DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
Objeto do litígio:
1. A…, sujeito passivo com o NIF …, residente na Rua …, lote …, ….º Esq.º, …-…, Coimbra (adiante designado por Requerente), apresentou no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) pedido de constituição de tribunal arbitral singular, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 2, alínea c), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) e 99.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), para declaração da ilegalidade e consequente anulação ou declaração de nulidade da liquidação de Imposto de Selo efetuada nos termos verba 28.1, da TGIS, no valor de € 12 375,34, relativa ao ano de 2013 e ao prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia de …, concelho de Lisboa (área do Serviço de Finanças de Lisboa …), sob o artigo …;
2. O pedido de pronúncia arbitral deu entrada no CAAD em 9 de setembro de 2014, foi aceite pelo Ex.mº Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira, em 11 de setembro de 2014;
3. A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, foi a signatária designada pelo Ex.mº Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente tribunal arbitral, encargo que aceitou nos termos legalmente previstos;
4. Em requerimento remetido aos autos por correio eletrónico de 13 de janeiro de 2015, veio o Requerente proceder à ampliação do pedido, no que respeita à restituição da quantia de € 4 252,01, por si paga em 16 de outubro de 2014, correspondente ao valor da primeira prestação da liquidação antes identificada e do acrescido do processo de execução fiscal n.º … 2014 …, do Serviço de Finanças de Coimbra …, bem como o pagamento dos juros indemnizatórios que se mostrarem devidos sobre a referida quantia.
Matéria de facto:
Em síntese, o Requerente sustenta a sua pretensão na seguinte matéria de facto:
a) O Requerente é proprietário do prédio urbano inscrito sob o artigo …, da freguesia de …, concelho de Lisboa;
b) O referido prédio encontra-se classificado, de acordo com a caderneta predial emitida pelo Serviço de Finanças de Lisboa …, como terreno para construção, a que foi atribuído, em 2012, o valor patrimonial tributário (VPT) de € 1 237 533,51;
c) À data do pedido, tinha o Requerente sido notificado para pagamento das notas de cobrança de imposto de selo n.º 2014 …, respeitante à primeira prestação, no montante de € 4 125,12 e n.º 2014 …, respeitante à segunda prestação, no montante de € 4 125,11, sendo de € 12 375,34 o total da liquidação do ano de 2013;
d) Em 30 de abril de 2014, o Requerente apresentou reclamação graciosa, tendo em vista a anulação da liquidação em causa (processo de reclamação graciosa n.º .. 2014 …);
e) A reclamação graciosa viria a ser indeferida, conforme a notificação constante do ofício n.º …, da Direção de Finanças de Lisboa, de 25 de agosto de 2014;
f) Em 5 de agosto de 2014, foi o Requerente notificado do resultado da avaliação do prédio a que respeita a liquidação impugnada, ao qual foi atribuído o novo VPT de € 770 260,00;
g) A falta de pagamento da primeira prestação da liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral deu origem à instauração do processo de execução fiscal n.º … 2014 …, extinto pelo pagamento da quantia de € 4 252,01, em 16 de outubro de 2014.
Factos Provados: A convicção do Tribunal quanto aos factos enunciados supra, que se consideram provados, deriva da análise do requerimento arbitral e dos documentos a ele anexos (cópias das notas de cobrança referentes às primeira e segunda prestações da liquidação identificada; cópia da caderneta predial e da certidão do registo predial; cópias das informações despachos e notificações emitidas no âmbito do processo de reclamação graciosa n.º … 2014 …; cópia da notificação referente à avaliação do prédio, em 2014) e da cópia da guia do pagamento efetuado no processo de execução fiscal n.º … 2014 …, remetida aos autos em 13 de janeiro de 2015, que aqui se dão por reproduzidos.
Factos não provados: Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se não provados.
II – SANEAMENTO:
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O Tribunal Arbitral Singular foi regularmente constituído no CAAD, no dia 13 de novembro de 2014, e é materialmente competente para apreciar e decidir o litígio objeto dos presentes autos.
