Decisão Arbitral
I – Relatório
1.1. A…, contribuinte fiscal n.º …, residente na Rua …, n.º …, …, … (doravante designado por «requerente»), tendo sido notificado dos actos de liquidação de Imposto do Selo n.º 2014 … e n.º 2014 … (referentes aos anos de 2012 e 2013), emitidos ao abrigo da verba 28.1 da Tabela Geral anexa ao Código do Imposto do Selo (TGIS) – dos quais resultou um valor total de imposto a pagar de €27.393,40 –, e não se conformando com os mesmos, apresentou, em 28/10/2014, pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto no art. 2.º, n.º 1, al. a), e no art. 10.º, n.º 1 e 2, ambos do Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, daqui em diante designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a declaração de “ilegalidade dos actos de liquidação de Imposto do Selo n.º 2014 … e n.º 2014 …”, acima referidos, a condenação da AT “a reembolsar o Requerente do valor do Imposto do Selo pago” e, ainda, a condenação da AT “no pagamento [ao Requerente] de juros indemnizatórios”.
1.2. Em 6/1/2015 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.
1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos do referido artigo, em 19/1/2015. A AT apresentou a sua resposta em 6/3/2015, tendo argumentado no sentido da total improcedência do pedido do requerente e invocado, ainda, existir excepção dilatória por alegada incompetência material do Tribunal Arbitral.
1.4. Notificado, por despacho datado de 23/4/2015, o requerente pronunciou-se sobre a referida excepção através do seu requerimento de 5/5/2015.
1.5. Por despacho de 5/5/2015, o Tribunal considerou, nos termos do art. 16.º, al. c), do RJAT, ser dispensável a reunião do art. 18.º do RJAT e que o processo estava pronto para decisão. Foi, ainda, fixada a data de 15/5/2015 para a prolação da decisão arbitral.
1.6. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente (vd. infra, secção III desta decisão), o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.
1.7. Atento o disposto no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 247/2016, proferido a 4/5/2016 e que teve origem na decisão do presente Tribunal de 15/5/2015 (Acórdão que foi introduzido no SGP do CAAD em 1/6/2016), procede-se, na presente data, à reforma – dada a suspensão dos efeitos da notificação de arquivamento até ao proferimento do Acórdão do TC – da anterior decisão, em conformidade com o disposto no art. 80.º, n.º 2, da LTC.
II – Fundamentação: A Matéria de Facto
2.1. Vem o requerente alegar, na sua petição inicial, que: a) “a tributação alcançada com [a verba 28.1] é manifestamente contrária ao princípio da igualdade constitucionalmente consagrad[o]”; b) “a verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo e a tributação especial resultante da mesma promovem um tratamento diferenciado e uma desigualdade injustificada entre os contribuintes, em manifesta violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa”; c) “a violação do princípio constitucional da igualdade decorre, desde logo, do facto de [a] tributação especial da verba 28 incidir unicamente sobre uma parcela do património imobiliário de valor superior a €1.000.000,00, i.e., sobre o património afecto à habitação [...], estando excluído todo o património de elevado (ou muito elevado) valor que se encontre afecto a outros fins”; d) “a tributação pela verba 28.1 gera [...] uma manifesta iniquidade, não sendo a mesma aplicada, inexplicavelmente, a bens imóveis – propriedade de um único sujeito passivo – afectos a fins habitacionais que, apesar de isoladamente considerados terem um valor patrimonial tributário inferior a €1.000.000,00, no seu conjunto perfazem um valor patrimonial tributário superior [...] a €1.000.000,00”; e) “a aplicação da verba em análise gera [...] situações em que é conferido um tratamento desigual de situações de facto iguais, atentando contra o princípio geral da igualdade e contra o princípio da capacidade contributiva, pressuposto e critério de tributação”; f) “atento o exposto, cumpre concluir que a tributação especial, em sede de imposto de selo, incidente sobre os prédios com afectação habitacional de valor superior a €1.000.000,00, introduzida pela Lei n.º 55-A/2012, viola [...] o princípio constitucional da igualdade tributária e o seu corolário traduzido no princípio da capacidade contributiva”; g) “deverá assim proceder, com fundamento na violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, o presente pedido de anulação dos actos tributários de liquidação de Imposto do Selo”.
2.2. Conclui o requerente que deve ser “declarada a ilegalidade dos actos de liquidação de Imposto do Selo sub judice, porque assentes em normas inconstitucionais”, que a AT deve ser “condenada a reembolsar o Requerente do valor do Imposto do Selo pago” e, ainda, que deve ser “condenada no pagamento [ao Requerente] de juros indemnizatórios”.
2.3. Por seu lado, a AT vem alegar, em síntese, na sua contestação, que: a) existe “incompetência do Tribunal arbitral para declarar a inconstitucionalidade de normas legais” e que, “sendo o pedido de declaração de ilegalidade dos actos de liquidação do imposto de selo [...] consequentes da declaração de inconstitucionalidade de normas invocadas”, daqui “resulta [...] a incompetência material absoluta do Tribunal Arbitral para conhecer dos pedidos que vêm aduzidos”; b) caso se entenda que não existe excepção dilatória, “conclui-se que a redacção conferida à Verba 28.1 pela Lei 55/2012 não viola o princípio da igualdade constante do artigo 13.º da Constituição na vertente da capacidade contributiva” porque “a opção legislativa que subjaz a Verba 28.1 da TGIS traduz uma linha de orientação política que pretendeu onerar concretamente os prédios urbanos com afectação habitacional de valor elevado, ditos de luxo, convocando-os assim especialmente para participar no esforço de garantir as necessidades financeiras do Estado e do Estado social através de uma justa repartição do esforço fiscal”, sendo “por demais evidente que a capacidade contributiva de alguém que adquire onerosamente um prédio urbano habitacional com um VPT de €1.000.000,00 não é idêntica à do contribuinte que adquire dez, cem ou mil prédios urbanos habitacionais com um VPT de €100.000,00”; c) “[quanto à exclusão do âmbito de aplicação da norma dos prédios urbanos com diferentes afectações (serviços, comércio ou indústria)] o Requerente enferma de erro de análise e vício de raciocínio” porque “a opção legislativa que a Verba 28.1 da TGIS encerra [...] deixa perceber o propósito consciente de não sujeitar à tributação desta verba os prédios com afectação a serviços, indústria ou comércio, o que se entende em face da sua afectação a actividade económica e ao clima económico recessivo que se vem vivendo em Portugal, com particular gravidade desde 2011.”
