Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 784/2014-T
Data da decisão: 2015-04-20  IRS  
Valor do pedido: € 207.872,01
Tema: IRS – Tributação de mais-valias por alienação de participações sociais; retroatividade da norma tributária
* Decisão arbitral anulada por acórdão do STA de 17 de fevereiro de 2016, recurso n.º 668/15-50 que decide em substituição.
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Processo n.º 784/2014-T

 

 

Os árbitros Dr. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr.ª Carla Castelo Trindade e Dr. André Bacelar Gonçalves, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 30-01-2015, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

 

A..., NIF …, e B..., NIF …, casados entre si, residentes em Rua … n.º …, …, …, apresentaram um pedido de constituição do tribunal arbitral colectivo, artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro (doravante RJAT), em que é Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

Os Requerentes pretendem que seja declarada a ilegalidade da liquidação adicional de IRS, de 02-07-2014, com o número 2014 …, correspondente liquidação de juros compensatórios, com o número 2014 … e demonstração de acerto de contas, efectuada pelo Senhor Director Geral dos Impostos, referente ao ano de 2010 e no valor global a pagar de € 207.872,01 (documento n.ºs 1 a 3 juntos com o pedido).

É requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 24-11-2014.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 15-01-2015 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 30-01-2015.

A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral e a sua absolvição do pedido.

Por despacho de 03-03-2015, decidiu-se dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e que o processo prosseguisse com alegações.

As partes não apresentaram alegações.

O Tribunal é competente e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades e não se suscita qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)      Em 30-04-2010, o sujeito passivo A… era detentor de 2.495 acções, de valor nominal de 10 euros cada, representativas de 49,90% do capital social da sociedade Agência Funerária C…, S. A.;

b)      Na mesma data, o sujeito passivo B… era detentora de 499 acções, de valor nominal de 10 euros cada, representativas de 9,98% do capita] social da sociedade Agência Funerária C…, S.A.;

c)      A sociedade anónima denominada Agência Funerária C…, SA, NIPC …, tinha, naquela data, o capital social de € 50.000,00, constituído por 5.000 acções do valor nominal de € 10 cada.

d)     Em 30-04-2010 os sujeitos passivos alienaram a totalidade das participações que detinham na sociedade Agência Funerária C…, SA., correspondente a 2 994 acções, do valor nominal de € 10 cada, que vieram a ser adquiridas pela sociedade D… -Agencias Funerárias, S.A., NIPC …, pelo valor de€ 930.000,00;

e)      Os Requerentes tinham adquirido em 2005 as referidas participações que alienaram;

f)       A referida alienação de acções foi a única realizada pelos Requerentes no ano de 2010;

g)      Os Requerentes não declararam quaisquer mais-valias resultantes da alienação daquelas participações sociais, por entenderem, que nos termos do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 10.° do CIRS, em vigor à data da alienação, tal rendimento se encontrava excluído de tributação;

h)      Em 30-07-2014 foram os Requerentes notificados da liquidação adicional de IRS com o n.º 2014 … e respectiva demonstração de liquidação de juros e de acerto de contas, do ano de 2010, no valor total a pagar de € 207.872,01;

i)        A liquidação referida foi elaborada na sequência de um procedimento de inspecção interna promovido pela Direcção de Finanças de Coimbra da Autoridade Tributária e Aduaneira;

j)        Em 26-05-2014, os Requerentes exerceram o direito de audição sobre o projecto de Relatório da Inspecção Tributária;

k)      No Relatório da Inspecção Tributária, cujo teor se dá como reproduzido, refere-se, além do mais, o seguinte:

Com base em elementos recolhidos na empresa D… - Agências Funerárias, S.A., com o NIPC …, verificou-se que essa empresa adquiriu, em 30-04-2010, a A..., com o NIF … e B..., com o NIF …, uma quantidade (2.495 e 499, respetivamente) de ações por eles detidas na sociedade Agência Funerária C… S.A., doravante abreviadamente designada por Agência C…, com o NIPC …, por €775.000,00 e €155.000,00, respetivamente. Consultada a declaração anual de rendimentos dos vendedores das ações, relativa ao ano de 2010, constata-se que os mesmos não procederam à entrega, como devia, do anexo G (mais-valias e outros incrementos patrimoniais) daquela declaração (Modelo 3 de IRS). Assim sendo e uma vez que se encontra em falta a apresentação daquele anexo, da qual resultou omissão à declaração modelo 3 de IRS de rendimentos de mais valias obtidas com a alienação onerosa de acões, foi proposta, de forma a serem tributadas aquelas transmissões, uma ação de inspeção interna com incidência temporal ao ano de 2010, tendo como âmbito o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS).

III - Descrição dos factos e fundamentos das correções meramente aritméticas ã matéria tributável

III -1) Enquadramento fiscal das transações em causa

Os eventuais ganhos obtidos por A... e B..., com a alienação onerosa, em 30-04-2010, de 2.994 ações que detinham na empresa Agência C…, constituem uma mais-valia sujeita a IRS, nos termos da alínea a) do n.°1 do art.°9.° e alínea b) do n.°1 do art.°10.° do código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS).

