Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 601/2014-T
Data da decisão: 2015-01-30  IMT  
Valor do pedido: € 912.930,81
Tema: Tributação de contrato-promessa de compra e venda de terreno
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Processo n.º 601/2014-T

 

 

            Os árbitros Dr. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr.ª Carla Castelo Trindade e Prof. Doutora Nina Aguiar (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 06-10-2014, acordam no seguinte:

 

 

1. Relatório

 

A... – SOCIEDADE DE PROMOÇÃO E CONSTRUÇÃO DE HOTEIS, S.A., titular do NIPC …, com sede em ..., …, doravante designada apenas por “A...” ou “Requerente”, veio, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, n.º 3 do artigo 5.º, n.º 2 do artigo 6.º, e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), em conjugação com a alínea a) do artigo 99.º e a alínea f) do n.º 1 do artigo 102.º, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), apresentar pedido de pronúncia arbitral com vista à declaração de ilegalidade, e consequente anulação, do acto tributário de liquidação adicional de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (doravante designado por IMT), notificado em 24-7-2013.

A Requerente pede ainda a devolução da quantia paga, no montante de € 904.800,00, com juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento indevido até ao efectivo e integral reembolso ou, caso assim não se entenda pretende a anulação da decisão proferida pela AT e que sustenta a liquidação adicional por falta de fundamentação.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 19-09-2014, as Partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

            Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 06-10-2014.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defende que não se sabe se a Requerente imputa vício de falta de fundamentação ao acto de liquidação ou à decisão da reclamação graciosa, pelo que não é possível aferir da existência desse vício e que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente.

Por despacho de 17-11-2014 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e decidido que o processo prosseguisse com alegações.

As Partes não apresentaram alegações.

Por despacho de 13-01-2014, foi ordenada a notificação das Partes para se pronunciarem sobre as questões da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para o conhecimento do pedido de anulação da decisão da reclamação graciosa por falta de fundamentação e da inutilidade de apreciação desse vício para o efeito de apreciar a legalidade do acto de liquidação.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

            As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

            O processo não enferma de nulidades.

 

 

            2. Matéria de facto

 

            2.1. Factos provados

 

            Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)    A Requerente tem como actividade “Hotéis com Restaurante” (CAE 055111);

b)    No dia 30-12-2002, foi outorgado, entre a sociedade “B... – Empreendimentos Imobiliários e Turísticos, S.A.” (doravante designada como “B...”) e a “A...”, um contrato de promessa de compra e venda (doravante designado apenas como CPCV), mediante o qual a Requerente prometeu adquirir um talhão de terreno, objecto do Plano de Urbanização de ..., aprovado pela Assembleia Municipal de ..., em 27 de Março de 1998, e ratificado conforme Resolução do Conselho de Ministros n.º …/99, conforme documento que se junta ao diante e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (doc. n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

c)     A Zona 2 do ... do referido Plano de Urbanização de ... foi objecto de um processo de licenciamento de loteamento, que contemplou um lote designado por “Lote 1”, tendo uma área máxima de 40.000,00 m2 e uma área de construção máxima acima do solo de 240.000 m2, destinado a Hotel;

d)     Para a venda do referido imóvel foi fixado, conforme cláusula 2.ª do CPCV, o preço total de € 13.920.000,00;

e)    A sociedade “A...” procedeu aos pagamentos estipulados no CPCV, tendo o preço sido pago pela mesma à B... da seguinte forma:

(i) € 3.480.000,00 em 6 de Janeiro de 2003;

(ii) € 3.480.000,00 em 30 de Junho de 2003;

(iii) € 3.480.000,00 em 26 de Dezembro de 2003;

(iv) € 2.784.000,00 em 22 de Junho de 2004;

f)     Em 25-09-2003 a Requerente adjudicou à Empresa “C… – … Geotecnia e Topografia, Lda” a execução de um estudo geotécnico ao “Lote 1”, (doc. n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

g)    Em 21-10-2003, a Requerente adjudicou a execução do trabalho de levantamento topográfico do já mencionado “Lote 1” a D… (doc. n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

h)    No dia 01-09-2004, a Requerente remeteu à Direcção Geral do Turismo o documento cuja cópia constitui o documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que solicita a integração do projecto do Hotel ... no âmbito da Resolução do Conselho de Ministros n.º …/2003, para que ele fosse sujeito à apreciação e acompanhamento pelo Centro de Apoio ao Licenciamento de projectos Turísticos Estruturantes;

i)      Nas contas da Requerente do exercício de 2002 verifica-se ter sido o imóvel em questão registado no Imobilizado da “A...” no exercício de 2002;

j)      O negócio em questão, celebrado com a “B...”, encontra-se detalhadamente descrito no Anexo às Demonstrações Financeiras em 31 de Dezembro de 2002 como “Investimentos corpóreos” (documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

k)    No Relatório de Gestão do exercício de 2002 encontra-se descrito o negócio de aquisição do “Lote 1” pela Requerente no ponto 1 do Relatório sob a epígrafe “Considerações Prévias” (doc. n.º 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

l)      O licenciamento do loteamento ocorreu em 11-07-2005 (artigo 78.º do pedido de pronúncia arbitral);

m)  O Lote prometido vender em 30 de Dezembro de 2002 encontra-se devidamente identificado nos considerandos B e C do CPCV (artigo 79.º do pedido de pronúncia arbitral);

n)    Na Planta Logotipo constante do Anexo III que faz parte integrante do CPCV, e se encontra compreendido no Plano de Urbanização de ... (documentos n.ºs 11 e 12 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

o)    O imóvel está descrito na certidão predial emitida pela Conservatória de Registo Predial de ... como “Prédio Urbano, Lote 1, ..., Zona 2, Subzona 1, ... – talhão de terreno para construção urbana”, com as características e confinantes constantes do CPCV de 30 de Dezembro de 2002, sendo a descrição efectuada em 14-0-7-2005 (documento n.º 13 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

p)    A inscrição matricial do referido Lote 1 ocorreu em 11-07-2005 (documento n.º 14 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

q)    O Plano de Urbanização de ... (2.ª fase) determina a inclusão da Zona 2 do ... em processo de licenciamento de loteamento, o qual, de acordo com o Considerando C do CPCV “contemplará um lote designado por Lote 1, tendo uma área máxima de 40.000 m2 e uma área de construção máxima acima do solo de 24.000 m2” e a áreas indicadas no Plano de Urbanização e na descrição do prédio prometido vender no contrato de 30-12-2002 coincidem integralmente com a identificação do prédio descrito na certidão predial datada de 14-07-2005 e bem assim como com a descrição constante da matriz predial urbana emitida à data de 5 de Junho de 2005 pelo Serviço de Finanças de ... (documentos n.ºs 13 e 14 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

r)     Por despacho do Secretário de Estado do Turismo, de 08-11-2005, cfr. Aviso publicado no DR, III Série, n.º 232, foi atribuída a qualificação de utilidade turística a título prévio a um hotel (...), com a classificação provisória de cinco estrelas, que B... – Empreendimentos Imobiliários e Turísticos, S.A., pretende levar a efeito no lote i do …, zona 2, subzona 1, em ..., concelho de ..., distrito de ...;

s)     Em 05-12-2005, foi celebrada a escritura pública de compra e venda pela Requerente à B... – Empreendimentos Imobiliários e Turísticos, SA, contribuinte n.º … do prédio urbano descrito como “Lote 1”, ..., Zona 2, Subzona 1, ..., artigo matricial provisório …, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …, pelo preço de 13.920.000,00, tendo nessa data sido efectuado o pagamento do remanescente do preço, no montante de € 696.000,00 (doc. n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

t)     A aquisição do imóvel referido na alínea anterior ficou isenta do pagamento de IMT nos termos do disposto no art.º 16.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 423/83, de 5 de Dezembro, (com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 38/94, de 8 de Fevereiro) por ter sido atribuída ao empreendimento utilidade turística, a título prévio, pelo referido Despacho do Secretário de Estado do Turismo, de 08-11-2005, publicado no Diário da República III Série n.º 232, de 05-12-2005;

u)    No Diário da Republica, 2ª Série, n.º 39, de 25-02-2013, a fls. 7399, foi publicado o Despacho n.º 2968/2013, do Gabinete da Secretaria de Estado do Turismo, onde se refere que:

Atento o parecer do Turismo de Portugal, I.P., no qual se considera ser de declarar a caducidade da utilidade turística atribuída a título prévio ao Hotel ..., sito em ..., decido:

Declaro a caducidade da utilidade turística atribuída a título prévio em 8 de Novembro de 2005, ao Hotel ..., sito em ..., pelos fundamentos invocados no parecer do Turismo de Portugal I.P., de 25 de Outubro de 2012, que aqui dou por integralmente reproduzido.”;

v)    O despacho referido na alínea anterior foi publicado em 25-02-2013;

w)   A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que o acto consubstanciador da transmissão da propriedade para a Requerente do imóvel em questão ocorreu em 05-12-2005, com a referida celebração da escritura pública de compra e venda, no Cartório Notarial de ...;

x)    Por ofício de 23-07-2013, a Requerente foi notificada pela Autoridade Tributária e Aduaneira para “Pagamento de IMT”, no montante de 904.800,00 €, tendo sido emitida a respectiva liquidação em 11-10-2013, aplicando a taxa de 6,5% ao preço da aquisição de €.13.920.000,00;

y)    Em 29-11-2014, a Requerente efectuou o pagamento do montante de imposto referido acrescido de juros compensatórios no valor de € 8.130,81, calculados desde 25-02-2013 a 17-05-2013 (no total de € 912.930,81) (página 5 do Processo administrativo);

z)     A Requerente apresentou Reclamação Graciosa da liquidação referida, tendo sido notificada por ofício n.º … de 28-03-2014 do projecto de decisão e para exercer direito de audição,

aa)   A Requerente não exerceu do direito de audição na reclamação graciosa;

bb)No dia 02-05-2014, pelo ofício n.º …, a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento da Reclamação Graciosa;

cc)  Em 01-08-2014 a Requerente apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados

 

Não se provou que a Requerente tivesse praticado qualquer outro acto em relação ao terreno referido no contrato-promessa.

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos referidos cuja correspondência à realidade não é questionada.

 

3. Matéria de direito

           

3.1. Questões que são colocadas

 

            Em 30-12-2002, a Requerente celebrou, como promitente-compradora, um contrato-promessa de compra e venda de um terreno que era objecto do Plano de Urbanização de ....

            No contrato-promessa estabeleceu-se que o preço do prédio era de € 13.920.000,00, que veio a ser pago faseadamente, em 06-01-2003, 30-06-2003, 26-12-2003 e 22-06-2004.

O referido terreno já estava identificado no contrato-promessa nos termos em que veio a ser licenciado o loteamento, em 11-07-2005, e em que veio a ser registado na Conservatória do Registo Predial, em 14-07-2005.

Provou-se que a Requerente referiu o terreno em causa nas suas contas relativas ao exercício de 2002 e fez-lhe referência no Anexo às Demonstrações Financeiras e no Relatório de Gestão relativos ao ano de 2002, que, em 25-09-2003 e 21-10-2003, adjudicou a execução de um estudo geotécnico e um levantamento topográfico no terreno e que 01-09-2004, a Requerente remeteu à Direcção Geral do Turismo comunicação a solicitar o acompanhamento e apreciação do projecto “Hotel ...” pelo Centro de Apoio ao Licenciamento de projectos Turísticos Estruturantes.

A escritura de aquisição do terreno referido veio a ser celebrada em 05-12-2055, ficando isenta de IMT, por ter sido atribuída ao empreendimento utilidade turística, a título prévio.

No Diário da Republica, 2ª Série, n.º 39, de 25-02-2013, a fls. 7399, foi publicado o Despacho n.º …/2013, do Gabinete da Secretaria de Estado do Turismo, em que foi declarada a caducidade da utilidade turística atribuída a título prévio.

 A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que o acto consubstanciador da transmissão da propriedade para a Requerente do imóvel em questão ocorreu em 05-12-2005, com a referida celebração da escritura pública de compra e venda, pelo que, em 11-10-2013, liquidou IMT.

A Requerente entende que «vários factos se avolumam para consubstanciar, e demonstrar, para além de toda a dúvida, que o “Lote 1” passou a integrar o património da sociedade “A...” no momento em que foi celebrado entre a mesma e a B..., em 30 de Dezembro de 2002, o CPCV» «e que a partir dessa data a Requerente passou a assumir, materialmente, o papel de proprietária do prédio em questão» (artigos 65.º e 66.º do pedido de pronúncia arbitral).

A Requerente entende que, a partir dessa data «encabeçou e liderou todos os procedimentos inerentes à construção do Hotel ... no “Lote 1”», «actuando – a partir desse momento – em relação ao imóvel em questão como verdadeira proprietária, ipso facto, do mesmo».

Assim, a Requerente entende que se verificou transmissão para efeitos do artigo 2.º, § 1.º, n.º 2.º, do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações, em que se estabelece que se consideram transmissões de propriedade imobiliária «as promessas de compra e venda ou de troca de bens imobiliários, logo que verificada a tradição para o promitente comprador ou para os promitentes permutantes, ou quando aquele ou estes estejam usufruindo os bens».

A entender-se que a transmissão ocorreu com o contrato-promessa e actos posteriores que integram transmissão, anteriores a 01-01-2004, não poderá aplicar-se o Código de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, pois é essa a sua data da entrada em vigor, nos termos do n.º 3 do artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro.

A Requerente defende ainda que, entendendo-se que a transmissão do imóvel ocorreu em 30-12-2002, já transcorreu o prazo de caducidade do direito de liquidação de sisa que é de 8 anos, nos termos do artigo 92.º do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações.

A Requerente, como «questão prévia» imputa ainda à «decisão de indeferimento proferida Direcção de Finanças de ... enferma de vício de forma por falta de fundamentação».

 

3.2. Questão da falta de fundamentação da decisão da reclamação graciosa

 

A decisão da reclamação graciosa é um acto posterior à liquidação impugnada e, por isso, da sua eventual anulação por vício de forma, designadamente falta de fundamentação, nunca poderá resultar a ilegalidade do anterior acto de liquidação.

Os vícios dos actos em matéria tributária podem repercutir-se em actos posteriores, que tenham como pressuposto anteriores actos viciados, mas a ilegalidade de um acto não pode resultar supervenientemente da eventual ilegalidade formal de actos posteriores, como é o caso da decisão da reclamação graciosa em relação ao acto de liquidação.

Por outro lado, como resulta do teor expresso do artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD restringe-se à apreciação da legalidade de actos de liquidação e de actos de fixação da matéria tributável e fixação da matéria colectável.

Por isso, a apreciação da legalidade de actos de segundo grau, como é o caso das decisões de reclamações graciosas, apenas pode ser apreciada pelos tribunais arbitrais na medida em que essas decisões, incorporem os vícios que os afectem, pois, nessas situações, está-se a apreciar mediatamente a ilegalidade do acto de liquidação.

É, assim, perfeitamente correcta a afirmação da Requerente, baseada em jurisprudência arbitral, de que «a ilegalidade de actos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de liquidação, incorporando a sua ilegalidade", mas apenas porque esta ilegalidade é incorporada e porque ao apreciar a ilegalidade do acto de segundo grau está-se mediatamente, a apreciar a mesma legalidade do anterior acto de liquidação.

Mas, já não tem a ver com a legalidade de actos de liquidação, mesmo mediatamente, apreciar a ilegalidade de vícios autónomos desses actos de segundo grau, não derivados do anterior acto de liquidação, como é o caso dos vícios de forma que apenas afectem aqueles actos de segundo grau.

E, se é certo que a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT lhe permitia incluir na competência dos tribunais arbitrais, sem qualquer limitação, a apreciação da legalidade de actos de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas [artigo 124.º, n.º 4, alínea a), da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril], também o é que o artigo 2.º do RJAT não estendeu dessa forma a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, restringindo-a, actualmente, à «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta» e à «declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais».

Por outro lado, a falta de fundamentação da decisão da reclamação graciosa apenas poderia conduzir, a verificar-se, à anulação dessa decisão, que, podendo ser relevante para outros efeitos, nunca poderia justificar a ilegalidade do acto de liquidação.

Assim, é de concluir que o conhecimento de vícios de forma de decisões de reclamações graciosas que em nada se relacionem com o acto tributário de liquidação objecto da referida reclamação não se insere na competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD e que, para efeito da questão da anulação do acto de liquidação, que se insere naquela competência, é inútil apreciar a questão da falta de fundamentação da decisão da reclamação graciosa.

Por esse motivo, não se toma conhecimento desse vício, absolvendo da instância a Autoridade Tributária e Aduaneira, na parte respectiva.

 

3.3. Questão da ilegalidade da liquidação de IMT

 

A Requerente entende que a transmissão ocorreu em 30-12-2002, por força do preceituado no artigo 2.º do CIMSISD em que se estabelece que «a sisa incide sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis» e «consideram-se, para este efeito, transmissões de propriedade imobiliária» «as promessa de compra e venda ou de troca de bens imobiliários, logo que verificada a tradição para o promitente comprador ou para os promitentes permutantes, ou quando aquele ou estes estejam usufruindo os bens».

