Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 613/2014-T
Data da decisão: 2015-02-23  IVA  
Valor do pedido: € 674.602,25
Tema: Direito de dedução; competência do tribunal arbitral
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Decisão Arbitral

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo nº 613/2014-T

Tema: IVA, direito de dedução; competência do tribunal arbitral

 

 

Os árbitros, Conselheiro Jorge Manuel Lopes de Sousa, (Árbitro-Presidente), Professor Doutor João Ricardo Catarino e Dr. Emanuel Vidal de Lima, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 24 de setembro de 2014, acordam no seguinte:

 

I - RELATÓRIO      

 

MUNICÍPIO …, NIF n.º …, com sede na Praça …, …, nos termos do disposto nos artigos 2º e 10º do Decreto-lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), formula pedido de pronúncia arbitral pedindo a anulação total dos atos de autoliquidação de IVA respeitante aos períodos de janeiro a dezembro de 2007 e 2008, por alegada entrega de imposto em excesso, no valor de € 674 602,25 [Docs. 1 a 24, junto com o pedido].

A REQUERENTE não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, o Conselheiro Jorge Lino e os dois últimos signatários foram designados pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral coletivo, tendo aceite o encargo no prazo e demais termos legais.

Em 07-11-2014 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 24 de setembro de 2014 e a respetiva comunicação de constituição teve lugar na mesma data.

Tendo a AT sido notificada da substituição do Conselheiro Jorge Lino, árbitro presidente, pelo Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, veio por requerimento apresentado a 11 de novembro de 2014, suscitar questões de ordem deontológica, sobre o vínculo e a estabilidade da nomeação, sobre os efeitos da eventual cessação do impedimento (artigo 605.º n.º 2 do Cód. Proc. Civil), bem como acerca da possibilidade de escrutínio sobre quaisquer eventuais circunstâncias que possam configurar impedimento do árbitro substituto. Por despacho de 4 de Fevereiro de 2015, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou definitivamente o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa para substituir o Conselheiro Jorge Lino, nos termos e ao abrigo do artigo 8.º, n.º 1 do Código Deontológico do CAAD.

Em 16 de dezembro de 2014 a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) apresentou Resposta, defendendo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente, suscitando diversas excepções.

Em 16 de dezembro de 2014, por despacho, foi a Requerente convidada a discutir, no prazo de 10 dias, a matéria de natureza excepcional aduzida pela AT.

Por despacho de 7-1-2015, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido dada oportunidade às partes para produzirem, querendo, alegações finais por escrito.

            Nenhuma das partes apresentou alegações.

Para fundamentar o seu pedido a Requerente alega em síntese e com relevo, que:

a)     A recorrente apenas vinha deduzindo o IVA incorrido nos recursos de utilização mista, utilizando para o efeito um único método de dedução: o método da percentagem de dedução ou pro rata.

b)     Nos anos em causa deduziu apenas o IVA suportado na aquisição desses recursos de utilização mista, ou seja, os que são utilizados, em simultâneo, na realização de operações que conferem o direito à dedução e operações que não conferem esse mesmo direito, através da aplicação do método da percentagem da dedução ou pro rata, apurando pro ratas definitivos em cada um desses anos.

c)     Pelo que autoliquidou indevidamente IVA por dedução inferior à devida nas declarações periódicas de janeiro a dezembro dos períodos de imposto compreendidos nos anos de 2007 e 2008.

d)     E que, pese embora haja adquirido recursos que estavam exclusivamente afetos à realização de operações tributadas (como é o caso do abastecimento de água), que lhe permitiam a dedução integral do IVA incorrido com tais aquisições, ao abrigo do artigo 20.º do CIVA, apenas procedeu à dedução do IVA ao abrigo do método do pro rata, de acordo com a interpretação da AT sobre a matéria, vertida no Ofício Circulado n.º 61137, de 9 de julho de 1987, que obrigava os municípios a adotar apenas um dos métodos de dedução: pro rata ou afetação real.

e)     Interpretação essa que, pugna a requerente, a obrigavam a adotar apenas um dos métodos de dedução, conforme refere no artigo 23.º da p. i. ao referir que “a opção pelo método do pro rata excluía a possibilidade de aplicação (conjugada) do método de afetação real e vice versa”.

f)      Pelo que a Requerente alega não ter deduzido o IVA incorrido nos recursos afetos exclusivamente a operações tributadas pelo método da imputação direta, por adotar, em exclusivo, o método do pro rata.

g)     De modo que vem agora alegar que tal erro na autoliquidação resulta da não dedução, na totalidade, do IVA suportado quer na aquisição de recursos de utilização mistas, quer na aquisição de bens e serviços utilizados exclusivamente em operações tributadas, nos anos de 2007 e 2008, que conduziu à entrega ao estado de IVA em excesso no montante de €336 317,34 e de €338 284,91, respetivamente.

 

A Requerente apresenta três pedidos, a saber:

 

i)    O pedido de anulação parcial dos atos de liquidação de IVA;

ii)  O pedido de anulação da decisão de indeferimento dos pedidos de revisão, com alegado fundamento em violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito;

iii)                    O reconhecimento do direito à restituição de IVA liquidado e pago em excesso nos anos de 2007 e 2008, no valor total de € 336 317,34 e de € 338 284,91.

A AT, na sua resposta, e desde logo, suscita a excepção da incompetência material, com diversos fundamentos, especificados nos artigos 8.º a 112.º da sua Resposta alegando, quanto a ela, em síntese:

 

i)      A ilegalidade da equiparação do procedimento de revisão à reclamação graciosa, os limites da vinculação da AT e a consequente incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar o pedido objecto do litígio sub judice, nos termos do artigo 2.º n.º 1, al. a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT e dos artigos 1.º e 2.º, al. a) ambos da Portaria n.º 112-A/2011;

ii)    Que o pedido da Requerente é o da confirmação ou validação da recuperação do IVA alegadamente entregue em excesso, pelo que do que se trata é de um acto administrativo em matéria tributária que, por não apreciar ou discutir a legalidade do ato de liquidação, não pode ser sindicável através da impugnação judicial, nos termos previstos na al. a) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT;

iii)  Que a Requerente não procede à identificação em concreto de qualquer acto de liquidação referente ao ano de 2007 e 2008, ou de qualquer Declaração Modelo C de substituição de IVA, o que tem por efeito a violação dos artigos 2.º n.º 1 al. a) n.º 2 al. b) do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, pelo que se verifica a excepção que se traduz na inexistência de objeto sindicável em sede arbitral;

iv)   Que o pedido, formulado apenas em 2014 com respeito aos exercícios de 2007 e 2008, é intempestivo.

 

            1. Saneamento

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é questionada a competência material.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões que possam obstar à apreciação do mérito da causa.

 

            2. Excepções

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira suscitou cinco excepções, que denominou de incompetência material, deste Tribunal Arbitral por:

a)     O pedido de declaração de ilegalidade de acto de liquidação não ter sido precedido de reclamação graciosa, mas apenas de pedido de revisão do acto tributário;

b)     O Requerente ter solicitado apenas que fosse confirmada a dedução de IVA nos montantes indicados, como, de resto, refere no artigo 33.º do pedido de pronúncia arbitral, não tendo solicitado a anulação de qualquer acto de autoliquidação; por isso, a decisão de indeferimento em apreço foi motivada pela subsunção do caso em concreto à disciplina do n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA, tendo-se concluído, consequentemente, pelo não cumprimento do prazo de dois anos para as regularizações do sujeito passivo; apenas em sede arbitral, a Requerente peticiona a declaração de ilegalidade do «actos de autoliquidação»; no procedimento de revisão oficiosa, não foi apreciada a legalidade de qualquer acto de liquidação; pelo que estamos perante um acto administrativo em matéria tributária que, por apreciar ou discutir a legalidade do acto de liquidação, não pode ser sindicável através de impugnação judicial, nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º CPPT e, correlativamente, não se insere na como dos tribunais arbitrais, por o respectivo processo ser alternativo ao processo de impugnação judicial;

c)     não se identifica em concreto qualquer acto de liquidação, referente ao ano de 2007 ou de 2008, que se venha impugnar, nem a qualquer declaração modelo C (declaração de autoliquidação de substituição), referente qualquer período de imposto daqueles anos; são mencionados os anos de 2007 e de 2008, como tendo sido aqueles em que terá ocorrido a ilegalidade que se pretende reparar, pretendendo-se em relação a esses anos, seja reconhecido o direito à dedução do imposto que, segundo o Requerente, por erro, terá sido deduzido por defeito, atendendo à sua natureza de sujeito passivo misto; o Requerente desdobrou o seu pedido em três vertentes – anulação parcial das autoliquidações de IVA, anulação dos actos de indeferimento de revisão oficiosa e autorização de dedução; no pedido de constituição do tribunal arbitral deve constar a “identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral”, o que, no caso dos presentes autos, não ocorre; não conhecer quais “os actos de autoliquidação” a sindicar, desconhece igualmente os vícios que, concretamente, o Requerente imputa a cada um deles; nestas circunstâncias, verifica-se a existência de excepção (dilatória) que se traduz na inexistência de objecto sindicável em sede arbitral;

d)     Admitindo-se que o objecto do pedido são os actos de autoliquidação «respeitantes aos períodos de Janeiro a Dezembro de 2007 e 2008», acontece, que se mostra (claramente) ultrapassado o prazo legalmente definido para a impugnação de tais actos em sede arbitral;

e)     O pedido formulado pelo Requerente dirige-se à condenação da Administração Tributária ao reconhecimento do direito à dedução do IVA que (alegadamente) deduziu por defeito, o que não tem cabimento na presente instância arbitral;