(...)

Nos termos do disposto no art.° 43.°, n° 1 do CIRS, o valor dos rendimentos qualificados como mais-valias passíveis de tributação é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, sendo que, não obstante o ganho se considere obtido no momento da prática do ato (alienação), cfr. Art.° 10.°, n° 3, o facto tributário sujeito a imposto só está completo no último dia do período de tributação, já que o período de tributação é o ano civil, conforme disposto no artigo 143° e conforme se infere do disposto nos artigos 1.°, n° 1, 22.°, n° 1, 57.°, n° 1, todos do CIRS.

Com efeito, sendo o IRS um imposto anual, através do qual se tributa, nos termos do artigo 22° do CIRS, o englobamento de todos os rendimentos recebidos num determinado ano, o período de tributação só se estabiliza no Tm do ano fiscal, em 31 de Dezembro de cada ano.

À face do estipulado pelo artigo 72.°, n° 4, do CIRS, estes rendimentos (mais-valias) são tributados autonomamente à taxa especial, de 20%', sendo que o valor a apurar, sujeito a imposto, resulta de um saldo que vai sendo formado ao longo do ano, pelo que os efeitos de liquidação e pagamento referentes a mais-valias realizadas apenas se esgotam no final de cada ano, o que significa que o facto tributário ocorre somente em 31 de Dezembro, relevando assim a legislação em vigor nessa mesma data.

Assim sendo e porque a esta data (31/12/2010) já não se encontra em vigor a exclusão de tributação das mais valias obtidas com a alienação de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, (anterior redação do artigo 10.°, n° 2 ai. a) do CIRS, revogada pelo art. 1° da Lei 15/2010 de 26/07), outra solução não resta que não seja a sua tributação.

 

l)        Em 24-11-2014, os Requerentes apresentaram o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

2.2. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a decisão que não se tenham provado.

 

 2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e no processo administrativo, não havendo controvérsia sobre eles.

 

3. Matéria de direito

 

3.1. Questão a decidir e posições das Partes

 

Em 30-04-2010, os Requerentes alienaram acções de uma sociedade anónima que detinham há mais de doze meses.

Em face da redacção do CIRS vigente naquela data, o artigo 10.º do CIRS estabelecia, no que aqui interessa, o seguinte:

 

Artigo 10.º

Mais-valias

 

1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:

(...)

b) Alienação onerosa de partes sociais, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, e de outros valores mobiliários e, bem assim, o valor atribuído aos associados em resultado da partilha que, nos termos do artigo 75.º do Código do IRC, seja considerado como mais-valia; (redacção da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro)

(...)

2 - Excluem-se do disposto no número anterior as mais-valias provenientes da alienação de:

a)         Acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses; (Redacção do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro)

 

A Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, revogou este n.º 2.

Com base neste contexto legislativo, a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que os ganhos resultantes dessa alienação, ocorrida antes da entrada em vigor desta Lei, estão sujeitos a tributação em IRS no ano de 2010.

Os Requerentes entendem que os ganhos que obtiveram não estão sujeitos a tributação por lhes ser aplicável a exclusão de tributação que se previa na alínea a) do n.º 2 do citado artigo 10.º, defendendo, em suma o seguinte:

– O artigo 5.º daquela Lei estabelece que ela entra em vigor no dia seguinte, dia 27-07-2010;

– Não existe qualquer outra disposição quanto à aplicação da Lei n.º 15/2010 no tempo;

– Dispõe o n.º 2, do artigo 12.°, da Lei Geral Tributária que "Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor ";

– Na data da alienação da acções pelos sujeitos passivos a tributação das mais-valias obtidas pela alienação da acções detidas há mais de 12 meses encontrava-se excluída de tributação, nos termos da aliena a), do n°.2, do artigo 10°. CIRS.

– A revogação desta norma só opera para o futuro, relativamente a alienações de acções que ocorressem a partir da sua entrada em vigor;

– Houve uma única alienação de acções pelos Requerentes no ano de 2010;

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende a posição assumida no Relatório da Inspecção Tributária, dizendo, em suma, o seguinte:

 – O facto gerador não é ganho resultante da alienação mas o saldo positivo apurado em determinado período de tributação entre as mais e as menos valias realizadas;

– O saldo positivo apurado para aquele ano de 2010 não foi gerado no momento do ganho das mais-valias, mas sim a 31 de Dezembro de 2010;

– Sob pena de desvirtuar a característica da anualidade do imposto, e a própria formação do rendimento a tributar.

