Decisão Arbitral
I. RELATÓRIO
A…, S.A., sociedade com sede na …, …-… …, …, titular do número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva …, doravante simplesmente designada Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante abreviadamente designado por RJAT), peticionando a declaração de ilegalidade e a consequente anulação dos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) e juros compensatórios relativos aos veículos automóveis com as matrículas …-…-…, …-…-…, …-…-… e …-…-…, sendo os dois primeiros referentes aos exercícios de 2009 a 2011 e os dois últimos referentes aos exercícios de 2009 a 2012, no valor global de € 7.441,10, bem como a condenação da AT na devolução à Requerente desse montante.
Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese:
a) À data da verificação do facto gerador do imposto em causa nos presentes autos, a Requerente não era proprietária dos veículos automóveis sobre os quais incidiu o imposto, os quais já haviam sido vendidos;
b) O veículo de matrícula …-…-… foi vendido à sociedade “B…BV”;
c) Os veículos com as matrículas …-…-…, …-…-… e ...-...-… foram vendidos e entregues para sucata, tendo deixado de ter existência material e de ter a Requerente qualquer poder de facto sobre os mesmos;
d) O contrato de compra e venda tem eficácia real;
e) A AT procedeu às liquidações de IUC porque a Requerente ainda constava como proprietária dos veículos no registo automóvel;
f) O registo da propriedade automóvel tem carácter meramente declarativo, visando apenas dar publicidade aos factos jurídicos;
g) A AT não se considera um terceiro para efeitos de registo;
h) Nos termos do artigo 3.º do CIUC, são sujeitos passivos de imposto os proprietários dos veículos;
i) O n.º 1 do artigo 3.º do CIUC contém uma presunção ilidível;
j) Assim, sujeito passivo de IUC é o proprietário, ainda que não figure no registo automóvel, desde que seja feita prova bastante para ilidir a presunção legal proveniente do registo.
k) A Requerente logrou ilidir esta presunção, pelo que não é sujeito passivo de IUC.
A Requerente juntou 27 documentos, tendo arrolado três testemunhas.
No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº1 do RJAT, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa o signatário, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.
O tribunal arbitral foi constituído em 24 de Novembro de 2014.
Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, alegando, em síntese, o seguinte:
a) O legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que são sujeitos passivos do IUC os proprietários, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados;
b) O artigo 3.º do CIUC não estabelece qualquer presunção de propriedade, mas uma verdadeira ficção de propriedade – o legislador não diz que se presumem proprietários, antes que se consideram proprietários;
c) A falta de inscrição no registo das alterações de propriedade tem como consequência que a obrigação de pagamento do IUC recaia no proprietário inscrito, não podendo a AT liquidar o imposto com base em elementos que não constem do registo;
d) O IUC é devido pelas pessoas que constam no registo como proprietárias dos veículos;
e) A factura não é apta a comprovar a celebração do contrato de compra e venda, por se tratar de um documento emitido unilateralmente;
f) A Requerente não fez prova do recebimento do preço, da declaração para registo de propriedade e do pedido de cancelamento de matrícula em relação a nenhum dos veículos;
g) Os documentos juntos pela Requerente sob os n.ºs 8 e 9, para prova da venda dos veículos com as matrículas …-…-… e …-…-…, não procedem à identificação dos veículos em questão, limitando-se a remeter para um documento anexo, o qual não passa de um mero documento interno;
h) A falta de cumprimento da obrigação de actualização dos registos e de cancelamento das matrículas dos veículos faz impender sobre a Requerente a responsabilidade pelas custas arbitrais.
A Requerida juntou cópia do processo administrativo, não tendo arrolado nenhuma testemunha.
Atenta a posição assumida pelas partes e não existindo necessidade da realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, foi a mesma dispensada, tendo sido marcada data para inquirição de testemunhas.
Em 03/03/2015 teve lugar a produção da prova testemunhal requerida, tendo sido inquiridas todas as testemunhas arroladas e produzidas as correspondentes alegações orais pelos representantes das partes.
