Decisão Arbitral
I. - RELATÓRIO
A - PARTES
A..., contribuinte fiscal n.º ..., doravante designado por “Requerente”, apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado por “RJAT”), tendo em vista a apreciação da seguinte demanda que o opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira (que sucedeu, entre outras, à Direcção-Geral dos Impostos) a seguir designada por “Requerida” ou “AT”.
B - PEDIDO
1 - O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 20 de Junho de 2014 e notificado à AT em 10 de Julho de 2014.
2 - O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o signatário, em 26-08-2014, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa como árbitro de Tribunal Arbitral Singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
3 - As Partes foram, em 26-08-2014, devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do nº 1, do artigo 11.º e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
4 - Nestas circunstâncias, em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 11-09-2014.
5 - No dia 24 de Fevereiro de 2015, o Tribunal Arbitral, ao abrigo do art.º 16.º, alínea c) do RJAT, proferiu despacho a dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do mesmo diploma, tendo em conta, quer a circunstância do objecto do litígio respeitar fundamentalmente a matéria de direito, quer a inexistência de excepções a apreciar e a decidir, quer o entendimento que, a este propósito, se estabeleceu entre as partes, não tendo as mesmas requerido quaisquer diligências de prova autónomas, constando do processo os documentos pertinentes e mostrando-se junto aos autos o processo administrativo.
6 - O ora Requerente pretende que o presente Tribunal Arbitral:
a) - Declare a anulação das liquidações de IUC referenciadas nos autos relativas aos anos de 2009 a 2013.
b) - Declare a anulação das coimas que lhe foram aplicadas.
c) - Determine a extinção das execuções fiscais que foram instauradas para cobrança da dívida de IUC e dos demais encargos que lhe estão associados.
d) - Condene a Autoridade Tributária e Aduaneira ao reembolso dos montantes que, a título de caução, pagou, no quadro das atrás referidas execuções fiscais.
e) - Condene a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento dos juros previstos no artigo 43.º da LGT.
C - CAUSA DE PEDIR
7 - O Requerente, na fundamentação do seu pedido de pronúncia arbitral, afirma, em resumo, o seguinte:
8 - Que foi notificado de liquidações oficiosas de IUC e dos correspondentes juros compensatórios, tal como identificadas no processo, referentes aos anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013, respeitantes ao veículo com a matrícula ...-...-..., referenciado nos autos.
9 - Que, no quadro das reclamações graciosas que deduziu contra as liquidações atrás referidas e das correspondentes audições prévias, apresentou provas irrefutáveis de que aquando da exigibilidade do imposto já havia, há muito, procedido à transmissão da propriedade do veículo em questão.
10 - Que demonstrou reiteradas vezes, junto do Serviço de Finanças de Oeiras -…, que o veículo em causa foi vendido, em 08-06-2005, ao Stand B..., SA, sito na Avenida …, em Lisboa.
11 - Que a venda do veículo em causa ao Stand B..., SA está comprovada pelo recibo n.º 126, de 08-06-2005, junto aos autos.
12 - Que o mencionado veículo foi, posteriormente, vendido pelo referido Stand a um comerciante de veículos usados, conforme mencionado na factura n.º 880466, de 30-06-2005, que está integrada no processo.
13 - Que o adquirente do veículo em questão passou uma declaração ao Stand B..., SA, que está junta aos autos, na qual o mesmo assume toda e qualquer responsabilidade decorrente da aquisição da propriedade do veículo.
14 - Que o contrato de compra e venda do veículo automóvel em questão não está sujeito a forma escrita, não sendo, por outro lado, o seu registo constitutivo de direitos da propriedade do veículo.
15 - Que a compra e venda de um veículo automóvel, enquanto contrato de compra e venda que é, opera quod effectum, transmitindo-se, assim, por mero efeito do contrato.
16 - Que o registo automóvel, não tendo natureza constitutiva, traduz-se numa mera presunção de propriedade, ilidível mediante prova em contrário, como a que foi feita.
17 - Que já sofreu demasiado por causa do veículo em questão, com acções judiciais, notificações e cobrança injustificada do IUC, sendo manifesta a prova de que o mesmo foi vendido em 2005 e que o mesmo não lhe pertence, tendo ilidido a presunção resultante do registo.
18 - Que o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC consagra uma presunção legal, que à luz do disposto no art.º 73.º da LGT admite sempre prova em contrário, o que se encontra amplamente fundamentado nas decisões da Arbitragem Tributária.
19 - Que não tendo pago o IUC referente aos anos de 2009 a 2012 suportou as coimas que lhe foram aplicadas pela AT, tendo-lhe, ainda, para além disso, sido instaurados processos de execução fiscal, que, nesse quadro, o forçaram ao pagamento da quantia de €221,69.
20 - Que após ter apresentado o Pedido de Pronúncia arbitral foi notificado de uma liquidação de IUC, efectuada em 13-12-2014, relativamente ao mesmo veículo automóvel e referente ao ano de 2013.
21- Que, nessas circunstâncias, requereu a inclusão no processo da atrás referida liquidação de IUC, dado tratar-se do mesmo veículo automóvel e estarem em causa os mesmos fundamentos de facto e de direito.
D - RESPOSTA DA REQUERIDA
22 - A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira, (doravante designada por AT), apresentou a sua Resposta, em 15-10-2014, tendo, também, nessa mesma data, procedido à junção aos autos das Decisões Arbitrais proferidas no âmbito dos Processos n.ºs 63/2014-T; 150/2014-T e 220/2014-T.
23 - Na referida Resposta, a AT entende que as razões de facto e de direito invocadas pela Requerente não podem proceder, porquanto e desde logo,
24 - O legislador tributário ao determinar no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC quem são os sujeitos passivos do IUC, quis e estabeleceu expressa e intencionalmente que tais sujeitos fossem os proprietários, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
25 - Salienta que o legislador não usou a expressão “presume-se” como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”. (Cfr. art.º 10.º da Resposta)
26 - Considera que o entendimento de que o legislador consagrou uma presunção no art.º 3.º do CIUC, como entende a Requerente, seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem. (Cfr. art.ºs 16.º e 17.º da Resposta)
27 - Entende que face à redacção do art.º 3.º, n.º 1 do CIUC não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, tratando-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que para efeitos do IUC, sejam considerados proprietários aqueles que, como tal, constem do registo.
28 - Refere que o mencionado entendimento já foi adoptado pela Jurisprudência dos nossos tribunais, transcrevendo, para tanto, parte da sentença do tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, proferida no Processo nº 210/13.OBEPNF. (Cfr. art.ºs 19.º e 20.º da Resposta)
29 - Referindo-se ao elemento sistemático de interpretação, a AT considera que a solução propugnada pela Requerente é inadmissível, na medida em que não tem qualquer apoio legal, nem no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC, nem noutras nomas consagradas no referido Código.