– A não ser assim, no limite ocorreriam situações que quem tivesse obtido uma menos-valia até 27 de Julho, também não a pudesse saldar com uma eventual mais-valia obtida posteriormente e dentro do mesmo ano;

– A disciplina do n.º 1 do artigo 43º do CIRS, vai no inequívoco sentido de que a eventual existência de mais-valias está condicionada à verificação de um saldo positivo entre estas e as eventuais menos-valias ocorridas no período do mesmo ano;

– A situação é de retroactividade inautêntica ou imprópria em que os próprios factos não se verificam por inteiro na vigência da lei antiga, antes prolongam efeitos no âmbito da lei nova;

– O CIRS, ou pelo menos a generalidade dos enunciados normativos dele constantes, constitui regulação especial para efeitos de fixação do critério de aplicação temporal da lei relevante em sede de tributação em IRS, pelo que prevalece relativamente ao disposto no art. 12º n.º 2 da LGT, por força do princípio a lei especial revoga a lei geral, o disposto no artigo 43.º, n.º 1, do CIRC, que estabelece que «o valor dos rendimentos qualificados como mais valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes»;

– Ademais, teremos ainda de ter presente o contexto (social/financeiro do país) desta alteração

legislativa, isto é:

«- A lei foi aprovada no contexto de grave crise financeira do Estado português;

- No mesmo contexto foram aprovadas também medidas fiscais retroactivas (Lei n.º 11/2010 e Lei n.º 12-A/2010, também “retroactividade fraca”) em sede de IRS;

- Estas medidas há muitos meses vinham sendo discutidas publicamente;

- A exclusão de tributação das mais-valias de acções, mesmo que detidas por mais de 12 meses é uma norma que põe em causa os princípios constitucionais da capacidade contributiva e a igualdade fiscal entre os cidadãos, uma vez que deixa de fora da tributação inequívocas manifestações de riqueza, tendo por isso uma natureza conflituante com [a] justa distribuição dos encargos tributários;

- Esta natureza estranha pode ser percepcionada por qualquer “cidadão médio”, na medida em que está suficientemente enraizada na sociedade a consciência de que qualquer rendimento, é, por princípio, tributado;

- A manutenção desta exclusão da tributação é há muitos anos uma situação polémica tendo sido objecto de muitas observações críticas na doutrina e em grupos de trabalho de iniciativa governamental;

- No relatório do grupo de trabalho para o estudo da política fiscal de 3.10.2009 (…) pode ler-se

“Este regime de tributação das mais-valias mobiliárias configura uma situação que viola frontalmente a equidade da tributação”;

- O programa do XVIII Governo Constitucional estabelecia que, para melhorar a equidade na obtenção dos recursos e obter uma repartição mais justa da carga fiscal entre os contribuintes, deve «aproximar-se o regime da tributação das mais-valias mobiliárias praticado na generalidade dos países da OCDE»;

- O programa de estabilidade e crescimento para 2010-2013 prevê também a tributação das mais-valias imobiliárias como medida de repartição justa e igualitária do esforço de recuperação da economia e da consolidação das contas públicas».

 

3.2. Decisão

 

3.2.1. Antecedentes jurisprudenciais

 

A questão que é objecto do presente processo tem sido decidida pelo Supremo Tribunal Administrativo no sentido defendido pelos Requerentes, designadamente nos acórdãos de 04-12-2013, proferido no processo n.º 01582/13, e de 08-01-2014, proferido no processo n.º 01078/12.

A jurisprudência arbitral não é uniforme sobre esta questão, pois, enquanto nos processos 25/2011-T, e 135/2013-T se decidiu no sentido defendido pelos Requerentes, nos processos arbitrais n.ºs 107/2014-T e 340/2014-T aplicou-se o entendimento contrário.

A tese defendida naquela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo é, em síntese, a seguinte:

«A Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, nada estabeleceu quanto à sua aplicação no tempo senão que entraria em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (cfr. o seu artigo 5.º), razão pela qual se deve entender, em conformidade com o disposto no n.º 1 dos artigos 12.º da Lei Geral Tributária e do Código Civil, que as alterações por ela introduzidas ao regime tributário em IRS das mais-valias mobiliárias se aplicam apenas aos factos tributários ocorridos em data posterior à sua entrada em vigor.

É certo que o IRS incide sobre o valor anual dos rendimentos das várias categorias legalmente previstas (artigo 1.º do Código do IRS), incluindo-se as mais-valias na categorias dos incrementos patrimoniais (artigos 9.º e 10.º do Código do IRS), havendo que, para determinação do rendimento colectável das mais valias, apurar o saldo entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano (artigo 43.º n.º 1 do Código do IRS).

Daí que, tendo os recorridos obtido também mais-valias tributáveis resultantes da alienação de ações ocorridas em data posterior à da entrada em vigor da Lei n.º 15/2010, a tais ganhos será já plenamente aplicável o regime tributário instituído pela Lei n.º 15/2010, pois que sendo o rendimento anual para efeitos de IRS um facto complexo de formação sucessiva, na ausência de norma expressa em sentido diverso, poderá aplicar- -se, sem retroactividade própria ou autêntica, a lei nova aos factos que o integram ocorridos a partir da sua entrada em vigor (artigo 12.º n.º 2 da Lei Geral Tributária)».

