Decisão Arbitral
CAAD: Arbitragem Tributária
Processo n.º 665/2014 – T
Tema: IRS-Mais Valias
Os árbitros Jorge Lopes de Sousa (Presidente), o árbitro Paulo Ferreira Alves e a árbitra Filomena Salgado de Oliveira (árbitros-vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 8 de Setembro de 2014, acordam no seguinte:
I – RELATÓRIO
A – PARTES
No dia 5 de Setembro de 2014 a A… portadora do NIF … e B… portador do NIF …, ambos com residência Rua …, …, …., … Vila Real de Santo António, doravante designados por Requerentes ou sujeitos passivos, requeram, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a constituição deste Tribunal Arbitral Coletivo, sendo requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) (que sucedeu à Direcção-Geral dos Impostos, por meio do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de Dezembro), doravante, designada por Requerida ou AT.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD, e o Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, no dia 08-09-2014, para apreciar e decidir o objeto do presente processo, e automaticamente notificado a Autoridade Tributária e Aduaneira no dia 08-09-2014, conforme consta da respetiva ata.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico, designou como árbitros o Exmo. Dr. Conselheiro Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa (Presidente), o Dr. Paulo Ferreira Alves e a Exma. Dr.ª Filomena Oliveira, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.
Em 21-10-2014 as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos do artigo 11.º n.º 1, alínea a) e b), do RJAT e dos Artigos 6.º e 7º do Código Deontológico.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo ficou regularmente constituído em 11-05-2014.
Por despacho de 05-02-2015, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, em face da situação de incapacidade do Senhor Conselheiro Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa designou o Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa como árbitro-presidente, nos termos do artigo 8.º, n.º 1, do Código Deontológico.
Assim, o tribunal arbitral encontra-se regularmente constituído, sendo materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
Ambas as partes concordaram com a dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de vícios que o invalidem.
B – PEDIDO
1 - Os Requerentes pretendem a declaração de ilegalidade do ato tributário n.º 2014 … de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e juros compensatórios, que fixou um imposto global a pagar de 156.407,71€ (cento e cinquenta e seis mil quatrocentos e sete euros e setenta e um cêntimos).
C – CAUSA DE PEDIR
1- A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, os Requerentes alegaram, com vista a declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e juros compensatórios n.º 2014 …, em síntese, o seguinte:
2- Em 13 de Março de 2009, foi celebrado um contrato de promessa de compra e venda de ações da sociedade C… - …, S.A.
3- Posteriormente, no dia 12 de Março de 2010, foi celebrado o contrato definitivo de compra e venda das ações pelo preço de 2.160.00,00€.
4- Por meio de processo judicial intentado pelos Requerentes, motivados pelo não pagamento do preço acordado no contrato de compra venda, estes intentaram um procedimento cautelar no Tribunal de Vila Real de Santo António, processo …/11….TBVRS, do qual resultou uma a transação homologada e transitada em julgado entre as partes.
5- Os Requerentes alegam que da referida transação, ficou estipulado que a posse das ações ocorreu em 13.3.2009, com a celebração do contrato de promessa, pelo que é o ano de 2009 que se deve considerar a transmissão realizada, e assim deve ser considerado o ano de 2009 o ano da transação, tendo neste sentido já se verificado a caducidade do direito à liquidação.
6- Contudo, os Requerentes mais alegam, no sentido da eventualidade de se considerar que o ano em que se verificou a transação foi em 2010, com a celebração do contrato definitivo de compra e venda, o seguinte:
7- Considerando que o facto tributário ocorre à data da realização da mais-valia, ou seja, no momento da sua alienação, por aplicação do disposto no artigo 12º n.º 1 da LGT, a tributação das mais-valias, a qual se pretende ilegal pela aplicação da nova a lei a factos tributários de natureza instantânea já completamente formados e anteriores à sua data de entrada em vigor, é, consequentemente, uma aplicação retroativa da lei. Assim, aplicação da nova lei a este facto ocorrido anteriormente à sua aprovação envolve, pois, uma retroatividade autêntica.
8- Recorde-se que está vedada a eficácia retroativa às alterações introduzidas pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, sendo revogada a não sujeição tributária prevista no artigo 10.º, 2.º do CIRS.
9- A lei entrou em 27.7.2010, e não previu qualquer disposição especial quanto à sua aplicação no tempo, de onde se deve atender às regras gerais previstas no artigo 12.º LGT.
10- Os Requerentes sustentam que a liquidação é ilegal pela aplicação retroativa da Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, sendo que no domínio da anterior lei, os requerente estavam isentos de tributação em virtude da detenção das ações por mais de 12 meses, nos termos do artigo 10º n.º 2 do CIRS.
11- Os Requerentes mais alegam, na hipótese de se entender que a Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho se aplica ao referido transação, que a taxa de IRS a aplicável não é a de 20% mas sim a 10%. Ainda sustentam que nos termos do artigo 43.º n.º 3 do CIRS, a sociedade em apreço é uma micro ou pequena empresa pelo que apenas deve ser considerado 50% do valor da mais-valia.
D- DA RESPOSTA DA REQUERIDA
12- A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta na qual, em síntese abreviada, alegou o seguinte:
13- A Requerida invoca que o mandato forense padece de irregularidade a que alude o disposto no artigo 48.º do CPC, uma vez que o pedido de pronúncia arbitral encontra-se subscrito por mandatário judicial, sendo que a procuração forense junta aos autos se encontrar certificada pelo próprio advogado ao qual foram conferidos poderes forenses.
14- A Requerida alega quanto ao erro sobre os pressupostos de facto, que não assiste razão aos Requerentes quanto a esta matéria, no sentido que a liquidação se mostra ilegal em virtude de assentar em errados pressupostos na medida em que as ações por si vendidas à sociedade D… – …, S.A. (doravante “D…) entraram na posse desta última a 2009-03-13, pelo que, à luz do artigo 10.º/3-a) do Código do IRS a transmissão daqueles títulos mobiliários ocorreu no período de 2009 e não de 2010, donde resulta a caducidade do direito à liquidação.
15- Sustenta a Requerida que a transmissão das ações ocorreu a 2010-03-12, ocasião em que foi outorgado o prometido contrato de compra e venda dos títulos mobiliários.
16- Mais alega, que tal presunção funciona a favor do sujeito ativo do imposto e que incumbe ao sujeito passivo que pretende afastar a referida presunção constante do artigo 10.º/3-a) do CIRS, apresentar prova que não se verificou a tradição ou posse ou, então, que a mesma não teve lugar na data considerada pelo sujeito ativo, e que os Requerentes não lograram afastar minimamente a presunção estabelecida a favor desta.
17- A Requerida sustenta, quanto à violação do princípio da irretroatividade da lei fiscal, que não assiste razão aos Requerentes quando defendem que o facto de a lei referir que entra em vigor no dia subsequente ao da sua publicação legal permite a exclusão da sua aplicação à situação de facto delineada nos autos.
18- Assim, em primeiro lugar, parece resultar evidente que o legislador, ao optar por não consagrar na lei qualquer norma de direito transitório que salvaguardasse eventuais factos tributários em formação (como fez no passado, à luz dos exemplos apontados), pretendeu de facto que as situações de realização de mais-valias durante o ano de 2010 – das quais resultasse um saldo positivo – fosse sujeito a tributação efetiva, independentemente da data da sua realização.
19- Em segundo lugar, porque o elemento histórico contradiz a tese defendida pelos Requerentes, na medida em que o próprio legislador fiscal referia clara e expressamente que o novo regime seria aplicável ao resultado das mais-valias apuradas ao longo de todo o ano de 2010.
20- Mais refere que, à data em que ocorreu a transmissão geradora das mais-valias (2010-03-12), a redação do artigo 10.º/2-a) do CIRS determinava a exclusão de tributação das mais-valias geradas pela alienação de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses.
21- Mais sustenta a Requerida que, para a generalidade da doutrina e da Jurisprudência, o facto gerador do imposto se verifica à data de 31 de Dezembro de cada ano, assim se compreendendo o caráter unitário e global da tributação do rendimento, isto não obstante o recorte analítico das várias categorias de rendimento de acordo com a sua fonte.