 

II - FUNDAMENTAÇÃO

 

1.     Matéria de facto provada

 

Com base nos elementos no processo consideram-se provados os seguintes factos essenciais, com relevância para apreciar do mérito do pedido:

a.      A Requerente é uma pessoa coletiva de direito público sob a forma de “Autarquia” ou “Administração Local” que prossegue diversas atribuições e atividades, que se configura igualmente como um sujeito passivo de IVA do regime normal mensal, devidamente registado como tal no respetivo cadastro fiscal junto da AT, embora realize operações que conferem o direito à dedução do imposto suportado a montante, operações isentas de IVA (isenção incompleta) que não conferem tal direito à dedução, bem como operações fora do campo do imposto;

b.     Nos exercícios de 2007 e 2008, a Requerente, no respeito pelo previsto no artigo 23.º do CIVA, adoptou o método da percentagem de dedução ou do pro rata como método regra de dedução do IVA, tendo neles apurado um pro rata definitivo de 10%, que aplicou ao IVA passível de dedução;

c.      Em cumprimento do disposto na Portaria 375/2003, de 10 de Maio, a Requerente apresentou, por transmissão eletrónica de dados, as declarações periódicas de IVA a que se refere a alínea c) do n.º 1 do art.º 29.º do Código do IVA, nos prazos referidos no n.º 1 do art.º 41.º do mesmo Código, tendo nelas efetuado a respetiva autoliquidação do imposto em cada período;

d.     Após uma revisão de procedimentos interna, o Requerente constatou que, no cálculo do pro rata de dedução, tinha incluído montantes que não correspondiam à contraprestação decorrente de efectivas transmissões de bens e prestações de serviços, tais como impostos directos por si cobrados, os quais não deviam influenciar o referido cálculo do pro rata, bem como tinha incluído no pro rata montantes relativos a fornecimentos e serviços prestados relativamente a abastecimento de água em que, em seu entender, deveria ter sido deduzido integralmente o IVA incorrido;

e.       A Requerente submeteu dois pedidos de revisão oficiosa ao abrigo do artigo 78.º da LGT, em 2 e 24 de novembro de 2011, das autoliquidações de IVA efetuadas, com referência aos anos de 2007 e 2008 [Docs. 26 e 27 junto com o pedido];

f.       Tais pedidos de revisão foram indeferidos por despacho do subdiretor geral de 30 de abril de 2014, exarado no ofício n.º …, de 6 de maio de 2014, da Divisão de tributação e cobrança da Direção de Finanças de Braga, notificado à Requerente em 8 de maio de 2014, alegando ter pago IVA em excesso no valor de € 336.317,34 e € 338.284,91 [Doc. 25 junto com o pedido];  

g.       O despacho referido manifestou concordância com a Informação n.º ..., cuja cópia consta do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, em conclusão, o seguinte:

150. A revisão oficiosa de uma liquidação de IVA não pode prejudicar a imperatividade das normas que fixam os prazos para o exercício do direito à dedução.

151. As regras do instituto da revisão oficiosa não podem prevalecer face às previstas no CIVA para o exercício do direito à dedução, caso contrário esta ficariam esvaziadas de conteúdo e, consequentemente, de eficácia.

152. Deixa de existir o direito à dedução se o requisito formal da tempestividade não for observado.

153. 0 Requerente não tem liberdade de escolher, dentro do prazo a que se refere o n.º 2 do art° 98° do CIVA, o momento para concretizar o direito à dedução do imposto.

154. Só nos casos em que o CIVA não estabelece um prazo especial, é que o direito dedução pode ser efectuado no prazo previsto no n.º 2 do art° 98° do CIVA.

155. Estando, no caso em análise, já ultrapassados os prazos para o exercício do direito à dedução estabelecidos nos artigos 22° e 230 do CIVA, e confirmando-se que os documentos de suporte relativos às operações passivas em causa foram registados na contabilidade do Requerente em devido tempo, apenas se pode admitir a correcção do imposto deduzido com base no n° 6 do art° 78° do CIVA.

156. O n.º 6 do art° 78° do CIVA estabelece um prazo especial para o exercício do direito à dedução de dois anos para as regularizações a favor do sujeito passivo, que depois de ultrapassado conduz à preclusão desse direito.

157. Tendo o Requerente apresentado, em Novembro de 2011 os pedidos de revisão oficiosa onde solícita a dedução "adicional" de imposto suportado nos anos de 2007 e 2008, mostra-se ultrapassado o para o para o exercício desse direito.

158. Em face do exposto, deve o presente pedido, salvo melhor opinião, ser indeferido, uma vez que precludiu o direito à dedução do IVA em causa.

h.      Inconformada com o despacho de indeferimento, a Requerente deduziu o presente pedido de impugnação arbitral em 6 de Agosto de 2014

 

 

2. Fundamentação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos ao processo e indicados relativamente a cada um dos pontos da matéria de facto.

 

3. Motivação

 

A convicção do Tribunal sobre a matéria de facto funda-se nos documentos juntos e não impugnados pela parte contrária, conjugados com a clara aceitação da realidade factual alegada pela impugnante.

 

4. Factos não provados

 

Com relevo para a decisão não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

5. Questão da incompetência dos trabalhos arbitrais para apreciarem a legalidade de actos de autoliquidação, na sequência de pedidos de revisão do acto tributário

 

 

A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).

Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária foi vinculada àquela jurisdição pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o art. 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».

Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele art. 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este Tribunal Arbitral.

            Na alínea a) do art. 2.º desta Portaria n.º 112-A/2011, excluem-se expressamente do âmbito da vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».

A referência expressa ao precedente «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser interpretada como reportando-se aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa, que é o meio administrativo indicado naqueles arts. 131.º a 133.º do CPPT, para que cujos termos se remete. Na verdade, desde logo, não se compreenderia que, não sendo necessária a impugnação administrativa prévia «quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária» (art. 131.º, n.º 3, do CPPT, aplicável aos casos de retenção na fonte, por força do disposto no n.º 6 do art. 132.º do mesmo Código), se fosse afastar a jurisdição arbitral por essa impugnação administrativa, que se entende ser desnecessária, não ter sido efectuada.

No caso em apreço, é pedida a anulação dos actos de autoliquidação de IVA respeitantes aos exercícios de 2007 e 2008, bem como a anulação do acto de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa.

Assim, importa, antes de mais, esclarecer se a declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão do acto tributário, previstos no art. 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD pelo art. 2.º do RJAT.

            Na verdade, neste art. 2.º não se faz qualquer referência expressa a estes actos, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que refere os «pedidos de revisão de actos tributários» e «os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação».

            No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado directamente um acto de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de actos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.

A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efectuada através da declaração de ilegalidade de actos de segundo grau, que são o objecto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Com efeito, relativamente a estes actos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos arts. 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objecto imediato do processo impugnatório é, em regra, o acto de segundo grau que aprecia a legalidade do acto de liquidação, acto aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do acto de liquidação. A referência que na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do art. 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos actos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de actos de segundo grau.

Aliás, foi precisamente neste sentido que o Governo, na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, interpretou estas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ao afastar do âmbito dessas competências as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», o que tem como alcance restringir a sua vinculação os casos em que esse recurso à via administrativa foi utilizado.

Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um acto de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o acto de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do acto tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir, tanto mais que, nos casos em que o pedido de revisão é efectuado no prazo da reclamação graciosa, ele deve ser equiparado a uma reclamação graciosa. ( [1] )

A referência expressa ao artigo 131.º do CPPT que se faz no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos de autoliquidação.

Na verdade, a interpretação exclusivamente baseada no teor literal que defende a Autoridade Tributária e Aduaneira no presente processo não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».

Quanto a correspondência entre a interpretação e a letra da lei, basta «um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil) o que só impedirá que se adoptem interpretações que não possam em absoluto compaginar-se com a letra da lei, mesmo reconhecendo nela imperfeição na expressão da intenção legislativa.

Por isso, a letra da lei não é obstáculo a que se faça interpretação declarativa, que explicite o alcance do teor literal, nem mesmo interpretação extensiva, quando se possa concluir que o legislador disse menos do que o que, em coerência, pretenderia dizer, isto é, quando disse imperfeitamente o que pretendia dizer. Na interpretação extensiva «é a própria valoração da norma (o seu “espírito”) que leva a descobrir a necessidade de estender o texto desta à hipótese que ela não abrange», «a força expansiva da própria valoração legal é capaz de levar o dispositivo da norma a cobrir hipóteses do mesmo tipo não cobertas pelo texto».( [2] )

A interpretação extensiva, assim, é imposta pela coerência valorativa e axiológica do sistema jurídico, erigida pelo artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil em critério interpretativo primordial pela via da imposição da observância do princípio da unidade do sistema jurídico.

É manifesto que o alcance da exigência de reclamação graciosa prévia, necessária para abrir a via contenciosa de impugnação de actos de autoliquidação, prevista no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT, tem como única justificação o facto de relativamente a esse tipo de actos não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto, posição essa que até poderá vir a ser favorável ao contribuinte, evitando a necessidade de recurso à via contenciosa.

Na verdade, além de não se vislumbrar qualquer outra justificação para a essa exigência, o facto de estar prevista idêntica reclamação graciosa necessária para impugnação contenciosa de actos de retenção na fonte e de pagamento por conta (nos artigos 132.º, n.º 3, e 133.º, n.º 2, do CPPT), que têm de comum com os actos de autoliquidação a circunstância de também não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade dos actos, confirma que é essa a razão de ser daquela reclamação graciosa necessária.