 

3.2.2. A ocorrência do facto tributário e a formação da relação jurídica tributária

 

A relação jurídica tributária é integrada pelos direitos e obrigações indicados no n.º 1 do artigo 30.º da LGT: a) O crédito e a dívida tributários; b) O direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição; c) O direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto; d) O direito a juros compensatórios; e) O direito a juros indemnizatórios.

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, da LGT «a relação jurídica tributária constitui-se com o facto tributário».

Assim, antes de mais, é necessário apurar quando se constitui o facto tributário.

ALBERTO XAVIER ensina:

«Para que um facto desencadeie efeitos tributários é, pois, indispensável a sua correspondência a um dos tipos ou modelos de tributo criados pelo legislador. Assim, o que caracteriza a tipicidade no Direito Tributário não é tanto a necessidade da conformação do facto à norma para que o efeito se produza (...) antes é o facto de os efeitos tributários se não produzirem sem que essa conformação se reporte a normas expressamente formuladas com a força e sob a forma de lei.

O facto tributável é necessariamente um facto típico: e para que revista esta natureza é indispensável que ele se ajuste, em todos os seus elementos, ao tipo abstracto descrito na lei.

A tipicidade do facto tributável pressupõe, por conseguinte, uma descrição rigorosa dos seus elementos constitutivos, cuja integral verificação é indispensável para a produção dos efeitos: - basta a não verificação de um deles para que não haja, pela ausência de tipicidade, lugar à tributação. O facto tributável, com ser facto típico, só existe como tal, desde que na realidade se verifiquem todos os pressupostos legalmente previstos que, por esta nova óptica, se convertem em elementos do próprio facto»

(...)

Os tipos legais de impostos contêm em si os elementos indispensáveis ou necessários à tribu­tação: é, já o vimos, a regra do numerus clausus ; os tipos legais de imposto encerram em si os elementos suficientes à tributação: é (...) o princípio do exclusivismo.

Por via deste princípio, os tipos legais de imposto contêm uma descrição completa dos elementos necessários à tributação: e, se em verdade se afirma que só os factos previstos na lei desencadeiam efeitos tributários, em não menor verdade se afirmará que bastam esses mesmos factos para o referido desencadear, com exclusão de quaisquer outros (e daí a designação por princípio do exclusivismo). Quer dizer: cada tipo tributário contém uma valoração definitiva das situações jurídicas que são seu objecto, para certos fins. ( [1] )

 

Nesta linha, deve entender-se, como bem se conclui no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 22-05-2012, processo n.º 5232/11, que «o acto tributário tem sempre na sua base uma situação de facto concreta, a qual se encontra prevista abstracta e tipicamente na lei fiscal como geradora do direito ao imposto. Essa situação factual e concreta define-se como facto tributário, o qual só existe desde que se verifiquem todos os pressupostos legalmente previstos para tal. As normas tributárias que contemplam o facto tributário são as relativas à incidência real, as quais definem os seus elementos objectivos (cfr. Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, pág.324; Nuno de Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, II, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 1996, pág.57; A. José de Sousa e J. da Silva Paixão, Código de Processo Tributário anotado e comentado, 3ª. edição, 1997, pág. 269). Só com a prática do facto tributário nasce a obrigação de imposto. A existência do facto tributário constitui, pois, uma condição “sine qua non” da fixação da matéria tributável e da liquidação efectuada».

Em sede de IRS, o facto tributário é, em regra, complexo, tendo por objecto o rendimento anual, decorrente de uma série de factos ocorridos em cada ano, a que é aplicada uma taxa global.

Mas, há várias situações em que o IRS incide sobre factos autónomos, com taxas diferentes da taxa global, embora, em regra, seja concedida a possibilidade de opção pelo englobamento.

Uma destas situações é, precisamente, a do saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias obtidas em cada ano derivadas de factos enquadráveis nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS ( [2] ), que são autonomizadas para efeitos de tributação, nos termos do artigo 72.º, n.º 4, do CIRS, mesmo em relação às restantes mais-valias e menos-valias de outros tipos previstas no n.º 1 do mesmo artigo 10.º. Na verdade, só por opção dos sujeitos passivos aquela saldo é englobado no rendimento geral de IRS, nos termos do n.º 7 daquele artigo 72.º, o não sucedeu no caso em apreço.

Mas, como decorre deste n.º 4 do artigo 72.º e também do n.º 1 do artigo 43.º do CIRS, o facto tributário é constituído pelo eventual saldo positivo que se apure no final de cada ano e não por cada uma das operações efectuadas ao longo do ano que proporcionam mais-valias, já que estas, só por si, não geram qualquer obrigação de imposto, apenas surgindo eventualmente um facto tributário, no final do ano, se a soma de todas as mais-valias obtidas de factos enquadráveis nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º do exceder a soma das menos-valias dos mesmos tipos.

