Decisão Arbitral
1 - Relatório
1. A "A... S.A ". (doravante designada por "Requerente” ou "A..."), na qualidade de sociedade incorporante de "B... S.A." (doravante ”U.."). apresentou no dia 6 de Janeiro de 2014 um pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos arts. 2.°. n.°1. al. a), e 10º. do Decreto-Lei n.°10/2011. de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem cm Matéria Tributária, doravante "RJAT").
2. A Requerente pede pronúncia com vista à declaração de ilegalidade da liquidação de Imposto do Selo (doravante "IS") emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante "AT" ou "Requerida"), em 29 de Agosto de 2013. com o n.°2013 .... referente ao período de tributação de Agosto. Setembro e Outubro de 2009, no valor total de €332.815.61.
3. Adicionalmente. a Requerente invoca a caducidade do direito à liquidação respeitante ao mês de Agosto de 2009, por esgotamento do prazo de 4 anos previsto no art. 45.° da LGT.
4. Em 7 de Março de 2014 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Colectivo.
5. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos arts. 2.°. n.°1. alínea a). 5º, 6°. n.°1. e 11°. n.°1. do RJAT (com a redacção introduzida pelo art. 228º da lei n° 66-B/2012, de 31 de Dezembro).
6. Nos termos do art. 17º, nº 1 do RJAT, foi a AT citada em 7 de Março de 2014, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos e para os efeitos do mencionado artigo. A AT apresentou a sua resposta em 8 de Abril de 2014, juntando o processo administrativo, sustentando a extinção da instância quanto à parte revogada dos actos de liquidação, por reconhecimento da existência de uma caducidade do direito à liquidação respeitante ao mês de Agosto de 2009 (nos termos do art. 277.° alínea e), do Código de Processo Civil, ex vi art. 29º n.° 1. alínea e), do RJAT e, quanto ao restante, argumentando, em síntese, a total improcedência do pedido da Requerente. A Requerente solicitou alegações orais, mas o Tribunal, cm Despachos ele 18 e 21 de Abril de 2014. informou não vislumbrar necessidade de tais alegações, dispensando, portanto, a realização da reunião prevista no art. 18." do RJA 1. que foi substituída pela apresentação, pelas partes, de alegações escritas.
7. A Requerente solicitou alegações orais, mas o Tribunal, em Despachos de 18 e 21 de Abril de 2014, informou não vislumbrar necessidade de tais alegações, dispensando, portanto, a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, que foi substituída pela apresentação, pelas partes, de alegações escritas.
8. As alegações escritas foram apresentadas a 5 de Maio de 2014 pela Requerente e a 13 de Maio de 2014 pela Requerida.
9. Foi designada a data de 31 de Julho de 2014 para a prolação da decisão arbitral.
10. O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões, prévias ou subsequentes, que obstem à apreciação do mérito da causa, mostrando-se reunidas as condições para ser proferida decisão final.
11. A Requerida procedeu à designação dos seus Representantes nos autos c a Requerente juntou procuração com ratificação do processado, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
12. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias c têm legitimidade, nos termos dos arts. 4.° e 10.°. n.°2, do RJAT e art. lº da Portaria n.°112-A/2011 de 22 de Março.
II - Fundamentação: a matéria de facto
II.A. Factos que se consideram provados
a) A A... detinha, à data dos factos relevantes, a totalidade do capital social da B...
b) Em 9 de Dezembro de 2002 foi celebrado, entre a A... e a B... um contrato-promessa de compra e venda de 10.000.000 de acções representativas do capital social da Requerente, e respectivos suprimentos.
c) Não obstante o contrato prometido poder ser celebrado até 31 de Dezembro de 2003, o preço total das acções (€277.230.000.00) foi pago logo no momento da celebração do contrato-promessa, ficando aprazado para o momento da celebração do contrato prometido o pagamento do valor dos suprimentos.
d) Foi convencionado que o incumprimento do contrato-promessa acarretaria, para lá da restituição do preço pago, o pagamento adicional de uma "comissão de imobilização", calculada como um juro.
e) Em sucessivos aditamentos ao contrato-promessa foi acordado o adiamento do prazo para celebração do contrato prometido e. num dos aditamentos, reduziu-se o seu objecto (de 10.000.000 para 8.500.000 acções, o que envolveu a imediata restituição, da A... à B... de €41.584.500.00).