22- Desta forma, a liquidação dos autos, inquestionavelmente influenciada pelas alterações introduzidas pela Lei 15/2010, de 26 de Julho, não colide com o disposto no artigo 12.º da LGT.
23- A liquidação sub júdice considerou o disposto na Lei 15/2010, de 26 de Julho, entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, e considerou na matéria coletável mais-valias decorrentes de operação de compra e venda de ações levada a cabo em 12/03/2010, ou seja, em momento anterior ao da entrada em vigor daquele diploma legal.
24- Mais alega que não faz qualquer sentido afirmar que existe no caso vertente uma situação de retroatividade de 1.º grau relativamente à alteração preconizada pela Lei 15/2010, de 26 de Julho, quando a solução legal, por um lado, se aplica ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas em cada ano e, por outro, respeita a factualidade ainda em formação, cuja verificação plena apenas ocorre no fim do período de tributação, pelo que a respetiva consubstanciação integral e definitiva ocorre no domínio da nova lei.
25- Desta forma, tendo em atenção os contornos factuais que fluem dos autos, será de concluir não ser configurável a existência de um grau de retroatividade suscetível de fazer frustrar a aplicação da Lei 15/2010, de 26 de Julho.
26- Resulta ainda da jurisprudência emanada do Tribunal Constitucional, que o artigo 103.º/3 da CRP se aplica apenas a situações configuráveis como de retroatividade forte, autêntica ou própria, ou seja, de 1.º grau, traduzida pela aplicação da lei nova a factos inteiramente verificados ao abrigo da lei antiga, tendo já produzido todos os seus efeitos no âmbito dessa lei (cfr., entre outros, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 128/2009 e n.º 399/2010).
27- A aplicação da Lei 15/2010, de 26 de Julho, à operação de venda de ações em causa nos autos não afronta o princípio da retroatividade da lei fiscal consagrado no aludido artigo da Constituição.
28- Mais sustenta a Requerida no sentido de que sempre se dirá que não faz sentido pretender aplicar ao caso concreto o artigo 12.º da LGT (constante de legislação geral) para efeitos da fixação da aplicação temporal da Lei 15/2010, de 26 de Julho, quando na realidade a solução a dar a tal questão resulta do próprio CIRS (legislação especial).
29- Ora, aquilo que ressalta inequivocamente deste último corpo legal é o princípio da anualidade do IRS.
30- Donde resulta ser inócua a circunstância da alteração preconizada pela Lei 15/2010, de 26 de Julho, ter ocorrido em data posterior à venda das ações em causa nos presentes autos.
31- Refere ainda a Requerida que a anualidade do IRS conduz necessariamente à aglutinação de todos os factos geradores e dos rendimentos que se verifiquem até 31 de Dezembro do período em causa.
32- A Requerida, sustenta também que na hipótese de se concluir-se pela aplicação ao caso sub júdice da Lei 15/2010, de 26 de Julho, sempre seria aplicável uma taxa de 2% e não de 10%, em virtude das ações por si vendidas respeitarem a uma micro ou pequena empresa, nos termos do Decreto-Lei 372/2007, de 6 de Novembro, pelo que a liquidação ora em crise padece de ilegalidade em virtude da mesma assentar na ausência de uma certificação do IAPMEI que ateste a qualidade de micro ou pequena empresa.
33- Termina a Requerida alegando que cabia aos Requerentes demonstrar que, à data da alienação das ações, a empresa em causa preenchia todos os requisitos materiais previstos no Decreto-Lei 372/2007, de 6 de Novembro, e que, em tese, dariam acesso à obtenção de uma certidão por parte do IAPMEI, e nada disso foi feito pelos Requerentes, quando tal ónus sobre eles impendia à luz do artigo 74.º/1 da LGT.
E- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
34- Antes de entrar na apreciação destas questões, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, efetuou-se com base na prova documental, e tendo em conta os factos alegados.
35- Em matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:
36- A requerente celebrou em 13 de Março de 2009, um contrato de promessa de compra e venda de ações da sociedade C… - …, S.A., cujo teor se dá como reproduzido, tendo celebrado no dia 12 de Março de 2010, o contrato definitivo de compra e venda das ações, pelo preço de 2.160.00,00€, cuja cópia consta do anexo 2 ao Relatório da Inspeção Tributária, cujo teor se dá como reproduzido, e em cuja cláusula 3.ª se refere que «com a outorga do presente contrato é efectuada a transmissão das acções».
37- Por meio de processo judicial intentado pelos Requerentes motivados pelo não pagamento do preço acordado no contrato de compra venda, estes intentaram um procedimento cautelar no Tribunal de Vila Real de Santo António, processo …/11….TBVRS, do qual resultou uma a transação homologada e transitada em julgado entre as partes.
38- Os Requerentes foram notificados do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2014 …, que fixou um imposto global a pagar de 156.407,71€, resultando da aplicação de uma taxa de 20% sobre a mais-valia do negócio jurídico supra descrito.
F- FACTOS NÃO PROVADOS
39- Dos factos com interesse para a decisão da causa, constantes da impugnação, todos os objetos de análise concreta, não se provou que os Requerentes tivessem declarado a transmissão das ações no período fiscal de 2009, nem que no processo .../11....TBVRS, no qual resultou a homologação de uma transação entre as partes, tivesse sido determinada a data da tradição ou posse das ações.
G- QUESTÕES DECIDENDAS
40- Atenta às posições das partes assumidas nos argumentos apresentados, constitui questão central dirimenda a seguinte, a qual cumpre, pois, apreciar e decidir:
i) A questão prévia alegada pela Requerida que invoca nos termos do artigo 48.º do CPC, a irregularidade da procuração forense;
ii) A declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e juros compensatórios n.º 2014 …, alegada pelos Requerentes.
H- MATÉRIA DE DIREITO
Da Irregularidade Da Procuração Forense
41- A Requerida invoca nos termos do artigo 48.º do CPC, a irregularidade da procuração forense junta pela Requerente, por este ter certificado a referida cópia procuração forense junta.
42- De acordo com o Parecer n.º 15/PP/2008-G, do Conselho Geral da Ordem dos Advogados em 30/07/2008, diz o seguinte "Ora, parece evidente que a autenticação ou certificação de documentos e/ou o reconhecimento de assinaturas — atos que hoje podem ser praticados tanto por notários como por advogados ou solicitadores— têm que ser praticados por quem se encontre livre de qualquer subordinação, seja ela técnica, jurídica ou económica. Por outras palavras, quando é chamado a certificar um documento, ou a reconhecer determinada assinatura, o Advogado não pode estar na situação de um empregado que recebe ordens ou instruções (entenda-se, do interessado ou beneficiário na autenticação ou na certificação). O mesmo se diga do notário ou do solicitador."
43- Os Requerentes procederam à regularização da procuração forense, pelo que o vício se encontra sanado, passando a procuração a não sofrer de qualquer vício, insuficiência ou irregularidade, pelo que se aceite e é valida.
Da Ilegalidade do Ato Tributário
44- Atendendo às posições das partes assumidas nos articulados apresentados, são suscitadas pelas duas questões centrais de relevo dos presentes autos, ao qual cabe ao presente tribunal centrar-se e decidir na seguinte ordem.
45- Questões estas que, em primeiro lugar, fundamentam-se em estabelecer para efeitos de tributação em sede de IRS qual o momento da realização da mais-valia nos termos do artigo 10.º CIRS e, em segundo lugar, caso se decida e determine que o facto tributário se verificou no decorrer do ano de 2010 cabe ao presente tribunal determinar qual a legislação e respetivo regime jurídico a aplicar a esta transação e mais-valia.
46- A matéria de facto está fixada e provada, razão pela qual vamos agora determinar o direito aplicável aos factos controvertidos.
47- Quanto à primeira questão, esta consiste em determinar qual o momento da realização da mais-valia para efeitos de tributação em sede de IRS, se o ano de 2009 ou o ano de 2010.