30 - Considera, igualmente, que à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrada em todo o Código do IUC, a interpretação propugnada pela Requerente, no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário efetivo independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada, na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo, tal como consta do registo automóvel. (Cfr. art.º 39.º da Resposta)
31 - Acrescenta que o CIUC procedeu a uma reforma do regime de tributação dos veículos em Portugal, alterando de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando os sujeitos passivos do imposto a ser os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública. (Cfr. art.º 40.º da Resposta)
32 - Acrescenta que os documentos apresentados pela Requerente, sendo particulares e unilaterais têm, no âmbito do direito probatório material, um valor probatório diminuto.
33 - Considera, também, que o Tribunal Arbitral deve abster-se de conhecer do pedido formulado pela Requerente, relativo à anulação das coimas que lhe foram aplicadas, por razões inerentes à sua competência, fazendo notar que os montantes pagos por razões associadas à execução fiscal não são susceptíveis de reembolso.
34 - Entende que o pedido apresentado pela Requerente, em 02-02-2015, tendo em vista a inclusão nos autos da liquidação efectuada em 31-12-2014, referente ao mesmo veículo automóvel e relativa ao ano de 2013, carece de suporte legal.
35 - Refere, a terminar, que, face à argumentação aduzida, os actos tributários de liquidação impugnados devem ser julgados improcedentes, mantendo-se, consequentemente, na ordem jurídica, acrescentando ser incontestável que não se encontram reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros peticionados.
E - QUESTÕES DECIDENDAS
36 - Cumpre, pois, apreciar e decidir.
37 - Face ao exposto, relativamente às posições das Partes e aos argumentos apresentados, as principais questões a decidir são as de saber:
a) - Se o Tribunal Arbitral é materialmente competente para apreciar o pedido de anulação das coimas, com o consequente reembolso das correspondentes quantias pagas pela Requerente.
b) - Se o tribunal é materialmente competente para apreciar o pedido de anulação das execuções fiscais e determinar o reembolso das quantias pagas nesse contexto.
c) - Se é legalmente possível cumular, ao pedido de pronúncia arbitral, o acto de liquidação de IUC, efectuado em 13-12-2014, referente ao ano de 2013 e relativo ao mesmo veículo automóvel, com a matrícula ...-...-....
d) - Se a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção.
e) - Qual o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, particularmente para efeitos da incidência subjectiva deste imposto.
f) Se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado, embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário, para efeitos do disposto no artigo 3.º, nº. 1, do CIUC, sujeito passivo do IUC é o anterior proprietário ou o novo proprietário.
F - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
38 - O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
39 - As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).
40 - O processo não enferma de vícios que o invalidem.
41 - Tendo em conta o processo administrativo tributário, cuja cópia foi remetida pela AT, e a prova documental junta aos autos, cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, tal como se fixa nos termos abaixo mencionados, importando, porém, antes de mais, conhecer da competência do tribunal relativamente, quer ao pedido de anulação das coimas e do reembolso das quantias pagas a esse propósito, quer do pedido de anulação das execuções fiscais e do reembolso dos montantes pagos nesse contexto.
G - DA ANULAÇÃO DAS COIMAS E DAS EXECUÇÕES FISCAIS
42 - Tendo em conta, por um lado, o disposto nos artigos 97.º, 577.º, 578.º e 608.º do CPC e considerando, por outro, o disposto no artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aqui aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, importa conhecer, em primeiro lugar, a questão relacionada, quer com o pedido de reembolso das quantias pagas a título de coimas, quer com o pedido de anulação das execuções fiscais com o consequente reembolso das quantias pagas nesse contexto, na medida em que o mesmo suscita a questão de saber se o tribunal arbitral tem competência para o efeito, cujo conhecimento precede o de qualquer outra matéria.
43 - O Requerente, no seu pedido de pronúncia arbitral, para além de pedir a anulação das liquidações oficiosas de IUC e dos correspondentes juros compensatórios, tal como identificadas no processo, referentes aos anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013, respeitantes ao veículo com a matrícula ...-...-... identificado nos autos, requereu, também, a anulação das coimas que lhe foram aplicadas, bem como a anulação das execuções fiscais com o consequente reembolso das quantias pagas nesse contexto.
DAS COIMAS
44 - As coimas, enquanto sanções de natureza administrativa, não se inscrevem, desde logo, nas relações jurídico-tributárias, não sendo as quantias que lhe estão associadas confundíveis com os impostos.
45 - É sabido que a relação jurídico-tributária, como, nomeadamente, decorre do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 1.º da LGT e do art.º 30.º deste mesmo diploma, implica, para além dos sujeitos activo e passivo dessa relação, que o seu objecto respeite à liquidação e cobrança dos tributos ou à resolução dos conflitos daí decorrentes.
46 - O âmbito da competência dos tribunais arbitrais tributários comporta, justamente, as pretensões que se inscrevem na aludida relação jurídico-tributária. Estabelece, com efeito, o n.º 1 do art.º 2.º do RJAT, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que a competência dos referidos tribunais compreende: a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável e de actos de fixação de valores patrimoniais, o que evidencia a ausência de competências dos tribunais tributários para efeitos de apreciação das decisões relativas à aplicação de coimas, no quadro dos ilícitos associados ao não atempado pagamento dos impostos devidos.
47 - O que a lei manifestamente privilegiou, relativamente às competências dos tribunais arbitrais em matéria tributária, foi o julgamento de causas que nos tribunais administrativos e fiscais revestem a forma processual de impugnação judicial, em conformidade com o disposto na alínea a) do art.º 101.º da LGT e nas alíneas a) a f) do n.º 1 do art.º 97.º do CPPT, cabendo notar que, mesmo neste domínio, há limitações, como resulta, designadamente, do disposto no art.º 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março.
48- A este propósito, refere Jorge Lopes de Sousa, in Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, integrado no Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, Março, 2013, p. 105 que ficam “[…] assim, de fora da competência destes tribunais arbitrais a apreciação de litígios gerados […] em processos contraordenacionais tributários”.
49 - Assim, o pedido deduzido pela Requerente de anulação das coimas, que lhe foram aplicadas na sequência do não oportuno pagamento do IUC, não se inscreve no quadro das pretensões arbitráveis, delas não podendo conhecer este tribunal.
50 - Nestas circunstâncias, não pode este Tribunal Arbitral conhecer, ratione materiae, da invalidade das decisões relativas à aplicação das coimas em questão.