2.4. Conclui a AT que, considerando o supra citado, “deve ser julgada procedente a excepção invocada e absolvida a Requerida da instância ou, se assim não se entender, deve ser julgado improcedente o pedido de pronúncia arbitral”, uma vez que se entende que os actos de liquidação “não padecem de qualquer ilegalidade”.
2.5. Consideram-se provados os seguintes factos:
i) O requerente é proprietário de prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo …, da (extinta) freguesia de …, concelho de …, distrito de Lisboa, segundo informação da caderneta predial, junta como Doc. 3 anexo à petição inicial.
ii) O referido prédio tem afectação habitacional e o valor patrimonial tributário (VPT) de €1.369.670,00. Nesses termos, e ao abrigo da verba 28.1 da TGIS, o ora requerente foi notificado da liquidação de Imposto do Selo n.º 2014 …, no valor de €13.696,70, referente ao ano de 2012, e da liquidação n.º 2014 …, também do mesmo valor, referente ao ano de 2013 (vd. Docs. 1 e 2 anexos à petição inicial).
iii) O requerente, embora não conformado com as referidas liquidações, procedeu ao pagamento integral das mesmas (como se constata pela leitura de Docs. 4 e 5 anexos à petição inicial).
2.6. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.
III – Questão prévia relativa à excepção de incompetência do Tribunal Arbitral
Na resposta de 6/3/2015, a AT alega “incompetência do Tribunal arbitral para declarar a inconstitucionalidade de normas legais”, uma vez que entende que “não estão abrangidos no âmbito da competência material do Tribunal Arbitral a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer normas pelo que está vedado ao Tribunal Arbitral a apreciação da alegada violação de princípio constitucional da igualdade da Verba 28 da TGIS”. Acrescenta, ainda, que “decorre do pedido e da causa de pedir aduzidos que a pretensão da Requerente consiste na declaração de inconstitucionalidade das normas dos artigos 4.º e 6.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro” e que, “sendo o pedido de declaração de ilegalidade dos actos de liquidação do imposto de selo [...] consequentes da declaração de inconstitucionalidade de normas invocadas, [...] improcedem todos os pedidos dele consequentes.”
Por seu lado, o requerente, na sua resposta à mencionada excepção, alegou que esta não se verifica, dado que “requereu que os actos de liquidação do Imposto do Selo em análise [fossem] declarados ilegais, o que dependerá necessariamente da prévia apreciação e decisão, pelo Tribunal Arbitral, no caso concreto, da (in)constitucionalidade das normas em apreço”. E acrescentou que “o Requerente não peticionou [...] a «declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral”, antes “peticion[ou] [...] que [fosse] declarada pelo Tribunal Arbitral a ilegalidade dos actos tributários sub judice”.
Por se tratar de questão prévia, justifica-se, desde já, a sua análise.
Lendo a petição inicial, observa-se uma aparente confusão quanto à pretensão do ora requerente: é certo que vem requerer “a ilegalidade dos actos de liquidação”, como se pode ler na fl. 1 e como se reafirma nas fls. 2 (§1 e 2), 3 (§5), 5 (§15) e 13 (§56) e, uma vez mais, na fl. 15, na al. a) do seu pedido (“seja declarada a ilegalidade dos actos tributários de liquidação de Imposto do Selo sub judice”); mas, por outro lado, também se lê na fl. 13, §57, que “deverá ser declarada a inconstitucionalidade da verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo”, e na fl. 15, no cabeçalho do pedido, que deve “ser declarada a inconstitucionalidade dos artigos 4.º e 6.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, e a inconstitucionalidade da verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo”.
Não merece dúvidas (e tal é reconhecido pelas partes) que o presente Tribunal Arbitral não tem competência para declarar a inconstitucionalidade das normas referidas (ou outras). Contudo, apesar dos ocasionais (e já referenciados) lapsos do requerente na formulação da sua posição, não deixa de ser evidente, pela leitura da petição inicial, e do pedido feito a final, que o ora requerente pretende (e pretendia) que seja (e fosse) declarada a ilegalidade dos actos tributários de liquidação aqui em causa – sendo que tal declaração depende da inaplicação de normas com fundamento na sua invocada inconstitucionalidade (vd. fl. 15, al. a), do pedido).
Porque o texto da petição inicial suporta esta leitura – e porque ela é, assim formulada, compatível com a competência material dos Tribunais Arbitrais – conclui-se ser improcedente a alegada excepção de incompetência. Com efeito, reafirma-se que os Tribunais Arbitrais têm competência para – se assim o entenderem – recusar a aplicação, no caso concreto, de normas legais com fundamento na sua inconstitucionalidade ou, ainda, para aplicar normas legais cuja inconstitucionalidade tenha sido invocada.
IV – Questão preliminar relativa ao recurso para o Tribunal Constitucional
Da anterior sentença proferida por este Tribunal em 15/5/2015 foi, em devido tempo, interposto recurso para o Venerando Tribunal Constitucional, o qual decidiu nos seguintes termos, que se transcrevem (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 247/2016, de 4/5/2016 – proferido nos Autos de Recurso n.º 572/15, ao qual foi apensa a Reclamação com o n.º 795/15, na sequência do seu deferimento –, e que transitou em julgado em 19/5/2016):
“A questão da inconstitucionalidade que constitui objecto do presente recurso foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 590/15, que não julgou inconstitucional a norma constante da verba 28 e 28.1 da Tabela Geral do Imposto de Selo, aditada pelo artigo 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro. Esta jurisprudência foi recentemente reafirmada no Acórdão n.º 83/2016 e não sofreu desvios nos Acórdãos n.º 620/15 e 692/15, que não julgaram inconstitucional a norma de incidência constante da verba 28.1 da mesma Tabela, «quando interpretada no sentido de que nele se incluem os prédios urbanos habitacionais em propriedade total compostos por partes susceptíveis de utilização independente e consideradas separadamente na inscrição matricial.
Apreciando o problema de inconstitucionalidade à luz dos princípios da igualdade tributária, capacidade contributiva e proporcionalidade, considerou-se no referido Acórdão n.º 590/15, a tal propósito, o seguinte:
«Princípios da igualdade tributária e capacidade contributiva
12. (...)
O princípio constitucional da igualdade tributária, como expressão específica do princípio geral estruturante da igualdade (artigo 13.º da Constituição), encontra concretização “na generalidade e na uniformidade dos impostos. Generalidade quer dizer que todos os cidadãos estão adstritos ao pagamento de impostos (…); por seu turno, uniformidade quer dizer que a repartição dos impostos pelos cidadãos obedece ao mesmo critério idêntico para todos” (TEIXEIRA RIBEIRO, Lições de Finanças Públicas, 5.ª edição, pág. 261). E tal critério, como sublinha CASALTA NABAIS, encontra-se no princípio da capacidade contributiva: “Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)” (Direito Fiscal, 7.ª edição, 2012, pág. 155). Como pressuposto e critério de tributação, o princípio da capacidade contributiva “de um lado, constituindo a ratio ou causa da tributação afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na seleção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objeto e matéria coletável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto” (CASALTA NABAIS, ob. cit., pág. 157).
Assim o tem afirmado o Tribunal Constitucional, de que é exemplo o Acórdão n.º 84/2003:
«O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de “uniformidade” – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação», entendendo-se esse critério como sendo aquele em que «a incidência e a repartição dos impostos – dos “impostos fiscais” mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou “capacidade de gastar” (...) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício). (...) Não obstante o silêncio da Constituição, é entendimento generalizado da doutrina que a “capacidade contributiva” continua a ser um critério básico da nossa “Constituição fiscal” sendo que a ele se pode (ou deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados nos artigos 103.º e 104.º da CRP (...)».
Este Tribunal tem, todavia, salientado que o princípio da capacidade contributiva não dispensa o concurso de outros princípios constitucionais. Como se referiu no Acórdão n.º 711/2006, «é claro que o “princípio da capacidade contributiva” tem de ser compatibilizado com outros princípios com dignidade constitucional, como o princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, indispensáveis também para o cumprimento das finalidades do sistema fiscal». E prossegue: «Averiguar, porém, da existência de um particularismo suficientemente distinto para justificar uma desigualdade de regime jurídico, e decidir das circunstâncias e fatores a ter como relevantes nessa averiguação, é tarefa que primariamente cabe ao legislador, que detém o primado da concretização dos princípios constitucionais e a correspondente liberdade de conformação. Por isso, o princípio da igualdade se apresenta fundamentalmente aos operadores jurídicos, em sede de controlo da constitucionalidade, como um princípio negativo (…) - como proibição do arbítrio».
Em suma, na síntese do Acórdão n.º 695/2014, “o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional”.
13. A argumentação da recorrente coloca-se neste último plano, respondendo negativamente à interrogação sobre a razão de ser da tributação sindicada, fundamentalmente por assumir, na sua ótica, caráter assistemático e arbitrário, a partir da consideração de que a tributação do património imobiliário deveria ser feita em sede de IMT e IMI, e por discriminar sem fundamento racional contribuintes com a mesma capacidade contributiva. Sem razão, adiante-se.
14. Desde logo, da inscrição da tributação em análise no âmbito do Imposto do Selo, e não noutras espécies de impostos, não resulta, em si mesma, infração de qualquer parâmetro de constitucionalidade. Mesmo que fosse de concluir pela introdução de fator de incoerência, ou mesmo de desequilíbrio, no sistema de tributação do património imobiliário, como pretende a recorrente, a mera assistematicidade da norma questionada não é idónea a determinar a censura constitucional (cfr., ainda que noutros campos de regulação, os Acórdãos nº 353/2010 e 324/2013).
Note-se, ainda assim, que a incidência do Imposto do Selo, marcado pela heterogeneidade, remete aqui, no que concerne a elementos essenciais da liquidação do tributo, mormente quanto aos critérios normativos definidores do valor patrimonial a considerar, para a regulação constante do Código do IMI, assegurando, ou pelo menos promovendo, um certo grau de sintonia entre os vários corpos legislativos no âmbito da tributação do património. A doutrina atribui-lhe mesmo a condição de “taxa adicional do IMI”, dirigido a “discriminar os prédios de mais elevado valor patrimonial e sujeitá-los a um regime fiscal mais gravoso que os restantes” (JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES, ob. cit., pág. 504), explicando a criação de um novo facto sujeito a Imposto do Selo, para além da heterogeneidade que o reveste este imposto, pela necessidade de aumentar as receitas fiscais do Estado, uma vez que a receita do IMI reverte a favor dos municípios e o Imposto do Selo é uma receita do Estado (ob. cit., pág. 506).
Podem, seguramente, conceber-se outras vias ao alcance do legislador, eventualmente por recurso a outras espécies tributárias, mas não é menos certo que a opção tomada encontra inscrição na ampla margem de conformação do legislador fiscal, sendo insuscetível de fundar autónoma censura constitucional.
15. Também não se encontra na norma de incidência em apreço medida fiscal arbitrária, porque desprovida de fundamento racional. Como se viu, a alteração legislativa teve como propósito alargar a tributação do património, fazendo-a recair de forma mais intensa sobre a propriedade que, pelo seu valor bastante superior ao do da generalidade dos prédios urbanos com afetação habitacional, revela maiores indicadores de riqueza e, como tal, é suscetível de fundar a imposição de contributo acrescido para o saneamento das contas públicas aos seus titulares, em realização do aludido “princípio da equidade social na austeridade”.
A recorrente afirma que a norma em apreço é “iníqua” e avança com dois casos hipotéticos que, na sua ótica, tornam patente a violação dos princípios da igualdade tributária e capacidade contributiva.
15.1. O primeiro caso compara dois contribuintes, em que um possui “um património no valor de cerca de um milhão e 250 mil euros” e suporta Imposto do Selo por via da norma de incidência da verba nº 28, e outro que, por “possui[r] património no valor de 20 milhões de euros mas não tem, nesse acervo, qualquer imóvel com valor patrimonial tributário superior a 1 milhão” não suporta qualquer tributação. Daí decorre, sustenta, “desigualdade vertical” entre contribuintes sem razão justificativa.
Porém, a comparação proposta não encontra cabimento, pois afasta-se, no tertium comparationis eleito, da estrutura da norma em análise. A tributação decorrente da norma de incidência alojada na verba n.º 28 assume a natureza de imposto parcelar (assim, JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES, ob. cit., pág. 507), tomando como base tributável o prédio urbano afeto à habitação, calculando o respetivo valor patrimonial tributário por unidade jurídica e económica relevante. Não constitui imposto geral sobre o património, ou mesmo imposto sobre todo o património imobiliário, em termos de fundar uma comparação radicada numa ótica de personalização do imposto e a partir de base que atenda a todo o património do sujeito tributário.
15.2. Cabe referir que a Constituição não impõe ao legislador a criação de um imposto geral sobre o património, atribuindo à tributação sobre o património a função de contribuir para a igualdade entre os cidadãos (artigo 104.º, n.º 3, da Constituição), sendo o legislador livre quanto à solução a adotar. Pode, como aponta CASALTA NABAIS, em prossecução de tal objetivo constitucional, “proceder à discriminação de patrimónios, tributando os mais elevados e isentando os mais baixos ou adotando taxas progressivas” (ob. cit., pág. 436). E, mesmo que se possa extrair do princípio da capacidade contributiva um modelo de imposto geral sobre o património com uma base tributável alargada a todas as manifestações de riqueza, os obstáculos de praticabilidade que se lhe opõem são suscetíveis de conduzir na realidade à criação de desigualdades entre os contribuintes. Como refere SÉRGIO VASQUES (Capacidade Contributiva, Rendimento e Património, in Fiscalidade, 2005a, n.º 23, pág. 44):
«[A]í onde se instituíram impostos desta natureza – e não são muitos os casos – a sua aplicação tem sido viciada pela fraude mais grosseira, produzindo-se com isso uma desigualdade entre os contribuintes que se não pode tolerar. A igualdade de um imposto mede-se pelos resultados da sua aplicação e quando o legislador saiba de antemão que não pode tributar uma qualquer manifestação de riqueza com igualdade efetiva, deve então abster-se de a sujeitar a imposto.
Podemos por isso concluir dizendo que o princípio da capacidade contributiva possui um conteúdo útil e preciso na conformação dos impostos sobre o património mas que o modelo para o qual aponta, o do imposto sobre o património líquido global, produz na prática quebras de igualdade maiores do que os ganhos que traz. Quando se afirma que não há espaço nos sistemas fiscais modernos para um imposto sobre o património global ao lado do IVA e do imposto sobre os rendimentos pessoais isso será bem verdade – não por força do princípio da capacidade contributiva, que o reivindica, mas por razões de praticabilidade que lhe são estranhas.»
15.3. Assim sendo, a aferição do respeito pelo princípio da igualdade fiscal na sua dimensão material carece de ser referida à unidade prédio afeto à habitação, o que importa a conclusão de que no primeiro caso não existe discriminação arbitrária entre contribuintes na operação uniforme do critério substantivo relevante, traduzido na atribuição a cada prédio com afetação habitacional de valor patrimonial tributário igual ou superior a €1.000.000,00.
Como, ainda, persiste uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, sem infringir o princípio da capacidade contributiva, cujo alcance, não sendo excluído, diminui no âmbito da tributação do património, face ao que acontece na tributação sobre o rendimento (assim, SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2011, pág. 254). Com efeito, a recorrente não disputa que o valor patrimonial tributário de que depende a incidência do imposto é atingido apenas pelos prédios urbanos de vocação habitacional de mais alto significado económico, exteriorizando níveis de riqueza correspondentes aos padrões mais elevados da sociedade portuguesa.
15.4. O segundo caso, segundo a recorrente demonstrativo de desigualdade no plano horizontal, compara a tributação que lhe foi imposta, como proprietária de prédio cujo valor patrimonial tributário ultrapassa “por pouco” o montante de €1.000.000,00, com a não tributação de um contribuinte hipotético que fosse proprietário de 10 imóveis, cujo valor patrimonial tributário se situasse em €990.000,00.
Cabe referir que a existência de resultados aplicativos distintos perante valores muito aproximados - por excesso ou por defeito - de uma expressão quantitativa estipulada normativamente como limite – positivo ou negativo – de um qualquer efeito jurídico é conatural à respetiva fixação pelo legislador. Seja na definição da incidência fiscal, seja na estatuição de isenções ou benefícios fiscais assentes em critérios de valor, é sempre possível encontrar exemplos de contribuintes com tratamento diferenciado a partir de uma variação quantitativa de muito reduzida expressão.
Por ser necessariamente assim, a diferenciação comportada na segunda hipótese colocada não se mostra desprovida de fundamento racional, de acordo com o escopo, estrutura e natureza da norma em análise: votada a incrementar a tributação de prédios com afetação habitacional de valor elevado, a medida fiscal não podia deixar de determinar, por imperativo do princípio da legalidade fiscal, o concreto valor patrimonial a partir do qual passava a incidir sobre tais prédios uma taxa especial de Imposto do Selo, o que afasta, também neste ponto, a verificação de arbitrariedade por parte do legislador.
Princípio da proporcionalidade
16. No que se refere à violação do princípio da proporcionalidade, apontada pela recorrente na parte final do requerimento transcrito no ponto 2 como corolário da violação dos princípios atrás apreciados, mostra-se patente a falta de razão da recorrente.