48- Esta questão tem relevo no seguinte sentido, se considerar que a tradição da ações se verificou com a celebração do contrato de promessa, o ano relevante para a tributação da mais valia é o ano de 2009, de acordo com a legislação à data, e assim não se colocaria a questão da aplicação da Lei 15/2010 à mais-valia, mas se entendermos que a tradição e transmissão só se verificou com o contrato de compra e venda no ano de 2010, sendo este o ano fiscal relevante para a tributação, aqui já se coloca a questão da aplicação da Lei 15/2010, e respetivamente a segunda questão dos presentes autos.
49- Tendo em consideração a seguinte factualidade já provada, que sinteticamente elencamos para efeitos de decisão desta questão, note-se que os Requerentes celebraram um contrato promessa de compra e venda das ações no dia 13/03/2009, celebrando no dia 12/03/2010 o contrato de compra e venda das ações, sendo que o pagamento das mesmas foi faseado em diversas formas de pagamento, descritas no respetivo contrato. Contudo para garantir o pagamento os Requerentes tiveram de recorrer à via judicial, da qual resultou a sentença já transitada em julgado, proferida no Procedimento Cautelar de Arresto que correu no Tribunal Judicial de Vila Real de St. António, no processo.º .../11....TBVRS, de qual resultou a homologação de uma transação entre as partes, sem qualquer apreciação de direito das questões invocadas.
50- Não ficou demostrado na decisão judicial supra referida, que o Tribunal Judicial de Vila Real de St. António decidisse que o momento da tradição ou posse das ações tivesse ocorrido com a celebração do contrato-promessa.
51- O regime fiscal das mais-valias assenta no princípio da realização, do qual resulta para o caso em apreço no art. 10.º n.º 1 al. b) do CIRS que são mais-valias os ganhos obtidos que resultem da: "b) Alienação onerosa de partes sociais, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, e de outros valores mobiliários e, bem assim, o valor atribuído aos associados em resultado da partilha que, nos termos do artigo 75.º do Código do IRC, seja considerado como mais-valia".
52- Contudo, o regime jurídico das mais-valias, consagrado no artigo 10.º n.º 3 do CIRS, especificamente estabelece uma regra quanto aos contratos promessa, que consiste na presunção de que o ganho se encontra realizado no momento em que ocorre à tradição ou posse do bem ou direito.
53- Este artigo estabelece, conforme jurisprudência, uma presunção a favor da Autoridade Tributária e que depende de dois requisitos cumulativos, a celebração de um contrato-promessa e a tradição ou posse dos bens objeto do contrato.
54- Conforme se pode verificar no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido a 2004-10-21 no âmbito do processo n.º 00092/04:
«Dispõe o artigo 10º, nº 3, a) do CIRS, após estabelecer no seu nº 1 a noção de mais-valias para efeitos do Código, que os ganhos se consideram obtidos no momento da prática dos atos previstos no nº 1, sem prejuízo de nos casos de promessa de compra e venda ou de troca se presumir que o ganho é obtido logo que verificada a tradição ou posse dos bens ou direitos objeto do contrato. Estamos aqui perante uma presunção estabelecida a favor da Fazenda Pública, de modo a evitar que os contribuintes, em caso de tradição ou posse do bem ou direito, pudessem protelar indefinidamente a liquidação do imposto, bastando-lhes arrastar a data da celebração da respetiva escritura de compra e venda. Deste modo, existindo a tradição do imóvel, e mesmo que não celebrada a escritura definitiva, o ganho considera-se obtido logo que verificada a tradição ou posse do bem, pelo que o contribuinte deverá comunicar o facto à Fazenda Pública ou esta poderá efetuar a respetiva liquidação oficiosamente, se o facto chegar ao seu conhecimento.»
55- Deste modo, importa analisar se com a celebração do contrato promessa de compra e venda se pode presumir a obtenção do ganho, o que ocorrerá sempre que verificada a tradição ou posse das ações por parte da D… – …, S.A. (doravante D…).
56- A este respeito, refira-se que constitui uma obrigação do sujeito passivo – os Requerentes –, em cumprimento do artigo 10.º n.º 11 do CIRS na redação de Decreto-Lei n.º 228/2002 de 30 de novembro, declarar a alienação onerosa das ações, ainda que detidas durante mais de 12 meses, bem como a data da respetiva aquisição.
57- No entanto, constata-se que os Requerentes não declararam a alienação das ações em 2009, nem mesmo em 2010, tendo incumprido o disposto no referido artigo 10.º n.º 11 do CIRS.
58- Resta-nos então analisar o tratamento dado a esta operação pelo adquirente das ações.
59- Efetivamente, a empresa D…, submeteu eletronicamente em 26/03/2010, na qualidade de adquirente, a declaração de Mod.4 – Aquisição e/ou Alienação de Valores Mobiliários, através da qual declara que os Requerentes, A… e B… alienaram à declarante em 12/03/2010, por 717.386,57 €, 1.830.000 ações e por 3.920,14 €, 10.000 ações, respetivamente, da empresa C… - …, S.A.. No mesmo sentido, a Informação Empresarial Simplificada (IES) do ano de 2010 da D… refere como data de início da participação 13/03/2010. Na IES de 2009 nada é referido a respeito da aquisição, para além da evidência, no balanço da D…, do adiantamento (5% do valor da transação) pago aos Requerentes na assinatura do Contrato de Promessa de Compra e Venda (CPCV).
60- Por outro lado, o CPCV refere na sua Cláusula Quinta que “Os promitentes vendedores declaram e garantem, perante a promitente-compradora que, na presente data: (…) v) Até à data da celebração do contrato definitivo não ocorrerão alterações na situação económica, financeira, contabilística e fiscal da sociedade C…”.
61- Da análise ao contrato-promessa de compra e venda não resulta que a tradição e posse dos bens se tenham verificado com a celebração do mesmo, muito pelo contrário. Por um lado, o valor do sinal é meramente simbólico (5% do valor da transacção) face os preço de venda das ações. A tradição das ações, em função de um contrato-promessa, poderia ter conferido a posse real e efetiva, situação que se verificaria, por exemplo, se fosse paga a totalidade do preço convencionado, ao mesmo tempo que o promitente-vendedor entregaria as ações ao promitente-comprador para ele agir como se fossem suas, incluindo quanto ao direito ao recebimento de dividendos.
62- Factos que não se verificaram com a assinatura do CPCV assinado em 13/03/2009 entre os Requerentes e a D….
63- A reforçar que a tradição e posse das ações não se verificaram com o CPCV, o próprio Contrato de Venda das Ações refere na Cláusula Terceira que:
1. Com a outorga do presente contrato é efectuada a transmissão das acções.
2. Tendo em conta que o preço das acções é efectuado nos termos previstos no número. 1, da cláusula segunda, os vendedores reservam a propriedade das acções até integral pagamento. Em caso de não pagamento do preço das acções, os vendedores poderão não abdicar da propriedade e exigir a entrega dos títulos. Em caso de recusa em proceder à devolução dos títulos, poderão os vendedores proceder à emissão de novos títulos, anulando os que foram entregues com a outorga do presente contrato.
(…)
64- Ora, mesmo o Contrato de Compra e Venda impõe restrições quanto à transferência da propriedade das ações, tendo em conta os montantes pagos até ao momento de assinatura do Contrato.
65- Por outro lado, o ponto 2. da Cláusula Segunda do mesmo Contrato refere ainda que do preço se encontram “… expressamente excluídas as disponibilidades do saldo de caixa e bancários, que as VENDEDORAS têm direito de retirar até à data da assinatura deste contrato (…)”.
66- Caso a tradição e posse das ações se tivessem verificado com o CPCV por que razão teriam as Vendedoras direito aos saldos de Caixa e Bancários verificados à data da transmissão das ações, apurados até à data de assinatura do contrato de compra e venda?
67- Por todas as razões apresentadas, parece-nos lícito concluir que a posse das ações apenas veio a ocorrer com a alienação das mesmas, o que aconteceu no dia 12/03/2010, assumindo que o momento da tradição ou posse coincidiu com a alienação onerosa das ações, tendo esta apenas se verificado com o contrato de compra e venda das ações e não com o contrato-promessa.
68- Caso a tradição e posse das ações tivesse ocorrido a 13/03/2009, com a celebração do contrato-promessa compra e venda, então os Requerentes deveriam ter declarado a transação no período fiscal de 2009, conforme o artigo 10.º n.º 11 do CIRS impunha.
69- Sem fundamentação de facto que sustente a posição dos Requerentes, em considerar que com o contrato-promessa se verificou a tradição das ações, decide-se que para efeitos de tributação em sede de IRS, a presente mais-valia resultou da alienação onerosa por meio de contrato de compra e venda de ações celebrado em 12 de Março de 2010, sendo assim determinado que o período fiscal e a ano da alienação é o ano de 2010, especificamente 12/03/2010.
70- Decidido neste sentido, cabe ao presente tribunal arbitral apreciar e decidir a segunda questão central do presente processo, que se subsume, como já foi referido, a determinação da Legislação e regime a aplicar a esta operação da qual resultou um ganho, que ocorreu no decorrer do ano de 2010 (12 de Março), antes da aprovação, publicação e entrada em vigor da Lei 15/2010, de 26 de Julho.
71- A questão consiste em determinar se a legislação a aplicar é a Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, que entrou em vigor no dia 27 de Julho de 2010, ou Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro em vigor à data da transação (12 de Março de 2010).
72- O relevo da questão prende-se com o facto de, à data da transação, a mais-valia que resultou da alienação estava excluída de tributação, conforme o artigo 10 n.º 2 do CIRS na redação do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, com efeitos a partir de 1/1/2003, e com a entrada em vigor da Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, sendo que tal exclusão foi revogada e que esta mais-valia seria, agora, tributada, por meio de englobamento ou por tributação autónoma a uma taxa de 20%.
73- Um dos princípios fundamentais do Direito português é o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, como elemento constitutivos do estado de direito.
74- Estes princípios constitucionais, garantem ao Cidadão, segurança e confiança na previsibilidade das soluções, de tal forma que as alterações legislativas não alterem os seus direitos adquiridos, expetativas criadas.
75- A revisão constitucional de 1997, consagrou desde então no artigo 103.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa o princípio da proibição da retroatividade fiscal, que dispõe:
«Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei».
76- Esta alteração constitucional não se visou explicitar uma simples refração do princípio geral da proteção da confiança dos cidadãos, inerente a toda a atividade do Estado de direito democrático, mas sim expressar uma regra absoluta de definição do âmbito de validade temporal das leis criadoras ou agravadoras de impostos, prevenindo, assim, a existência de um perigo abstrato de grave violação daquela confiança[1].
77- Segundo a jurisprudência dominante do Tribunal Constitucional, o artigo 103º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, apenas se aplica à retroatividade forte, autêntica ou própria, que considera totalmente interdita sem possibilidade de ponderações, podendo, todavia, a retroatividade fraca, inautêntica ou imprópria ser interdita à luz do princípio da confiança, mediante a verificação dum conjunto de requisitos ditos “testes” (Cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 128/2009 e 399/2010).[2]
78- Os princípios citados da confiança jurídica e da boa-fé, corolários da segurança jurídica, que são pilares estruturantes de um verdadeiro Estado de Direito democrático, proclamados ou ínsitos no artigo 2.º da Constituição, a par do princípio da dignidade da pessoa humana, expresso no artigo 1.º que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, deve ser tido como um princípio politicamente conformado que explicita as valorações fundamentadas do legislador constituinte.
79- Ao cidadão deve ser possível prever as intervenções do Estado e adequar e adaptar a sua atuação à mesma.
80- O princípio da confiança é violado quando haja uma afetação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa de expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos (Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 287/90, 303/90, 625/98, 634/98, 186/2009).
81- Esta ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, por dois critérios: i) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação na ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas delas constantes não possam contar; e ii) quando for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes, devendo recorrer-se aqui ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 2 da Constituição) (Acórdãos n.os 287/90 e 186/2009).
82- Diz-nos o Acórdão do Tribunal Constitucional 17/84, que o cidadão deve “poder prever a intervenções que o Estado poderá levar sobre ele ou perante ele e preparar-se para se adequar a elas. (…) Deve poder confiar em que a sua atuação seja reconhecida pela ordem jurídica e assim permaneça em todas as consequências juridicamente relevantes.”
83- Conforme nos dizem os Autores Gomes Canotilho, Vital Moreira "o constitucionalismo nasceu para estabelecer o princípio da legalidade e da igualdade nos impostos, pondo fim à arbitrariedade e à discriminação fiscal típicas do Antigo Regime" [3]" (…) o n.º 2 (do artigo 103 da CRP), garante o princípio da legalidade fiscal, um dos elementos essenciais do estado de direito constitucional. Ele traduz-se desde logo na regra da reserva de lei para a criação e definição dos elementos essenciais dos impostos, não podendo deixar de constar de diploma legislativo. Isso implica a tipicidade legal, devendo o imposto ser desenhado na lei de forma suficiente determinada, sem margem para desenvolvimento regulamentar nem para discricionariedade administrativa quanto aos seus elementos essenciais."[4](…) "desde a RC/97, a constituição fiscal consagra a proibição de impostos retroativos (n.º 3), explicitando assim um princípio que já poderia considerar-se como uma decorrência do princípio da proteção da confiança, inscrito no princípio do estado de Direito. Deste modo, não são lícitos constitucionalmente os impostos criados para incidir sobre rendimentos já auferidos ou sobre factos tributários (transações, etc.) já ocorridos. A forma enfática como a norma está formulada não deixa dúvidas sobre a natureza absoluta desta proibição, dando a todo o contribuinte o direito de se recusar a pagar tal imposto. Nessa medida, o imposto retroativo (ou qualquer outra norma fiscal retroativa, desde que desfavorável) é sempre constitucionalmente ilícito. A constituição fez aplicação à obrigação de pagar impostos - que se traduz sempre numa ablação pecuniária dos contribuintes - do mesmo regime de proibição da retroatividade que vale para as restrições de direitos liberdades e garantias (artigo 18 n.º 3)."[5]
84- Com isto pretende-se concluir, que o diploma normativo, em concreto a Lei 15/2010, não pode contemplar uma norma expressa que permita a sua retroatividade a factos ou negócios jurídicos já ocorridos, porque tal violaria expressamente o artigo 103 n.º 3 da CRP, e o principio da retroatividade das leis fiscais.
85- Mais se refere a importância da inclusão de uma exclusão de tributação num imposto anual, que se encontra prevista no início do ano fiscal e cria uma expetativa legítima de que a mesma irá durar até ao fim desse mesmo ano fiscal, com potencialidade para alterar os comportamentos dos sujeitos passivos.
86- A norma não contempla expressamente um prazo de vigência ou caducidade e com a sua revogação, não podem alterar-se as relações jurídicas criadas e terminadas no decorrer da sua vigência, pois o regime vigente pode influenciar o comportamento do sujeito passivo, que poderia não ter realizado a operação, ou poderia realizá-la noutros termos.
87- Mais se refere que um dos objetivos da exclusão de tributação é promover esse tipo de negócios jurídicos, pelo que não se pode pão prejudicar a posteriori o sujeito passivo pela sua prática.
88- De um ponto de vista material, temos uma lesão da segurança jurídica do Cidadão, quando um certo comportamento anteriormente admitido sem tributação e incentivado pela lei passar a ser, posteriormente, sujeito a tributação.
89- Se fosse possível a revogação da exclusão da tributação posterior à prática dos actos, o Contribuinte nunca poderia estar seguro do imposto a pagar em todos os negócios jurídicos dos quais resultem rendimentos.
90- Porque qualquer tributação ou exclusão da mesma em sede de IRS, de forma a cumprir com os princípios constitucionais da confiança e segurança jurídica, tem de permitir ao sujeito passivo e Cidadão criar e promover as suas relações contratuais prevendo desde logo o impacto fiscal.
91- Não é de deixar de referir, que a capacidade do sujeito passivo prever e planear o impacto fiscal e o imposto a pagar no final do ano fiscal é fundamental no dia-a-dia de todos os sujeitos passivos portugueses.