Provado que foi celebrado naquela data um contrato-promessa, resta apreciar se se provou que se verificou a tradição do terreno para o Requerente ou o passou a usufruir naquela data.

No que concerne a usufruir do terreno, não é alegado qualquer facto que se possa integrar em tal conceito, pois não foi sequer alegado que a Requerente retirasse qualquer proveito ou fruto do terreno ou o tivesse utilizado para qualquer finalidade antes da celebração da escritura.

Assim, resta apreciar se os actos que se se demonstra ter ocorrido tradição, para efeitos daquele artigo 2.º.

A tradição do imóvel para efeitos do art. 2.º, § 1.º, n.º 2.º, do CIMSISD consiste apenas na entrega simbólica do mesmo pelo promitente-vendedor, acompanhada de actos do promitente-comprador reveladores da respectiva aceitação, não sendo necessária, para tal efeito, a prática pelo promitente-comprador de actos de posse em termos civilísticos ( [1] ), embora, a prática de actos típicos da posse seja um indício relevante de que ocorreu a tradição.

Mas, para se justificar a equivalência da tradição a transmissão, aquela terá de se consubstanciar numa transmissão presumivelmente definitiva de facto dos poderes gerais que o proprietário detém em relação ao imóvel, mesmo que o promitente-comprador não venha a exercê-los. Isto é, tem de se aferir da existência de tradição sob a perspectiva do promitente-vendedor, sendo necessário que se possa concluir que ele deixou, na sequência do contrato ou posteriormente, de pretender exercer em relação ao imóvel os poderes de facto que integram o conteúdo do direito de propriedade, permitindo, antes, que eles sejam exercidos pelo promitente-comprador.

Desta perspectiva, não se poderá concluir que ocorreu a entrega do imóvel se se demonstrar que o proprietário não pretendeu com o contrato e actos posteriores deixar de poder exercer os poderes de uso, fruição e disposição que integram o direito de propriedade (artigo 1305.º do Código Civil). Assim, ocorrerá tradição, para efeitos fiscais, quando se demonstrar que o promitente-vendedor abdicou em favor do promitente-comprador do exercício dos poderes de facto que constituem o conteúdo do direito de propriedade, apenas mantendo o poder jurídico de celebrar o contrato definitivo.

No caso em apreço, a prova produzida não permite uma conclusão, no sentido da existência de tradição.

Na verdade, por um lado, no contrato-promessa prevêem-se situações em que pode ocorrer resolução do próprio contrato-promessa [cláusulas 4.ª alíneas e), f) e g), 5.ª alínea b), e 16.ª], o que indicia que as partes não consideravam como assente que viria a existir uma transmissão em termos civilísticos e, nestas circunstâncias, não se pode divisar um acto de entrega equivalente economicamente a transmissão do imóvel.

Por outro lado, é manifesto, à face das condições previstas nas Cláusulas 8.ª e 9.ª do contrato-promessa, que não se pretendeu atribuir à Requerente poderes de agir como se fosse proprietária do imóvel, pois foram impostas várias condições aos actos que poderia praticar em relação ao imóvel, designadamente quanto ao projecto de arquitectura e ao projecto de unidade hoteleira, que teriam de ser desenvolvidos seguindo orientações definidas em estudo anexo ao contrato e ficariam sujeito a parecer prévio da promitente-vendedora e quanto às características da unidade hoteleira a construir (cércea máxima, área máxima, tipo de unidade hoteleira a construir, distâncias mínimas de construção aos limites do lote).

Estas cláusulas revelam claramente que a promitente-vendedora não entregou o imóvel à Requerente no momento do contrato-promessa, para que passasse a partir da sua data a agir em relação a ele como se fosse proprietária, antes reservou para si o poder de aprovação final das características da construção que nele deveriam ser levadas a cabo, o que consubstancia exercício do direito de disposição, que integra o conteúdo do direito de propriedade.

Nos termos da cláusula 10.ª, alínea b) do contrato-promessa, só depois da emissão do parecer prévio referido na alínea c) da cláusula 8.ª a promitente-vendedora habilitaria a Requerente com poderes para acompanhar a evolução do processo de licenciamento das construções, «solicitando, decidindo e requerendo livremente todas as informações, orientações e rectificações que entender por bem úteis ou oportunas», pelo que, ao menos até esta habilitação se concretizar, não se pode divisar uma intenção da promitente-vendedora de entregar o imóvel à Requerente.