Este regime não se altera nos casos, como o dos autos, em que ocorreu um único facto enquadrável naquelas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º que gerou mais-valias: também aqui, só no fim do ano se pode concluir pela existência de um saldo positivo que constitui facto tributário para efeitos de tributação nos termos do artigo 72.º, n.º 4, do CIRS.

Assim, como se entendeu no acórdão do CAAD proferido no processo n.º 340/2014-T:

«O facto tributário não se traduz na mais-valia gerada e considerada de forma isolada e singular, através do acto da alienação, mas como um facto de formação sucessiva, não se revendo na alienação das acções em causa qualquer facto gerador de eventual incidência de imposto, já que, como dito, o mesmo resultará de um saldo apurado num determinado período de tributação, em conformidade com a característica de anuidade do imposto, que obviamente está presente do âmbito do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares.

Da mesma forma por efeito da regra da anualidade do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, ter-se-á que entender que o facto gerador ocorreu em 31 de Dezembro de 2010, dada a incidência complexa do tributo em questão, e exigência que o mesmo acarreta em termos de visão unitária e global, não se compaginando tais características com qualquer autonomização ou cisão por períodos temporais dentro do mesmo exercício fiscal. [3]»

 

A esta luz, a Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, ao revogar o n.º 2 do artigo 10.º do CIRS, que excluía de tributação em IRS as mais-valias provenientes da alienação de acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, regula a formação de um facto tributário relativo ao ano de 2010 que é constituído pelo saldo entre mais-valias e menos-valias com tributação autónoma, antes de ele ocorrer, pois só se apura no final desse ano, pelo que a sua aplicação a todas as mais-valias e menos-valias daqueles tipos geradas em 2010 não envolve retroactividade, em face do sentido restrito que o Tribunal Constitucional tem atribuído à proibição de impostos retroactivos que consta do artigo 103.º, n.º 3, da CRP, que tem entendido só abranger a retroactividade em sentido próprio, que se reconduz à aplicação da lei a factos cujos efeitos constitutivos de situações jurídicas já se produziram no passado, integrando todas as outras situações em que há ponderação de factos passados num conceito benevolente de retrospectividade. ( [4] )

A propósito da retrospectividade ensina SÉRGIO VASQUES que:

Um fenómeno distinto da retroactividade da lei fiscal é aquele que entre a doutrina se designa por vezes de retrospectividade da lei fiscal. Como vimos, a retroactividade produz-se quando a lei dispõe sobre factos tributários passados, seja aqueles que se formaram já por completo, seja aqueles cuja formação se encontra ainda em curso. O fenómeno da retrospectividade da lei fiscal, por seu lado, dá-se quando a lei nova, dispondo embora quanto a factos futuros, lesa expectativas fundadas no passado. (…) O problema da retrospectividade da lei fiscal coloca-se com maior acuidade ainda nos casos de eliminação de benefícios fiscais. Através da criação de benefícios o legislador encoraja directamente certo comportamento por parte do sujeito passivo, considerado meritório por razões variadas de ordem extrafiscal. O contribuinte não pode ter a expectativa de que se mantenham intocados para todo o sempre os benefícios de que aproveita, amarrando-se o legislador a um princípio continuidade (Kontinuitätsgebot) incompatível com a evolução da economia, da sociedade e do próprio sistema político. Mas é verdade que a eliminação súbita de benefícios fiscais pode acarretar uma lesão grave das expectativas dos contribuintes, com consequências económicas de relevo[5].

Com efeito, este é um problema sobre o qual o Tribunal Constitucional se debruçou já por mais que uma vez, sempre sustentando que este problema escapa à proibição da retroactividade e deve antes ser avaliado em face do princípio da segurança jurídica resultante do artigo 2.º da CRP.

Sobre a análise do Tribunal Constitucional a propósito deste tema refere Sérgio Vasques que:

Em face deste princípio, a lesão das expectativas dos contribuintes deve considerar-se inadmissível sempre que (a) estejamos perante uma alteração da ordem jurídica com a qual os destinatários das normas razoavelmente não possam contar e (b) essa alteração não seja ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes. Com base neste teste de proporcionalidade, o tribunal tem entendido que para que uma medida seja censurada com base no artigo 2º é necessário “em primeiro lugar, que o estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados ‘expectativas’ de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do ‘comportamento’ estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa. [em nota de roda-pé salienta o mesmo Autor que: “Assim no acórdão do Tribunal Constitucional nº128/2009, de 12 de Março, sublinhando a inexistência de “um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradouras”, ou no acórdão nº85/2010, de 3 de Março, do maior interesse, relativa à introdução de uma alteração no Código do IRC pela Lei n°32-B/2002, de 30 de Dezembro, nos termos da qual “a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital (...) concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”. Sustentava-se então que a aplicação desta regra a participações adquiridas antes da sua entrada em vigo violava o princípio constitucional da não aplicação retroactiva da lei fiscal bem como o princípio da segurança jurídica, estabelecido no art.2º da Constituição da República, na medida em que “os contribuintes adquiriram participações sociais com base num determinado quadro legal, que era, aliás, o quadro normal ou típico, segundo o qual os ganhos da alienação dessas participações eram tributados e as perdas eram dedutíveis”. O Tribunal Constitucional descarta a retroactividade, por não encontrar sequer facto complexo de formação sucessiva, e recusa a violação do princípio da segurança jurídica, por inexistir encorajamento claro por parte do estado e ser de recusar uma qualquer “proibição de retrocesso” em matéria de deduções fiscais. A decisão parece-nos correcta, enxuta e materialmente justa.”]”.[6]