92- No presente caso, o sujeito passivo, celebrou um negócio jurídico que lhe criou um ganho, ganho esse excluído de tributação, por meio de uma norma já prevista desde 2003, não revogada e mantida para o Orçamento de Estado para o ano de 2010.
93- Não aplicar a norma que exclui a tributação a situações já verificados quando ocorreu a sua revogação traduz-se em violar o princípio da confiança e segurança jurídica do sujeito passivo.
94- É alegado que o IRS aponta para o facto gerador do imposto se materializar no dia 31 de Dezembro de cada ano, sendo as mais-valias um facto complexo e de formação sucessiva, por não serem tributadas individualmente, mas sim ser tributado o seu saldo no final do ano, e assim não revestirem a natureza instantânea.
95- Contudo, importa relembrar que no caso da presente operação que teve como resultado o ganho, ou seja, alienação de ações detidas há mais de 12 meses, ela estava excluída de tributação, sendo assim irrelevante para efeitos de cálculo das mais-valias, sobre que viria a incidir o imposto.
96- Não é compatível com o princípio da confiança e da segurança jurídica uma interpretação no sentido de se poderem alterar a qualquer momento as regras e expectativas do Contribuinte sobre os factos sujeitos a imposto, com fundamento em o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares ser um facto complexo e de formação sucessiva e porque que o facto gerador do imposto apenas se verifica no dia 31 de Dezembro.
97- Importa fazer uma breve exposição das normas de relevo para o presente caso em vigor antes e despois da entrada da Lei n.º 15/2010.
98- O artigo 10.º do CIRS, estabelecia até 26 de julho de 2006 (inclusive) por meio do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de outubro, com entrada em vigor em 1 de janeiro de 2003 o seguinte normativo:
“1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:[...]
b) Alienação onerosa de partes sociais, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, e de outros valores mobiliários e, bem assim, o valor atribuído aos associados em resultado da partilha que, nos termos do artigo 75.º do Código do IRC, seja considerado como mais-valia;[...]
2 - Excluem-se do disposto no número anterior as mais-valias provenientes da alienação de:
Ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses;[...]
4 - O ganho sujeito a IRS é constituído:
Pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, sendo caso disso, nos casos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1; [...]
11 - Sem prejuízo do disposto no n.º 2, os sujeitos passivos devem declarar a alienação onerosa das ações, ainda que detidas durante mais de 12 meses, bem como a data da respetiva aquisição. [...]”.
99- Por sua vez, o art. 72.º, n.ºs 4 e 7 do CIRS, previa:
“4 - O saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias, resultante das operações previstas nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º, é tributado à taxa de 10%.[6][...]
7 - Os rendimentos previstos nos n.ºs 4, 5 e 6 podem ser englobados por opção dos respectivos titulares residentes em território português[7].”
100- A Lei n.º 15/2010, de 26 de julho, com a sua entrada em vigor no dia seguinte à da sua aplicação (conforme. art. 5.º), respetivamente no dia 27 de julho de 2010, veio revogar o n.º 2 do art. 10.º do CIRS e alterou a redação do n.º 11 do mesmo artigo, para o seguinte normativo:
"11- Os sujeitos passivos devem declarar a alienação onerosa das ações, bem como a data das respectivas aquisições”.
101- A Lei n.º 15/2010, veio igualmente alterar o n.º 4 do art. 72.º, passando aí a prever-se o seguinte
“O saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias, resultante das operações previstas nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º é tributado à taxa de 20%”.
102- Face à exposição normativa, resulta claramente que o regime jurídico das mais-valias excluía da tributação como mais-valias os ganhos resultantes da alienação onerosa de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses (art. 10.º, n.º 2 al. a) CIRS redação DL n.º 228/2002, 31 Outubro).
103- Por outras palavras, excluía o regime sem qualquer margem de dúvida, o ganho proveniente do negócio jurídico da requerente e aqui em apreço.
104- Com a revogação do art. 10.º, n.º 2 do CIRS, pela Lei 15/2010, passariam, então, a estar também abrangidas pela norma de incidência, portanto não excluídas de tributação, as mais-valias obtidas com a alienação onerosa de participações sociais ainda que detidas há mais de doze meses.
105- Procedeu também a referida Lei ao aumento do valor da taxa a que está sujeita a tributação das mais-valias de 10% para 20% (art. 72.º, n.º 4 do CIRS).
106- Conforme já foi escrito, o regime das mais-valias, em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, encontra-se estabelecido no artigo 10º com o corolário do princípio da realização nas mais-valias, ou seja, só há tributação quando a mais-valia é onerosamente alienada, a sua exigibilidade coincide com o momento em que se verifica o facto gerador ou seja a sua alienação onerosa.
107- No seio da doutrina e da Jurisprudência, considera-se que o facto gerador do imposto de IRS se verifica à data de 31 de Dezembro de cada ano, e quanto ao regime fiscal das mais-valias mobiliárias, nos termos do art. 43.º, n.º 1 do CIRS o que se tributa nas mais-valias é “o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano”.
108- No caso das mais-valias derivadas de alienação de participações sociais, sendo o facto gerador do imposto o momento da sua alienação onerosa, não estamos perante um facto tributário complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas sim perante um facto tributário instantâneo, sendo o regime vigente no momento em que ele ocorre o que releva para apurar se essas mais-valias contam ou não para o cálculo do saldo anual.
109- No seio da doutrina, como escreve José Guilherme Xavier de Basto “No que respeita ao momento em que o imposto é exigível […] rege o n.º 3 do artigo 10.º, que estabelece, como regra geral, que os ganhos se consideram obtidos no momento da prática dos atos previstos no n.º 1”. Quer dizer, o facto gerador reporta-se ao momento do ato que “realiza” a mais-valia. Dir-se-á, em termos gerais, que o momento relevante é, pois, o da alienação do ativo em que se apuraram mais-valias tributáveis, ou operação a ela equiparada.”[8].
110- O facto de ser apurado um saldo anual de mais-valias, nos termos do artigo 43.º n.º 1, visa apenas a determinação e consolidação da matéria colectável, para que o sujeito passivo possa escolher pelo englobamento ou não dos rendimentos de mais-valias que são sujeitos a imposto, não implicando que a identificação das mais-valias que relevam para esse saldo seja determinada pela lei vigente no final do ano. É apenas em relação a este saldo anual que o contribuinte tem o direito de opção pela não obrigatoriedade do englobamento das mais-valias tributáveis consagrado no artigo 72.º, n.º 7 do CIRS e pela consequente opção pela tributação a uma taxa especial regulada no art. 72.º, n.º 4 do CIRS, optando pela opção que lhe for mais favorável, ma este regime não influencia o que releva para esse saldo.
111- Caso o contribuinte opte pelo englobamento serão aplicadas as taxas gerais, em função da totalidade dos rendimentos obtidos durante o ano fiscal, mas o imposto só incide sobre os rendimentos que, quando foram obtidos, estavam sujeitos a imposto.
112- Diz-nos o artigo 1 n.º1 do CIRS, que o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) incide sobre o valor anual dos rendimentos das categorias. Realça-se a importância do valor anual dos rendimentos.
113- Contudo, esta norma tem de ser complementada com o regime do artigo 10 n.º 1, n.º 1 al. b) e n.º 3, artigo 10 inscrito no Capitulo I - Incidência, Secção I - incidência Real, o qual estabelece que os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos atos previstos no n.º 1, ou seja constituem mais-valias os ganhos obtidos no momento da alienação onerosa de partes sociais, que, nesse momento, seja tributáveis. Não limita este artigo a sua aplicação a situações em que a alienação seja feita exclusivamente por meio de contrato de compra e venda.
114- Mais nos diz o artigo 43.º, inserido no Capitulo II - determinação do rendimento colectável, secção VI - Incrementos Patrimoniais:
1 - O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes.
115- Mas, o seu número 4º, que passou para o número 6º com a entrada em vigor da Lei 15/2010, manteve a sua formulação, referindo sempre o conceito "data de aquisição".