f) Esses adiamentos prolongaram-se até 2009, e em cada ano determinaram o pagamento, da A... à B... da "comissão de imobilização", agora reportada aos remanescentes € 235.645.500.00 do valor do contrato prometido.
g) Em 31 de Outubro de 2009 a B... foi incorporada, por fusão, na sociedade ora Requerente.
h) A transferência definitiva de acções representativas do capital social da Requerente, a ocorrer por força do contrato prometido entre a A... e a B... deixava de poder ter lugar, visto a promissária / adquirente ser agora a própria Requerente, tratando-se por isso, no objecto do contrato prometido, de aquisição de acções próprias, vedada por lei.
i) A A... não pagou à B... a "comissão de imobilização" correspondente aos meses de Janeiro a Outubro de 2009, até ao momento da incorporação por fusão, da B... na sociedade ora Requerente - e isso não obstante não ter restituído, nesse mesmo período, o aludido remanescente de €235.645.500.00 ainda devido pela primeira à segunda outorgante do contrato promessa.
j) Já na pendência do presente processo, a AT procedeu à revogação parcial do acto de liquidação de IS e respectiva liquidação de juros compensatórios, tudo respeitante a Agosto de 2009, num valor de €112.461.13, remanescendo o valor de €220.354.48.
II.B. Factos que se consideram não provados
Não há factos não provados com interesse para a decisão da causa.
II.C. Fundamentação da matéria de facto provada
a) Os factos dados como provados resultam da matéria documentalmente provada nos autos, cuja autenticidade e correspondência à realidade não foram questionadas.
b) Dado que foi a própria Requerente a asseverar que "a discussão centra-se apenas nas questões de direito'' e a negar que existisse "qualquer divergência (pelo menos explícita) entre a Impugnante e a Administração Tributária sobre a factualidade relevante para a boa decisão da presente impugnação" (art. 6.º do Requerimento Inicial, doravante "R.I.”), entendimento que a Requerida igualmente perfilhou (arts. 118.º a 120.° da Resposta da Requerida, doravante "Resposta AT"), entendeu o Tribunal dispensar a produção de prova testemunhal, solicitada pela Requerente, por não se vislumbrar que matérias poderiam ser esclarecidas com essa prova, que não resultassem já da prova documental.
c) Nas alegações apresentadas a 5 de Maio de 2014 pela Requerente (doravante, "Alegações da Requerente"), refere-se que a prova testemunhal versaria sobre "o intuito subjacente à celebração do contrato promessa" e versaria sobre "contabilização", sustentando-se que essa prova testemunhal seria "imprescindível à descoberta da verdade material" (pontos 1 a 3 das Alegações da Requerente).
d) No entanto, nem questões de contabilização nem questões de intuito subjacente à celebração do contrato promessa se afiguram serem controvertidas - como o confirma a própria Requerida (ponto 6 das Alegações da Requerida, doravante "Alegações da AT") -, concentrando-se a controvérsia exclusivamente em juízos de Direito e em argumentos jurídicos, reportados embora, como é óbvio, ao plano da verdade material dos factos.
III - Fundamentação: a matéria de Direito
III.A. Posição da Requerente
a) A Requerente sustenta que o acto de liquidação é ilegal, por não-verificação do facto sobre o qual recairia o IS, nomeadamente a utilização de crédito pela A..., alegadamente concedido pela B... durante o período de referência, e isto por três razões:
1. Um pagamento de preço adiantado não se converte cm "utilização do credito" para eleitos da aplicação da verba 17.1 da Tabela Geral do IS (doravante. "TGIS");
2. Nem sequer foi invocada qualquer disposição anti-abuso que permitisse configurar uma tal conversão entre figuras jurídicas:
3. A haver "utilização de crédito", ela teria ocorrido logo desde o final de 2003, estando caducado por isso o direito de liquidar o IS (arts. 39º segs. do R.I.).
b) A Requerente rejeita que tenha havido qualquer "intuito fiscal" subjacente ao desenho contratual estabelecido entre a A... e a B... porque, alega, bastaria, para efeitos de isenção de IS, que celebrasse "contratos de gestão de tesouraria" de validade inferior a um ano, com devolução do capital mutuado ao final do ano e contracção de novo empréstimo no dia seguinte (art. 44º do R.I.).