O pedido é tempestivo, por submetido dentro do prazo a que se refere o artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
Nos termos do despacho de 13 de novembro de 2014, foi o dirigente máximo dos serviços da AT notificado para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT. Tendo sido atempadamente prestada resposta por parte da AT, veio esta requer dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, de produção de prova adicional bem como da produção de alegações orais ou escritas, por não terem sido invocadas exceções e se considerar ser a questão suscitada nos autos de natureza estritamente jurídica, pelo que o Tribunal poderia conhecer imediatamente do pedido.
Notificado da resposta e requerimento da AT, bem como do despacho arbitral datado de 19 de dezembro de 2014, que aqui se dão por reproduzidos, também o Requerente prescindiu da reunião prevista no artigo 18.º, do RJAT, bem como da produção de alegações, quer orais quer escritas.
Notificada a AT do teor do requerimento apresentado pelo sujeito passivo em 13 de janeiro de 2015, não se pronunciou sobre o respetivo conteúdo.
III – FUNDAMENTAÇÃO:
Questões a decidir:
A – A principal questão trazida aos autos pelo Requerente é a de saber se a norma de incidência da verba nº 28.l., da Tabela Geral de Imposto de Selo (TGIS), na redação originária, dada pela Lei nº 55-A/2012, de 29 de outubro, abrange terrenos para construção com valor patrimonial tributário igual ou superior a € 1.000.000,00 ou se estes podem integrar o conceito de prédios urbanos “com afetação habitacional”, condição de aplicabilidade da referida verba.
Invoca ainda o Requerente o valor patrimonial tributário atual do imóvel, inferior ao previsto na verba nº 28, da TGIS, conforme a notificação que lhe foi remetida pelo Serviço de Finanças de Lisboa … e por si recebida em 5 de agosto de 2014, considerando que a redução do VPT relativamente ao anteriormente fixado e que serviu de base à liquidação impugnada, determinaria a correspondente atualização do valor liquidado, relativamente ao ano em curso.
Quanto a estas questões, a argumentação expendida pela Requerente é, resumidamente, a seguinte:
· Das notas de cobrança do imposto de selo referente ao ano de 2013 consta a referência à “Verba 28.1 da TGIS (…) como fundamento para aplicação da taxa de 1% ao valor patrimonial tributário do imóvel, de € 1 237 53,51;
· Estabelece-se na Verba 28 TGIS, aprovada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, obrigatoriedade de pagamento deste imposto apenas – e só, nos seguintes casos:
«28. Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), seja igual ou superior a € 1 000 000,00 – sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:
28.1. Por prédio com afetação habitacional (…)» (negrito e sublinhado no original);
· Ora, conforme se comprova na caderneta predial urbana (…) trata-se de “terreno para construção” e não de um prédio com afetação habitacional como dita a lei (negrito e sublinhado no original);
· Em 5 de agosto de 2014, o Demandante foi notificado da avaliação realizada ao imóvel em causa, concluindo-se que o valor patrimonial tributário atual é de € 770 260,00 (…) existindo uma redução do valor patrimonial tributário de € 1 237 533,51, determinado no ano de 2012 (…), sendo certo que o Imposto de Selo se reporta ao ano civil em curso pelo que deveria existir a correspondente atualização nos montantes a liquidar perante a Administração Tributária (sic);
· Acresce que o Demandante procedeu à aquisição do imóvel em causa, no âmbito da sua atividade profissional de compra para revenda de imóveis, não tendo procedido a qualquer edificação no mesmo;
· (…) o critério de afetação habitacional só se aplica aos prédios edificados pois depende do tipo de utilização dos mesmos de acordo com o previsto no art. 41.º do CIMI;
· (…) atento o disposto no art. 6.º do CIMI, que divide claramente em quatro categorias os prédios urbanos, autonomizando-os! – o terreno para construção é um prédio urbano legalmente distinto dos prédios habitacionais;
· (…) Nestes termos, a liquidação de imposto de selo em causa apenas pode ser compreensível como um mero lapso da Autoridade Tributária, estando a mesma ferida de ilegalidade por nem sequer ser admissível nos termos da lei;
· (…) a liquidação de imposto de selo ora em apreço, em nome do princípio da legalidade e da tipicidade dos tributos, só poderia ter sido operada com base no disposto na Tabela Geral do Imposto de Selo e de acordo com os aí previstos pelo legislador, o que sucedeu (sic);