116- O que se pretende com as transições dos artigos supra referidos, é clarificar que o regime das mais-valias considera que o momento em que se considera obtido o ganho é a data da alienação onerosa.
117- Situação semelhante se verifica no caso da tributação autónoma[9] em sede de IRC, e foi neste sentido que o Tribunal Constitucional no processo n.º 310/2012 entendeu, o qual se transcreve:
"Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º, n.º 9, do CIRC). Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo. Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso). Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa."
118- Neste mesmo sentido, e utilizando a argumentação apresentada na decisão do Tribunal supra referida (a negrito), na situação da exclusão do artigo 10.º n.º 2, o STA já decidiu por duas ocasiões, conforme decidiu o Acórdão do STA de 12/04/2013 do processo 01582/13, em considerar:
"nas mais-valias resultantes da alienação de participações sociais o tributo incide sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, surgindo o facto gerador do tributo isolado no tempo. Simplesmente há uma consolidação anual das mais-valias e menos-valias para efeitos de apuramento da matéria colectável, sobre a qual vai incidir a taxa especial ou que vai ser englobada aos rendimentos das demais categorias (fls. 46). acórdão do Tribunal Constitucional n.º 399/10, 27 outubro 2010, é inaplicável ao caso concreto na medida em que, após considerações sobre o princípio da irretroatividade das leis fiscais:- emite pronúncia sobre questão distinta: aplicação do art. 68.º n.º 1 CIRS a todos os rendimentos auferidos no ano de 2010 após alterações introduzidas pela Lei n.º 11/2010, 15 junho (novo escalão para rendimento colectável superior a €150 000, sujeito à taxa de 45%) e pela Lei n.º 12-A/2010 30 junho (aumento do valor da taxa de todos os escalões, incluindo o escalão e a taxa introduzidos pela Lei n.º 11/2010, 15 junho);- não declara a inconstitucionalidade da norma constante do art. 68.º n.º 1 CIRS, nas sucessivas redações conferidas pelos diplomas supra identificados."
119- Neste mesmo sentido decidiu o acórdão do CAAD no Processo Arbitral n.º 25/2011-T, em questão igual ao caso apreço, decidiu no seguinte sentido
"Tendo a nova lei entrado em vigor a 27 de Julho a mesma só poderá ter aplicação, por força do art. 12.º, n.º 2 da LGT, relativamente às mais-valias obtidas a partir de tal data, e não antes. Reitera-se que, se a lei nova determinasse a sua vigência a partir do início do ano, deixaria de ter aplicação o art. 12.º, n.º 2, mas a lei nada dispôs nesse sentido."
120- Mais nos diz o referido acórdão:
"Quanto à aplicação do art.º 12º da Lei Geral Tributária:
Questão diversa é a de saber, se apesar de não ocorrerem tais violações, a liquidação respeitou as regras de aplicação da lei tributária no tempo, consignadas no art. 12.º da Lei Geral Tributária. A Lei Geral Tributária não é uma Lei de valor reforçado, pelo que as suas regras cedem perante lei posterior em sentido contrário. Qualquer lei fiscal posterior pode estabelecer regime de aplicação da lei no tempo que se afaste do regime do referido art. 12º, desta lei.
A questão é saber se tal ocorreu no caso em apreço. E se a resposta for negativa, qual o regime de aplicação da lei no tempo a aplicar.
Vejamos:
O artigo o 5.º da lei determina que “A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação”. Tendo a lei sido publicada a 26 de Julho, tal significa que entrou em vigor a 27 desse mês.
Percorrido o articulado legal, não se encontra qualquer ou norma que determine a aplicação da lei ao período tributário anterior à data da sua entrada em vigor. Neste contexto, parece ser de ponderar a aplicação ao caso do art. 12.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária que determina que “Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor”.
Sendo o IRS um imposto periódico de formação sucessiva, na ausência de norma da lei nova que disponha de modo diferente esta “só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor”.
A nosso ver, tal significa a aplicação da lei nova aos factos da vida que se vão sucedendo ao longo do ano e que vão gerando rendimento.
É certo que do ponto de vista conceptual, o facto tributário só se verifica no último dia do ano. Desse facto tributário complexo fazem parte um conjunto de factos jurídicos que vão ocorrendo durante o período tributário, em momentos diversos, e que, no final do período tributário, formam um todo.
Para estes casos, se a lei nova não dispuser de modo diverso, a mesma só se poderá aplicar, no que respeita ao IRS, aos rendimentos obtidos no período da sua vigência. A lei antiga aplicar-se-á aos acréscimos obtidos no período da sua vigência.
Escreve Sérgio Vasques: “O alcance principal da distinção entre impostos periódicos e impostos de obrigação única está na aplicação da lei no tempo e nas regras da caducidade e da prescrição“ (ob. Cit. pag. 201).
E ainda: “Ora a aplicação com efeitos imediatos da lei que crie ou agrave um imposto possui relevo diverso conforme este revista natureza periódica ou de obrigação única
(…) um agravamento com efeitos imediatos do IRS ou do IRC, produzido a meio do ano, se mostra em certa medida retroactivo, visto que o imposto incide sobre o rendimento que se forma entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro, sendo o facto tributário de formação sucessiva. O artigo 12º, nº 2, da LGT dispõe por isso que (…) sugerindo assim que um agravamento de IRS ou do IRC produzido a meio do ano só pode aplicar-se à parcela dos rendimentos que ainda não tenha sido gerada” (Ibidem pag. 203. De referir, todavia, que o mesmo Autor na nota 471, pag. 294 faz observações críticas à solução legal).
Diz-nos também António Lima Guerreiro que “O facto tributário, quando duradouro, só se completa no termo do período de tributação. Mas esta natureza do facto tributário não prejudica que se possa fragmentar ou decompor, para efeitos de aplicação no tempo, das normas tributárias, à medida do seu desenvolvimento. Há aqui, então, lugar a uma verdadeira tributação “pro rata temporis”.
Assim, em caso de factos tributários de formação sucessiva como é o rendimento, aplica-se a lei antiga aos rendimentos gerados até à entrada em vigor da lei nova e a lei nova aos rendimentos posteriores” (Lei Geral Tributária Anotada, Reis dos Livros, 2000, pag. 91).
No mesmo sentido Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa (Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, Encontros da Escrita Editora, 2012, pág. 130) referem que “O nº 2 parece perfilhar a posição de A. Xavier quanto à retroactividade de 3º Grau” (como é sabido, Alberto Xavier, sustenta a págs. 201-202, do seu Manual de Direito Fiscal, a tese da divisão do rendimento pro rata temporis, sendo considerado pela doutrina que a sua posição inspirou a solução do art. 12º, nº 2, da LGT).
Contra esta solução têm-se levantado objecções de praticabilidade. Manuel Faustino, escreve, a este propósito, que “(…) a aplicação das alterações legislativas ao IRS pro rata temporis, eventualmente defensável face ao nº 2 do artigo 12º da LGT é, para nós, uma questão que nem sequer se coloca, não apenas por impraticabilidade –o que só por si já seria suficiente – mas, substantivamente, porque a solução em causa não está completada, legislativamente, com a modalidade de salvaguarda do princípio, que consideramos preeminente, da progressividade anual do imposto, como decorrência do disposto no art. 104º, nº 1, da CRP” (Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano III, n.º 3, Outono, pág. 208).
Manuel Henrique de Freitas Pereira refere “Considera-se que talvez se tenha querido adoptar uma solução pro rata temporis”, mas aponta, também, problemas de praticabilidade: “ Esta solução não deixará de criar problemas de aplicabilidade, que, por exemplo, em matéria de tributação do lucro das empresas só pode resolver-se em muitos casos através de um apuramento intermédio de resultados (…) a melhor solução é sempre a lei definir com rigor o período de tributação a que se passa a aplicar, que deve ser apenas o período que se inicie posteriormente à sua entrada em vigor” (Fiscalidade, Almedina, 2005, pag. 199).