II. QUESTÕES A DECIDIR
Atentas as posições assumidas pelas Partes, vertidas nos argumentos expendidos, cumpre:
a. Determinar se a norma de incidência subjectiva prevista no artigo 3º nº 1 do CIUC prevê uma presunção ilidível ou, ao invés, uma ficção legal, insusceptível, por isso, de ser ilidida mediante prova em contrário;
b. Apurar quem é sujeito passivo de IUC quando, na data da verificação do facto gerador do imposto, os veículos automóveis já tiverem sido alienados;
c. Apurar qual o valor jurídico do registo automóvel em sede de IUC, maxime para efeitos da incidência subjectiva do imposto;
d. Determinar se a não actualização do registo automóvel permite considerar, como sujeitos passivos de IUC, as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados;
e. Apurar se as facturas juntas pela Requerente são ou não aptas a provar a pretensa alienação dos veículos.
III. MATÉRIA DE FACTO
a. Factos provados
Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, deram-se como provados os seguintes factos:
1. A Requerente foi notificada das liquidações de IUC e juros compensatórios referentes aos veículos com as matrículas …-…-…, …-…-…, ...-…-… e …-…-…, sendo as duas primeiras referentes aos exercícios de 2009 a 2011 e as duas ultimas referentes aos exercícios de 2009 a 2012, no valor global de € 7.441,10;
2. A data limite de pagamento de todas as liquidações era de 21/11/2013;
3. Nenhum dos quatro veículos a que as liquidações ora postas em crise se referem pertence às categorias F ou G, a que alude o artigo 4.º do CIUC;
4. O veículo de matrícula …-…-… foi vendido à sociedade “B… BV”;
5. Os veículos de matrícula …-…-…, …-…-… e …-…-… foram desmantelados pela Requerente e vendidos como sucata;
6. Não era prática da Requerente emitir guias de remessa, nem proceder ao cancelamento das matrículas;
7. Em 13/02/2014, a Requerente apresentou reclamação graciosa relativamente a todas as liquidações ora impugnadas;
8. Por ofício datado de 01/04/2014, a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada;
9. Em 07/05/2014, a Requerente interpôs recurso hierárquico do despacho de indeferimento da reclamação graciosa;
10. O pedido de constituição do tribunal arbitral em matéria tributária e de pronúncia arbitral foi apresentado em 24/09/2014;
11. Na data da ocorrência do facto gerador do imposto, todos os veículos a que se reportam as liquidações ora impugnadas haviam sido vendidos pela Requerente;
12. A Requerente pagou os impostos e os juros compensatórios liquidados pela Requerida e espelhados nas liquidações ora impugnadas.
b. Factos não provados
Com relevância para a decisão não se provou qualquer outro facto.
c. Fundamentação da matéria de facto
A convicção acerca dos factos tidos como provados formou-se tendo por base a prova documental junta pela Requerente bem como a prova testemunhal produzida e a matéria alegada e não impugnada constante dos requerimentos juntos aos autos.
Para a prova dos factos constantes dos pontos 4. e 5. da matéria de facto provada, teve o tribunal em consideração o depoimento prestado pelas testemunhas C…, D… e E…, as quais, depondo de forma clara e escorreita, com manifesta isenção e objectividade, revelaram pleno e directo conhecimento dos factos em causa, confirmando-os.
IV. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas.
O processo não enferma de vícios que afectem a sua validade.
V. DO DIREITO
Fixada que está a matéria de facto, cumpre agora, por referência àquela, apurar o Direito aplicável.
Analisada a argumentação expendida pelas Partes, facilmente se atinge que a questão de fundo reside na interpretação da norma contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC e, mais concretamente, em saber se aquela contém ou não uma presunção legal. Esta questão, como ademais já sublinhado noutras decisões, tem suscitado profusa jurisprudência – também arbitral – que, oportunamente, aqui se trará.
Sob a epígrafe incidência subjectiva, o artigo 3.º do CIUC dispõe que:
“1. São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”
Ora, dissipar as dúvidas sobre o sentido e o alcance a atribuir a determinada norma jurídica implica levar a cabo uma tarefa interpretativa que permita retirar do enunciado linguístico um concreto sentido ou “conteúdo de pensamento”([1]). Contudo, tal tarefa apenas se pode cumprir – assim se logrando apreender a vis ac potestas legis – através da utilização de um concreto método, que se estriba na interpretação literal, por um lado, e na interpretação lógica ou racional, por outro.
Recorde-se, ainda, que de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária, as normas tributárias se interpretam de acordo com os princípios de hermenêutica jurídica comummente aceites, maxime os fixados, entre nós, no artigo 9.º do Código Civil. Prossigamos.
A interpretação literal apresenta-se, então, como o primeiro estádio da actividade interpretativa. Como refere FERRARA, “o texto da lei forma o substrato de que deve partir e em que deve repousar o intérprete”([2]).
Na verdade, uma vez que a lei se encontra expressa em palavras, deve, então, delas ser extraída a significância verbal que contêm, segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais. Porém, sendo as palavras empregues pelo Legislador equívocas ou indeterminadas, será forçoso recorrer à interpretação lógica, que atende ao espírito da disposição a interpretar.
A interpretação lógica, tal como vem sendo pacificamente figurada pela doutrina([3]), estriba-se no elemento racional, no elemento sistemático e no elemento histórico; ponderando-os e deles deduzindo o valor da norma jurídica em apreço.
Por elemento racional há-de entender-se a raison d´être da norma jurídica, i.e., a finalidade para a qual o legislador a instituiu. A descoberta da ratio legis apresenta-se, assim, como um factor de indubitável importância para a determinação do sentido da norma.
Sucede, porém, que uma determinada norma não existe isoladamente, antes convive com as demais normas e princípios jurídicos de forma sistemática e complexa. Assim, natural se torna que o sentido de uma concreta norma resulte claro da confrontação desta com as demais. Como refere BAPTISTA MACHADO, “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.”([4]).
Já o elemento histórico, por seu turno, há-de reportar-se e incluir os materiais conexos com a história da norma, tais como “a história evolutiva do instituto, da figura ou do regime jurídico em causa (…); as chamadas fontes da lei, ou seja os textos legais ou doutrinais que inspiraram o legislador na elaboração da lei (…); os trabalhos preparatórios.”.
Apliquemos, então, o que se vem dizendo ao caso vertente.
Compulsados os argumentos de Requerente e Requerida, e no que tange ao elemento literal, facilmente se compreende que o foco de dissenso reside na expressão “(…) considerando-se como tais (…)”, contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC.
Pergunta-se – como de resto se fez na Decisão Arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 73/2013-T([5]): “O facto do legislador ter optado pelo vocábulo “considerando-se” destrói a possibilidade de estarmos perante uma presunção?”. Não. É a resposta que, cremos, se impõe. E nem se venha dizer que tal conclusão vai infirmada pela circunstância de o legislador não ter utilizado o vocábulo “presumem-se”, que empregou no vetusto Regulamento do Imposto Sobre Veículos.
Também aqui não podemos deixar de sublinhar o que naquela decisão ficou dito: “examinando o ordenamento jurídico português, encontramos imensas normas que consagram presunções utilizando o verbo considerar, muitas das quais empregues no gerúndio (“considerando” ou mesmo “considerando-se”). São disso exemplos as normas a seguir enumeradas: No Código Civil, entre outras, os artigos 314.º, 369.º n.º 2, 374.º n.º 1, 376.º n.º 2, 1629.º (…). Também no ordenamento jurídico tributário se pode encontrar o verbo “considerar”, nomeadamente o termo “considera-se” com um sentido presuntivo. E ali se acrescenta o ensinamento de LEITE DE CAMPOS, SILVA RODRIGUES e LOPES DE SOUSA que, pela clareza de exposição, igualmente se transcreve. Assim, escrevem os Autores que “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, revelada pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”.
A este propósito, JORGE LOPES DE SOUSA([6]) refere que no n.º 1 do artigo 40.º do Código do IRS se utiliza a expressão “presume-se”, ao passo que no n.º 2 do artigo 46.º do mesmo diploma se faz uso do vocábulo “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal.
Assim, e ao que aqui nos interessa, revela-se admissível assimilar o verbo considerar ao verbo presumir. