até ao integral reembolso do montante pago, à taxa legal.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência,
a) Declarar a inutilidade da lide, relativamente ao montante de €2.937,50, correspondente aos juros compensatórios integrados nas liquidações objecto do presente processo, anulados pelo despacho datado de 26-11-2014;
b) Anular as liquidações objecto do presente processo, na parte restante, condenando-se a AT a restituir o valor indevidamente pago pela Requerente, acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data daquele pagamento até à data da sua integral restituição;
c) Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante de €2.142,00.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em €56.935,25, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €2.142,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa
29 de Maio de 2015
O Árbitro
(José Pedro Carvalho)