c) Sustenta a Requerente que não existe um elemento essencial do contrato de concessão de crédito, e que é a promessa de restituição do capital mutuado, coisa que não foi estipulada no contrato promessa celebrado entre a A... e a B... tendo sido antes estipulada a entrega das acções mediante o pagamento do respectivo preço (arts. 60º segs. do R.I.). Assim, a ter havido um financiamento, ele não integra a categoria especifica da concessão de crédito, a qual requer a intenção restitutiva que preside a toda a família conceptual do mútuo, na qual se integra a "concessão de crédito" (arts. 69.°-73.° do R.I.).
d) Por outro lado, a Requerente rejeita qualquer alegação de que tenha existido financiamento "encapotado", se essa alegação vier inicialmente desacompanhada da invocação da norma anti-abuso prevista no art. 38º nº 2. da lei Geral Tributária (LGT) (e no art. 63.° do Código de Procedimento c de Processo Tributário - CPPT). Alega ainda que nunca houve incumprimento do contrato promessa, antes prorrogações consensuais e, no final, uma extinção por impossibilidade objectiva (arts. 74º segs. do R.I.. pontos 25 segs. das Alegações da Requerente).
e) Em Alegações, a Requerente sustenta que a Requerida incorre numa confusão de planos ao referir indiscriminadamente o momento da celebração do contrato promessa momento no qual o intuito das partes poderia efectivamente ter configurado um abuso com o momento em que, com a passagem do tempo, o vinculo alegadamcntc se desvirtuou (aparentemente cm mútuo) antes de se extinguir um momento no qual seria descabido invocar-se a existência de abuso (pontos 36 a 54. conclusões H a J das Alegações da Requerente).
f) A Requerente sustenta que a "comissão de imobilização" foi paga anualmente até ao final de 2008. sendo que era no final de cada ano que ocorria a prorrogação do contrato promessa, e não antes razão pela qual a "comissão de imobilização" não foi paga cm 2009, porque antes do final do ano o contrato sc extinguiu (arts. 95." segs. do R.I.).
g) Sustenta ainda que o prazo da operação em apreço foi claramente estabelecido em cada prorrogação, inclusivamente no aditamento do final de 2008 que determinou um novo prazo para 31 de Dezembro de 2009, razão pela qual crê inaplicável a segunda parte da al. g) do nº 1 do art. 5.° do Código do IS sendo que, em resultado disso, crê caducado o direito a liquidar o IS relativamente às operações em causa, às quais seria aplicável a verba 17.1.2. e não a verba 17.1.4. da TGIS (arts. 93.°-94.°. e 102.° segs. do R.I.).
III.B. Posição da Requerida
a) Por impugnação, a Requerida sustenta que, não tendo o contrato promessa alcançado os seus efeitos, na prática a promitente A... beneficiou de crédito concedido pela promissária B... no período de referência.
b) A Requerida alega que não somente a obrigação de restituição sempre esteve estipulada, como ela foi parcialmente activada em resultado da redução do número de acções objecto do contrato (arts. 38.° a 45.° da Resposta AT).
c) A Requerida nega que a ausência de "intuito fiscal" das partes no contrato fique provada pela existência de alternativas ao dispor das partes no contrato promessa, sustentando que essas alternativas jurídicas não existiam, por ilegitimidade (arts. 48.° a 60.° da Resposta AT. pontos 7 e 8 das Alegações da AT).
d) A Requerida alega que a enumeração da Verba 17.1 da TGIS é meramente exemplificativa, na medida em que abarca concessões de crédito a qualquer título, visando a substância económica sem se ater a uma tipicidade contratual subjacente cabendo por isso concluir que um crédito foi concedido cm razão da não-celebração do contrato prometido c da não-restituição do montante creditado, cm incumprimento do estipulado no contrato promessa c em violação do legalmente disposto quanto às consequências da impossibilidade objectiva de cumprimento (arts. 61.° a 82º da Resposta AT. pontos 24 a 30 das Alegações da AT).
e) Dado o entendimento que perfilha quanto à Verba 17.1 da TGIS, e ainda levando em conta o princípio da prevalência da substância sobre a forma que presidiu à Reforma de 2000 do Código do IS, a Requerida rejeita o argumento de que teria que lançar mão da norma geral anti-abuso para atingir a essência económica do estipulado no contrato promessa (arts. 83.º a 98.° da Resposta AT. pontos 9 a 15, e 51 segs. das Alegações da AT).
f) Sustenta ainda a Requerida que a aplicação da Verba 17,1.4 da TGIS não é ilegítima, ao contrário do que alega a Requerente, antes resulta da verificação de que as próprias prorrogações tornavam crescentemente incerto o prazo para a celebração do contrato prometido e para a produção dos correspondentes efeitos, pelo que havia que recorrer a médias mensais para apurar o valor do crédito disponibilizado (arts. 99.º a 110.° da Resposta AT, pontos 36 a 42 das Alegações da AT).
g) Por fim, não deixa a Requerida de apontar para a circunstância de nos diversos instrumentos contratuais se estabelecerem prazos com previsão de benefício do prazo a lavor do(s) devedor(es). permitindo-lhes o cumprimento antes da data tio vencimento a reforçar a ideia de que a "comissão de imobilização" seria devida a qualquer momento cm que esse cumprimento ocorresse ou deixasse de ocorrer em definitivo, sem dependência de qualquer prazo anual (arts. 111.º a 114.° da Resposta AT).
III.C. Questões a decidir
III.C.l. Sobre a revogação parcial do acto impugnado
Conforme já se deixou assinalado, a Requerente pede nos presentes autos que seja declarada a ilegalidade da liquidação de IS emitida pela AT em 29 de Agosto de 2013, com o n.°2013 ..., referente ao período de tributação de Agosto, Setembro e Outubro de 2009, no valor de €289.058.48, a que acrescem as correspondentes liquidações de juros compensatórios no montante global de €43.757.13, tudo perfazendo €332.8l5,6l.
Sucede que já na pendência do presente processo, a AT procedeu à revogação parcial do acto de liquidação de IS e respectiva liquidação de juros compensatórios respeitante a Agosto de 2009, no valor global de €l12.461.13, remanescendo o valor de €220.354.48.
Consequentemente, na sua Resposta a AT requer que, em virtude da aludida revogação parcial do acto de liquidação impugnado, seja declarada a extinção da instância relativamente à parte revogada do acto e, bem assim, que o Tribunal decrete a inexistência do pagamento de custas nos termos do arts. 536.° do Código de Processo Civil (CPC) e 3.°- A do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Ora, tendo a revogação parcial do acto impugnado sido efectuada em conformidade com o disposto no art. 13.° do RJAT, é indubitável que se extinguiu a instância quanto à parte revogada do acto, havendo agora que conhecer do pedido quanto à parte do acto que se mantem na ordem jurídica. Relativamente às consequências em matéria de custas, serão apreciadas, a final, quando se decidir sobre tal matéria.
III.C.2. Sobre a subsunção dos factos à Verba 17.1. da TGIS
III.C.2.1. A questão central que se coloca nos presentes autos é a de saber se os factos dados como provados configuram uma situação de concessão de crédito para efeitos da Verba 17.1. da TGIS.
Senão vejamos, face aos elementos constantes dos autos, está fora de dúvida que a AT não fundou a liquidação impugnada na aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no art. 38.º n.°2 da Lei Geral Tributária (LGT). aprovada pelo Decreto-Lei n.º 298/96 de 12 de Dezembro, que estatui o seguinte: "São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas."
De facto, como refere tanto na sua Resposta (cf. arts. 83.º a 98.º) como nas suas alegações (arts. 32.° a 58.°), a AT considera que os factos em causa consubstanciam uma situação de sujeição a imposto do selo por via da aplicação conjugada do art. nº1 do respectivo código e da Verba 17.1. da TGIS, não se justificando, por isso, o recurso à figura da cláusula geral anti-abuso.
Assim sendo, a discussão dos pressupostos da aplicação da referida cláusula em nada interessa ao caso dos autos pela simples razão de que a mesma não foi aplicada e, naturalmente, os tribunais não apreciam hipóteses académicas.
Por outro lado, a questão da caducidade do direito à liquidação, na parte em que o acto do liquidação não foi revogado, que a Recorrente invoca, só terá de ser apreciada caso seja positiva a resposta à questão central, ou seja, se se concluir que os factos em causa configuram efectivamente uma situação de concessão de crédito.
III.C.2.2. O art. l° n.° 1 do Código do Imposto do Selo (OS) estatui que "o imposto do selo incide sobre todos os actos. contratos, documentos, títulos, papeis e outros factos ou situações jurídicas previstos na tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens".
Por sua vez, sob a epígrafe "operações financeiras', a Verba 17.1. da TGIS estatui o seguinte: "Pela utilização de crédito, sob a forma de fundos, mercadorias e outros valores, em virtude da concessão de crédito a qualquer título excepto nos casos referidos na verba 17.2, incluindo a cessão de créditos, factoring e as operações de tesouraria quando envolvam qualquer tipo de financiamento ao cessionário, aderente ou devedor, considerando-se, sempre, como nova concessão de crédito a prorrogação do prazo do contrato - sobre o respectivo valor, em função do prazo”.
As taxas do imposto são lixadas pelos n°s 17.1.1, 17.1.2 e 17.1.3 em função dos prazos da concessão do crédito, e o n° 17.1.4 lixa a taxa aplicável nos casos em que o prazo de utilização não seja determinado ou determinável.
Resulta assim claro do teor da Verba 17.1. que o legislador pretendeu tributar a utilização de crédito resultante da concessão de crédito a qualquer título. Ou seja. o imposto incide, por esta via sobre as utilizações de crédito e não sobre a celebração dos contratos que lhe dão origem. Começa a aplicar-se na data da utilização do crédito e à medida da sua utilização. O facto tributário não e, pois, ao contrário do que sucedia antes da reforma de 2000 a celebração do contrato mas sim a produção dos seus efeitos, isto e, a utilização do crédito concedido.
Dúvidas não existem, também, quanto a que a enumeração constante da Verba 17.1. e meramente exemplificativa: tributa-se a utilização de crédito em virtude da sua concessão a qualquer título.
III.C.2.3. A concessão de crédito consiste na troca de um bem presente por um bem futuro, frequentemente tendo como contrapartida uma remuneração". Nessa acepção genérica, na sociedade moderna, são quase inesgotáveis os exemplos de relações e situações creditícias.
Muitas vezes é o próprio legislador que vem delimitar pura determinados efeitos o que se deve entender por concessão de crédito. Assim, por exemplo, o art. 9º n.° 2 do Regime Geral das Instituições de Credito e Sociedades financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei n.°298/92. de 31 de Dezembro, exclui diversas realidades do conceito de concessão de credito para efeito da aplicação das suas disposições.
Ora, o alcance da expressão "concessão de crédito a qualquer título” constante da Verba 17.1. da TGIS não pode dissociar-se, desde logo, da própria epígrafe “operações financeiras”. Tal referência não abrange, com efeito, toda e qualquer espécie de situação materialmente creditícia ou que tenha o efeito equivalente a uma concessão de crédito.
Para que se verifique o facto tributário previsto na Verba 17.1. da TGIS é indispensável que exista uma operação de concessão de crédito. Ora. é elemento essencial da concessão de crédito a existência de um dever de restituição futura do montante creditado. Sem esse elemento não estamos perante uma operação de crédito, designadamente para efeitos do disposto no Verba 17.1. da TGIS. Consequentemente, situações creditícias decorrentes, por exemplo, do mero diferimento no tempo do pagamento de bens ou serviços não são de todo abarcadas pela referida norma, ou seja, não preenchem os pressupostos da incidência objectiva do imposto.
Nesse sentido se pronunciam, por exemplo. J. Silvério Mateus e L. Corvelo de Freitas quando escrevem que o facto tributário tipificado na verba da TGIS ora em causa é “a utilização de crédito com base em negócio jurídico de concessão de crédito, cujos elementos essenciais se traduzem na prestação de um bem presente contra a promessa de restituição futura. Não é, pois, abrangido pela incidência do imposto todo e qualquer financiamento mas tão-somente o que, reunindo as referidas características, se possa qualificar de concessão de crédito”'.
E na Decisão Arbitral do CAAD proferida no processo n.º 107/2013-T, muito embora num quadro factual totalmente distinto - tratava-se então de apreciar à luz da Verba 17.1. da TGIS uma situação de contrato de mútuo gratuito a orientação que aqui se sustenta é também acolhida, conforme resulta inequivocamente da respectiva fundamentação e, também, da doutrina em que se apoia.
