Processo nº 820/2014 – T
DECISÃO ARBITRAL
A – RELATÓRIO
1. A…, LDA., pessoa colectiva n.º …, com sede no …, Oeiras, veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos art. 2º, n.º 1, a) e 10º, n.º 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no DL 10/2011, de 20 Janeiro, doravante designado “RJAT” e dos artigos 1º e 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, face ao indeferimento das reclamações graciosas que apresentou, em que se discute a ilegalidade dos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação, referentes ao ano de 2014, bem como o reconhecimento ao direito a juros indemnizatórios, sendo requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “AT”).
2. Admitido o pedido de constituição do tribunal arbitral singular, e não tendo a requerente optado pela designação de árbitro, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro.
As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico, tendo, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral ficado constituído em 25-02-2015.
3. Notificada, a AT veio apresentar resposta em que não suscitou qualquer excepção.
4. Foi dispensada, com a anuência das partes, a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, bem como a apresentação de alegações.
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5. Pretende a requerente que seja declarada a ilegalidade e inerente anulação dos actos de liquidação do Imposto Único de Circulação referentes ao ano de 2014, objecto das reclamações graciosas que apresentou e a que foram atribuídos os n.º …, as quais foram indeferidas, com a consequente restituição do imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios, alegando em síntese:
a) É uma sociedade comercial, cuja actividade principal consiste na compra, venda e aluguer de máquinas e veículos automóveis.
b) No exercício da sua actividade, oferece aos clientes diversas soluções, no âmbito do aluguer de longa duração e da venda de veículos automóveis.
c) Foi notificada das notas de liquidação de IUC objecto dos autos, tendo pago o respectivo imposto.
d) Apresentou reclamações graciosas relativamente a tais liquidações.
e) As referidas liquidações, respeitam a veículos que foram objecto de venda a terceiros (clientes da requerente) em momento anterior ao período da tributação.
f) Está igualmente em causa o imposto único de circulação, dos mesmos anos, referente a veículos que foram dados como perda total e em relação aos quais já foram canceladas as respectivas matrículas, em momento anterior ao período da tributação.
g) Para evitar futuras execuções fiscais e os custos inerentes à prestação de garantias para a suspensão dos referidos processos, optou por liquidar o imposto, tendo pago o montante total de 20.146,52 €.
h) Apesar do facto gerador de tributação ser a propriedade do veículo, a presunção registral é elidível.
i) O direito de propriedade sobre veículos automóveis está sujeito a registo obrigatório e, nos termos do art. 29º do Registo Automóvel, são aplicáveis ao registo de automóveis, com as necessárias adaptações, as disposições relativas ao registo predial, na medida indispensável ao suprimento de lacunas da regulamentação própria (e compatível com a natureza de veículos automóveis).
j) Nos termos do art. 7º do CRP, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
k) As presunções absolutas (iuris etde iure)são aquelas que não admitem prova em contrário, isto é não podem ser ilididas. Ora, a presunção legal só pode ser considerada ilidível quando a lei assim o determinar.
l) O registo de propriedade do veículo automóvel é obrigatório e visa apenas “dar publicidade” à situação jurídica de bens. Não existe, aliás, qualquer norma no ordenamento jurídico português sobre o carácter constitutivo do registo da propriedade automóvel.
m) Os veículos automóveis constante dos IUC supra identificados estão efectivamente inscritos em nome da ora requerente, na sequência da aquisição dos mesmos; o registo constituiu uma presunção de que existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos definidos no registo. Estamos perante uma presunção iuris tantum.
n) Para ilidir esta presunção é necessário ou fazer prova da nulidade do registo ou demonstrar a invalidade do negócio, ou ainda, que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem.
o) Foi exactamente esta demonstração – de que a titularidade do veículo pertence a um terceiro- que a reclamante fez, ao juntar facturas de venda das viauras e dos respectivos salvados, todas elas datadas de meses anteriores à obrigação fiscal exigida.
p) Os adquirentes dos veículos não haviam oportunamente efectuado os respectivos registos dos veículos na Conservatória do Registo Automóvel, pelo que nesta base de dados continuava a requerente a figurar como proprietária dos mesmos.