Sendo assim, o único obstáculo a que sejam consideradas para o saldo anual das mais-valias e menos-valias as concretizadas anteriores da entrada em vigor da Lei n.º 15/2010 só poderá advir da norma do artigo 11.º, n.º 2, da LGT, que estabelece que «se o facto tributário for de formação sucessiva a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor».

No entanto, da conjugação da regra da coincidência do ano fiscal com o ano civil, que vigora quanto ao IRS (artigo 143.º), com o n.º 1 do artigo 43.º do CIRS, em que se estabelece que «o valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes», conclui-se que não pode deixar de ser considerado o período anual integral, não havendo suporte legal mínimo para tributar com base em mais que um saldo nem com base um saldo de dimensão inferior ao ano.

Na verdade, a norma do artigo 43.º, n.º 1, do CIRS consagra manifestamente a tributação anual do saldo das mais-valias e menos-valias e realizadas em cada ano, pelo, afastando explicitamente a aplicação do princípio pro rata temporis, previsto no artigo 11.º, n.º 2, da LGT, constitui uma norma especial que a derroga no seu específico domínio de aplicação.

Esta interpretação, que resulta do teor literal do artigo 43.º, n.º 1, do CIRS, é corroborada pela discussão da Proposta de Lei n.º 16/XI, que veio a dar origem à Lei n.º 15/2010, em que explicitamente foi assumida pelo Governo a intenção de aplicar o novo regime ao saldo das mais-valias e menos valias da totalidade do ano de 2010, como se vê pelos seguintes excertos da discussão na generalidade que constam do Diário da Assembleia da República I série, Nº 55/XI/1, de 08-05-2010, referentes à intervenção do Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, o Professor Sérgio Vasques:

 

«a receita a arrecadar com esta proposta depende, sobretudo, do regime de aplicação da lei no tempo e que, nessa matéria, nós insistimos num regime de aplicação da lei no tempo que previna a «lavagem» das mais-valias, de modo a que, ao fim e ao cabo, em vez de um sistema de tributação, tenhamos um novo sistema de isenção a vigorar daqui em diante» (página 17);

«o principal factor de evasão que aqui pode ser criado resultaria, isso, sim, de um regime de aplicação da lei no tempo que apenas sujeitasse as mais-valias que fossem produzidas com participações adquiridas depois da entrada em vigor da lei. Esse, para nós, é o ponto crucial, ou seja, é o de evitar que, dessas regras, não resulte uma «lavagem» imediata das mais-valias latentes (páginas 17-18);

«Desde há bom tempo que a doutrina moderna, um pouco na sequência da doutrina alemã e também da jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional, tem vindo a entender que há uma diferença — essa, clara — entre retroactividade e retrospectividade da lei fiscal. E essa diferença explica-se rapidamente: lei fiscal retroactiva é aquela que se aplica a factos passados; retrospectiva é aquela que se aplica a factos futuros, pondo, embora, em causa expectativas fundadas no passado.

Isso significa, muito simplesmente, que, quando olhamos a proposta aqui formulada pelo Governo, ela não é, evidentemente, retroactiva, porque se aplica ao saldo apurado entre mais e menos-valias que se verifiquem no final do ano. E ç a esse saldo, aliás, que se aplica também a isenção dos 500 €, que figura na proposta.

Mas há uma coisa ainda mais clara, Sr. Deputado, do que aquilo que figura no artigo 103.º da Constituição: é que, se qualquer partido ou se o Governo viessem propor a esta Câmara a tributação das mais-valias produzidas com a alienação de participações adquiridas após a entrada em vigor desta lei, seguramente, quando a lei entrasse em vigor, já não haveria qualquer mais-valia a tributar. E, Sr. Deputado, essa é uma solicitação à qual o Governo, seguramente, não está disposto a responder» (páginas 20-21)

 

Por outro lado, a intervenção da Senhora Deputada Assunção Cristas foi expressamente defendida a posição contrária, dizendo «A bem da segurança jurídica, a bem da estabilidade legislativa, é avisado e seguro considerar que a lei só se aplica a aquisições efectuadas depois da sua entrada em vigor. Ou, no limite, é imperioso considerar que, pelo menos, a lei não se pode aplicar a valores mobiliários vendidos antes da sua entrada em vigor» (página 28 do referido Diário da Assembleia da República), o que confirma que a intenção do Governo era a aplicação imediata. ( [7] )

A redacção final do diploma não consagra qualquer destas propostas de restrição dos efeitos da aplicação imediata da nova lei, pelo que a entrada em vigor no dia seguinte ao da sua publicação que permaneceu no seu artigo 5.º, que já constava da Proposta de Lei, tem inequivocamente o alcance de expressar a intenção de aplicação do novo regime ao saldo das mais-valias e menos-valias gerados no ano de 2010.