DAS EXECUÇÕES FISCAIS
51 - O Requerente, conforme documentos integrantes dos autos, procedeu, junto do Serviço de Finanças de Oeiras-…, ao pagamento da quantia de € 221,69 a título de prestação de garantia, na modalidade de caução, no âmbito dos quatro processos de execução fiscal que lhe foram instaurados, em consequência do não pagamento do IUC relativo aos actos de liquidação, referentes ao veículo com a matrícula ...-...-..., respeitantes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, requerendo no seu pedido de pronúncia arbitral o reembolso da aludida quantia.
52 - A referida quantia de € 221,69, cujo reembolso a Requerente solicita no mencionado pedido, mostra-se, em larga medida, indissociável dos referidos processos de execução fiscal, dado que parte dessa quantia, traduzida no valor de € 83,65 respeita ao IUC e aos juros compensatórios, sendo que € 75,56 desse valor é referente aos montantes associados às quatro liquidações de IUC e € 8,09, aos referidos juros compensatórios.
53 - Assim, no quadro do montante total pago pela Requerente a título de caução, no âmbito da instauração dos quatro processos de execução fiscal identificados no processo, objecto do pedido de reembolso, uma parte desse montante, a correspondente a € 138,04 não se reporta às quantias pagas no quadro da eliminação dos efeitos directamente produzidos pelos actos impugnados, pois não se trata de uma quantia que a Requerente tenha pago por força dos actos de liquidação impugnados.
54 - Os tribunais arbitrais, como atrás já se referiu, têm no cerne das suas competências o julgamento de causas que nos tribunais administrativos e fiscais revestem a forma processual de impugnação judicial, não contemplando, consequentemente, a apreciação e decisão de questões específicas dos processos de execução fiscal que tenham sido instaurados.
55 - Neste sentido, cabe, de novo, referir Jorge Lopes de Sousa, idem, quando nos diz que ficam “[…] assim, de fora da competência destes tribunais arbitrais a apreciação de litígios gerados em processos de execução fiscal […]”.
56 - Nestas circunstâncias, não pode este Tribunal Arbitral conhecer, em razão da matéria, da requerida extinção das execuções fiscais, oportunamente instauradas para cobrança da dívida de IUC e dos juros que lhe estão associados.
II - FUNDAMENTAÇÃO
H - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
57 - Em matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:
58 - O Requerente, A..., contribuinte fiscal n.º ..., foi notificado de liquidações de IUC e dos juros compensatórios que lhe estão associados, referentes aos anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013, respeitantes ao veículo com a matrícula ...-...-..., identificado nos autos.
59 - O Requerente deduziu reclamações graciosas contra as liquidações atrás referidas, as quais, por despacho da Chefe do Serviço de Finanças de Oeiras - …, foram indeferidas com o fundamento de que o “[…] IUC é devido pelo proprietário de qualquer veículo a ele sujeito, independentemente da sua circulação ou posse […] sendo, assim tributada a propriedade dos veículos e não o respectivo uso ou fruição […]”.
60 - O veículo referenciado no pedido de pronúncia arbitral foi vendido ao Stand B..., SA em 08-06-2005, conforme documentos referentes à retoma pelo aludido Stand do veículo com a matrícula ...-...-..., no âmbito da venda à Requerente do veículo Ford Focus 1.8 TDCi X-Trend
61 - O veículo com a matrícula ...-...-... foi, em 30-06-2005, vendido pelo referido Stand a C..., contribuinte n.º …, conforme consta da factura n.º 880466, de 30-06-2005, integrada no processo.
62 - O referido C..., enquanto adquirente do veículo em causa, passou uma declaração ao Stand B..., SA, que se encontra junta aos autos, na qual o mesmo assume toda e qualquer responsabilidade decorrente da aquisição da propriedade do veículo.
63 - O Requerente, como prova das mencionadas vendas e para ilidir, nomeadamente, a presunção que entende estar consagrada no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, juntou, quer quando deduziu as reclamações graciosas, quer no âmbito do presente processo, cópia dos mencionados documentos de retoma do veículo com a matrícula ...-...-... pelo Stand B..., SA e da factura n.º 880466, relativa à venda do mesmo veículo a C....
64 - Nas datas relativas aos factos geradores do imposto, e à sua exigibilidade, a que se reportam as liquidações de IUC em causa no presente processo, a propriedade do veículo em questão não pertencia ao Requerente mas sim a outras pessoas, tal como identificadas nos autos.
65 - O Requerente, após ter apresentado o Pedido de Pronúncia arbitral, foi notificado de uma liquidação de IUC, efectuada em 13-12-2014, relativamente ao mesmo veículo automóvel e referente ao ano de 2013, cuja integração nos autos solicitou por requerimento de 02-02-2015.
FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
66 - Os factos dados como provados estão baseados nos documentos mencionados, relativamente a cada um deles, na medida em que a sua adesão à realidade não foi questionada.
FACTOS NÃO PROVADOS
67 - Não existem factos dados como não provados, dado que todos os factos tidos como relevantes para a apreciação do pedido foram provados.
I - FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO
68 - A matéria de facto está fixada, importando agora proceder à sua subsunção jurídica e determinar o Direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões decidendas enunciadas no n.º 34.
69 - A questão decisiva nos presentes autos, relativamente à qual existem entendimentos absolutamente opostos entre a Requerente e a AT traduz-se em saber se a norma de incidência subjectiva constante do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC estabelece ou não uma presunção ilidível.
70 - As posições das partes são conhecidas. Com efeito, para a Requerente, a expressão “considerando-se como tais” constante do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, configura uma presunção legal ilidível, permitindo que a pessoa inscrita no registo como proprietária do veículo possa apresentar elementos de prova destinados a demonstrar que tal propriedade está inserida na esfera jurídica de outra pessoa, para quem tal propriedade foi transferida.
71 - A Requerida, por seu lado, considera não só, que a interpretação defendida pela Requerente é manifestamente errada, na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo, tal como consta do registo automóvel, mas também que o pedido apresentado pela Requerente no sentido de incluir nos autos a liquidação de IUC efectuada em 13-12-2014, relativa ao ano de 2013 e referente ao mesmo veículo automóvel, carece de suporte legal. Todavia, salvo o devido respeito, não tem razão.
Vejamos,
DA INCLUSÃO NOS AUTOS DO ACTO DE LIQUIDAÇÃO DE IUC EFECTUADO EM 13-12-2014 REFERENTE AO VEÍCULO DE MATRÍCULA ...-...-..., COM VISTA A APRECIAR DA SUA LEGALIDADE
72 - O Requerente, tal como consta no SGP, apresentou o seu Pedido de Pronúncia Arbitral em 08-07-2014, tendo sido notificado em Dezembro de 2014 da liquidação de IUC, efectuada em 13-12-2014, referente ao ano de 2013, relativamente ao veículo identificado nos autos, com a matrícula ...-...-..., cuja inclusão no processo já em curso solicitou em 02-02-2015.