Com efeito, a recorrente sustenta em alegações, ainda que a propósito de outro parâmetro, que não se encontra, na espécie, uma adequada relação meio-fim, porquanto a receita arrecadada com este imposto não tem “qualquer significado relevante”, sendo o valor cobrado em 2012 “necessariamente uma receita escassa” (cfr. fls. 16 e 17 das alegações, a fls. 301 e 302 dos autos).
O raciocínio toma, porém, como premissa algo que não corresponde à finalidade da norma: o legislador não visou atingir apenas por este meio o objetivo de reequilíbrio das contas públicas, reconhecidamente difícil. Pretendeu, como se viu, alargar a base tributável à riqueza exteriorizada na propriedade de prédios urbanos destinados à habitação de elevado valor e, numa perspetiva de promoção da consolidação orçamental, como instrumento de obtenção de mais receita e, correspondentemente, de alívio do esforço que pudesse vir a incidir sobre outras fontes de receita ou sobre a redução da despesa pública, com vista a cumprir as metas de défice público, não sofre dúvida que as verbas de Imposto do Selo arrecadadas por via da incidência prevista na verba n.º 28, qualquer que seja o seu montante, são aptas e idóneas a realizar as finalidades de repartição ampliada do esforço em período de sacrifícios fiscais e financeiros adicionais que o legislador procurou atingir. Como, enquanto medida fiscal dirigida a afetar mais intensamente os titulares de direitos reais de gozo sobre prédios urbanos de vocação habitacional e de mais alto valor, ao alcance apenas dos detentores de força económica elevada, não se vislumbram razões para concluir pelo desrespeito das dimensões da necessidade ou da justa medida, contidas no princípio da proporcionalidade.
17. Não se verificando a violação dos parâmetros de constitucionalidade invocados pela recorrente, nem de quaisquer outros, improcede, por conseguinte, o recurso.»
Afigura-se que, também no caso sub judicio, é de reiterar tal jurisprudência”. [Fim de citação.]
V – Fundamentação: A Matéria de Direito
Como foi referido no texto da anterior decisão deste Tribunal arbitral, eram aí (e agora permanecem) duas as questões a decidir: 1) “saber se a verba 28.1 da TGIS viola o princípio da igualdade (art. 13.º da CRP) e o princípio da capacidade contributiva”; e 2) “saber se são devidos juros indemnizatórios ao requerente”.
1) Tendo o citado Acórdão do Tribunal Constitucional decidido, de forma definitiva, a referida questão 1) – entendendo “não julgar inconstitucional a norma constante da verba 28 e 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, aditada pelo artigo 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro”, por considerar não haver violação dos mencionados princípios (reiterando, nesse sentido, a jurisprudência constante do Acórdão n.º 590/15, também acima citado) –, cabe ao presente Tribunal dar cumprimento ao que aí foi decidido, pelo que se conclui, também nesta sede (e com os mesmos fundamentos), ser improcedente a alegação do ora requerente quanto à invocada violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva.
2) Tendo em consideração o disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, não se justifica, em relação a esta questão (não directamente versada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 247/2016), a promoção de novas diligências, uma vez que as mesmas seriam manifestamente desnecessárias.
Refere o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou em impugnação judicial, ter havido erro imputável aos serviços do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Não tendo havido – como decorre do que se disse em 1) – qualquer erro imputável aos serviços, conclui-se pela improcedência do pedido de pagamento de juros indemnizatórios ao ora requerente.
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VI – Decisão
Em face do supra exposto, decide-se:
- Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se integralmente na ordem jurídica os actos de liquidação de IS impugnados, e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido.
- Julgar improcedente o pedido também na parte que diz respeito ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor do requerente.
Fixa-se o valor do processo em €27.393,40 (vinte e sete mil trezentos e noventa e três euros e quarenta cêntimos), nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do que se dispõe no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e no art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Custas a cargo do requerente, no montante de €1530,00 (mil quinhentos e trinta euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique.
Lisboa, 3 de Junho de 2016.
O Árbitro,
Miguel Patrício
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Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
Decisão arbitral[1]
I – Relatório
1.1. A..., contribuinte fiscal n.º …, residente na Rua dos …, n.º …, …, … (doravante designado por «requerente»), tendo sido notificado dos actos de liquidação de Imposto do Selo n.º 2014 … e n.º 2014 … (referentes aos anos de 2012 e 2013), emitidos ao abrigo da verba 28.1 da Tabela Geral anexa ao Código do Imposto do Selo (TGIS) – dos quais resultou um valor total de imposto a pagar de €27.393,40 –, e não se conformando com os mesmos, apresentou, em 28/10/2014, pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto no art. 2.º, n.º 1, al. a), e no art. 10.º, n.º 1 e 2, ambos do Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, daqui em diante designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a declaração de “ilegalidade dos actos de liquidação de Imposto do Selo n.º 2014 … e n.º 2014 …”, acima referidos, a condenação da AT “a reembolsar o Requerente do valor do Imposto do Selo pago” e, ainda, a condenação da AT “no pagamento [ao Requerente] de juros indemnizatórios”.
1.2. Em 6/1/2015 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.
1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos do referido artigo, em 19/1/2015. A AT apresentou a sua resposta em 6/3/2015, tendo argumentado no sentido da total improcedência do pedido do requerente e invocado, ainda, existir excepção dilatória por alegada incompetência material do Tribunal Arbitral.
1.4. Notificado, por despacho datado de 23/4/2015, o requerente pronunciou-se sobre a referida excepção através do seu requerimento de 5/5/2015.
1.5. Por despacho de 5/5/2015, o Tribunal considerou, nos termos do art. 16.º, al. c), do RJAT, ser dispensável a reunião do art. 18.º do RJAT e que o processo estava pronto para decisão. Foi, ainda, fixada a data de 15/5/2015 para a prolação da decisão arbitral.
1.6. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente (vd. infra, secção III desta decisão), o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.
II – Fundamentação: A Matéria de Facto
2.1. Vem o requerente alegar, na sua petição inicial, que: a) “a tributação alcançada com [a verba 28.1] é manifestamente contrária ao princípio da igualdade constitucionalmente consagrad[o]”; b) “a verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo e a tributação especial resultante da mesma promovem um tratamento diferenciado e uma desigualdade injustificada entre os contribuintes, em manifesta violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa”; c) “a violação do princípio constitucional da igualdade decorre, desde logo, do facto de [a] tributação especial da verba 28 incidir unicamente sobre uma parcela do património imobiliário de valor superior a €1.000.000,00, i.e., sobre o património afecto à habitação [...], estando excluído todo o património de elevado (ou muito elevado) valor que se encontre afecto a outros fins”; d) “a tributação pela verba 28.1 gera [...] uma manifesta iniquidade, não sendo a mesma aplicada, inexplicavelmente, a bens imóveis – propriedade de um único sujeito passivo – afectos a fins habitacionais que, apesar de isoladamente considerados terem um valor patrimonial tributário inferior a €1.000.000,00, no seu conjunto perfazem um valor patrimonial tributário superior [...] a €1.000.000,00”; e) “a aplicação da verba em análise gera [...] situações em que é conferido um tratamento desigual de situações de facto iguais, atentando contra o princípio geral da igualdade e contra o princípio da capacidade contributiva, pressuposto e critério de tributação”; f) “atento o exposto, cumpre concluir que a tributação especial, em sede de imposto de selo, incidente sobre os prédios com afectação habitacional de valor superior a €1.000.000,00, introduzida pela Lei n.º 55-A/2012, viola [...] o princípio constitucional da igualdade tributária e o seu corolário traduzido no princípio da capacidade contributiva”; g) “deverá assim proceder, com fundamento na violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, o presente pedido de anulação dos actos tributários de liquidação de Imposto do Selo”.
2.2. Conclui o requerente que deve ser “declarada a ilegalidade dos actos de liquidação de Imposto do Selo sub judice, porque assentes em normas inconstitucionais”, que a AT deve ser “condenada a reembolsar o Requerente do valor do Imposto do Selo pago” e, ainda, que deve ser “condenada no pagamento [ao Requerente] de juros indemnizatórios”.
2.3. Por seu lado, a AT vem alegar, em síntese, na sua contestação, que: a) existe “incompetência do Tribunal arbitral para declarar a inconstitucionalidade de normas legais” e que, “sendo o pedido de declaração de ilegalidade dos actos de liquidação do imposto de selo [...] consequentes da declaração de inconstitucionalidade de normas invocadas”, daqui “resulta [...] a incompetência material absoluta do Tribunal Arbitral para conhecer dos pedidos que vêm aduzidos”; b) caso se entenda que não existe excepção dilatória, “conclui-se que a redacção conferida à Verba 28.1 pela Lei 55/2012 não viola o princípio da igualdade constante do artigo 13.º da Constituição na vertente da capacidade contributiva” porque “a opção legislativa que subjaz a Verba 28.1 da TGIS traduz uma linha de orientação política que pretendeu onerar concretamente os prédios urbanos com afectação habitacional de valor elevado, ditos de luxo, convocando-os assim especialmente para participar no esforço de garantir as necessidades financeiras do Estado e do Estado social através de uma justa repartição do esforço fiscal”, sendo “por demais evidente que a capacidade contributiva de alguém que adquire onerosamente um prédio urbano habitacional com um VPT de €1.000.000,00 não é idêntica à do contribuinte que adquire dez, cem ou mil prédios urbanos habitacionais com um VPT de €100.000,00”; c) “[quanto à exclusão do âmbito de aplicação da norma dos prédios urbanos com diferentes afectações (serviços, comércio ou indústria)] o Requerente enferma de erro de análise e vício de raciocínio” porque “a opção legislativa que a Verba 28.1 da TGIS encerra [...] deixa perceber o propósito consciente de não sujeitar à tributação desta verba os prédios com afectação a serviços, indústria ou comércio, o que se entende em face da sua afectação a actividade económica e ao clima económico recessivo que se vem vivendo em Portugal, com particular gravidade desde 2011.”
2.4. Conclui a AT que, considerando o supra citado, “deve ser julgada procedente a excepção invocada e absolvida a Requerida da instância ou, se assim não se entender, deve ser julgado improcedente o pedido de pronúncia arbitral”, uma vez que se entende que os actos de liquidação “não padecem de qualquer ilegalidade”.
2.5. Consideram-se provados os seguintes factos:
i) O requerente é proprietário de prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo …, da (extinta) freguesia de …, concelho de …, distrito de Lisboa, segundo informação da caderneta predial, junta como Doc. 3 anexo à petição inicial.
ii) O referido prédio tem afectação habitacional e o valor patrimonial tributário (VPT) de €1.369.670,00. Nesses termos, e ao abrigo da verba 28.1 da TGIS, o ora requerente foi notificado da liquidação de Imposto do Selo n.º 2014 …, no valor de €13.696,70, referente ao ano de 2012, e da liquidação n.º 2014 …, também do mesmo valor, referente ao ano de 2013 (vd. Docs. 1 e 2 anexos à petição inicial).
iii) O requerente, embora não conformado com as referidas liquidações, procedeu ao pagamento integral das mesmas (como se constata pela leitura de Docs. 4 e 5 anexos à petição inicial).
2.6. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.
III – Questão prévia: Excepção de incompetência do Tribunal Arbitral
Na resposta de 6/3/2015, a AT alega “incompetência do Tribunal arbitral para declarar a inconstitucionalidade de normas legais”, uma vez que entende que “não estão abrangidos no âmbito da competência material do Tribunal Arbitral a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer normas pelo que está vedado ao Tribunal Arbitral a apreciação da alegada violação de princípio constitucional da igualdade da Verba 28 da TGIS”. Acrescenta, ainda, que “decorre do pedido e da causa de pedir aduzidos que a pretensão da Requerente consiste na declaração de inconstitucionalidade das normas dos artigos 4.º e 6.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro” e que, “sendo o pedido de declaração de ilegalidade dos actos de liquidação do imposto de selo [...] consequentes da declaração de inconstitucionalidade de normas invocadas, [...] improcedem todos os pedidos dele consequentes.”