Na verdade, se fosse outra a intenção legislativa, seguramente que se estabeleceria um regime especial de aplicação da lei no tempo, como desde há muito era usual relativamente às normas sobre a tributação de mais-valias. ( [8]

Por outro lado, no contexto de crise financeira acentuada que se vivia em 2010, não pode deixar de se concluir que as condições em que lei foi elaborada explicam a adopção de uma solução deste tipo.

Para além disso, é de notar que, se é certo que a relevância para formação do saldo das mais-valias obtidas antes da entrada em vigor da Lei n.º 15/2010 poderia configurar uma violação do princípio constitucional da confiança, se fosse inesperada e imprevisível no momento em que a alienação das acções se concretizou, não se pode entender que essa violação exista quando a alienação ocorreu depois de aprovada em Conselho de Ministros a proposta que veio a dar origem àquela Lei, pois essa aprovação foi amplamente divulgada pelos órgãos de comunicação social, como é usual e é facto notório.

No caso em apreço, a aprovação da proposta ocorreu em 22-04-2010 (como se vê pela data que consta da Proposta de Lei n.º 16-XI) e teve a habitual publicitação imediata, através de comunicado da mesma data, em que se refere, no que aqui interessa:

 

I. O Conselho de Ministros, reunido hoje na Presidência do Conselho de Ministros, aprovou os seguintes diplomas:

1. Proposta de Lei que Introduz um regime de tributação das mais-valias mobiliárias à taxa de 20% com regime de isenção para os pequenos investidores, e altera o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e o Estatuto dos Benefícios Fiscais

Esta Proposta de Lei, a enviar à Assembleia da República, altera o Código do Imposto sobre o Rendimento sobre as Pessoas Singulares e o Estatuto dos Benefícios Fiscais, introduzindo um regime de tributação das mais-valias mobiliárias à taxa de 20% com regime de isenção para os pequenos investidores que aufiram ganhos anuais, apurados anualmente resultante do saldo entre a as mais e as menos valias, até 500,00 euros.

Com este diploma é revogada a norma de exclusão de tributação até agora existente, do que se dirigia às mais-valias decorrentes da alienação onerosa de acções detidas por mais de 12 meses, bem como as obrigações e outros títulos de dívida. ( [9] )

 

Por isso, relativamente a quem fez alienações de acções a partir desta data, não se pode entender que fosse imprevisível a tributação das mais-valias que fossem obtidas no próprio ano de 2010, pois a aplicação nesse ano era a única justificação razoável para tal matéria não ser incluída na proposta de Orçamento do Estado para o ano seguinte.

No caso em apreço, a alienação das acções ocorreu em 30-04-2010, quando já era público que estaria para ocorrer a curto prazo uma alteração do regime de tributação aplicável às mais-valias obtidas no ano de 2010, pelo que não se configura uma violação do princípio da confiança.

Conclui-se, assim, que a liquidação de IRS cuja decisão de ilegalidade e pedida no presente processo, não enferma do vício que os Requerentes lhe imputam.

O mesmo sucede com a liquidação de juros compensatórios, já que o único vício que lhe é imputado o que afecta o acto de liquidação de IRS.

 

 

4. Indemnização por garantia indevida

 

Não enfermando os actos de liquidação de IRS e juros compensatórios do vício que os Requerentes lhes imputam, não há fundamento para atribuir indemnização decorrente da garantia prestada para suspender a execução fiscal, pois a garantia só é indevida quando houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo ou seja mantida por período superior a três anos (artigo 53.º, n.ºs 1 e 2, da LGT), o que não sucedeu.

Improcede, assim, o pedido de indemnização por garantia indevida.

 

5. Decisão

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral;

 

Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em

a)      julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, quanto pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IRS n.º 2014 … e de juros compensatórios n.º 2014 … e respectiva demonstração de acerto de contas;

b)      julgar improcedente o pedido de indemnização por garantia indevida.

 

 

 

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 207.872,01.

 

7. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4 284,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo do Requerente.

 

Lisboa, 20 de Abril de 2015

 

Os Árbitros

 

(Jorge Manuel Lopes de Sousa)

 

(Carla Castelo Trindade)

 

(André Bacelar Gonçalves)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

 

Salvo o devido respeito, que é muito, não perfilho o entendimento supra referido. Divergi, portanto, da posição que fez vencimento, votando vencido, pelas razões essenciais que passo a resumir.

