Decisão Arbitral
CAAD: Arbitragem Tributária
Processo nº 611/2014-T
Tema: IRC | Derrama estadual | Aplicação na R.A. Açores
O tribunal arbitral em funcionamento com árbitro singular constituído em 09-10-2014 no CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa nos termos do regime jurídico instituído pelo Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro[1], para o qual foi designado pelo respetivo Conselho Deontológico, o árbitro da lista do Centro, Nuno Maldonado Sousa, elabora seguidamente a sua decisão arbitral.
1. Relatório
1.1. Constituição do tribunal arbitral
A... (Portugal) – …, S.A., com sede na Avenida …, em Lisboa, com o capital social de 6.000.000,00 €, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, N.I.P.C. …, apresentou pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do RJAT e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira[2].
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD em 07-08-2014 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 11-08-2014.
Nos termos do disposto nas normas do artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, nº1, al. b) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável e notificou as partes dessa designação em 24-09-2014. Em conformidade com a regra constante do artigo 11.º, n.º 1, al. c) do RJAT, o tribunal arbitral ficou constituído em 09-10-2014.
1.2. O pedido da Requerente
O pedido da Requerente constante do seu requerimento inicial, combinado com a alteração da respetiva forma redatorial peticionada em 24-11-2014 e decidida por despacho deste tribunal de 05-03-2015, é constituído por:
a) A anulação parcial da liquidação de derrama estadual compreendida na liquidação de IRC de 04-07-2013 com o nº 2013 ..., referente ao exercício de 2012
Cumulativamente pede,
b) A devolução da quantia de 400,26 €, paga para satisfação daquela liquidação.
Subsidiariamente, para o caso de improcedência deste seu pedido b), peticionou:
c) A devolução da derrama estadual cobrada em excesso, no montante de 4.348,38 €.
Cumulativamente com qualquer dos pedidos requer ainda,
d) O pagamento de juros indemnizatórios.
1.3. A posição da AT
A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu sustentando a legalidade da liquidação e defendeu a improcedência do pedido e da sua fundamentação, entendendo, quanto ao fundo da questão, que nem a Região Autónoma dos Açores detém competência legislativa em matéria tributária para derrogar as normas imperativas estaduais que regulam o imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, nem sequer se conhece qualquer norma que se possa invocar para sustentar que naquela Região o apuramento do IRC ou da derrama estadual obedece a um regime específico.
1.4. Instrução do processo e alegações
A AT e a Requerente não requereram a produção de qualquer prova para além da documental que trouxeram aos autos. Em 15-01-2015 realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.
A Requerente e a AT apresentaram alegações escritas, sustentando as posições assumidas.
1.5. Saneamento
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e tem competência em razão da matéria segundo dispõem as regras do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
As Partes são titulares de personalidade e capacidade judiciárias (sendo a da AT nos termos da disciplina constante do artigo 4.º, n.º 1 do RJAT e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e do artigo 1.º, al. a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), são legítimas e estão regularmente representadas.
1.5.1.Ineptidão do Requerimento Inicial
Na sua resposta a AT defende-se por exceção, invocando a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial. Sustenta que “não é possível discernir qual será o eventual pedido principal e qual será o hipotético pedido subsidiário”[3] (19º R-AT[4]), tomando por base a fundamentação jurídica e sobretudo a forma como esta é exposta.
Nessa sua linha de raciocínio, conclui que não está determinado qual o pedido a decidir e qual o pedido subsidiário sendo, por isso, ininteligível a indicação do pedido, gerando a ineptidão da petição inicial e a nulidade do processo[5].
Cumpre solucionar esta questão prévia.
Em primeiro lugar há que afirmar que, embora não se deva negar a aplicação da figura da ineptidão da petição inicial ao processo arbitral tributário, há que observar as suas especificidades próprias, sobretudo ao nível da formulação do pedido. Enquanto o Código do Processo Civil, cujo paradigma é o processo comum, regula processos onde as pretensões podem ter a mesma latitude que as próprias fronteiras do Direito, no contencioso tributário de anulação e, em especial, no processo arbitral admite-se fundamentalmente o pedido de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de impostos e outros atos com características afins (2º -a- b RJAT), razão pela qual o regime de apresentação da pretensão é visto de diferente modo. Enquanto no processo civil comum se exige que o autor formule o pedido (552-1-e CPC) e que o faça com determinado grau de determinação (556º CPC a contrario), o RIAT regula no sentido de ser feita a identificação do ato objeto do pedido de pronúncia e a identificação do pedido, sendo esta baseada na errónea qualificação e quantificação dos factos tributários, na incompetência, em vício de fundamentação ou preterição de formalidades legais (10º-2-b-c RIAT). Dito de outro modo, no contencioso tributário o que é relevante ao nível do pedido é que esteja devidamente identificado o ato tributário e o seu vício, visto que já sabemos que neste contencioso se procura obter a respetiva declaração de ilegalidade, que conduz à sua nulidade.