Uma outra confirmação inequívoca de que é essa a razão de ser da exigência de reclamação graciosa necessária encontra-se no n.º 3, do artigo 131.º do CPPT, ao estabelecer que «sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102.º». Na verdade, em situações deste tipo, houve uma pronúncia prévia genérica da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto de autoliquidação e é esse facto que explica que deixe de exigir-se a reclamação graciosa necessária.

Ora, nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de acto de liquidação é proporcionada à Administração Tributária, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, pelo que, em coerência com as soluções adoptadas nos n.ºs 1 e 3 do artigo 131.º do CPPT, não pode ser exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa. ( [3] )

Por outro lado, é inequívoco que o legislador não pretendeu impedir aos contribuintes a formulação de pedidos de revisão oficiosa nos casos de actos de autoliquidação, pois estes são expressamente referidos no n.º 2 do artigo 78.º da LGT.

Neste contexto, permitindo a lei expressamente que os contribuintes optem pela reclamação graciosa ou pela revisão oficiosa de actos de autoliquidação e sendo o pedido de revisão oficiosa formulado no prazo da reclamação graciosa perfeitamente equiparável a uma reclamação graciosa, como se referiu, não pode haver qualquer razão que possa explicar que não possa aceder à via arbitral um contribuinte que tenha optado pela revisão do acto tributário em vez da reclamação graciosa.

Por isso, é de concluir que os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011, ao fazerem referência ao artigo 131.º do CPPT relativamente a pedidos de declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, disseram imperfeitamente o que pretendiam, pois, pretendendo impor a apreciação administrativa prévia à impugnação contenciosa de actos de autoliquidação, acabaram por incluir referência ao artigo 131.º que não esgota as possibilidades de apreciação administrativa desses actos.

Aliás, é de notar que esta interpretação não se cingindo ao teor literal até se justifica especialmente no caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, por serem evidentes as suas imperfeições: uma, é associar a fórmula abrangente «recurso à via administrativa» (que referencia, além da reclamação graciosa, o recurso hierárquico e a revisão do acto tributário) à «expressão nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», que tem potencial alcance restritivo à reclamação graciosa; outra é utilizar a fórmula «precedidos» de recurso à via administrativa, reportando-se às «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos», que, obviamente, se coadunariam muito melhor com a feminina palavra «precedidas».

Por isso, para além da proibição geral de interpretações limitadas à letra da lei que consta do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, no específico caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A72011 há uma especial razão para não se justificar grande entusiasmo por uma interpretação literal, que é o facto e a redacção daquela norma ser manifestamente defeituosa.

Para além disso, assegurando a revisão do acto tributário a possibilidade de apreciação da pretensão do contribuinte antes do acesso à via contenciosa que se pretende alcançar com a impugnação administrativa necessária, a solução mais acertada, porque é a mais coerente com o desígnio legislativo de «reforçar a tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes» manifestado no n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, é a admissibilidade da via arbitral para apreciar a legalidade de actos de liquidação previamente apreciada em procedimento de revisão.

E, por ser a solução mais acertada, tem de se presumir ter sido normativamente adoptada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).

Por outro lado, contendo aquela alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 uma fórmula imperfeita, mas que contém uma expressão abrangente «recurso à via administrativa», que potencialmente referencia também a revisão do acto tributário, encontra-se no texto o mínimo de correspondência verbal, embora imperfeitamente expresso, exigido por aquele n.º 3 do artigo 9.º para a viabilidade da adopção da interpretação que consagre a soluça mais acertada.

É de concluir, assim, que o artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, devidamente interpretado com base nos critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9.º do Código Civil e aplicáveis às normas tributárias substantivas a adjectivas, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.

 

6. Questão da incompetência deste Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade de actos de autoliquidação precedidos de pedido de revisão oficiosa cuja decisão não comporta a apreciação da legalidade daqueles actos

 

No art. 2.º do RJAT, em que se define a «Competência dos tribunais arbitrais», não se inclui expressamente a apreciação de pretensões de declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos tributários, pois, na redacção introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, apenas se indica a competência dos tribunais arbitrais para «a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta» e «a declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais».

Porém, o facto de a alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT fazer referência aos n.ºs 1 e 2 do art. 102.º do CPPT, em que se indicam os vários tipos de actos que dão origem ao prazo de impugnação judicial, inclusivamente a reclamação graciosa, deixa perceber que serão abrangidos no âmbito da jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD todos os tipos de actos passíveis de serem impugnados através processo de impugnação judicial, abrangidos por aqueles n.ºs 1 e 2, desde que tenham por objecto um acto de um dos tipos indicados naquele art. 2.º do RJAT.

Aliás, esta interpretação no sentido da identidade dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e do processo arbitral é a que está em sintonia com a referida autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se revela a intenção de o processo arbitral tributário constitua «um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária» (n.º 2).