Américo Fernando Brás Carlos debruçando-se, também, sobre o art. 12.º, n.º 2, da LGT, escreve “Tome-se como exemplo o caso do IRC. Quer aquela norma dizer que, entrando em vigor, a meio do exercício, uma alteração das regras de determinação da matéria colectável, ou da taxa deste imposto, a nova lei pode aplicar-se ao período do exercício corrente que resta? Ou significa, pelo contrário, que a nova lei se aplicará apenas ao exercício do novo período de tributação ou exercício económico?
A doutrina parece ter perfilhado a primeira interpretação. Deve contudo referir-se: (…)
Uma tributação pro rata temporis traduzida, no mesmo período de tributação, na determinação de uma parte do imposto nos termos da lei antiga e de outra parte nos termos da lei nova, poderá, pelo menos nalguns casos, ser impraticável
Note-se, porém, que, para além das dúvidas suscitadas pela norma do art. 12º da LGT, esta é, em grande medida irrelevante, porque: (…)
Uma lei que, por exemplo, altere a taxa de IRC no decurso do período de tributação e que a mande aplicar à sua totalidade, revoga tacitamente o nº 3 do artigo 12º da LGT, pelas razões indicadas a propósito do princípio da legalidade” (Impostos, Teoria Geral, Almedina, 2006, pags. 126-127)
Já António Carlos dos Santos pronuncia-se nos seguintes termos: “pela minha parte, como já publicamente defendi em várias intervenções, sou favorável a uma solução pro rata temporis em todos os domínios. Não creio na impraticabilidade absoluta desta solução, quer na sua impraticabilidade administrativa ou informática, quer na sua impraticabilidade jurídica no que respeita aos escalões e às taxas, embora reconheça a dificuldade da sua implantação a muito curto prazo” (Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano III, n.º4, Inverno, pág. 300)
Haverá, assim, dificuldade na aplicação do art. 12º, nº 2, da LGT mas não parece, pois, que esteja demonstrada a impraticabilidade da sua aplicação, pelo menos em todos os casos. Parece-nos que, relativamente a tal dificuldade ou impraticabilidade, caberá ao legislador formular tal juízo caso a caso (estabelecendo normas específicas de direito transitório), ou então formular um juízo global negativo sobre a norma e revogá-la, o que até à data não aconteceu.
O que não é aceitável, a nosso ver, é que se invoque a impraticabilidade da lei para que se chegue a uma solução mais vantajosa para o credor tributário daquela que da mesma resulta. Como acertadamente escreve António Carlos Santos “O que será, sim, estranho, é que o mesmo Estado que, ao longo de uma década, nada fez para criar os instrumentos necessários para pôr em prática o princípio pro rata temporis, venha agora beneficiar do seu próprio incumprimento” (Ibidem pag. 300)
Ademais, no caso em apreço, é manifesto, a nosso ver, que tal impraticabilidade não existe. Não há dificuldade em situar no tempo o acréscimo patrimonial obtido pois o mesmo resulta da alienação dos activos (art. 10º, nº 1, al. b) do CIRS), que é datada (de 21.04.2010), nem há qualquer questão que se coloque quanto ao princípio da progressividade do imposto uma vez que a consequência da aplicação do art. 12º, nº 2, da LGT é, no caso, a não consideração das mais-valias em questão para efeitos de liquidação do imposto.
Isto não significa que não se distinga o facto tributário coma obtenção do ganho que apenas se apura no final do ano (e que no caso das mais-valias corresponde ao seu saldo com as menos valias). O que sucede é que o art. 12º, nº 2, dá relevância na sua especificidade temporal aos factos jurídicos que concorrem para a formação do facto complexo de formação sucessiva que é o facto tributário em IRS (que apenas fica completo no final do ano), impondo, ou não, a sua consideração para efeitos de apuramento do imposto, consoante a data da sua obtenção.
Tendo a nova lei entrado em vigor a 27 de Julho a mesma só poderá ter aplicação, por força do art. 12.º, n.º 2 da LGT, relativamente às mais-valias obtidas a partir de tal data, e não antes. Reitera-se que, se a lei nova determinasse a sua vigência a partir do início do ano, deixaria de ter aplicação o art. 12.º, n.º 2, mas a lei nada dispôs nesse sentido."
121- No mesmo sentido decidiu o acórdão do CAAD no Processo Arbitral nº 135/2013-T:
"Ou seja, o art.º 12.º, n.º 2, da LGT manda que, nos impostos periódicos (i. e., relativamente a factos tributários de formação sucessiva), o período de tributação seja cindido, aplicando-se a lei antiga aos factos geradores de imposto ocorridos antes da alteração legislativa e a lei nova aos posteriores.
Note-se que este normativo surgiu em momento muito posterior ao da entrada em vigor dos atuais impostos sobre o rendimento (seu principal campo de aplicação), sendo que o legislador da LGT não poderia ignorar as consequências que, nesses impostos, o novo normativo iria produzir.
"O afastamento desta norma legal, poderia, eventualmente, acontecer caso resultasse violadora de princípios ou normas constitucionais.
Ora, o preceito e causa é o que melhor dá expressão a princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico-constitucional, como sejam o princípio da segurança na tributação, dimensão essencial do princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito.
As normas legais que regem a tributação devem assegurar que quem pratica um ato potencialmente gerador de obrigação de imposto possa a “ter a certeza” das consequências fiscais daí resultantes. Condição primeira para tal é, obviamente, que a lei que regerá tais obrigações seja conhecida, seja a que está em vigor naquele momento.
A tese de que o facto gerador do imposto, nos impostos periódicos, apenas ocorre no último dia do ano, tem como consequência implícita a aceitação de um certo grau de retroatividade da lei fiscal (a chamada retroatividade impropria ou de 3.º grau).
Sabemos que tal “grau” de retroatividade é considerado constitucionalmente admissível pela nossa jurisprudência. Mas para que tal aplicação retroativa exista é necessário que exista um dictum legislativo que a tal obrigue.
Ora, tal não acontece no presente caso, pois que a regra geral constante do n.º 2 do art.º 12º, n.º 2, da LGT visa, precisamente, evitar situações de retroatividade da lei fiscal (ainda que “moderada”), sempre que o legislador não determine, especialmente, o contrário.
O art.º 12.º, n.º 2, da LGT é, pois, uma norma totalmente conforme aos princípios constitucionais que presidem a tributação, é mesmo, a que, nesta especifica questão, melhor dará tradução a tais princípios, ao prevenir a ocorrência de situações de aplicação retroativa da lei fiscal.
" Existe, é certo, doutrina que, com fundados argumentos, questiona o art.º 12, n.º 2, da LGT pelas dificuldades que a sua aplicação prática pode suscitar, ao obrigar à cisão do período tributário em tantos subperíodos quantas as alterações das normas de incidência e de determinação da matéria coletável que a tal obriguem.
Podemos aceitar que a norma possa, eventualmente, ser de afastar por violação do princípio da praticabilidade, que – quanto a nós - tem dimensão constitucional.
Porém, tais objeções não ocorrem no caso concreto:
– apesar de a matéria coletável (mais-valias mobiliárias) a ser tributada em IRS corresponder ao saldo das mais e menos valias realizadas pelo sujeito passivo ao longo do ano, o certo é que, no caso concreto, só houve uma única alienação em 2010:, ou seja, o facto tributário, embora em abstrato de formação sucessiva, “esgotou-se” numa única transação.
- sendo as mais-valias obtidas com a alienação de participações sociais sujeitas a uma tributação autónoma (a uma taxa proporcional, não sendo aqui tidos em conta os elementos de personalização que, por princípio, deviam estar presentes na tributação de todos os rendimentos, caso o IRS fosse um verdadeiro imposto único – estamos perante uma das traduções do caráter dual deste imposto), nenhumas dificuldades se colocam relativamente às demais operações que a liquidação (entendido o termo em sentido amplo) do imposto implica, quando feita com observância do disposto no n.º 2 do art.º 12 da LGT.
Não há, pois, também, quaisquer dificuldades de índole prática que obstem a que, em cumprimento do disposto do n.º 2 do art.º 12º da LGT, a (não) sujeição a imposto dos ganhos obtidos pelas Requerentes em 24/04/2010 seja feita por aplicação da lei vigente nessa data.