· (…) de acordo com o princípio da legalidade e da tipicidade, a Administração Fiscal apenas deve proceder à liquidação (…) em caso de verificação de todos e de cada um dos elementos típicos previstos na lei como geradores do direito do Estado ao tributo;
· Sendo ainda certo que, de acordo com o disposto no artigo 9.º do Código Civil não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso;
· (…) uma vez que in casu não foi provada a verificação dos pressupostos de que depende a exigibilidade do imposto em análise, é manifesto que não se constituiu qualquer facto tributário, pelo que o pagamento exigido ao ora Demandante é ilegal e inexigível;
· (…) o ato de liquidação in casu configura a criação de um verdadeiro imposto ou contribuição especial não permitido por lei (art. 103.º/2 da CRP e arts. 4/2 e 8.º da LGT) – (sublinhados no original);
· O ato em análise é assim nulo e de nenhum efeito por falta de atribuições e por ter criado impostos ou contribuições especiais não permitidos por lei (art. 133.º/2/a) e d) do CPA e arts. 103.º/2 e 165.º/1/i) da CRP);
· (…) o ato em causa não indica e inexiste qualquer dispositivo legal e aplicável que fundadamente legitime a quantificação do montante apurado e a liquidação do tributo em causa, nem foram indicadas quaisquer razões justificativas;
· O ato de liquidação de imposto de selo enferma assim de manifesta falta de fundamentação de facto e de direito, ou, pelo menos, esta é insuficiente, obscura e incongruente, pelo que foram frontalmente violados o art. 268.º/3 da CRP, os arts. 124.º e 125.º do CPA e o art. 77.º da LGT;
· O ato de liquidação (…) é (…) nulo e de nenhum efeito, pois, a quantia exigida não tem qualquer fundamento legal ou factual (art. 77.º da LGT e art. 99.º/c do CPPT; cf. art. 133.º do CPA);
· A quantificação do facto tributário em análise suscita fundadas dúvidas, pelo que sempre o ato de liquidação de imposto de selo in casu deverá ser anulado, ex vi dos arts. 99.º/1/a) e 100.º do CPPT;
· Citando as decisões proferidas no processo que correu termos pelo CAAD sob o n.º 49/2013-T e no Acórdão do STA, no processo n.º 0676/2014, termina o Requerente formulando o pedido de que a sua pretensão seja julgada procedente e provada e, em consequência, ser anulada ou declarada nula a liquidação de imposto de selo que dela é objeto, com as legais consequências.
Na sua resposta, propugnado pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral, a AT veio defender, resumidamente, que:
· Entende a Requerente que a liquidação em causa é ilegal por violação do art. 1.º do Código do Imposto do Selo (CIS) e da Verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), solicitando assim a sua anulação pelo Tribunal Arbitral;
· Alega ainda que a interpretação subjacente à liquidação impugnada, segundo a qual os terrenos para construção são prédios com afetação habitacional, padece de inconstitucionalidade por violação de princípios com assento na Constituição da República Portuguesa;
· Considera a Requerente que o conceito de terreno para construção, para efeitos fiscais, não pode ser considerado prédio afeto a habitação, ao abrigo do disposto no art. 1.º, n.º 1, do CIS e da mesma Verba 28;
· (…) É entendimento da AT que o prédio sobre o qual recai a liquidação impugnada, tem natureza jurídica de prédio com afetação habitacional, pelo que o ato de liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral deve ser mantido, por consubstanciar correta interpretação da Verba 28 da Tabela Geral, aditada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29/10/2012;
· (…) A Lei n.º 55-A/2012, de 29/10/2012, veio alterar o art. 1.º CIS, e aditar à TGIS a verba 28 (…) Com esta alteração legislativa, o IS passaria a incidir também sobre a propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) seja igual ou superior a € 1 000 000,00;
· O imposto do selo incidiria assim sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas prevsitos na tabela geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens (negrito e sublinhado no original);
· Na ausência de qualquer definição sobre os conceitos de prédio urbano, terreno para construção e afetação habitacional, em sede de IS, há que recorrer ao CIMI, na procura de uma definição que permita aferir da eventual sujeição a IS, de acordo com o previsto no art. 67.º, n.º 2 do CIS na redação dada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29/10;