Importa agora perceber de que forma devem ser interpretadas as declarações das partes; estas produzem textos escritos dos quais todos os protagonistas processuais têm que tirar determinado significado. É assim necessário perceber se a interpretação deve obedecer a muito elevado nível de conformidade entre o elemento literal e o significado útil ou se o intérprete pode de algum modo reconstituir o objetivo, a finalidade da declaração e suprir alguma imprecisão que a declaração possa comportar. Por um lado, teremos a interpretação com predomínio dos elementos gramaticais; por outro, privilegiaremos o elemento teleológico ou finalístico.
Crê-se que a sábia doutrina do Supremo Tribunal Administrativo há muito que lançou luz sobre a questão: o que é determinante para entender a pretensão da requerente no contencioso anulatório – como é o caso – é a correta identificação dos atos cuja legalidade se pretende ver apreciada[6]. Não há pois que adotar uma interpretação literal do pedido, antes há que ver que ato tributário pretende afinal o contribuinte atacar.
Ao nível do pedido de devolução de quantias pagas a título de imposto, há que considerar o seguinte regime. Nos termos da norma do artigo 100º da LGT[7] “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”. Parece claro que assiste em geral ao contribuinte o direito a serem-lhe restituídas as importâncias que tenha pago, relativas a liquidações feridas de ilegalidade, de modo a que o seu património seja reconstituído no quantitativo que tinha no momento antecedente a esse pagamento. Claro que é necessário explicitar qual o fundamento específico em que se baseia o pedido mas este surge como consequência dos fundamentos, que podem até ser vários, sem que o pedido deixe de ser só um; a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade. Se para isso o contribuinte opta por finalizar o seu requerimento combinando fundamentos e pretensão numa redação em alíneas, poderá, talvez, utilizar formulação menos ortodoxa mas nem por isso será sequer equívoca e muito menos ininteligível. A leitura atenta (eventualmente mais atenta) levará à única conclusão possível: o contribuinte pretende ver a sua situação reconstituída (essa parte constitui o pedido ou providência), com base num ou noutro argumento (que pertence já ao fundamento ou aos vários fundamentos).
De todo o modo cabe frisar que a obrigação de reconstituição pela AT está subordinada pela lei (100º LGT), ao próprio âmbito da procedência, criando-se nexo de dependência entre a decisão e a obrigação de reconstituição. A reconstituição é feita na medida em que a pretensão seja julgada procedente. Não há reconstituição sem procedência e a medida da precedência define a medida da reconstituição. A necessidade desta precisão é claríssima nos casos de procedência parcial. Quando ocorra a procedência parcelar como deve comportar-se a AT? A resposta só pode ser uma – nos exatos termos e limites em que foi proferida a decisão, quer seja judicial ou arbitral.
Veja-se agora o caso concreto destes autos.
No seu Requerimento Inicial a A... (Portugal) – …, S.A. peticionou que fosse:
a) Anulado o ato tributário sob impugnação por falta de fundamento legal, na parte e montante objeto do presente pedido de pronúncia e, por conseguinte, ser ordenada a devolução da derrama estadual cobrada em excesso à requerente pela AT, no montante de EUR 4.348,38 € (quatro mil, trezentos e quarenta e oito euros e trinta e oito cêntimos).
A título subsidiário, para o caso de não se declarar a procedência daquele pedido, a Requerente peticionou:
b) Caso assim não se entenda, deverá ser ordenada a devolução do montante de EUR 400,26 (quatrocentos euros e vinte e seis cêntimos), por inexistência no ordenamento jurídico da Região Autónoma dos Açores de norma de incidência que preveja a aplicação da derrama estadual nesse território, anulando-se, por conseguinte, e nessa medida, o ato tributário sob impugnação, por falta de fundamento legal para o efeito.