Mas, este mesmo argumento que se extrai da autorização legislativa conduz à conclusão de que estará afastada a possibilidade de utilização do processo arbitral quando, no processo judicial tributário, não for utilizável a impugnação judicial ou a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.

Na verdade, sendo este o sentido da referida lei de autorização legislativa e inserindo-se na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República legislar sobre o «sistema fiscal», inclusivamente as «garantias dos contribuintes» [arts. 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] ( [4] ), e sobre a «organização e competência dos tribunais» [art. 165.º, n.º 1, alínea p), da CRP], não pode o referido art. 2.º do RJAT, sob pena de inconstitucionalidade, por falta de cobertura na lei de autorização legislativa que limita o poder do Governo (art. 112.º, n.º 2, da CRP), ser interpretado como atribuindo aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD competência para a apreciação da legalidade de outros tipos de actos, para cuja impugnação não são adequados o processo de impugnação judicial e a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.

Assim, para resolver a questão da competência deste Tribunal Arbitral torna-se necessário apurar se a legalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa podia ou não ser apreciada, num tribunal tributário, através de processo de impugnação judicial ou acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.

O acto de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa do acto tributário constitui um acto administrativo, à face da definição fornecida pelo art. 120.º do CPA [subsidiariamente aplicável em matéria tributária, por força do disposto no art. 2.º, alínea d), da LGT, 2.º, alínea d), do CPPT, e 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT], pois constitui uma decisão de um órgão da Administração que ao abrigo de normas de direito público visou produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.

Por outro lado, é também inquestionável que se trata de um acto em matéria tributária pois é feita nele a aplicação de normas de direito tributário.

Assim, aquele acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa constitui um «acto administrativo em matéria tributária».

Das alíneas d) e p) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 97.º do CPPT infere-se a regra de a impugnação de actos administrativos em matéria tributária ser feita, no processo judicial tributário, através de impugnação judicial ou acção administrativa especial (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do art. 191.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) conforme esses actos comportem ou não comportem a apreciação da legalidade de actos administrativos de liquidação. ( [5] )

Eventualmente, como excepção a esta regra poderão considerar-se os casos de impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, pelo facto de haver uma norma especial, que é o n.º 2 do art. 102.º do CPPT, de que se pode depreender que a impugnação judicial é sempre utilizável. ( [6] ) Outras excepções àquela regra poderão encontrar-se em normas especiais, posteriores ao CPPT, que expressamente prevejam o processo de impugnação judicial como meio para impugnar determinado tipo de actos. ( [7] )

Mas, nos casos em que não há normas especiais, é de aplicar aquele critério de repartição dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da acção administrativa especial.

À face deste critério de repartição dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da acção administrativa especial, os actos proferidos em procedimentos de revisão oficiosa de actos de autoliquidação apenas poderão ser impugnados através de processo de impugnação judicial quando comportem a apreciação da legalidade destes actos de autoliquidação. Se o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de acto de autoliquidação não comporta a apreciação da legalidade deste será aplicável a acção administrativa especial. Trata-se de um critério de distinção dos campos de aplicação dos referidos meios processuais de duvidosa justificação, mas o certo é que é o que resulta do teor das alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT e tem vindo a ser uniformemente adoptado pelo Supremo Tribunal Administrativo. ( [8] )

Esta constatação de que há sempre um meio impugnatório processual adequado para impugnar contenciosamente o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de acto de autoliquidação, conduz, desde logo, à conclusão de que não se está perante uma situação em que no processo judicial tributário pudesse ser utilizada a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, pois a sua aplicação no contencioso tributário tem natureza residual, uma vez que essas acções «apenas podem ser propostas sempre que esse meio processual for o mais adequado para assegurar uma tutela plena, eficaz e efectiva do direito ou interesse legalmente protegido» (art. 145.º, n.º 3, do CPPT).

Uma outra conclusão que permite a referida delimitação dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da acção administrativa especial é a de que, restringindo-se a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD ao campo de aplicação do processo de impugnação judicial, apenas se inserem nesta competência os pedidos de declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos autoliquidação que comportem a apreciação da legalidade destes actos.

A preocupação legislativa em afastar das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a apreciação da legalidade de actos administrativos que não comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, para além de resultar, desde logo, da directriz genérica de criação de um meio alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, resulta com clareza da alínea a) do n.º 4 do art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se indicam entre os objectos possíveis do processo arbitral tributário «os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação», pois esta especificação apenas se pode justificar por uma intenção legislativa no sentido de excluir dos objectos possíveis do processo arbitral a apreciação da legalidade dos actos que não comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação.

Por isso, a solução da questão da competência deste Tribunal Arbitral conexionada com o conteúdo do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, depende da análise deste acto.