73 - Importa ter em conta, desde logo, relativamente ao requerimento de cumulação de pedidos formulado pelo Requerente em 02-02-2015, o princípio da economia processual, cabendo notar o que sobre ele nos diz Manuel A. Domingues de Andrade, in Coimbra Editora - 1979 - p. 387/388, quando, a esse propósito, refere que o mesmo é “[…] uma afloração do princípio do menor esforço ou de economia de meios. Deve procurar-se o máximo resultado processual com o mínimo emprego de actividade; o máximo rendimento com o mínimo custo. Nesta conformidade deve cada processo resolver o máximo possível de litígios (economia de processos); e deve por outro lado, comportar só os actos e formalidades indispensáveis ou úteis (economia de actos e economia de formalidades)”.
74 - Sobre o aludido princípio da economia processual, relacionado com a cumulação de pedidos prevista no n.º 1 do art.º 3.º do RJAT, diz-nos Jorge Lopes de Sousa, in Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, integrado no Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, Março, 2013, p. 145, que a possibilidade da cumulação de pedidos de ilegalidade de actos tributários, que se prevê na referida norma legal, justifica-se pela “[…] economia de meios que proporcionam e por contribuírem para a uniformidade das decisões”. O mencionado autor refere também, op. cit., que a não se admitir a “[…] cumulação […] os contribuintes que fossem sujeitos passivos de tributos liquidados em vários atos pelo órgão da Administração Tributária, em situações semelhantes, teriam de pedir a declaração de ilegalidade de cada um dos atos isoladamente, apresentando em todos os pedidos a mesma fundamentação, tendo o tribunal de proferir múltiplas decisões idênticas, eventualmente, com repetição de atos de produção de prova. Por outro lado, a admissibilidade da cumulação potencia a uniformidade das decisões, assegurando a concretização do princípio constitucional da igualdade”.
75 - Importará ainda considerar, para além do referido princípio da economia processual, o princípio da simplificação que, sendo enformador da tramitação atinente aos processos de arbitragem tributária, não se mostraria, igualmente, respeitado com o indeferimento do pedido de cumulação apresentado pelo Requerente em 02-02-2015, referente ao acto de liquidação de IUC praticado em 13-12-2014, relativamente ao mesmo veículo, o qual não foi, nem podia ter sido impugnado no pedido inicial.
76 - Importa ter em conta, a propósito do referido pedido, que à cumulação de pedidos se aplicam por analogia as regras da alteração do pedido previstas no artigo 265.º CPC por inexistência de regras específicas, como se retira, designadamente do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Proc. 6475/03.9TBSTB.E1, de 07-04-2011, que no nosso caso, face ao disposto no n.º 2 do referido artigo, aplicável nos termos da alínea e) do n.º 2 do art.º 29.º do RJAT, se traduz na admissibilidade de cumulação do pedido apresentado pelo Requerente em 02-02-2015, desde que tal tenha ocorrido até ao encerramento da discussão em 1.ª instância, o que se afigura coincidir com a data do despacho arbitral que encerrou esta fase processual, o qual, no quadro do presente processo, foi proferido em 24-02-2015, pelo que o pedido em causa foi tempestivamente apresentado.
77 - Acresce que, para além desse condicionalismo temporal, o pedido em referência, tendo enquadramento quer, no art.º 104.º do CPPT, aplicável ex vi da alínea e) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT, quer no n.º 1 do art.º 3.º do RJAT, só pode ser admitido, verificadas que sejam as condições previstas nas referidas normas legais.
78 - Tais condições, como se estabelece na última das mencionadas normas, implicam que a procedência da cumulação do pedido dependa da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e na interpretação dos mesmos princípios ou regras de direito, o que se verifica no presente caso.
79 - A cumulação do pedido em questão, tem, aliás, a mesma causa de pedir; tem idênticos fundamentos de facto e de direito; o tribunal competente para a decisão é o mesmo e os tributos têm a mesma natureza, posto estarmos perante impostos especiais de consumo e, nesse âmbito, perante impostos do mesmo tipo.
80 - Nestas circunstâncias, considera-se que nada obsta à requerida cumulação de pedidos, apreciando-se, assim, conjuntamente, os quatro actos de liquidação de IUC inicialmente peticionados no Pedido de Pronúncia Arbitral, com o acto de liquidação de IUC praticado em 13-12-2014, relativo ao ano de 2013 e referente ao mesmo veículo com a matrícula ...-...-..., o qual o Requerente não podia inscrever no referido Pedido, pela razão simples que dele não tinha, nem podia ter, então, conhecimento.
DA INTERPRETAÇÃO DO ART.º 3.º, N.º 1 DO CIUC, TENDO EM VISTA A IDENTIFICAÇÃO DO SUJEITO PASSIVO DO IUC E DO VALOR JURÍDICO DO REGISTO AUTOMÓVEL
J - INTERPRETAÇÃO DA NORMA DE INCIDÊNCIA SUBJECTIVA CONSTANTE DO N.º 1 DO ARTIGO 3.º DO CIUC
81 - Importará notar, antes de mais, ser pacífico o entendimento, na doutrina, de que na interpretação das leis fiscais valem plenamente os princípios gerais de interpretação. Trata-se de um entendimento que tem, aliás, acolhimento no artigo 11.º da Lei Geral Tributária.
82 - É comummente aceite que, tendo em vista a apreensão do sentido da lei, a interpretação socorre-se de diversos meios, importando, em primeiro lugar, reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, o que significa, procurar, desde logo, o seu sentido literal. O referido sentido, como também é pacífico, corresponde ao grau mais baixo da actividade interpretativa, importando, por isso, valorá-lo e aferi-lo à luz de outros critérios, intervindo, a esse propósito, os designados elementos de natureza lógica, sejam de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica.
83 - A propósito da interpretação da lei fiscal, cabe lembrar, como, aliás, a jurisprudência vem assinalando, nomeadamente nos Acórdãos do STA de 05/09/2012 e de 06/02/2013, processos nºs 0314/12 e 01000/12, respectivamente, disponíveis em: www.dgsi.pt, a importância do disposto no artigo 9.º do Código Civil (CC), enquanto preceito fundamental da hermenêutica jurídica, que, neste quadro, não pode deixar de considerar-se.
84 - A actividade interpretativa não é, pois, contornável na resolução das dúvidas suscitadas pela aplicação das normas jurídicas em causa.
85 - No entender de FRANCESCO FERRARA, in Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de MANUEL DE ANDRADE, (2.ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, p. 131, a referida actividade interpretativa “[…] é única [e] complexa, de natureza lógica e prática, pois consiste em induzir de certas circunstâncias a vontade legislativa”, acrescentando, ibidem, p.130, que “Mirando à aplicação prática do direito, a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.