Os actos que a Requerente invoca que foram praticados em relação ao imóvel (adjudicação de um estudo e um levantamento topográfico) não permitem concluir que a promitente-vendedora tivesse deixado de pretender exercer os seus poderes em relação ao imóvel, pois são actos compatíveis com o interesse desta em que fosse construída uma unidade hoteleira próxima dos campos de golfe de ... de que era proprietária e gestora (o que se refere no considerando G do contrato-promessa e é patenteado pela imposição de prazos de apresentação de projecto de licenciamento e de iniciar e concluir a unidade hoteleira que consta da cláusula 11.ª do contrato-promessa) e a Requerente praticou-os em cumprimento da obrigação contratual de assegurar a elaboração dos projectos de licenciamento das construções (cláusula 8.ª do contrato-promessa). Por outro lado, no que concerne à solicitação de que o projecto a unidade hoteleira fosse sujeito à apreciação e acompanhamento pelo Centro de Apoio ao Licenciamento de projectos Turísticos Estruturantes, não implica exercício de qualquer poder próprio do direito de propriedade.

No que concerne aos registos contabilísticos da Requerente relativos ao prédio, podem indiciar uma sua convicção pessoal sobre a aquisição do prédio, mas não têm qualquer virtualidade para definir o que releva para efeitos do preenchimento do conceito de tradição que é a intenção da promitente-vendedora de deixar de exercer os seus poderes de proprietária.

Confirmando que as partes no contrato não entendiam estar-se perante uma situação de entrega do imóvel equiparável a transmissão, constata-se que no próprio contrato-promessa se faz uma expressa referência ao pagamento de SISA conexionado com a celebração da escritura e não com qualquer momento anterior [alínea c) da Cláusula 4.ª].

            Ainda confirmando que as partes entendiam não ter ocorrido uma transmissão, para efeitos fiscais, antes da celebração da escritura, constata-se que nesta se faz referência a que «esta transmissão encontra-se isenta do pagamento de Imposto Municipal sobre as Transacções Onerosas de Imóveis, nos termos do artigo 20º do Decreto-Lei número 423/83 de 5 de Dezembro», o que não se compreenderia se a transmissão se tivesse consumado na vigência do CIMSISD.

            Assim, não se pode concluir que a promitente vendedora a partir do contrato-promessa tenha abandonado o exercício dos seus direitos de proprietária e, consequentemente, não se pode entender que se tenha demonstrado a existência de tradição antes da celebração da escritura de compra e venda.

            Por isso, não se verificam os pressupostos da aplicação do artigo 2.º, § 1.º, n.º 2.º do CIMSISD e é correcta a decisão da Autoridade Tributária e Aduaneira de aplicar o regime do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, tendo por base a celebração, em 05-12-2005, do contrato de compra e venda.

            Improcede, assim, o pedido de pronúncia arbitral aplicação do CIMSISD e a caducidade do direito de liquidação deste imposto.

            Nestes termos, tem de se concluir pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

 

            3.4. Pedidos de reembolso da quantia paga e de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira em juros indemnizatórios

 

            Não se concluindo pela ilegalidade da liquidação de IMT, improcedem os pedidos de reembolso da quantia paga e de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente e juros indemnizatórios, pedidos estes que têm como como pressuposto aquela alegada ilegalidade.

 

 

            4. Decisão

 

              Termos em que acordam neste Tribunal Arbitral em:

– julgar improcedentes os pedido de anulação da liquidação de IMT de 23-07-2013, de reembolso do imposto pago pela Requerente e de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios;

– absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira dos referidos pedidos;

– julgar este Tribunal Arbitral incompetente para apreciar o vício de falta de fundamentação da reclamação graciosa na medida em que não se trata de vícios imputáveis ao acto de liquidação de imposto objecto da reclamação graciosa e absolver da instância  a Autoridade Tributária e Aduaneira, na parte respectiva.

 

5. Valor do processo

 

   De harmonia com o disposto no artigo 315.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 912.930,81.

 

 

 

 

            6. Custas

 

            Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 12.852,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente A... – Sociedade de Promoção e Construção de Hóteis, S.A..

                                                                           

Lisboa, 30-01-2015

 

Os Árbitros

 

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

 

(Carla Castelo Trindade)

 

 

 

(Nina Aguiar)

 



[1]               Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 4-3-1998, processo n.º 20331, AP-DR de  8-11-2001, página 686.