Em requerimento de 24-11-2014 o Requerente pediu que fosse apreciado a título principal o pedido que inicialmente considerou subsidiário, passando este a constituir a providência que pretende ver decretada para o caso da anterior não proceder. Esta alteração da forma redatorial do pedido foi admitida por despacho de 05-03-2015.
Referiu-se nessa decisão que, seguindo Lebre de Freitas, se considera que através do pedido a parte requer ao tribunal a providência processual adequada à tutela do seu interesse[8] e que o pedido não é pois o fundamento jurídico pelo qual o tribunal decreta a providência mas antes a própria providência concreta. Mencionou-se também que na arbitragem tributária são pedidos típicos a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais (2º RJAT). Em qualquer desses casos a ilegalidade dos atos em causa gera a respetiva nulidade, razão porque é comum pedir-se a declaração da ilegalidade ou a anulação de determinada liquidação, que é afinal o efeito da declaração da ilegalidade do próprio ato.
No caso dos autos e para facilidade de análise vejam-se separadamente os pedidos que têm como intuito a anulação do ato tributário daqueles que poderão ser sua consequência, designadamente a devolução de quantias pagas.
Quanto ao tema da anulação e em primeiro lugar há que notar que a Requerente deixou bem claro qual é o objeto do seu pedido: pronúncia sobre a legalidade do ato tributário de autoliquidação de IRC de 04 de Julho de 2013, com o n.º 2013 ..., referente ao exercício de 2012. Em segundo lugar há que ter em consideração que a Requerente na sua formulação inicial peticionou a título principal “a anulação do ato tributário por falta de fundamento legal” (cfr. alínea a) e a título subsidiário a mesmíssima “anulação do ato tributário por falta de fundamento legal” (cfr. alínea b). Não parece poder haver dúvidas; a Requerente pretende que seja declarada a anulação da liquidação, na parte viciada por ilegalidade. Só havendo substancialmente um pedido não se vislumbra que relação de subsidiariedade é possível determinar. Haverá sim subsidiariedade entre as soluções jurídicas que o Requerente apresenta mas como se sabe essa ordem é sua e o julgador não está adstrito a observá-la, podendo e devendo procurar a solução adequada, ainda que não tenha sido proposta pelas Partes (5º-3 CPC).
É perfeitamente inteligível o pedido de anulação da Requerente; não há pois nesta parte qualquer ineptidão da petição inicial. É forçoso concluir que o pedido da requerente é só um e que consiste na anulação da liquidação de IRC, na parte afetada, inquestionavelmente identificada.
O mesmo se diga, mutatis mutandis, relativamente ao pedido de devolução de quantias pagas a título de imposto. O Requerente tem direito à reconstituição plena da situação que existiria se não tivesse sido feita a liquidação, se esta vier a se anulada. Saber qual é o fundamento jurídico que leve à anulação da liquidação subjacente constitui um elemento distinto da enunciação do pedido de reembolso. Só há por isso um pedido de reembolso e até só foi invocado um único fundamento genérico desse direito (o artigo 100º LGT).
Há por isso que reconhecer que o pedido da Requerente para devolução de quantias pagas é só um, ainda que a sua procedência possa ter maior ou menor âmbito. E não se vê que ele seja ininteligível.
Improcede assim a exceção da ineptidão da petição inicial invocada pela AT.
1.5.2. Outras questões
Não há pois nulidades que inquinem o processo.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa pelo que se impõe decidir.
2. Decisão
2.1. Matéria de facto
2.1.1. Factos que se consideram provados
Nestes autos ficaram assentes os seguintes factos:
A. A Requerente é uma sociedade comercial anónima com sede em território nacional, dedicando-se, conforme resulta do seu objeto societário, à “1) produção, comercialização, importação e exportação e a venda por grosso ou a retalho de roupa de cama e para o lar, artigos têxteis de mesa e cozinha, tapetes e acessórios para o banho, artigos de decoração, menagem, artigos de livraria, papelaria, sabões, artigos de perfumaria e cosmética, jogos, velas, móveis e acessórios e complementos para o lar. 2) A aquisição por qualquer título de bens móveis e imóveis, direitos, títulos valores, participação, ações ou quotas de participações de outras sociedades, enquanto tais bens e direitos sirvam à prossecução do seu objeto social.” [6º R.I.[9] e seu documento nº 2].
B. A Requerente adotou um período de tributação que vai desde 01 de Fevereiro a 31 de Janeiro do ano subsequente. [8º R.I. e seu documento nº 3, pp. 15-24].