86 - A finalidade da interpretação, diz-nos também o referido autor, ibidem, pp. 134/135, é “[…] determinar o sentido objectivo da lei […]”. A lei, sendo a expressão da vontade do Estado, é uma “[…] vontade que persiste de modo autónomo, destacada do complexo dos pensamentos e das tendências que animaram as pessoas que contribuíram para a sua emanação”. Daí que a actividade do interprete deva ser a de “[…] buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objectivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris”.
87 - Para MANUEL DE ANDRADE, citando FERRARA, in Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, p. 16 (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, “A interpretação procura a voluntas legis, não a voluntas legislatoris […], e procura a vontade actual da lei, não a sua vontade no momento da aplicação: não se trata, pois, de uma vontade do passado, mas de uma vontade sempre presente enquanto a lei não cessa de vigorar. É dizer que a lei, uma vez formada, se destaca do legislador, ganhando consistência autónoma; e, mais do que isso, torna-se entidade viva, que não apenas corpo inanimado […]”.
DO ELEMENTO LITERAL
88 - É neste enquadramento que importará encontrar resposta para as questões decidendas, particularmente para a que visa saber se o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção, começando, desde logo, pelo elemento literal.
89 - Sendo o elemento literal o primeiro que importa utilizar, em busca do pensamento legislativo, é, necessariamente, por aí que se deverá começar, procurando alcançar o sentido da expressão considerando-se como tais as pessoas inscritas no referido artigo 3.º, n.º 1 do CIUC.
90 - Dispõe o n.º 1 do referido artigo 3.º do CIUC que “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.” (sublinhado nosso)
91 - A formulação usada no referido artigo, importará notá-lo, antes de mais, socorre-se da expressão “considerando-se”, o que suscita a questão de saber se, a tal expressão, pode ser atribuído um sentido presuntivo, equiparando-se, assim, à expressão “presumindo-se”. Trata-se de expressões frequentemente utilizadas com sentidos equivalentes, como é patente em diversas situações do ordenamento jurídico português.
92 - Na verdade, são imensas as normas que consagram presunções, conjugando, para o efeito, aliás, o verbo considerar de diversas formas. Não é, pois, difícil identificar situações, em diversas áreas do direito, em que se utiliza a expressão “considerando-se” ou “considera-se” com sentido equivalente à expressão “presumindo-se” ou “presume-se”, expressões a que, seja ao nível das presunções inilidíveis, seja no quadro das presunções ilidíveis, é conferido, imensas vezes, um significado equivalente.
93 - Não se afigurando pertinente voltar a referenciar exemplos reveladores dessas situações, dado que tais exemplos estão abundantemente enunciados nalgumas das decisões dos tribunais arbitrais tributários, de que são exemplo as proferidas no quadro dos Processos nºs 14/2013 - T, 27/2013 - T e 73/2013 - T, damos aqui os mesmos por inteiramente reproduzidos.
94 - Nestas circunstâncias, sendo as mencionadas expressões recorrentemente usadas com um propósito e significado equivalentes, pode concluir-se não ser apenas o uso do verbo “presumir” que nos coloca perante uma presunção, mas também o uso de outros termos podem servir de base a presunções, como, designadamente, ocorre com a expressão “considerando-se”, o que, em nosso entender, será justamente o que se verifica no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC.
Trata-se, assim, de um entendimento que, não se afigurando corresponder a uma enviesada leitura da letra da lei, como considera a AT, se revela em sintonia com o disposto no n.º 2 do art.º 9.º do CC, na medida em que assegura, ao pensamento legislativo, o mínimo de correspondência verbal aí exigido.
95 - Na perspectiva literal, face ao que se deixa exposto, dúvidas não há de que a interpretação que considera estabelecida uma presunção ilidível no n.º 1 do art.º 3.º tem total respaldo na formulação aí consagrada, face à mencionada equivalência entre a expressão “considerando-se como tais” e a expressão “presumindo-se como tais”.
O elemento linguístico, como atrás se referiu, sendo o primeiro que deve ser utilizado em busca do pensamento legislativo, deve, porém, a fim de se encontrar o verdadeiro sentido da norma, ser submetido ao controlo dos demais elementos de interpretação de natureza lógica. (sejam tais elementos de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica).
96 - Com efeito, como se retira da obra de MANUEL DE ANDRADE, atrás citada, p. 28, “[…] a análise puramente linguística dum texto legal é apenas o começo […], o primeiro grau […] ou o primeiro acto da interpretação. Por outras palavras, só nos fornece o provável pensamento e vontade legislativa […] ou, melhor, a delimitação gramatical da possível consistência da lei […], o quadro dentro do qual reside o seu verdadeiro conteúdo”.
97 - Assim sendo, vejamos, então o elemento racional (ou teleológico).
DO ELEMENTO HISTÓRICO E RACIONAL (OU TELEOLÓGICO)
98 - Atendendo aos elementos de interpretação de pendor histórico, cabe, desde logo, lembrar o que, expressamente, vem exarado na exposição de motivos da Proposta de Lei N.º 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei n.º 22-A/2007 de 29/06, quando aí se refere que a reforma da tributação automóvel é concretizada por via da deslocação de parte da carga fiscal do momento da aquisição dos veículos para a fase de circulação e visa “formar um todo coerente” que, embora destinado à angariação de receita pública, pretende que a mesma seja angariada na “medida dos custos ambientais que cada indivíduo provoca à comunidade”, acrescentando-se, a propósito do imposto em causa e dos diferentes tipos e categorias de veículos, que “como elemento estruturante e unificador […] consagra-se o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”.
99 - Neste quadro, parece claro que a lógica e racionalidade do novo sistema de tributação automóvel só poderá conviver com um sujeito passivo do imposto, no pressuposto de ser esse, e não outro, o real e efectivo sujeito causador dos danos viários e ambientais, tal como decorre do princípio da equivalência, inscrito no art.º 1.º do CIUC.
100 - O referido princípio da equivalência, que informa o actual Imposto Único de Circulação, tem, ao menos na parte em que especificamente respeita ao ambiente, subjacente o princípio do poluidor - pagador, e concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar. O referido princípio tem, aliás, de algum modo, assento constitucional, na medida em que representa um corolário do disposto na alínea h) do n.º 2 do art.º 66.º da Constituição.
101- O que se visa alcançar por via do referido princípio é internalizar as externalidades ambientais negativas, o que, afinal, no caso dos autos, mais não significa do que fazer com que os prejuízos que advêm para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus proprietários, enquanto sujeitos “económico - utilizadores”, como custos que só eles deverão suportar.