Na verdade, muito embora nesse caso concreto o Tribunal tenha indeferido a pretensão da Requerente, por motivos que para o que agora nos ocupa não importam, ai se escreve o seguinte:
"De facto, independentemente da finalidade visada para os fundos cedidos, ocorreu uma utilização de crédito por parte dos clientes da Requerente (...) com base num negócio jurídico típico de concessão de crédito (contrato de mútuo, nos termos previstos nos artigos 1142.° e seguintes do Código Civil que não é equiparável a outro tipo de situaçães que caem fora do âmbito do norma e que consistem no mero diferimento temporal do pagamento de bens ou servidos concedido pelo respectivo fornecedor ou prestador (itálico nosso).
Com efeito, no caso cm apreciação ocorreu uma efectiva transferência de fundos, não se tratando da mera concessão de um prazo alargado de pagamento por parte da Requerente na sua qualidade de prestadora de serviços. Bem além disso, verificou-se um dispêndio financeiro da Requerente que teve de recorrer aos seus fundos próprios e alheios (do banco) para fazer face às obrigações por si assumidas nos contratos de mútuo celebrados com os clientes" (itálico nosso).
Este empréstimo de fundos (...) não deixa de configurar uma concessão de crédito autónoma da relação comercial com os clientes, susceptível de preencher os pressupostos do facto gerador da tributação em Imposto do Selo, o que não resulta prejudicado pelo facto de existir uma conexão com a actividadc da Requerente e com a dos seus clientes”.
No caso em discussão nestes autos não temos é certo - uma situação creditícia decorrente de pagamentos diferidos, hipótese a que alude a referida Decisão Arbitral, mas, ao contrário, uma situação em que se verifica um pagamento antecipado. Porém, a circunstância factual concreta e irrelevante para o princípio fundamental que se quer que se quer pôr em evidência: para que se mostrem preenchidos os pressupostos de tributação em imposto do selo por via da Verba 17.1. da TGIS é preciso que exista uma utilização de crédito resultante de uma operação de concessão de crédito, de modo nenhum bastando para esse efeito que se mostre verificada uma qualquer situação que, economicamente, possa ter efeitos equiparáveis ao de uma concessão de crédito.
III.C.2.4. Já se fixou acima a matéria de lacto dada com provada. E é com base nela que a AT pretende fundar uma tributação em imposto do selo por via da verba 17.1 da TGIS. Relembrando os factos, podemos resumir o que está em causa aos seguintes dados essenciais:
- A A... e a B... celebraram um contrato-promessa de compra e venda de 10.000.000 de acções representativas do capital social da Requerente, e respectivos suprimentos.
- Não obstante o contrato prometido poder ser celebrado até 31 de Dezembro de 2003, o preço total das acções (€277.230.000.00) foi pago logo no momento da celebração do contrato-promessa, ficando aprazado para o momento da celebração do contrato prometido o pagamento do valor dos suprimentos.
- Foi convencionado que o incumprimento do contrato-promessa acarretaria, para lá da restituição do preço pago, o pagamento adicional de uma "comissão de imobilização", calculada como um juro.
- Em sucessivos aditamentos ao contrato-promessa foi acordado o adiamento do prazo para celebração do contrato prometido e, num dos aditamentos, reduziu-se o seu objecto (do 10.000.000 para 8.500.000 acções, o que envolveu a imediata restituição, da A... à B... de €41,584.500.00).
- Esses adiamentos prolongaram-se até 2009, e em cada ano determinaram o pagamento, da A... à B... da "comissão de imobilização", agora reportada aos remanescentes €235.645.500.00 do valor do contrato prometido.
- Em 31 de Outubro de 2009 a B... foi incorporada, por fusão, na sociedade ora Requerente.
- A transferência definitiva de acções representativas do capital social da Requerente, a ocorrer por força do contrato prometido entre a A... e a B... deixava de poder ter lugar, visto a promissária / adquirente ser agora a própria Requerente, e, portanto, o objecto do contrato prometido implicaria a aquisição de acções próprias, vedada por lei.
Ou seja. em síntese, temos um contrato-promessa de compra e venda de acções cujo preço foi pago antecipadamente, cujo objecto foi posteriormente reduzido, e em que, através de aditamentos ao contrato, foi prorrogado o prazo inicialmente estipulado para a celebração do contrato prometido, o qual, de resto, nunca viria a realizar-se em virtude da extinção da promitente compradora por incorporação na promitente vendedora.