· Nos termos da referida disposição legal, às matérias não reguladas no Código, respeitantes à verba n.º 28.º da TGIS aplica-se subsidiariamente o disposto no CIMI;
· (…) o art. 6.º, n.º 1 do CIMI dispõe acerca das espécies de prédios urbanos existentes, integrando neste conceito os terrenos para construção (…);
· A noção de afetação do prédio urbano encontra assento na parte relativa à avaliação dos imóveis, o que bem se compreende porquanto a avaliação do imóvel (finalidade) incorpora valor ao imóvel, constituindo um facto de distinção determinante (coeficiente) para efeitos de avaliação;
· Conforme resulta da expressão «… valor das edificações autorizadas», constante do art. 45.º, n.º 2 do CIMI o legislador optou por determinar a aplicação da metodologia de avaliação dos prédios em geral à avaliação dos terrenos para construção, sendo-lhes, por conseguinte, aplicável o coeficiente de afetação previsto no art. 41.º do CIMI (…) Neste sentido veja-se o Acórdão n.º 04950/11, de 14/02/2012, do TCA Sul (…);
· Ao contrário do propugnado pela Requerente, a AT entende que o conceito de «prédios com afetação habitacional», para efeitos do disposto na verba 28 da TGIS, compreende quer os prédios edificados quer os terenos para construção, desde logo atendendo ao elemento literal da norma;
· (…) o legislador não refere «prédios destinados a habitação», tendo optado pela noção de «afetação habitacional» - expressão diferente e mais ampla cujo sentido há de ser encontrado na necessidade de integrar outras realidades para além das identificadas no art. 6.º, n.º 1 alínea a) do CIMI;
· A mera constituição de um direito de potencial construção faz aumentar imediatamente o valor do imóvel em causa, daí a regra resultante do art. 45.º do CIMI (…). De um lado, considera-se a parte do terreno onde vai ser implantado o edifício a construir, e do outro a área do terreno livre. Apurado o montante da primeira parte, reduz-se o valor determinado a uma percentagem entre 15% e 45% como prevê o n.º 2 da referida norma, em virtude de a construção ainda não estar efetivada. Quanto ao valor do tereno adjacente à área de implantação, este é apurado nos mesmos termos em que se determina ao valor da área do terreno livre e da área do terreno excedente para efeitos de qualquer imóvel urbano;
· No que diz respeito ao regime jurídico da urbanização e edificação, é de salientar que o mesmo tem como pressuposto as edificações já construídas (…) o alvará de licença para realização de operações urbanísticas deverá conter (…) o número de lotes e a indicação da área de localização, finalidade, área de implantação, área de construção, número de pisos e número de fogos de cada um dos lotes, com especificação dos fogos destinados a habitação a custos controlados (…). E ainda o artigo 77.º do RJUE contém especificações obrigatórias (…);
· Também os Planos Diretores Municipais estabelecem a estratégia de desenvolvimento municipal, a política municipal de ordenamento do território e de urbanismo (…). Nestes termos, muito antes da efetiva edificação do prédio, é possível apurar e determinar a afetação do terreno para construção;
· Relativamente à alegada violação de princípios constitucionais, não pode a AT deixar de salientar que a Constituição da República Portuguesa, obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente (…) entende a AT que a previsão da verba 28 da TGIS não consubstancia violação de qual quer comando constitucional. (…) Trata-se de uma norma geral e abstrata, aplicável de forma indistinta a todos os casos em que se verifiquem os pressupostos de facto e de direito;
· A diferente aptidão dos imóveis (habitação/serviços/comércio) sustenta o diferente tratamento, tendo constituído opção do legislador, por razões políticas e económicas, afastar da incidência de IS os imóveis destinados a outros fins que não os habitacionais;
· Importa ainda referir que a tributação em sede de imposto do selo obedece a critérios de adequação, aplicando-se de forma indistinta a todos os titulares de imóveis com afetação habitacional de valor superior a € 1 000 00,00, incidindo sobre a riqueza consubstanciada e manifestada no valor dos imóveis (…);
· Por todo o exposto, a liquidação em crise consubstancia uma correta interpretação e aplicação do direito aos factos, não padecendo de vício de violação de lei, seja da CRP ou do CIS, devendo, em consequência, julgar-se improcedente a pretensão aduzida e absolver-se a Entidade Requerida do pedido.