Por seu lado, o requerente, na sua resposta à mencionada excepção, alegou que esta não se verifica, dado que “requereu que os actos de liquidação do Imposto do Selo em análise [fossem] declarados ilegais, o que dependerá necessariamente da prévia apreciação e decisão, pelo Tribunal Arbitral, no caso concreto, da (in)constitucionalidade das normas em apreço”. E acrescentou que “o Requerente não peticionou [...] a «declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral”, antes “peticion[ou] [...] que [fosse] declarada pelo Tribunal Arbitral a ilegalidade dos actos tributários sub judice”.
Por se tratar de questão prévia, justifica-se, desde já, a sua análise.
Lendo a petição inicial, observa-se uma aparente confusão quanto à pretensão do ora requerente: é certo que vem requerer “a ilegalidade dos actos de liquidação”, como se pode ler na fl. 1 e como se reafirma nas fls. 2 (§1 e 2), 3 (§5), 5 (§15) e 13 (§56) e, uma vez mais, na fl. 15, na al. a) do seu pedido (“seja declarada a ilegalidade dos actos tributários de liquidação de Imposto do Selo sub judice”); mas, por outro lado, também se lê na fl. 13, §57, que “deverá ser declarada a inconstitucionalidade da verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo”, e na fl. 15, no cabeçalho do pedido, que deve “ser declarada a inconstitucionalidade dos artigos 4.º e 6.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, e a inconstitucionalidade da verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo”.
Não merece dúvidas (e tal é reconhecido pelas partes) que o presente Tribunal Arbitral não tem competência para declarar a inconstitucionalidade das normas referidas (ou outras). Contudo, apesar dos ocasionais (e já referenciados) lapsos do requerente na formulação da sua posição, não deixa de ser evidente, pela leitura da petição inicial, e do pedido feito a final, que o ora requerente pretende (e pretendia) que seja (e fosse) declarada a ilegalidade dos actos tributários de liquidação aqui em causa – sendo que tal declaração depende da inaplicação de normas com fundamento na sua invocada inconstitucionalidade (vd. fl. 15, al. a), do pedido).
Porque o texto da petição inicial suporta esta leitura – e porque ela é, assim formulada, compatível com a competência material dos Tribunais Arbitrais – conclui-se ser improcedente a alegada excepção de incompetência. Com efeito, reafirma-se que os Tribunais Arbitrais têm competência para – se assim o entenderem – recusar a aplicação, no caso concreto, de normas legais com fundamento na sua inconstitucionalidade ou, ainda, para aplicar normas legais cuja inconstitucionalidade tenha sido invocada.
IV – Fundamentação: A Matéria de Direito
No presente caso, são duas as questões de direito controvertidas: a de saber se a verba 28.1 da TGIS, viola o princípio da igualdade (art. 13.º da CRP) e o princípio da capacidade contributiva [1)]; e a de saber se são devidos juros indemnizatórios ao requerente [2)].
1) Sobre esta específica questão já diversa jurisprudência arbitral se pronunciou (vd., v.g., as DA relativas aos processos n.º 51/2013, de 7/3/2014, n.º 218/2013, de 24/2/2014, n.º 247/2013, de 28/7/2014, e n.º 292/2014, de 2/2/2015), em termos uniformes e gerais, com os quais se concorda.
Nessa medida, seguimos – no que ao invocado princípio da igualdade diz respeito – o que foi decidido, num caso semelhante, no processo n.º 51/2013, de 7/3/2014 (supra referido), o qual se cita, com a devida vénia, na parte que se considera pertinente para o presente caso:
“i) A igualdade é um valor e um princípio inerente ao paradigma do Estado de Direito que permeia toda a Constituição material portuguesa, o qual acaba mesmo por ser uma parte componente da própria ideia de Direito ou de Ordem Jurídica como Cosmos Jurídico. Mas o princípio da igualdade é diretamente enunciado pelo texto constitucional português no seu art. 13.º, além da sua evidente refração no plano do princípio da capacidade contributiva, o qual traduz uma orientação especial da igualdade em matéria tributária. É assim que importa referir esta central disposição constitucional do art. 13.º da CRP: - art. 13.º, n.º 1: «Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei»; - art. 13.º, n.º 2: «Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual».
ii) O mesmo se diga da LGT, que também formula o princípio da igualdade no contexto da legislação tributária portuguesa, como se pode observar no seu art. 5.º: - art. 5.º, n.º 1: «A tributação visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas e promove a justiça social, a igualdade de oportunidades e as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento»; - art. 5.º, n.º 2: «A tributação respeita os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material».
iii) O princípio da igualdade, em Estado Social, é substancialmente diverso do princípio da igualdade que vigorou no período do Estado Liberal, com todo um conjunto de novas dimensões e modos de agir para se alcançar uma igualdade material e uma igualdade de oportunidades. Mas em matéria de tributação do património – não cuidando agora de saber da questão teorética da natureza do imposto do selo na contraposição entre impostos sobre o consumo ou impostos sobre o património – a própria CRP estabelece uma orientação central no seu art. 104.º, n.º 3: «A tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos». Na sua singeleza, não deixa esta disposição constitucional, especificamente estabelecida para este tipo de tributação, de ser bem o exemplo de um princípio da igualdade fiscal que leva em consideração as novas dimensões do princípio social.