Estamos assim na presença de operações e negócios jurídicos com um enquadramento legal e contratual muito concreto e bastante distinto do que seria minimamente exigível para configurar tais actos como reveladores de uma operação jurídica de concessão de crédito.
Perante tal factualidade. quaisquer que tenham sido os efeitos económicos dela decorrentes, e entendimento do Tribunal que a mesma não se pode configurar como correspondendo a uma "utilização de credito em virtude da concessão de crédito", não se verificando, pois, o facto tributário que poderia fundar a tributação em imposto do selo ao abrigo da Verba 17.1 da TGIS.
É verdade que na situação dos autos há aspectos menos habituais, em especial o pagamento antecipado do preço e a não realização do contrato prometido nem a devolução do preço. Mas todas elas se ancoram no direito. O pagamento antecipado é uma estipulação que se compreende no princípio da autonomia contratual e da liberdade de estipulação. O contrato prometido não chegou a ser realizado porque as posições de promitente-vendedora e de promitente-compradora vieram, a dado momento, a coincidir na mesma pessoa jurídica por força da fusão, por incorporação, da segunda na primeira, passando assim a confundir-se na mesma pessoa os direitos e deveres inerentes a essas duas posições jurídicas.
E um facto que, como alega a Requerida, o art. 36.°. n.° 4 da LGT estatui que "a qualificação do negócio jurídico efectuada pelas partes, mesmo em documento autêntico, não vincula a administração tributária". Mas o alcance de tal preceito é bem mais restrito do que a AT pretende e, em qualquer caso, de modo algum permite, pelas razões já apontadas, fundar a qualificação da factualidade descrita como consubstanciando uma "utilização de crédito em virtude da concessão de crédito", como sempre seria necessário para que pudesse haver tributação ao abrigo da Verba 17.1 da TGIS.
Independentemente da pertinência da sua aplicação ao caso concreto dos autos, essa potencialidade existiria, em abstracto, no recurso à figura da cláusula geral anti-abuso, prevista no n.º 2 do art. 38.° da LGT. Mas, como já se salientou, a mesma não foi objecto de aplicação pela AT pelo que nada compete apreciar quanto a essa matéria.
III.C.3. Sobre a questão da caducidade do direito à liquidação
Em face do que se deixa exposto, fica prejudicada a necessidade de apreciação da questão da caducidade do direito à liquidação invocada pela Requerente, tendo-se dado prioridade ao conhecimento dos vícios cuja procedência determina uma mais estável e eficaz tutela dos interesses da Requerente, cumprindo o disposto na alínea a) do n.° 2 do art. 124.° do CPPT.
IV. Decisão
Em face de tudo quanto antecede, decide-se:
a) Declarar a extinção parcial da instância, em virtude da revogação pela AT do acto de liquidação impugnado, na parte respeitante a Agosto de 2009, no montante de €97.400,14, e da revogação da respectiva liquidação de juros compensatórios n.°2013 ... no montante de €15.060.99, tudo perfazendo €112.461.13, de acordo com o disposto no art. 277.°. alínea c), do CPC, aplicável ex vi art. 29.°. n.º 1, alínea e), do RJAT.
b) Julgar procedente, por provado, o pedido e, em consequência, anular, com fundamento em vício de violação de lei, a liquidação de Imposto do Selo n.º 2013..., de 29 de Agosto de 2013. respeitante a Setembro e Outubro de 2009, no montante de €191.658,34, e as liquidações dos correspondentes juros compensatórios, no montante de €28.696,14, perfazendo o montante global de €220.354,48.
V. Valor do processo
Fixa-se o valor da causa em €332.815.61, nos termos do disposto no art. 97.°-A do CPPT, aplicável ex vi art. 29.°, n.°1, alínea a), do RJAT e art. 3.°, n.° 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VI. Custas
Custas a cargo da Requerida, no montante de €5814.00, nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.°. n.° 2, e 22.º, n.° 4, ambos do RJAT, dado que o pedido foi julgado procedente e a revogação parcial do acto impugnado, sendo um acto que lhe é imputável, não confere, nos termos legais, direito a nenhuma redução.
Lisboa. 31 de Julho de 2014
Os Árbitros
Jorge Lino Alves de Sousa (Presidente)
Fernando Borges de Araújo
Luís Máximo dos Santos
A redacção do Acórdão regeu-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.