Ordem de apreciação dos vícios
De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação, segundo a ordem estabelecida pelo seu n.º 2, alíneas a) e b).
Embora o Requerente invoque a nulidade da liquidação de Imposto de Selo impugnada, com fundamento nas disposições das alíneas a) “Os atos viciados de usurpação de poder” e d) “Os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental”, do n.º 2, do artigo 133.º, do Código de Procedimento Administrativo (CPA), em regra, os vícios do ato tributário são fundamento da sua anulabilidade.
No que respeita ao primeiro dos fundamentos invocados, haverá usurpação de poder sempre que a Administração pratique um ato que seja da competência de outro poder do Estado (judicial, legislativo ou político), mesmo que materialmente se trate de atividade administrativa desse outro poder[1].
Ora, nos termos do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de dezembro, são atribuições da AT, entre outras, a de “Assegurar a liquidação e cobrança dos impostos sobre o rendimento, sobre o património e sobre o consumo, dos direitos aduaneiros e demais tributos que lhe incumbe administrar, bem como arrecadar e cobrar outras receitas do Estado ou de pessoas coletivas de direito público”, pelo que não se poderá dar por verificado o vício de usurpação de poder.
Quanto ao segundo, ou seja, a ofensa do “conteúdo essencial de um direito fundamental”, como é o direito de propriedade privada, consagrado no artigo 62.º, da CRP, considera a doutrina que “Uma ofensa deste tipo só ocorrerá quando perante ela o direito fundamental afetado fique sem expressão prática apreciável, o que não é o caso de uma liquidação ilegal, que apenas atinge limitadamente o direito de propriedade dos seus destinatários”[2].
Por outro lado, poderá dizer-se que a sanção expressamente prevista na lei para uma liquidação ilegal é “a sanção da anulabilidade, como se depreende do facto de prever um prazo para a sua impugnação”[3], conforme o estabelecido pelo artigo 102.º, do CPPT e, no processo arbitral tributário, pelo artigo 10.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT.
Deste modo, a ordem de apreciação dos vícios que possam determinar a anulação da liquidação impugnada deve ser a que, segundo o prudente critério do julgador, assegure mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.
No caso em apreço, o vício imputado pelo Requerente ao ato tributário objeto do pedido de pronúncia arbitral, que fornece mais estável e eficaz tutela dos seus interesses, é o que respeita ao erro sobre os pressupostos na emissão da liquidação de Imposto de Selo do ano de 2013, que, a verificar-se, afastará definitivamente a possibilidade de renovação do ato tributário impugnado.
Tal erro derivará da interpretação dada pela AT à expressão “prédio com afetação habitacional”, a que se refere a verba 28.1. da TGIS e não do VPT sobre o qual incidiu a taxa de 1% nela prevista, dado nada indicar que a avaliação notificada ao Requerente em 5 de agosto de 2014, mediante a qual foi atribuído ao imóvel um VPT inferior a € 1 000 000,00, retroaja os seus efeitos a 31 de dezembro de 2013, ano a que respeita a liquidação em análise.
Efetivamente, sobre a não inclusão dos terrenos para construção na categoria de prédios urbanos de «afetação habitacional» se tem pronunciado sucessivamente o Supremo Tribunal Administrativo (cfr., o recente Acórdão do STA, de 29 de outubro de 2014, processo n.º 0864/14, disponível em http://www.dgsi.pt/), ao decidir que “O facto de se poder considerar que na determinação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos classificados como terrenos para construção se deve levar em conta a afetação que terá a edificação para ele autorizada ou prevista para determinação do respetivo valor da área de implantação (cfr. os nºs. 1 e 2 do artigo 45º do CIMI), não determina que os terrenos para construção possam ser classificados como “prédios com afetação habitacional”, porquanto a afetação habitacional” surge sempre no Código do IMI referida a “edifícios” ou “construções”, existentes, autorizados ou previstos, porquanto apenas estes podem ser habitados, o que não sucede no caso dos terrenos para construção, que não têm, em si mesmos, condições para tal, não sendo suscetíveis de serem utilizados para habitação senão se e quando neles for edificada a construção para eles autorizada e prevista (mas nesse caso não serão já “terrenos para construção” mas outra espécie de prédios urbanos – “habitacionais”, “comerciais, industriais ou para serviços” ou “outros” – artigo 6º do CIMI).