iv) Estamos em crer que o preceito em questão, que aditou a verba n.º 28 à TGIS, se encontra ferido de inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade. Importa referir que a configuração do facto tributário, que opera a distinção entre diversas utilizações e destinações dos prédios em causa, não se afigura justificada em nome da finalidade da medida fiscal adotada. Se a preocupação é a da tributação dos patrimónios mais elevados, qual a razão de essa tributação, na espécie em causa de património real de que o contribuinte é titular, não tributar todas essas propriedades, nas suas múltiplas subdistinções? Se bem se reparar, há diversas categorias de prédios que não logram submeter-se a esta nova tributação: - os prédios não urbanos; - os prédios urbanos que não correspondam às especificações das verbas n.os 28.1 e 28.2. Não se vislumbra a racionalidade de nela não incluir todas essas utilizações e destinações, sendo certo que se todas elas fossem incluídas, a receita fiscal seria maior e igualaria os contribuintes com base num mesmo valor patrimonial referido. Mesmo considerando a diferença no valor económico dos prédios rústicos e urbanos, ou dentro destes nas suas diversas utilizações e destinações, como o critério é remetido para o valor patrimonial do CIMI, por este mecanismo já se teria aferido objetivamente a riqueza em causa, sendo ela diversa conforme aquelas diferentes distinções que são tidas em conta na avaliação empreendida pelas normas pertinentes do CIMI.
v) Com esta diferenciação, introduz-se mesmo uma perversão valorativa no sistema fiscal português, ao arrepio da orientação geral que se pode obter da Constituição, que é a do maior sacrifício imposto aos contribuintes que sejam proprietários de prédios com uma destinação ou utilização habitacional em detrimento de outras destinações ou utilizações que não são tão valiosas à luz dos valores e dos princípios constitucionais, sendo de invocar nesse sentido: - não apenas a proeminência valorativa do direito à habitação, previsto no art. 65.º da CRP, que mesmo sendo um direito económicos e social, oferecendo uma eficácia jurídica inferior à dos direitos, liberdades e garantias, não deixa de ter um lugar constitucional privilegiado que surge de diapasão para, pelo menos, evitar uma discriminação em relação a outras utilizações que não têm a mesma importância constitucional; - como também não se pode esquecer a projeção do próprio princípio da dignidade da pessoa humana, princípio retor da ordem constitucional portuguesa e enunciado logo no art. 1.º da CRP, que certamente implicará a especial valorização das utilizações que os cidadãos levam a cabo nos seus âmbitos de vida, havendo aqui uma concretização desse valor na maior proteção que deve ter a propriedade afeta ou destinada à habitação – que é uma habitação humana – de propriedades que têm outras utilizações ou destinações.
vi) Há uma outra razão para considerar que a verba n.º 28 da TGIS infringe o princípio da igualdade tributária, neste caso considerando a proibição constitucional da dupla tributação jurídica, que também é aqui uma dupla tributação económica. A dupla tributação jurídica significa que a mesma manifestação de riqueza, que se traduz no mesmo facto fiscal, é tributada duas vezes, tal significando uma discriminação negativa em relação a outros contribuintes cuja tributação apenas foi realizada uma única vez sobre o mesmo facto tributário. Ainda que sem expressão literal no texto constitucional, a proibição da dupla tributação jurídica não só se deduz do princípio da capacidade contributiva, sendo expresso no plano do Direito Constitucional Penal através do princípio non bis in idem. [...].
vii) Mas, afinal, em que consiste essa dupla tributação? Ela consiste no facto de a titularidade de direitos reais ser simultaneamente tributada em sede de CIMI e em sede de IS, a qual incide sobre a mesma realidade, o que fica por demais evidente quando os termos da tributação da verba n.º 28 do IS são remetidos para as regras aplicáveis do CIMI. Temos assim duas tributações coincidentes em matéria de prédios urbanos, aos quais se aplicam dois impostos, com as suas taxas próprias: - a tributação estabelecida no art. 1.º do CIMI; e - a tributação estabelecida na verba n.º 28 da TGIS. Não se julga como argumento contrário pertinente o facto de o sujeito ativo da relação jurídica fiscal ser diverso, o Estado no IS e os municípios no IMI, uma vez que apenas aqui releva a posição do sujeito passivo.”
Concordando com a fundamentação citada, e aplicando-a ao presente caso, conclui-se que também aqui não assiste razão à AT, uma vez que se considera que a norma (verba n.º 28 da TGIS) em que se fundam as liquidações ora em causa viola, pelas razões acima citadas, o princípio constitucional da igualdade constante do art. 13.º da CRP, não podendo as mesmas, nessa medida, subsistir.
Mostrando-se procedente o entendimento do ora requerente quanto à questão referida, torna-se desnecessário, face ao disposto no art. 124.º do CPPT, ex vi art. 29.º, n.º 1, do RJAT, averiguar, especificamente, da alegação relativa ao princípio da capacidade contributiva.
2) São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, ter havido erro imputável aos serviços do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (vd. art. 43.º, n.º 1, da LGT).
É, por isso, condição necessária para a atribuição dos referidos juros a demonstração da existência de erro imputável aos serviços. Nesse sentido, vd., por ex., os seguintes arestos: “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT [...] depende de ter ficado demonstrado no processo que esse acto está afectado por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à AT.” (Ac. do STA de 30/5/2012, proc. 410/12); “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária pressupõe que no processo se determine que na liquidação «houve erro imputável aos serviços», entendido este como o «erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Fiscal»” (Ac. do STA de 10/4/2013, proc. 1215/12).
Ora, tendo havido, como decorre do que se observa em 1), erro imputável aos serviços, conclui-se pela procedência do pedido de pagamento de juros indemnizatórios ao requerente.
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V – Decisão
Em face do supra exposto, decide-se:
- Não aplicar a norma da verba n.º 28 da TGIS, por infringir o princípio da igualdade consagrado na Constituição da República, e em obediência ao disposto no seu art. 204.º.
- Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, dos actos de liquidação impugnados, e o reembolso das importâncias indevidamente pagas.
- Julgar procedente o pedido também na parte que diz respeito ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor do requerente.
Fixa-se o valor do processo em €27.393,40 (vinte e sete mil trezentos e noventa e três euros e quarenta cêntimos), nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do que se dispõe no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e no art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Custas a cargo da requerida, no montante de €1530,00 (mil quinhentos e trinta euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique.
Lisboa, 15 de Maio de 2015.
O Árbitro,
Miguel Patrício
***
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
[1] Decisão Arbitral anulada pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 247/2016, de 04-05-2016.