C. Com referência ao exercício de 2012, a Requerente submeteu, por via eletrónica, em 01 de Julho de 2013, a respetiva Declaração Modelo 22 IRC [9º R.I. e seu documento nº 3, pp. 15-24].
D. A Requerente apurou o montante a pagar de IRC de 382.601,90. [10º R.I. e seu documento nº 3, pp. 15-24, campo 367 do quadro 10].
E. A Requerente pagou o valor de IRC de 382.601,90 € [10º R.I. e seu documento nº 3, p. 26].
F. A AT corrigiu o valor da derrama passando este de 30.287,48 € para 19.622,87 €. [11º R.I. e seu documento nº 3, p. 26].
G. A correção do valor da derrama consta da liquidação nº 2013 ... de 04-07-2013 que foi notificada à Requerente. [11º R.I. e seu documento nº 3, p. 26].
H. A diferença resultante da liquidação no valor de 10.663,40 € foi devolvida à Requerente, por transferência bancária efetuada para a sua conta [12º R.I. e seu documento nº 3, p. 26].
I. Na liquidação feita pela AT em 04-07-2013 esta determinou o pagamento do montante de 18.983,63 € a título de derrama estadual [3º R-AT e documento nº 3, p. 26 do R.I.].
2.1.2. Factos que se consideram não provados
Não foram alegados outros factos com interesse para a decisão da causa.
2.1.3. Fundamentação da matéria de facto provada
A convicção do tribunal assentou na prova documental constante dos autos e na posição tomada relativamente a cada facto pelas Partes nos articulados, devidamente identificada[10].
2.2. Matéria de direito
Nos autos suscitam-se as seguintes questões que se resolverão de seguida, na medida do necessário, segundo um critério de procedência lógica:
I - A questão de fundo consiste em saber se os sujeitos passivos de IRC com sede em Portugal Continental e atividade na Região Autónoma dos Açores têm o rendimento submetido à incidência da Derrama Estadual prevista pelo CIRC[11].
II - Em segundo plano importa determinar se os sujeitos passivos que tenham pago o citado tributo, têm direito à sua restituição se a respetiva liquidação vier a ser anulada e se lhes devem ainda ser satisfeitos juros pelo pagamento indevido do imposto anulado.
2.2.1. A aplicação da Derrama Estadual na Região Autónoma dos Açores
A propósito deste tema e para sustentar a sua posição, a Requerente alinhou a seguinte fundamentação jurídica que serve de ponto de partida para esta análise[12]:
a) As regiões autónomas exercem poder tributário próprio, cabendo-lhes decidir, por ato legislativo regional nas matérias fiscais que não sejam da competência reservada da Assembleia da República ou quando o forem, sempre que nas matérias reguladas tal lhe seja permitido. Ancora este entendimento na norma do artigo 227º-i) e j) CRP[13].
b) Que o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores[14] reconhece a sua competência tributária própria, compreendendo o poder de criar e regular impostos e o poder de adaptar os tributos de âmbito nacional.
c) Que a Lei das Finanças das Regiões Autónomas[15] determina que o imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas constitui receita dessas regiões, na parte que respeita às atividades desenvolvidas na respetiva circunscrição.
d) Que no âmbito das medidas que visaram reforçar e acelerar a redução do défice público excessivo, foi criada a derrama estadual incidindo sobre o lucro tributável superior a determinado valor (inicialmente 2.000.000,00 €) que passou a constar do CIRC.
e) Que a Região Autónoma dos Açores não criou “uma eventual derrama regional” nem adaptou o sistema nacional à especificidade da região.
f) Que não tendo a Região Autónoma dos Açores adaptado o sistema fiscal nacional, incorporando e adaptando a derrama estadual às suas especificidades, há que concluir que “não foi vontade do legislador que a derrama estadual tivesse aplicação na RAA[16]”.
g) Que a falta de regulamentação regional sobre o tema constitui afinal uma “lacuna”, que impede a cobrança da derrama estadual na região.
A Requerente sustenta ainda o seu ponto de vista em alegado paralelismo com o regime adotado pela Região Autónoma da Madeira, que adaptou o instituto da derrama estadual para aplicação na sua circunscrição e com argumentos que radicam nas regras da afetação das receitas dos impostos às regiões autónomas.
A tese da Requerente tem ainda uma outra variante subordinada, que afirma que ainda que houvesse liquidação de derrama estadual, esta sempre deveria ser calculada de forma diferente daquela que é usada pela AT. Fá-lo enunciando o seguinte raciocínio:
h) As receitas obtidas pelo sujeito passivo na RAA são determinadas em função da repartição do volume de negócios pelo Continente e por cada uma das duas regiões autónomas.
i) Há, por isso, que efetuar cálculo análogo ao que é feito nos termos gerais do IRC, afetando o lucro tributável à circunscrição respetiva e aplicando então os escalões da tabela constante do CIRC ao montante assim apurado, não havendo qualquer imposto a pagar relativamente às circunscrições em que o lucro tributável seja igual ou inferior a 1.500.000,00 €.
Relativamente a estas teses a AT contrapõe o seguinte entendimento:
j) Que o IRC tem como sujeitos passivos as sociedades comerciais com sede em Portugal, como é o caso da Requerente;
k) Que efetivamente a LFRA determinava a competência da Região Autónoma dos Açores para criar e regular impostos da região e adaptar os impostos nacionais.
l) Em consonância o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores conferiu-lhe a prerrogativa de adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais.
m) A RAA não exerceu a sua competência de adaptar o sistema fiscal nacional no que concerne à derrama estadual e essa sua abstenção de ação não tem qualquer efeito derrogatório relativamente ao regime geral que é de âmbito nacional.
n) Que as normas da LFRA regulam a repartição das receitas fiscais e nem tanto as operações concretas de liquidação.
Veja-se agora a regulação objetiva.
A derrama estadual é regulada pelo CIRC, cuja redação vigente no exercício económico de 2012[17], dispunha ao nível da incidência, no seu artigo 87º-A, n.º 1:
1 - Sobre a parte do lucro tributável superior a € 1 500 000 sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas apurado por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e por não residentes com estabelecimento estável em território português, incidem as taxas adicionais constantes da tabela seguinte: (…).
À primeira vista parece claro que esta norma tem âmbito de regulação geográfico ao nível nacional. Não obstante há que ver se os órgãos próprios da RAA pretenderam regular de outro modo.
É inquestionável que a CRP confere às regiões autónoma poder tributário próprio bem como competência para adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais, embora esses poderes devam ser enquadrados por medidas legislativas (227º-1-i). A intervenção das regiões autónomas em matéria tributária dá-se assim em dois vetores: (i) competência legislativa regional exclusiva no estabelecimento de regimes fiscais especificamente regionais[18]; (ii) modificação do sistema fiscal da República. O alcance deste poder de modificação parece, em tese, poder incluir a extinção de impostos criados por lei da República, sobretudo após a revisão constitucional de 1997 (posterior ao acórdão n.º 91/84 do Tribunal Constitucional),[19] embora com subordinação à lei que enquadra esses poderes. Este entendimento está devidamente conciliado com o Estatuto Político –Administrativo da Região Autónoma dos Açores[20] que na sua redação atual estabelece claramente o poder tributário próprio sobre o sistema fiscal regional (20º-1 e 2) e o poder de adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais (20º-1)[21].
No caso dos autos parece pacífico afirmar que não se está no campo do exercício do poder tributário próprio – que se manifesta na possibilidade de estabelecer regime fiscal específico – mas eventualmente no exercício do poder de adaptar o sistema fiscal da República. Persiga-se então esse caminho, no intuito de apurar se a RAA pretendeu adaptar o regime da derrama á realidade da sua região.
O quadro do exercício destes poderes constava em 2010 na Lei de Finanças das Regiões Autónomas, na versão resultante da Lei Orgânica n.º 1/2010 de 29 de Março[22], que em especial outorgou aos órgãos regionais (53º-1-b).
O poder de adaptar os impostos de âmbito nacional às especificidades regionais, em matéria de incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes, dentro dos limites fixados na lei e nos termos dos artigos seguintes.
Por sua vez a adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades regionais, em termos de imposto sobre o rendimento, tem como fronteiras (56º): (i) diminuir as taxas até ao limite de 30 %; (ii) conceder deduções à coleta relativas aos lucros comerciais, industriais e agrícolas reinvestidos; (iii) conceder benefícios fiscais temporários e condicionados relativos a impostos de âmbito nacional e regional, em regime contratual, aplicáveis a projetos de investimentos significativos.