q) Nos termos do disposto no art. 73º da LGT, as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário; são proibidas as presunções inilidíveis.
r) Não pode a legislação fiscal e, nomeadamente, o CIUC, ignorar qual o papel do registo automóvel e contrariar o entendimento dominante da jurisprudência sobre a natureza do registo. Não pode ser ignorado que o registo automóvel, embora obrigatório, não tem natureza constitutiva, sendo antes de natureza declarativa ou publicitária.
s) Acresce que o IUC tem subjacente o princípio da equivalência que veio corporizar as preocupações ambientais ao estabelecer que o imposto deve onerar os contribuintes pelos custos ambientais e viários provocados pela circulação automóvel.
t) Acresce ainda que a expressão “considerando-se como tais” constante do teor do n.º 1 do art. 3º do CIUC, configura uma presunção legal e a mesma é ilidível.
u) Nos termos do disposto no art. 64º do CPPT, as presunções de incidência tributária podem ser elididas por via de reclamação graciosa dos actos tributários (no caso os actos de liquidação) que nelas se baseiam, o que a requerente fez, com a apresentação das reclamações graciosas supra identificadas, onde juntou as cópias de todas as facturas de venda dos veículos e dos salvados.
v) À data da exigibilidade do imposto, a requerente já não era proprietária dos veículos acima identificados, por já ter operado as respectivas transmissões.
6. Por seu turno a requerida veio em resposta alegar, em síntese:
a) O entendimento propugnado pela requerente incorre não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e, por último, decorre de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.
b) O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3º, nº 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no nº 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontram registados.
c) Realça que o legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontram registados.
d) O normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do nº1 do artigo 3º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros.
e) O legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas) as pessoas em nome das quais [os veículos] se encontrem registados. porquanto é esta interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.
f) Trata-se de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdadede conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel.
g) Em suma, o artigo 3º do CIUC não comporta qualquer presunção legal, sendo certo que a tese peregrina propugnada pela requerente direcciona o seu objectivo para o alvo errado.
h) É inegável que o Código de Registo Predial se aplica subsidiariamente ao Regulamento do Registo Automóvel; porém, o Código de Registo Predial não é legislação subsidiária do CIUC.
i) Portanto, a presunção da propriedade automóvel decorre única, directa e exclusivamente do próprio regime registral automóvel e não da legislação fiscal sobre automóveis que constitui um aspecto colateral àquele regime.
j) Logo, a ilisão da presunção da propriedade automóvel necessariamente terá de ser dirigida ao, ou melhor dizendo, contra o que consta do próprio registo automóvel, e não contra o mero efeito fiscal que decorre da informação registral automóvel como, no fundo, acaba por querer fazer a Requerente.
k) Da articulação entre o âmbito da incidência subjectiva do IUC e o facto constitutivo da correspondente obrigação de imposto decorre inequivocamente que só as situações jurídicas objecto de registo (sem prejuízo, da permanência de um veículo em território nacional por mais período superior a 183 dias, previsto no n.º 2 do artigo 6.º) geram o nascimento da obrigação de imposto.
l) A não actualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não na do Estado Português, enquanto sujeito activo deste Imposto.
m) Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais (os veículos) se encontrem registados.
n) À luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o Código do IUC, a interpretação propugnada pela requerente no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel, o registo dessa qualidade, é manifestamente errada, na medida em que é própria ratio do regime consagrado no Código do IUC que constitui prova clara de que o que o legislador fiscal pretendeu foi criar um Imposto Único de Circulação assente na tributação do proprietário do veículo tal como constante do registo automóvel.
o) Todo o raciocínio propugnado pela requerente encontra-se eivado de erro, não sendo possível ilidir a presunção legal estabelecida.
p) Em momento algum a requerente precisou, com o rigor que lhe era exigido, quais os veículos que supostamente foram dados como perda total e em relação aos quais as respectivas matrículas foram canceladas; em nenhum dos 9 procedimentos de reclamação e agora em sede de pronúncia arbitral a requerente faz prova do pretenso cancelamento das matrículas.
q) As pretensas “facturas de venda” não são um documento apto a demonstrar o cancelamento das matrículas; as facturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais documentos não relevam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes.