Estranho seria, aliás, que a determinação do âmbito da norma de incidência tributária da verba nº 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo se encontrasse, ao fim e ao cabo, nas normas de determinação do valor patrimonial tributário do Código do IMI, e que a imprecisão terminológica do legislador na redação daquela regra fosse, afinal, elucidada e finalmente esclarecida por via de uma remissão, indireta e equívoca, para o coeficiente de afetação estabelecido pelo legislador em relação a prédios edificados (artigo 41º do Código do IMI).
Assim, atendendo a que um terreno para construção – qualquer que seja o tipo e a finalidade da edificação que nele será, ou poderá ser, erigida – não satisfaz, só por si, qualquer condição para como tal ser licenciado ou para se poder definir como sendo a habitação o seu destino normal, e referindo-se a norma de incidência do imposto do selo a prédios urbanos com “afetação habitacional”, sem que seja estabelecido qualquer conceito específico para o efeito, não pode dela extrair-se que na mesma se contenha uma potencialidade futura, inerente a um distinto prédio que porventura venha a ser edificado no terreno.”
“Uma vez que o legislador não definiu o conceito de prédios (urbanos) com afetação habitacional, e porque resulta do art. 6.º do CIMI, subsidiariamente aplicável ao Imposto do Selo previsto na nova verba n.º 28 da Tabela Geral, uma clara distinção entre prédios urbanos habitacionais e terrenos para construção, não podem estes ser considerados, para efeitos de incidência do Imposto do Selo (Verba 28.1 da TGIS, na redação da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro), como prédios urbanos com afetação habitacional” (sublinhado nosso).
Aderindo integralmente a esta jurisprudência consolidada do STA, damos por verificado o erro nos pressupostos de emissão da liquidação de Imposto de Selo impugnada, que justifica a declaração da sua ilegalidade e consequente anulação.
B – Da restituição das quantias pagas. Dos juros indemnizatórios
O pagamento da primeira prestação da liquidação impugnada, em 16 de outubro de 2014, configura facto superveniente relativamente ao pedido de anulação do ato tributário, com entrada no CAAD em 9 de setembro de 2014.
Assim, o requerimento apresentado pelo Requerente em 13 de janeiro de 2015, no qual este pede a restituição das quantias pagas, acrescidas de juros indemnizatórios, constitui ampliação do pedido, por ser desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, devendo ser apresentado até ao encerramento da discussão da causa na 1.ª instância (cfr. o n.º 2 do artigo 265.º, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável subsidiariamente, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
O momento do encerramento da discussão da causa, no processo de impugnação judicial, coincide com o termo do prazo para alegações[4]. Atendendo ao teor do despacho arbitral de 19 de dezembro de 2014, que aqui se dá por reproduzido, e à suspensão dos prazos, motivada pelo decurso das férias judiciais entre 22 de dezembro de 2014 e 3 de janeiro de 2015 (cfr. o artigo 17.º - A, do RJAT), é de considerar tempestiva a ampliação do pedido.
As quantias pagas pelo Requerente, em 16 de outubro de 2014, incluem, para além do valor da primeira prestação da liquidação de Imposto de Selo objeto dos presentes autos, as custas processuais e os juros moratórios liquidados no processo de execução fiscal.
Antecipando a decisão, dir-se-á que, anulada a liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, o ato de instauração do processo de execução fiscal é nulo, enquanto ato consequente do ato tributário anulado (cfr. o artigo 133.º, n.º 2, alínea i), do CPA, aplicável ex vi do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT), o que justifica, para além da restituição do valor pago a título de imposto (quantia exequenda), a restituição das custas e juros de mora nele pagos conjuntamente com a primeira prestação daquela liquidação.