As prerrogativas das regiões autónomas nesta matéria encontram-se em qualquer caso subordinadas ao princípio da coerência entre o sistema fiscal nacional e os sistemas fiscais regionais (52º-a) e ao princípio da solidariedade nacional (52º-d), que é recíproco e abrange o todo nacional e cada uma das suas parcelas envolve a obrigação de as Regiões Autónomas contribuírem para o equilibrado desenvolvimento do País e para o cumprimento dos objetivos de política económica a que o Estado Português esteja vinculado por força de tratados ou acordos internacionais, nomeadamente os que decorrem de políticas comuns ou coordenadas de crescimento, emprego e estabilidade e de política monetária comum da União Europeia (8º-1-2).
Note-se que a RAA tem vindo desde há muito, pelo menos desde 1999, a adaptar por via legislativa expressa, o sistema fiscal da República incidente sobre o rendimento das pessoas coletivas, no quadro do Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A de 20 de janeiro, nomeadamente reduzindo as taxas de IRC (5º) e alterando o regime das deduções à coleta dos lucros reinvestidos (6º). Veja-se também que essa adaptação é ativamente exercida, como comprovam as alterações efetuadas nos últimos anos, nomeadamente:
a) Em 2010 foi alterado o regime dos lucros reinvestidos que beneficiam da dedução à coleta (artigo 24.º do Decreto Legislativo Regional n.º 25/2009/A de 30 de dezembro);
b) Em 2011 foi atualizado o regime dos lucros reinvestidos que beneficiam da dedução à coleta excluindo dele os investimentos na criação de novas unidades de alojamento no turismo rural e de habitação e ampliação e reformulação das já existentes (artigo 23º do Decreto Legislativo Regional n.º 34/2010/A de 29 de dezembro de 2010);
c) Em 2012 foi renovado o regime dos lucros reinvestidos que beneficiam da dedução à coleta (Decreto Legislativo Regional n.º 3/2012/A de 13 de janeiro);
d) Em 2013 foram feitas alterações ao regime da adaptação do sistema fiscal nacional, ainda que sem impacto evidente na tributação sobre o rendimento das pessoas coletivas e foi renovado o regime dos lucros reinvestidos que beneficiam da dedução à coleta (Decreto Legislativo Regional n.º 2/2013/A de 22 de abril);
e) Em 2014 foi renovado o regime dos lucros reinvestidos que beneficiam da dedução à coleta e foi feita a redução das taxas de IRC aplicáveis na RAA, que passou a ser de 20 % (31º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2014/A de 29 de janeiro).
Do que se tem vindo a expor parece resultar sem grande sombra de dúvidas que a RAA não tem competência para abolir impostos sobre o rendimento das pessoas coletivas pois os seus poderes de adaptação do sistema fiscal nacional estão limitados à diminuição das taxas até ao limite de 30 %, à concessão de deduções à coleta relativas aos lucros reinvestidos e à conceção de benefícios fiscais temporários, restritos ao regime contratual e apenas aplicáveis a projetos de investimentos significativos (56º da Lei Orgânica n.º 1/2010 de 29 de Março). E diga-se em abono da verdade que a RAA tem usado regularmente esta sua prerrogativa. Mas decididamente a RAA não tem poderes para reduzir as taxas de imposto sobre o rendimento a valor nulo nem pode isentar as empresas do seu pagamento fora de apertados limites. E se não o pode fazer por ação legislativa muito menos o pode fazer por omissão i.e. abstendo-se de regular sobre determinada matéria. O princípio neste tema é inquestionavelmente o de que os impostos que fazem parte do sistema fiscal nacional vigoram em todo o Estado português e as especificidades regionais terão que constar de documento legislativo bastante.
Este princípio é evidentemente aplicável ao IRC e à sua derrama estadual. Na RAA aplica-se o regime constante do CIRC com exceção das matérias expressamente reguladas pela sua Assembleia Legislativa Regional, v.g. a relativa às taxas gerais e ao regime dos lucros reinvestidos.
Note-se que adotar diferente entendimento quanto à derrama estadual seria inclusivamente violador do princípio da solidariedade nacional. Como se sabe a derrama estadual faz parte conjunto de medidas adicionais de consolidação orçamental que visam reforçar e acelerar a redução de défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento, que consubstancia as linhas de entendimento entre a República Portuguesa, o Fundo Monetário internacional e Instituições da União Europeia. O princípio da solidariedade nacional implica necessariamente a contribuição das Regiões Autónomas para o cumprimento dos objetivos de política económica a que o Estado Português esteja vinculado por força dos tratados da União Europeia e de acordos internacionais específicos. A vigência da derrama nas regiões autónomas é inclusivamente uma exigência de solidariedade nacional, ainda que de algum modo adaptada aos seus circunstancialismos próprios, como optou por fazer a Região Autónoma da Madeira. Se a RAA preferiu não adaptar o sistema nacional só se pode entender que não pretendeu introduzir alterações ao regime geral.