r) A falta do carácter sinalagmático das facturas poderia ser suprido mediante a prova do recebimento do preço nelas contante por parte da requerente, o que esta não fez.
s) Impugna todas as facturas juntas pela requerente, por se levantarem sérias dúvidas sobre a veracidade das mesmas, quer por incoerências delas constantes (data, local da sede, designação social, etc.), quer por discrepâncias que apresentam por confronto com a certidão permanente do registo comercial.
t) Alega, aliás, que ou tal certidão é falsa, ou são falsas as facturas, o que se argui para todos os efeitos legais.
u) A interpretação veiculada pela requerente mostra-se contrária à Constituição, na medida em que viola o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade, além de acarretar uma violação dos não menos importantes princípios da confiança e da segurança jurídica.
v) Além de ser ofensiva do princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que se traduz num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português.
x) Mais defende não estarem, em qualquer circunstância, reunidos os pressupostos legais que conferem o direito peticionado a juros indemnizatórios.
z) Pugnando pela condenação, em qualquer circunstância, da requerente pelo pagamento das custas decorrentes do presente pedido de pronúncia arbitral, uma vez que não foi a requerida quem deu azo à dedução do mesmo.
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7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
B. DECISÃO
1. MATÉRIA DE FACTO
1.1. FACTOS PROVADOS
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) A requerente é uma sociedade comercial, cuja actividade principal consiste na compra, venda e aluguer de máquinas e veículos automóveis.
b) No exercício da sua actividade, oferece aos clientes diversas soluções, no âmbito do aluguer de longa duração e da venda de veículos automóveis
c) Foi notificada das notas de liquidação de IUC objecto dos autos, tendo pago o respectivo imposto.
d) A requerente reclamou graciosamente das liquidações objecto do presente processo, tramitadas em nove procedimentos, tendo todas elas sido indeferidas, cujo despacho de indeferimento foi notificado à reclamante em 29-09-2014.
e) A requerente apresentou, em 17-12-2104, o pedido de pronúncia arbitral que deu origem aos presentes autos.
1.2 Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos ao processo.
1.3 FACTOS NÃO PROVADOS
Não foi feita prova de que os veículos automóveis a que respeitam as liquidações impugnadas, tenham sido vendidas pela requerente.
1.4 O DIREITO
A questão de fundo a apreciar reside na interpretação a dar ao n.º 1 do art. 3º do CIUC no sentido de apurar se a norma de incidência subjectiva, nele contida, estabelece uma presunção legal juris tantum – e, como tal, susceptível de ilisão (como sustenta a requerente) ou, pelo contrário, uma definição expressa e intencional da incidência pessoal, no sentido de que é necessariamente sujeito passivo do imposto aquele em nome de quem o veículo automóvel está registado como proprietário.
Dispõe o n.º 1 do art. 3º do CIUC: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares e colectivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados”.
Com base na redacção deste preceito, sustenta a requerida - AT - que a base de incidência pessoal, que este define, não comporta hoje qualquer presunção legal, uma vez que aquele transmite de forma expressa e intencional o pensamento do legislador tributário, no sentido de se considerar, de modo irrefutável, como sujeitos passivos do IUC as pessoas em nome das quais os veículos automóveis se encontrem registados.
Aduz em abono da sua tese, razões hermenêuticas de interpretação da lei, com apelo não só à sua literalidade, como aos elementos sistemático e teleológico.
Invocação plena de sentido, na medida em que, de acordo com o disposto no art. 11º da LGT, “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”. É que, como referem Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues, J. Lopes de Sousa – LGT 4ª ed., em anotação a tal artigo, “… sem afastar a letra da lei, que tem de ser a principal referência e ponto de partida do intérprete, se exclui a sua aplicação automática, supondo que nas leis há uma racionalidade operante que o intérprete se deve esforçar por reconstruir”.
É, pois, dentro deste quadro de interpretação da lei fiscal, no caso o art. 3º, n.º 1 do CIUC, que teremos de encontrar a resposta ao antagonismo de posições entre a requerente e a AT.