Inviabilizar a aplicação do preceito (art. 12.º, n,º 2, da LGT) em casos como o presente significaria, “ignorar” a sua existência, o que é vedado a qualquer Tribunal.
Em resumo, entende-se que nada obsta à aplicação do disposto no n.º 2 do art.º 12 da LGT, da regra geral aí contida, a qual – repete-se - o legislador entendeu não afastar na Lei n.º 15/2010."
122- Perante tudo o que foi exposto e com base na jurisprudência supra citada e doutrina apresentada, só podemos retirar a conclusão que a mais-valia do caso sub júdice está excluída de tributação por aplicação do artigo 10 n.º2 do CIRS em vigor a data do contrato de compra e venda da requerente.
123- Só podem ser tidas em consideração para o cálculo do saldo entre as mais-valias e menos-valias relativo ao período decorrido a partir de 27.7.2010 as ações transacionadas após essa data, uma vez que as anteriores estão excluídas
124- E apenas esse saldo posterior pode ser tributado à taxa de 20%, sendo o saldo relativo ao período anterior a essa data tributado à luz das regras vigentes antes da entrada em vigor da lei nova – isto é, excluindo de tributação a alienação de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses e tributando a alienação de ações detidas pelo seu titular durante menos de 12 meses à taxa de 10%.
125- Mais se diz quanto às alterações introduzidas pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, em vigor em 27.7.2010, que não previu qualquer disposição especial quanto à sua aplicação no tempo, pelo que se conclui que o legislador não pretendeu aplicar retroativamente a revogação da não sujeição tributária prevista no art. 10.º, n.º 2 do CIRS quanto às mais-valias
126- Assim que está vedada a AT aplicar retroativamente o novo regime, devendo respeitar às regras gerais previstas no art. 12.º da LGT.
127- Esta incerteza sobre o que é objecto de tributação é claramente o que a Constituição da República Portuguesa pretendeu evitar ao consagrar os princípios Fundamentais do Estado de Direito, concretamente o princípio da segurança, da certeza jurídica e confiança, colmatados no princípio fundamental do direito Fiscal, da não retroatividade da lei Fiscal.
128- Há no presente caso uma clara aplicação retroativa da lei fiscal a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor.
129- Quanto à questão secundária suscitada pela Requerida, quanto ao não preenchimento dos requisitos do artigo 43.º n.º 3 e 4.º do CIRS e do Decreto-lei 372/2007, de 6 de Novembro, em virtude de as ações vendidas respeitarem a uma micro ou pequena empresa, os Requerentes não apresentaram a Certificação do IAPMEI que ateste a qualidade de micro ou pequena empresa, e assim teria de se considerar 100% do valor do resultado das mais-valias e não 50%.
130- Quanto a esta questão, a mesma só se colocaria se a legislação a aplicar a esta mais-valia fosse a Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, por esta revogar a exclusão do artigo 10 n.º 2, quanto a venda das ações detidas a mais de 12 meses
131- E como o presente tribunal é do entendimento que as referidas mais-valias se aplica o regime em vigor em 12 de Março de 2010, data da transmissão das ações, que previa ainda a exclusão, a venda das ações está abrangida pela exclusão, independentemente de se tratar ou não de micro empresa.
132- Neste sentido, concluímos que as alterações introduzidas pela Lei n.º 15/2010 de 26 de Julho, ao regime tributário das mais-valias mobiliárias, aplicam-se apenas aos factos tributários (alienações onerosas) ocorridos em data posterior à da sua entrada em vigor ou seja 27 de Julho de 2010, pelo que até a essa data, as referidas alienações de ações detidas a mais de 12 meses se encontravam excluídas de tributação, conforme estabelecia o artigo 10 n.º 2 al. a) do CIRS.
133- É muito importante ter em consideração que esta mais-valia resultou de um único negócio jurídico, o qual terminou os seus efeitos com a transmissão da posse, o negócio não se prolonga no tempo.
134- Na data em que os Requerentes receberam o preço e transmitiram as ações, o regime jurídico expressamente e sem qualquer margem de dúvida, estabelecia que o ganho proveniente deste negócio jurídico estava excluído de tributação.
135- Permitir-se a revogação, durante um ano fiscal, de uma exclusão no regime das mais-valias, em qualquer altura do ano, com aplicação aos factos já ocorridos desde o início do ano, é uma clara violação do princípio constitucional da segurança jurídica.
136- A não aplicação da revogação às situações anteriores resulta dos artigos 12 n.º1 da LGT e artigo 12 do CC, por as mais-valias de participações sociais se verificarem com a sua alienação onerosa, e não se tratarem de um facto sucessivo e complexo ao longo do ano fiscal, mas sim de um facto tributário instantâneo, que se esgota no momento da sua realização.
137- Tendo a nova lei entrado em vigor a 27 de Julho a mesma só poderá ter aplicação, por força do art. 12.º, n.º 2 da LGT, relativamente às mais-valias obtidas a partir de tal data, e não antes. Caso a lei nova determinasse a sua vigência a partir do início do ano, deixaria de ter aplicação o art. 12.º, n.º 2, mas a nova lei nada dispôs nesse sentido.
138- Pelo exposto, decide-se no sentido que a Lei n.º 15/2010 de 26 de Julho não é aplicável à transação e às mais-valias no caso em apreço, a liquidação em questão é ilegal por violar o art. 12.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, sendo que a AT aplicou retroativamente às alterações introduzidas pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, estando assim, o ato de liquidação em questão inquinado de vício de violação de lei, pelo que, em consequência, se determina a sua anulação, com as legais consequências.
139- Sendo ilegal a liquidação de IRS é também ilegal a liquidação de juros compensatórios, que pressupõe a existência de uma dívida de imposto e com ele são liquidados (artigo 35.º, n.ºs 1 e 8 da LGT).
H- DECISÃO
Destarte, atento a todo o exposto, o presente Tribunal Arbitral, decide-se:
i. Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de IRS e juros compensatórios n.º 2014 …, que fixou um imposto global a pagar de 156.407,71€, por erro sobre os pressupostos de direito e anular esse acto.
ii. Fixa-se o valor do processo em 156.407,71€ atendendo ao valor económico do processo aferido pelo valor da liquidação de imposto impugnada, e em conformidade fixa-se as custas, no respetivo montante em 3.672,00€ (três mil setecentos e setenta e dois euros), a cargo da requerida de acordo com o artigo 12.º, n.º 2 do Regime de Arbitragem Tributária, do artigo 4.ºdo RCPAT e da Tabela I anexa a este último. – n.º 10 do art.º 35º, e n.º 1, 4 e 5 do art.º 43º da LGT, art.ºs 5.º, n.º1, al. a) do RCPT, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e 559.º do CPC).
Notifique.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2015
Os Árbitros
Jorge Lopes de Sousa
(árbitro-presidente),
Paulo Ferreira Alves
(árbitro-vogal)
Filomena Salgado de Oliveira
(árbitro-vogal)
[1] Crf. Acórdão do STA de 12/04/2013 do processo 01582/13.
[2] Contudo, há doutrina que entende, diferentemente, considera que “O primeiro ponto a fixar na leitura da proibição do art. 103º, nº 3, é o de que ela abrange indistintamente a retroatividade “forte” ou “fraca”, “própria” ou “imprópria (…), cfr. Sérgio Vasques.
[3]Cfr, J.J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol I, Coimbra Editora, 4º edt., 2007, Anotação ao artigo 103 da CRP.
[4] Cfr, J.J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol I, Coimbra Editora, 4º edt., 2007, Anotação ao artigo 103 da CRP.
[7] Redação dada pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23/09, que produz efeitos desde 01/01/2009.
[8] Cfr. José Guilherme Xavier de Basto, IRS Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, p. 397 e 427.
[9] A similitude com as situações de tributação autónoma é ainda maior quando, como in casu, o contribuinte não opta pelo englobamento, já que aqui ocorre verdadeiramente uma tributação separada, por aplicação de uma taxa fixa (vd. Rui Duarte Morais, Sobre o IRS; Almedina, 2.ª edição, p. 171)