No caso em apreço, o motivo invocado para o indeferimento da revisão oficiosa foi a intempestividade da pretendida correcção dos actos de liquidação de IVA, à face do regime legal que se entendeu adequado o que, obviamente, não implica apreciação da legalidade ou não de qualquer acto de autoliquidação.

Porém, à face do critério de repartição dos campos do processo de impugnação judicial e da acção administrativa especial delineado pelas alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, não é necessário que a apreciação da legalidade de um acto de liquidação seja o fundamento da decisão procedimental ou que no pedido formulado se peça a apreciação da legalidade de um acto de liquidação, bastando que esse acto a comporte, o que, neste contexto, significa que no acto impugnado se inclua um juízo sobre a legalidade de um acto de liquidação, mesmo que não seja a sua legalidade ou ilegalidade o fundamento da decisão. Diferente seria de a lei empregasse outras expressões, como «aprecie» o «decida».

Ora, no caso em apreço, não se pode entender que a decisão do pedido de revisão oficiosa inclua a apreciação da legalidade de qualquer acto de liquidação, pois, como se vê pelo texto da informação em que se baseou a decisão de indeferimento, em nenhum ponto se refere se as correcções pretendidas se justificavam, à face das regras substantivas sobre exercício d direito à dedução.

De facto, no essencial para esclarecer esse ponto, a Informação n.º … em que se baseou o despacho de indeferimento, refere o seguinte: 

 

– o Requerente, nos anos em causa, optou por deduzir imposto com base nos métodos pro rata e afectação real, pelo que, tratando-.se de uma opção sua, não pode enquadrar-se a sua actuação num contexto de erro (pontos 29 a 52 da Informação n.º ...);

– os regimes da revisão do acto tributário e de exercício e correcção de erros no exercício do direito à dedução de IVA são distintos, não podendo o regime da primeira prejudicar a imperatividade das normas do CIVA  (pontos 53 a 74 da Informação referida);

– à face do CIVA a correcção pretendida pelo Requerente apenas podia ser efectuada no prazo previsto no n.º 2 do artigo 98.º do CIV se não se enquadrar em qualquer norma que preveja um prazo especial (pontos 75 a 87 da referida Informação);

– para deduzir o IVA em causa, o Requerente deveria ter exercido esse direito nas respectivas declarações, corrigindo no final de cada ano os valores provisórios, podendo ser efectuada correcções ao abrigo do artigo 78.º do CIVA, sendo o meio previsto no seu n.º 6 o único que poderia utilizar, pois o previsto no artigo 98.º, n.º 2, só se aplica a documentos não registados, pelo que, não tendo o Requerente exercido o direito a dedução no prazo de dois anos, precludiu o direito (pontos 88 a 114 da Informação referida);

– âmbito de aplicação do artigo 23.º do CIVA, métodos de determinação da dedução relativamente a bens ou serviços de utilização mista e percentagem de dedução prevista no n.º 4 daquele artigo (pontos 115 a 133 da Informação referida);

– situação particular das autarquias locais, dizendo-se, que é admissível que os montantes de contrapartidas de taxas sejam incluídos no pro rata com base no volume de negócios, mas tal não impede que, por opção do sujeito passivo ou determinação da administração tributária os valores sejam expurgados do pro rata, devendo nesse caso os inputs afectos à realização dessas operações ser objecto  de uma afectação real  com aplicação de critérios objectivos idóneos; (pontos 134 a 149 da Informação referida);

– seguem-se as conclusões.

 

Não se encontra, assim, na referida Informação, que consubstancia a fundamentação do acto de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa, qualquer referência à concreta legalidade dos actos de autoliquidação, designadamente uma apreciação da correspondência à realidade dos valores indicados pelo Requerente ou um juízo em sentido positivo ou negativo sobre a legalidade substancial das pretensões do Requerente, tomando-se apenas posição sobre a tempestividade do pedido, à face do artigo 78.º da LGT e dos artigos 23.º, 78.º e 98.º do CIVA.

O acto de indeferimento limita-se a manifestar com concordância com esta Informação.

Assim, tem de se concluir que o acto de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa não comporta a apreciação da legalidade dos actos de autoliquidação, pois em nenhum ponto se diz se têm suporte na lei substantiva as correcções que o Requerente pretendia efectuar, baseando-se o indeferimento apenas na falta de norma legal que preveja a possibilidade de exercício do direito a dedução no momento em que o Requerente o pretendeu exercer.

Sendo assim, pelo que atrás se disse sobre a limitação das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD à apreciação da legalidade de actos de decisão de pedidos de revisão oficiosa que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, tem de se concluir pela incompetência deste Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade do acto de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa.

A incompetência para apreciar a legalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa tem como corolário a incompetência para apreciar a legalidade dos actos de autoliquidação que a Requerente refere.

Na verdade, o objecto imediato do pedido de pronúncia arbitral é a ilegalidade do acto de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa sendo a ilegalidade dos actos de autoliquidação meramente objecto mediato do pedido de pronúncia arbitral, o que tem como consequência que a ilegalidade destes actos apenas pode ser apreciada através da apreciação da ilegalidade do acto de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa (que enfermaria de ilegalidade se, apreciando a legalidade de actos de autoliquidação ilegais, indeferisse a sua revisão por os considerar legais). ( [9] )

Pelo exposto, verifica-se a excepção da incompetência material, que é obstáculo a apreciação do mérito da causa e justifica a absolvição da Autoridade Tributária e Aduaneira da instância [artigos 16.º, n.º 1, do CPPT e 278.º, n.º 1, alínea a), do CPC, subsidiariamente aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas c) e e), do RJAT].

 

7. Questões de conhecimento prejudicado

 

 

De harmonia com o exposto, procede a excepção da incompetência material, pelo que se verifica obstáculo à apreciação do mérito da causa, ficando prejudicado, por ser inútil, o conhecimento das demais questões suscitadas no processo.

 

 

III - DECISÃO

1. Decisão

 

Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

– Julgar procedente a excepção da incompetência material deste Tribunal Arbitral para apreciar os pedidos formulados e absolver da instância a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

2. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 305.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 674.602,25.

 

3. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 9.792,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo do Requerente.

 

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2015

 

Os Árbitros

 

(Jorge Manuel Lopes de Sousa)

 

 

(João Ricardo Catarino)

 

 

 

(Emanuel Augusto Vidal Lima)



[1]             Como se entendeu no citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-6-2006, proferido no processo n.º 402/06.

[2]             BAPTISTA MACHADO, Lições de Direito Internacional Privado, 4.ª edição, página 100.

[3]             Essencialmente neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, proferido no processo n.º 402/06, e de 14-11-2007, processo n.º 565/07.

[4]             Embora no art. 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP, em que se define a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, se faça referência à criação de impostos e sistema fiscal, esta norma deve ser integrada com o conteúdo do n.º 2 do art. 103.º da mesma, em que se refere que a lei determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes, que constitui uma explicitação do âmbito das matérias incluídas naquela reserva, como vem sendo uniformemente entendido pelo Tribunal Constitucional.

A título de exemplo, indicam-se neste sentido, os seguintes acórdãos do Tribunal Constitucional:

    – n.º 29/83, de 21-12-1983, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 338, página 201 (especialmente, páginas 204-205);

    – n.º 290/86, de 29-10-1986, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º volume, página 421 (especialmente, páginas 423-424);

    – n.º 205/87, de 17-6-1987, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9.º volume, página 209 (especialmente páginas 221-222);

    – n.º 461/87, de 16-12-1987, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 372, página 180 (especialmente página 197);                                                                                        

    – n.º 321/89, de 29-3-1989, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 385, página 265 (especialmente página 281).

 

               O Tribunal Constitucional tem entendido também que a reserva de competência legislativa da Assembleia da República compreende tudo o que seja matéria legislativa e não apenas as restrições de direitos (neste sentido, pode ver-se o acórdão n.º 161/99, de 10-3-99. processo n.º 813/98, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 485, página 81).

[5]             No conceito de «liquidação», em sentido lato, englobam-se todos os actos que se reconduzem a aplicação de uma taxa a uma determinada matéria colectável e, por isso, também os actos de retenção na fonte (para além dos de autoliquidação e pagamento por conta, que não interessam para a decisão do presente processo).

[6]             Neste sentido, pode ver-se o acórdão do STA de 2-4-2009, processo n.º 0125/09.

[7]             Exemplo de uma situação deste tipo é a do art. 22.º, n.º 13, do CIVA, em que se prevê a utilização do processo de impugnação judicial para impugnar actos de indeferimento de pedidos de reembolso. 

[8]             No sentido de o meio processual adequado para conhecer da legalidade de acto de decisão de procedimento de revisão oficiosa de acto de liquidação ser a acção administrativa especial (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do art. 191.º do CPTA) se nessa decisão não foi apreciada a legalidade do acto de liquidação, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 20-5-2003, processo n.º 638/03; de 8-10-2003, processo n.º 870/03; de 15-10-2003, processo n.º 1021/03; de 24-3-2004, processo n.º 1588/03, de 6-11-2008, processo n.º 357/08.

               Adoptando o entendimento de que o processo de impugnação judicial é o meio processual adequado para impugnar actos de indeferimento de reclamações graciosas que tenham apreciado a legalidade de actos de liquidação, podem ver-se os acórdãos do STA de 15-1-2003, processo n.º 1460/02; de 19-2-2003, processo n.º 1461/02; e de 29-2-2012, processo n.º 441/11.

[9]             Aliás, é manifesto que tendo os actos de autoliquidação sido praticados em 2007 e 2008, seria manifestamente intempestivo o pedido de pronúncia arbitral se tivesse por objecto imediato esses actos.