No que respeita ao pedido de juros indemnizatórios, tendo o processo arbitral tributário sido concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 (primeira parte) da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril (Lei do Orçamento do Estado para 2010) e, não obstante o artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, utilizar a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, deverá entender-se que se compreendem nestas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários.
De entre esses poderes, conta-se o da apreciação do erro imputável aos serviços, assim como o da condenação da AT no pagamento dos juros indemnizatórios que se mostrarem devidos.
Determina a alínea b) do artigo 24.º, do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.
Do mesmo modo, o artigo 100.º da LGT, aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”.
E, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º, da LGT, “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
O erro imputável aos serviços, de que decorre o dever de indemnizar, pode consistir em erro sobre os pressupostos de facto, que ocorre sempre que haja “uma divergência entre a realidade e a matéria de facto utilizada como pressuposto na prática do ato”[5], ou em erro sobre os pressupostos de direito, quando “na prática do ato tenha sido feita errada interpretação ou aplicação das normas legais, como as normas de incidência objetiva e subjetiva (…)”[6] e “fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou a impugnação judicial dessa mesma liquidação e o erro não for imputável ao contribuinte”[7].
No caso em apreço, afigura-se manifesto que, declarada a ilegalidade do ato de liquidação de Imposto de Selo, por ter ficado demonstrada a errada aplicação da norma de incidência objetiva contida na verba 28.1, da TGIS, o que justifica a anulação da liquidação impugnada, terá de reconhecer-se o direito do Requerente a juros indemnizatórios sobre os valores indevidamente pagos, desde a data do respetivo pagamento, conforme o disposto no n.º 5 do artigo 61.º, do CPPT, já que tal ilegalidade é exclusivamente imputável à Administração Tributária, que praticou aquele ato tributário sem suporte legal.
Questões de conhecimento prejudicado
Atendendo à ordem de conhecimento dos vícios, nos termos do 124.º, do CPPT, e à solução dada às questões anteriores, ficam prejudicados o conhecimento da questão atinente ao vício de fundamentação, bem como da inconstitucionalidade da norma constante da Verba 28, da TGIS, uma vez que esta não comporta a interpretação que dela fez, no caso, a AT, ao emitir a liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral.
IV – DECISÃO
Com base nos fundamentos acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º, do RJAT, decide-se:
− Declarar a ilegalidade da liquidação de Imposto de Selo impugnada, por erro nos pressupostos de direito, determinando a sua anulação;
− Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira na restituição ao Requerente das quantias por este indevidamente pagas, incluindo o acrescido do processo de execução fiscal;
− Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios ao Requerente, desde a data do pagamento indevido.
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 12 375,34.
CUSTAS: Nos termos do artigo 12.º, n.º 2, do RJAT, as custas vão calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 918,00, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 30 de janeiro de 2015.
O Árbitro,
Mariana Vargas
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.
[1] Cfr., neste sentido, OLIVERIA, Mário Esteves de, GONÇALVES, Pedro Costa e AMORIM, J. Pacheco de, “Código do Procedimento Administrativo – Comentado”, Vol. II, Almedina, Coimbra, 1995, pág. 151.
[2] SOUSA, Jorge Lopes de, “Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado” –
5.ª Edição, Volume I, Lisboa, Áreas Editores, 2006, págs. 881 e ss.
[3] Cfr. o Autor e Obra citados na nota anterior, idem
[4] SOUSA, Jorge Lopes de, “Código de Procedimento e de Processo Tributário – anotado e comentado”, I Volume, Áreas Editora, 5.ª Edição, 2006, pág. 784.
[5] SOUSA, Jorge Lopes de, “Código de Procedimento e de Processo Tributário – anotado e comentado”, I Volume, Áreas Editora, 5.ª Edição, 2006, pág. 714.
[7] CAMPOS, Diogo Leite de, RODRIGUES, Benjamim Silva, SOUSA, Jorge Lopes de, “Lei Geral Tributária – Anotada e Comentada”, Encontro da Escrita, 4.ª Edição, pág. 342.