102 - Regressando ao mencionado princípio da equivalência, dir-se-á que o mesmo tem, na economia do CIUC, um papel absolutamente estruturante, nele se alicerçando o edifício normativo do Código em questão. O referido princípio não pode, pois, deixar de constituir um fim que se pretende legalmente prosseguir, corporizando, nessa medida, uma luz de assinalável fulgor que, constante e continuadamente, não pode deixar de iluminar o caminho do intérprete.
103 - Relativamente ao referido princípio, cabe notar o que nos diz Sérgio Vasques, quando, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, Coimbra, 2001, p. 122, a propósito da concretização técnica desse princípio considera que “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve corresponder ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública; ou ao custo que o contribuinte imputa à colectividade pela sua própria actividade”.
104 - Abordando especificamente o IUC, acrescenta o mencionado autor, op. cit., que ”Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também”, acrescentando que a concretização do dito princípio “[…] dita outras exigências ainda no tocante à incidência subjectiva do imposto […]”.
105 - Face ao que vem de referir-se, resulta claro que a tributação dos reais e efectivos poluidores corresponde a um importante fim visado pela lei, no caso pelo CIUC, fim que, no dizer de Francesco Ferrara, in Interpretação e Aplicação das Leis, 2ª Edição, Arménio Amado, Editor, Sucessor, Coimbra, 1963, p. 130, deve estar sempre diante dos olhos do jurista, dado que, como o mencionado autor aí refere, “[…] a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.
106 - Assim, deve notar-se que, seja face aos referidos elementos históricos, seja à luz dos elementos de carácter racional ou teleológico de interpretação que se deixam referenciados, impõe-se, igualmente, concluir que o n.º 1 do art.º 3.º do CIUC só poderá consagrar uma presunção ilidível.
107 - Caberá ainda considerar o elemento sistemático de interpretação.
DO ELEMENTO SISTEMÁTICO
108 - Sobre o elemento sistemático diz-nos BAPTISTA MACHADO, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183, que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico”.
109 - É sabido que um princípio jurídico, no caso o princípio da equivalência, não existe isoladamente, antes está ligado por um nexo íntimo com outros princípios que integram, ao nível mais global, o respectivo ordenamento jurídico, no caso, com os demais princípios corporizados no sistema inscrito no CIUC. Nesse sentido, cada artigo de um dado diploma legal, no caso do CIUC, só será compreensível se o situarmos perante os demais artigos que o seguem ou antecedem.
110 - No que à sistematização do CIUC diz respeito, as preocupações de ordem ambiental foram determinantes para que o mencionado princípio da equivalência fosse, desde logo, inscrito no primeiro artigo do referido Código, o que, necessariamente conduz a que os artigos subsequentes, na medida em que têm assentamento em tal princípio, sejam por ele influenciados. Foi o que ocorreu, designadamente, com a base tributável, que passou a ser constituída por diversos elementos, particularmente pelos respeitantes aos níveis de poluição, e com as taxas do imposto, estabelecidas nos artigos 9.º a 15.º, que foram influenciadas pela componente ambiental, e, naturalmente, também com a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º do CIUC, que não poderá furtar-se à influência referida.
111 - O elemento sistemático de interpretação e a interacção entre os diversos artigos e princípios que integram o sistema inscrito no CIUC, apelam também ao entendimento de que o estabelecido no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC não pode deixar de consubstanciar uma presunção.
112 - Dispõe o n.º 1 do art.º 9.º do CC que a procura do pensamento legislativo deverá ter “[…] sobretudo em conta […] a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, circunstâncias e condições essas, que, hoje mais do que nunca, são de sensibilidade pelo ambiente e de respeito pelas questões com ele relacionadas.
Neste contexto, as considerações formuladas sobre os mencionados elementos de interpretação, sejam de carácter literal ou de pendor histórico, sejam de natureza racional ou sistemática, apontam no sentido de que o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, estabelece uma presunção, ou seja, a ratio legis dessa norma, enquanto razão ou fim que razoavelmente lhe deve ser atribuído, não pode deixar de perspectivar a expressão “considerando-se como tais”, utilizada no referido artigo, como reveladora do estabelecimento de uma presunção, o que significa que os sujeitos passivos do IUC sendo, em princípio, os proprietários dos veículos, considerando-se, como tais, as pessoas em nome dos quais os mesmos se encontrem registados, poderão, a final, ser outros.
Dir-se-á, aliás, que o estabelecimento da presunção na mencionada norma corresponderá à única interpretação que se coaduna com o princípio da equivalência, atrás mencionado.
113 - Ainda a propósito da presunção que vem sendo referida e que se entende estar consagrada no n.º 1 do art.º 3.º, do CIUC, cabe notar o que vem escrito no preâmbulo do recém-publicado Decreto-Lei n.º 177/2014, de 15 de Dezembro, quando, referindo-se aos veículos automóveis, considera que “A não regularização do registo de propriedade apresenta graves consequências, quer para quem permaneceu proprietário no registo, quer para quem adquiriu e não promoveu o registo a seu favor, como também para as diversas entidades públicas que assentam as suas decisões sobre titularidades que presumem ser substantivamente verdadeiras”. (sublinhado nosso)
114 - Aqui chegados, cabe lembrar o disposto no art.º 73.º da LGT, quando estabelece que “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”, (sublinhado nosso), o que significa que a presunção legal, que se afigura estar estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, será necessariamente ilidível.
115 - Neste quadro, os sujeitos passivos do imposto são, presumivelmente, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, ou seja, os referidos sujeitos passivos são, em princípio, e apenas em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados.
116 - Com efeito, se o proprietário em nome do qual o veículo se encontra registado, vier, como ocorre no presente processo, indicar e provar quem eram os proprietários dos veículos em causa, nada justifica, em nosso entendimento, que o anterior proprietário seja responsabilizado pelo pagamento do IUC que for devido.
117 - Acresce, ser esta interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC a que, em nossa opinião, melhor se ajusta aos princípios a que a AT deve subordinar a sua actividade, nomeadamente ao princípio do inquisitório, em ordem à descoberta da verdade material.
118 - A propósito do referido princípio do inquisitório, cabe aludir aos ensinamentos de Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488/489, quando, em anotações ao citado art.º 58.º, referem que cabe à administração um papel dinâmico na recolha dos elementos com relevância para a decisão, acrescentando que a “[…] falta de diligências reputadas necessárias para a construção da base fáctica da decisão afectará esta não só na hipótese de serem obrigatórias (violação do princípio da igualdade), mas também se a materialidade dos factos considerados não estiver comprovada ou se faltarem, nessa base, factos relevantes, alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a Administração deveria ter colhido […]”.