Para a AT é decisivo para a determinação do sujeito passivo do IUC o registo de propriedade do veículo automóvel, de modo a que será considerado como tal, de modo irreversível, aquele em nome de quem este está registado.
O registo de propriedade de veículos é, face ao disposto no art. 5º, n.º 1, a) e n.º 2 do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, obrigatório, pelo que, qualquer direito de propriedade que incida sobre a viatura está sujeito a registo, com o que se pretende a segurança do comércio jurídico, bem como a publicidade da situação jurídica dos mesmos.
Tal registo goza, nos termos do disposto no art. 7º do Código do Registo Predial (aplicável ao registo automóvel por força do art. 29º do referido DL 54/75), da “… presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
Temos, por isso, que a inscrição de registo de propriedade do veículo é, também ela, uma presunção de que o direito de propriedade sobre o mesmo existe nos termos constantes do registo.
Quer dizer, o registo de propriedade automóvel não constitui qualquer condição de validade dos contratos a ele sujeitos, à semelhança do que ocorre com o registo predial (cujo regime, como já apontamos, é extensivo ao registo automóvel); o registo tem uma função meramente declarativa.
Acontece que o art. 5º, n.º 1 do Código do Registo Predial, impõe que “os factos sujeitos a registos só produzem efeito contra terceiros depois da data do respectivo registo”. Do que parece resultar que tal bastaria para que a AT invocasse a ausência de registo para fazer funcionar de imediato o art. 3º, n.º 1 do CIUC, exigindo o pagamento do imposto àquele em nome de quem o veículo está registado, por ser o sujeito passivo do imposto.
Sucede que o n.º 4 do art. 5º do Código do Registo Predial restringe tal entendimento, ao determinar que “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”. Donde resulta que, por essa via, nunca a AT estaria habilitada a invocar a falta de registo, na medida em que não preenche o conceito de terceiro.
Posto isto em termos gerais, há que apurar se, pese embora o que vem de referir-se, o n.º 1 do art. 3º do CIUC contém, ou não, uma presunção legal.
Tudo está, em suma, em determinar se a expressão “considerando-se”, ali utilizada, tem a natureza de presunção legal.
Parece mais ou menos evidente que, quer do ponto de vista sistemático, quer teleológico, a expressão “considerando-se”, adoptada no n.º 1 do art. 3º do CIUC contempla uma verdadeira presunção, a isso não se opondo a aparente literalidade da expressão, nem o ordenamento tributário.
A este propósito, referem Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues, J. Lopes de Sousa – LGT 4ª ed., em anotação ao art. 73º, pag. 651: “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão “presume-se” ou semelhante, como sucede, por exemplo, nos n.º 1 a 5 do art. 6º, na alínea a) do n.º 3 do art. 10º, no art. 19º e 40º, n.º 1, do CIRS. No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real …”, enumerando-se depois um conjunto de exemplos.
Entendemos que é precisamente esse o caso contemplado pelo art. 3º, n.º 1 do CIUC: uma presunção implícita, no caso, uma presunção de incidência subjectiva. Presunção, aliás, que sempre existiu no domínio do imposto de circulação automóvel, pese embora anteriormente definido de forma explícita.
Ora, o n.º 2 do art. 350º do Código Civil estabelece que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos expressamente previstos na lei.
E, no que respeita à ilisão das presunções, temos por boa a doutrina a que o STJ recorreu na fundamentação do Assento n.º 1/91 de 03-04-1991 (DR n.º 114, de 18 de Maio) - para classificar como juris tantum uma presunção estabelecida num diploma laboral - defendida por Vaz Serra [Provas (direito probatório material), BMJ 110-112, pag. 35], bem como por Mário de Brito (Código Civil Anotado, pag. 466) e Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, pag. 429): “… as presunções juris tantum constituem a regra, sendo as presunções jure er de jure a excepção. Na dúvida, a presunção legal é juris tantum, por não se dever considerar, salvo referência da lei, que se pretendeu impedir a produção de provas em contrário, impondo uma verdade formal em detrimento do real provado”.
Por seu turno, no âmbito do direito tributário, o art. 73º da LGT dispõe que “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”. O que significa que todas as presunções em matéria de incidência tributária, como a que o n.º 1 do art. 3º do CIUC consagra, são juris tantum e, como tal, ilidíveis.