No caso concreto a Requerente, que tem sede em Portugal, exerceu atividade sujeita a tributação em IRC e fez a sua autoliquidação. Está por isso sujeita às taxas e regras de liquidação expressas no CIRC, independentemente do local onde a sua atividade tenha sido exercida. Não oferece por isso qualquer crítica a liquidação impugnada feita pela AT.
2.2.2. Outros pedidos
Como se sabe a obrigação de reconstituição pela AT está subordinada ao próprio âmbito da procedência (100º LGT) e sendo improcedente o pedido Requerente ficam prejudicados o seu pedido de devolução de quantias pagas e de juros.
3. Decisão
Considerando os elementos de facto e de direito coligidos e expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar improcedentes os pedidos de pronúncia arbitral.
Condena-se a Requerente no pagamento das custas, que se apuram no local próprio.
4. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306º- 2, do CPC, ex-vi 29º-1-e) RJAT e 97º-A, n.º 1-a) do CPPT ex-vi 3º-2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de 4.348,38 €.
5. Custas
As custas ficam a cargo da parte que a elas tiver dado causa, entendendo-se que lhes dá causa a parte vencida (527º-1 e 2 CPC).
Nestes autos e considerando a citada regra, a responsabilidade pelas custas é da Requerente, enquanto parte vencida.
Nos termos do artigo 22º-4 RJAT, fixa-se o montante das custas em 612,00 €, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, que fica a cargo da Requerente.
Lisboa, 8 de Abril de 2015
O árbitro,
(Nuno Maldonado Sousa)
[1] Nesta decisão designado pela forma abreviada de uso comum “RJAT" (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária).
[2] Nesta decisão também designada pela forma abreviada “AT” como é de uso generalizado.
[4] Nesta peça utiliza-se também a sigla “R-AT” para designar o requerimento de resposta a que se refere o artigo 17º-1 RIAT.
[6] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de11-02-2009, processo nº 875/08, [António Calhau], disponível em www.dgsi.pt.
[7] Nesta peça utiliza-se o acrónimo LGT para designar a Lei Geral Tributária.
[8] José Lebre de Freitas - Código de Processo Civil Anotado. Volume II, Coimbra, 2001, p. 223.
[9] Utiliza-se a sigla “R.I.” para designar o requerimento inicial apresentado pelo Requerente e “RS” para referenciar o seu requerimento trazendo aos autos factos supervenientes.
[10] Referenciação entre parenteses retos em 2.1.1.
[11] Utiliza-se o acrónimo “CIRC” para designar o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas.
[12] Cfr. Requerimento da reclamação graciosa, por remissão de 16º R.I.
[13] Utiliza-se o acrónimo “CRP” para designar a Constituição da República Portuguesa.
[14] Lei 2/2008 de 12 de Janeiro, também designada simplesmente por L.2/2009.
[15] Lei Orgânica 1/2007 de 19 de Fevereiro também designada simplesmente por “LFRA”.
[16] Utiliza-se também o acrónimo “RAA” para designar a Região Autónoma dos Açores.
[17] O artigo 87.º-A na redação citada foi aditado pelo artigo 2.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, que aprovou um conjunto de medidas adicionais de consolidação orçamental que visam reforçar e acelerar a redução de défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC).
[18] J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira - Constituição da República Portuguesa anotada. Vol. II. 4ª ed. revista, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, pp. 674-675.
[19] J. J. GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, op cit, p. 675.
[20] Aprovado pela Lei n.º 39/80, de 5 de Agosto e alterado pelas Leis n.ºs 9/87, de 26 de Março, 61/98, de 27 de Agosto e 2/2009 de 12 de Janeiro.
[21] A anterior redação, que resultava da Lei n.º 61/98 de 27 de agosto apenas referia no respetivo artigo 32º-A, n.º 1, f), que competia à Assembleia Legislativa Regional dos Açores exercer poder tributário próprio.
[22] Só revogada em 31-12-2013 pela Lei Orgânica n.º 2/2013 de 2 de setembro (artigos 73º e 74º).