Nesta matéria, acompanho as conclusões do Supremo Tribunal Administrativo, no âmbito do processo 1582/13, de 04/12/2013 e do processo 1078/12, de 08/01/2014, bem como, o entendimento reflectido nos acórdãos do CAAD, proferidos no âmbito dos processos 25/2011-T e 135/2013-T, destacando, em particular, o entendimento sufragado no processo 25/2011-T.

Mesmo considerando que o facto tributário só se verifica no último dia do ano e consagrando o artigo 43.º, n.º 1 do CIRS a tributação anual do saldo das mais e menos valias realizadas em cada exercício, entendo que, considerando o normativo do artigo 12.º, n.º 2 da LGT, sendo o IRS um imposto periódico de formação sucessiva, na ausência de norma da lei nova que disponha de modo diferente esta apenas se poderá aplicar “ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor”.

Acompanho o entendimento proferido no âmbito do processo 25/2011-T, quanto à aplicabilidade da tributação denominada “pro rata temporis”, no qual, após diversas referência a doutrina sobre esta matéria, se refere que “haverá assim, dificuldades na aplicação do art. 12.º, n.º 2 da LGT, mas não parece, pois, que esteja demonstrada a impraticabilidade da sua aplicação, pelo menos em todos os casos. Parece-nos que, relativamente a tal dificuldade ou impraticabilidade, caberá ao legislador formular tal juízo caso a caso (estabelecendo normas especificas de direito transitório) ou, então formular um juízo global negativo sobre a norma e revoga-la, o que à data não aconteceu”.

Parece-me ainda importante referir que o legislador optou, voluntariamente, por nada referir quanto à vigência da lei a partir do início do ano, o que a mim, no mínimo, faz suscitar dúvidas se era essa a sua intenção.

Considerando o exposto, entendo que a lei nova não é aplicável às mais-valias no caso em apreço, razão pela qual votaria pela anulação dos actos tributários sindicados.

 

 

André Bacelar Gonçalves

 



[1]              Conceito e Natureza do Acto Tributário, páginas 323-324 e 325-326.

[2]              Saldo este para que não relevam as perdas apuradas quando a contraparte da operação estiver sujeita no país, território ou região de domicílio a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista provada por portaria do Ministro das Finanças, como decorre do n.º 5 do artigo 43.º do CIRS.

[3]              Artigo 143º do CIRS: Para efeitos do IRS, o ano fiscal coincide com o ano civil.

[4]              Neste sentido, pode ver-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 523/2010, de 27-10-2010, proferido a propósito de alterações ao IRS de 2010 introduzidas no decurso do ano, em que se conclui:

Em suma, dos trabalhos preparatórios da revisão constitucional de 1997 retira-se, por um lado, que o legislador da revisão apenas pretendeu incluir, no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, a proibição da retroactividade autêntica, própria ou perfeita da lei fiscal, o que não é contrariado pela letra do preceito, uma vez que o texto constitucional apenas se refere à natureza retroactiva tout court. Por outro lado, resulta igualmente dos trabalhos preparatórios, de forma cristalina, que não se pretenderam integrar no preceito as situações em que o facto tributário que a lei nova pretende regular não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes continuando a formar-se na vigência da lei nova, pelo menos, quando estão em causa impostos directos relativos ao rendimento (como é claramente o caso dos presentes autos).

                Na mesma linha, podem ver-se os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 28/2009, 85/2010, 524/2010 e 399/2010.

[5] Sérgio Vasques – Manual de Direito Fiscal, Almedina, páginas 299 e 300.

[6] SÉRGIO VASQUES,  Manual de Direito Fiscal, Almedina, páginas 300 e 301.

[7]              Segue-se, nalguns pontos, o voto de vencido proferido pelo Senhor Dr. João Menezes Leitão no processo do CAAD n.º 135/2012-T.

[8]              Por exemplo:

– o artigo 2.º, §§ 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 46373, de 09-06-1965, que aprovou o Código do Imposto de Mais Valias, que estabelecem que os ganhos a que respeitam os n.ºs 1.º e 2.º do artigo 1.º do código só ficam sujeitos a imposto quando o terreno tiver sido adquirido ou a transmissão onerosa tenha ocorrido após a data deste diploma;

– o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, ao estabelecer que «os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46373, de 9 de Junho de 1965, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efectuado depois da entrada em vigor deste Código»;

– o artigo 3.º, n.º 5, da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, em que se estabelece que «A nova redacção dos artigos 10.º, 41.º e 75.º do Código do IRS é apenas aplicável às partes sociais e outros valores mobiliários adquiridos após a data de entrada em vigor da presente lei, mantendo-se o regime anterior de tributação para as mais-valias e menos-valias de partes sociais e outros valores mobiliários adquiridos antes dessa data»;

– no Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, estabeleceu-se, no artigo 3.º que produzia efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2003.