Aliás, no que ao IUC respeita, pareceria ofensivo à unidade do sistema jurídico-legal – e até, com as devidas adaptações, em oposição aos n.º 2 e 3 do art. 11º da LGT - que um indivíduo viesse a considerar-se como não proprietário de um bem para efeitos civis e tivesse de o ser necessariamente para efeitos tributários.
Por outro lado, em cumprimento dos princípios - com consagração no nosso ordenamento comunitário - do poluidor-pagador e da equivalência, o CIUC importa preocupações de ordem ambiental e energética, pretendendo que os custos decorrentes dos danos ambientais provocados pela utilização dos veículos automóveis sejam suportados pelos reais proprietários (e não pelos presumidos proprietários).
Ao que acresce o facto de a AT dever nortear a sua actividade pela observância dos princípios da legalidade, do inquisitório e descoberta da verdade material, insíto ao ditame constitucional da capacidade contributiva.
Posto isto, vejamos, então, se, no caso em apreço, a requerente logrou fazer prova de que não era a proprietária dos veículos a que a respeitam as liquidações objecto do presente pedido arbitral, nas datas limite dos respectivos pagamentos.
A resposta é negativa.
A requerida põe em causa, como princípio balizador, que facturas titulando contratos de compra e venda sejam aptas a comprovar a efectiva transmissão de propriedade dos veículos, entendimento que não perfilhamos.
E, no que concerne objectivamente às facturas juntas aos autos pela requerente, impugnou directamente o seu conteúdo, apontando várias incongruências na emissão das mesmas (denominação, sede, descritivos, identificação dos vendedores, etc.), concluindo pela invocação da sua falsidade.
É sabido que o art. 342º, n.º 1 do Código Civil, estabelece como regra geral probatória que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
Ora, como decorre do que atrás se expôs, partimos aqui de uma presunção legal (a que é estabelecida o art. 3º, n.º 1 do CIUC) que, como se concluiu, é ilidível. A ilisão da presunção legal obedece ao disposto no art. 347º do mesmo CC, quando impõe que “a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto.
Por sua vez, em matéria de contraprova, resulta do art. 346º do mesmo código que se a parte contrária conseguir tornar duvidosos os factos relativamente aos quais for apresentada prova, “a questão é decidida contra a parte onerada com a prova”.
Analisadas as facturas juntas aos procedimentos de reclamação, para que a requerente remete, concatenadas com as incongruências invocadas pela requerida, subsistem sérias dúvidas quanto à efectiva transmissão dos veículos a que dizem respeito as liquidações impugnadas.
Assim, pese embora propendamos, em tese, a admitir que as facturas de venda possam constituir meio idóneo de prova (como já temos considerado noutras decisões arbitrais), face às fortes dúvidas que as incongruências contidas nas facturas em causa nos suscitam, temos de considerar como não provada a transmissão de veículos alegada pela requerente. Conclusão que assenta no princípio da liberdade de apreciação da prova em que o tribunal baseia a sua convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova constantes do processo (art. 607º, n.º 5 do CPC).
Desse modo, não tendo a requerente logrado afastar a presunção legal de incidência subjectiva de IUC que sobre si impende, face ao disposto art. 3º, n.º 1 do CIUC, necessariamente falece a sua pretensão, na medida em que nenhum juízo de censura pode ser apontado às liquidações impugnadas.
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3. DECISÃO
Face ao exposto, decide-se:
a) julgar totalmente improcedente o pedido, dele absolvendo a Autoridade Tributária e Aduaneira;
b) condenar o requerente no pagamento das custas do processo.
VALOR DO PROCESSO: De acordo com o disposto nos art. 306º, n.º 2 do Código de Processo Civil, art. 97º-A, n.º 1, a) do Código do Processo e de Procedimento Tributário e art. 3º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 20.146,51 € (vinte mil cento e quarenta e seis euros e cinquenta e um cêntimos).
CUSTAS: Nos termos do disposto no art. 22.º, n.º 4, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em 1.224,00€ (mil duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
Lisboa, 24-09-2015
O árbitro
António Alberto Franco