O princípio do inquisitório, acrescentam os referidos autores, op. cit, “[…] tem a ver com os poderes (-deveres) de a Administração proceder às investigações necessárias ao conhecimento dos factos essenciais ou determinantes para a decisão […]”.
119 - A verdade material, consubstanciada, no presente caso, na circunstância da propriedade do veículo, identificado no pedido de pronúncia arbitral, ter sido alienada pelo Requerente em momento anterior ao da exigibilidade do imposto, ou seja, à data a partir da qual o credor tributário podia fazer valer, perante o devedor, o seu direito ao pagamento do imposto, era, face aos elementos inscritos no processo administrativo, do conhecimento da AT.
L - DA AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE DO VEÍCULO E DO VALOR DO REGISTO
120 - Antes de mais, deve acrescentar-se, face ao que adiante, explicitamente, se dirá sobre o valor do registo, que os adquirentes dos veículos tornam-se proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, com registo ou sem ele.
121 - São três os artigos do Código Civil que importa ter em conta, a propósito da aquisição da propriedade de um veículo automóvel. São eles, desde logo, o art.º 874.º, que estabelece a noção de contrato de compra e venda, como sendo “[…] o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”; o art.º 879.º, em cuja alínea a) se estatui, como efeitos essenciais do contrato de compra e venda, “a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito” e o art.º 408.º, que tem por epígrafe os contratos com eficácia real, e estabelece no seu n.º 1, que “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”. (sublinhado nosso)
Estamos, com efeito, no domínio dos contratos com eficácia real, o que significa que a sua celebração provoca a transmissão de direitos reais, no caso, veículos automóveis, determinada por mero efeito do contrato, como decorre expressamente da norma anteriormente mencionada.
122 - A propósito dos referidos contratos com eficácia real, cabe notar os ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela, quando, em anotações ao art.º 408.º do CC, nos dizem que “Destes contratos ditos reais (quoad effectum), por terem como efeito imediato a constituição, modificação ou extinção dum direito real (e não apenas as obrigações tendentes a esse resultado) distinguem-se os chamados contratos reais (quoad constitutionem), que exigem a entrega da coisa como elemento da sua formação (cfr. arts. 1129.º, 1142.º e 1185.º) ”.
Estamos, assim, perante contratos em que a propriedade da coisa vendida se transfere, sem mais, do vendedor para o comprador, tendo, como causa, o próprio contrato.
123 - Também da jurisprudência, designadamente do Acórdão do STJ n.º 03B4369 de 19/02/2004, disponível em: www.dgsi.pt, se retira que, face ao disposto no art.º 408.º, n.º 1, do C. Civil, "a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei". É o caso do contrato de compra e venda de veículo automóvel (art.ºs 874.° e 879.º al. a) do C. Civil), o qual não depende de qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal - conf. Ac do STJ de 3-3-98, in CJSTJ, 1998, ano VI, Tomo I, pág. 117”. (sublinhado nosso)
124 - Tendo o contrato de compra e venda, face ao que se deixa referido, natureza real, com as mencionadas consequências, há que considerar, também, o valor jurídico do registo automóvel objecto desse contrato, na medida em que a transação do referido bem está sujeita a registo público.
125 - Estabelece, com efeito, o n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, relativo ao registo de veículos automóveis, que “O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. (sublinhado nosso)
126 - Ficando claro, face à referida norma, qual a finalidade do registo, não há, porém, clareza, no âmbito do referido Decreto-lei, sobre o valor jurídico desse registo, importando considerar o artigo 29.º do mencionado diploma legal, relativo ao registo de propriedade automóvel, quando aí se dispõe que “São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, […]”. (sublinhado nosso)
127 - Neste quadro, para que possamos alcançar o procurado conhecimento sobre o valor jurídico do registo de propriedade automóvel, importa ter em conta o que se estabelece no Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 06 de Julho, quando dispõe no seu artigo 7.º que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define”. (sublinhado nosso)
128 - A conjugação do disposto nos artigos atrás mencionados, particularmente o estabelecido no n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e no art.º 7.º do Código do Registo Predial, permite considerar, por um lado, que a função fundamental do registo é a de dar publicidade à situação jurídica dos veículos, permitindo, por outro lado, presumir que o direito existe e que tal direito pertence ao titular em prol de quem o mesmo está registado, nos precisos termos em que está definido no registo.
129 - Assim, o registo definitivo mais não constitui do que a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos exactos termos do registo, mas presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo, a este propósito, ver-se, entre outros, os Acórdãos do STJ nºs 03B4369 e 07B4528, respectivamente, de 19/02/2004 e 29/01/2008, disponíveis em: www.dgsi.pt.
130 - A função legalmente reservada ao registo é, assim, por um lado, a de publicitar a situação jurídica dos bens, no caso, dos veículos e, por outro lado, permitir-nos presumir que existe o direito sobre esses veículos e que o mesmo pertence ao titular, como tal inscrito no registo, o que significa que o registo não tem uma natureza constitutiva do direito de propriedade, mas apenas declarativa, daí que o registo não constitua condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador.
131 - Assim, se os compradores dos veículos, enquanto seus “novos” proprietários, não promoverem, desde logo, o adequado registo do seu direito, presume-se, para efeitos do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC e do disposto no art.º 7.º do Código do Registo Predial, que os veículos continuam a ser propriedade da pessoa que os vendeu e que no registo se mantém seu proprietário, sendo essa pessoa o sujeito passivo do imposto, na certeza, porém, que tais presunções são ilidíveis, seja por força do estabelecido no n.º 2 do art.º 350.º do CC, seja à luz do disposto no art.º 73.º da LGT. Daí que, a partir do momento em que se afastem as presunções em causa, mediante prova da respectiva venda, a AT não poderá persistir em considerar como sujeito passivo do IUC o vendedor do veículo, que, no registo, continua a constar como seu proprietário.
M - DOS MEIOS DE PROVA APRESENTADOS
132 - Não sendo legalmente exigível a forma escrita para o contrato de compra e venda de veículos automóveis, a prova da venda correspondente poderá fazer-se por qualquer meio, nomeadamente por via documental, nesta se incluindo, designadamente, as facturas relativas às vendas dos veículos.
133 - Como meio de prova de que procedeu à venda do veículo com a matrícula ...-...-..., identificado no presente processo, em data anterior à da exigibilidade do imposto, o Requerente juntou não só, cópias dos documentos da retoma do veículo em causa pelo Stand B..., SA, com data de 08-06-2005, mas também da factura n.º 880466, relativa à venda do mesmo veículo, efectuada em 30-06-2005, pelo referido Stand B..., SA a C....
134 - Sobre o valor das facturas e de outros documentos capazes de provar as vendas referentes a veículos automóveis, cabe lembrar o disposto no Decreto-Lei n.º 177/2014, de 15 de Dezembro, especialmente o estabelecido no n.º 2 do seu artigo 2.º, no qual, designadamente, se consideram as “facturas […] ou outros documentos de quitação, dos quais conste a matrícula do veículo, o nome e a morada do vendedor e do comprador” como documentos adequados a fazer prova da venda de veículos.
135 - Os documentos de retoma do veículo com a matrícula ...-...-... emitidos, em 08-06-2005, pelo Stand B..., SA, conjugados com a factura n.º 880466 de 30-06-2005, igualmente, emitida pelo referido Stand referente à venda subsequente do dito veículo a C..., não consentem dúvidas de que o Requerente procedeu à efectiva transmissão da propriedade do veículo em 08-06-2005.
136 - Assim, face à presunção de veracidade que no n.º 1 do art.º 75.º da LGT é conferida aos factos inscritos nos aludidos documentos e sendo a transmissão do veículo aos seus adquirentes tida como verdadeira, caberia à AT, face ao disposto no art.º 75.º, n.º 2 da LGT, no quadro das fundadas e objectivas razões que tivesse, demonstrar que tais vendas, na realidade, não ocorreram.
137 - A presunção estabelecida no atrás referido art.º 75.º, n.º 1 da LGT, quando estatui que os referidos documentos gozam da presunção de veracidade, implica, com efeito, que se não for demonstrada pela AT a ausência de correspondência entre o teor de tais documentos e a realidade, como não foi, o seu conteúdo deva considerar-se verdadeiro.
138 - Os documentos apresentados pela Requerente, enquanto meios destinados a fazer prova da transacção do veículo em causa, gozando, assim, da mencionada presunção de veracidade, afiguram-se com idoneidade bastante, em ordem à demonstração da venda do veículo com a matrícula ...-...-..., constituindo, a nosso ver, um meio de prova adequado e capaz de ilidir a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC.
139 - Face ao que vem de referir-se, e tendo em conta, quer a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, quer a transferência de propriedade do veículo em questão, por mero efeito do contrato, antes da data da exigibilidade do imposto, quer o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, os actos tributários em crise, não podem merecer o nosso acordo, seja porque não se teve em conta uma adequada interpretação e aplicação das normas legais de incidência subjectiva, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de direito, seja porque os referidos actos assentaram numa matéria de facto, claramente divergente da efectiva realidade, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de facto.
140 - Nestas circunstâncias, tendo em conta, por um lado, que a presunção consagrada no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC foi ilidida e que, por outro, a propriedade do veículo em questão foi transmitida em data anterior às datas da exigibilidade do imposto, temos que, face ao disposto no n.º 3 do artigo 6.º, conjugado com o n.º 2 do artigo 4.º, ambos do CIUC, a Requerente não era sujeito passivo do imposto em questão.
141 - A AT, quando entende que o sujeito passivos do IUC é, em definitivo, a pessoa em nome de quem o veículo automóvel se encontra registado, sem considerar que o art.º 3.º, n.º 1 do CIUC consubstancia uma presunção, nem tendo em conta os elementos probatórios que lhe foram apresentados, como resulta do processo administrativo, está a proceder à liquidação ilegal do IUC, assente na errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjectiva do Imposto Único de Circulação, constantes do referido art.º 3.º do CIUC, seja ao nível da previsão, seja da estatuição, o que configura a prática de um acto tributário falho de legalidade por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que determina a anulação dos correspondentes actos tributários, por violação de lei.
N - REEMBOLSO DO MONTANTE PAGO E JUROS INDEMNIZATÓRIOS
142 - Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 24º do RJAT, e em conformidade com o que aí se estabelece, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - “Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.” (sublinhado nosso)
143 - Trata-se de comandos legais que se encontram em total sintonia com o disposto no art.º 100.º da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT, no qual se estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.” (sublinhado nosso)
144 - O caso constante nos presentes autos, suscita a manifesta aplicação das mencionadas normas, posto que na sequência da ilegalidade dos actos de liquidação, referenciados neste processo, terá, por força dessas normas, de haver lugar ao reembolso dos montantes pagos, quer a título de imposto, quer de juros compensatórios, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, montantes esses que no caso dos autos se concretizam no valor de € 83,65, sendo que € 75,56 desse valor é referente aos montantes associados às quatro liquidações de IUC e € 8,09, aos referidos juros compensatórios.
145 - Quanto aos juros indemnizatórios, afigura-se manifesto, que, face ao estabelecido no artigo 61.º do CPPT e preenchidos que estão os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no n.º 1 do art.º 43.º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de € 83,65.
CONCLUSÃO
146 - No quadro circunstancial que se tem vindo a referir, a AT, ao praticar os actos de liquidação em causa no presente processo, fundados na ideia de que o artigo 3.º, nº.1, do CIUC não consagra uma presunção ilidível, faz errada interpretação e aplicação desta norma, cometendo um erro sobre os pressupostos de direito, o que constitui violação de lei.
147 - Por outro lado, porque a AT, à data da ocorrência dos factos tributários, considerou o Requerente proprietário do veículo referenciado no presente processo, considerando-o, como tal, sujeito passivo do imposto, quando tal propriedade, relativamente ao veículo em questão, já não estava inscrita na sua esfera jurídica, baseando-se, assim, em matéria de facto divergente da efectiva realidade, comete um erro sobre os pressupostos de facto, e portanto de violação de lei.
III - DECISÃO
148 - Destarte, atento a todo o exposto, este Tribunal Arbitral decide:
- Julgar procedente, por provado, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de pronúncia arbitral no que concerne à anulação dos actos de liquidação de IUC, respeitantes ao veículo identificado nos autos, referentes aos anos de 2009; 2010; 2011; 2012 e 2013;
- Anular, consequentemente, os actos de liquidação de IUC, referentes aos anos de 2009, 2010; 2011; 2012 e 2013 respeitantes ao veículo atrás mencionado;
- Condenar a AT ao reembolso da quantia de € 83,65, referente ao IUC e aos juros compensatórios que foram pagos, respeitantes aos anos de 2009; 2010; 2011 e 2012 e ao pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde a data do pagamento da referida quantia, até ao integral reembolso da mesma;
- Condenar a AT a pagar as custas do presente processo.
VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, nº 2 do CPC (ex-315.º, nº 2) e 97.º - A, n.º 1 do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 221,60.
CUSTAS
De harmonia com o disposto no artigo 12.º, n.º 2, in fine, no art.º 22.º, nº 4, ambos do RJAT, e no art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I, que a este está anexa, fixa-se o montante das custas totais em € 306,00.
Notifique-se.
Lisboa, 10 de Março de 2015
O Árbitro
António Correia Valente
(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (ex-138.º, n.º 5), aplicável por remissão do artigo 29.º n.º 1 alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)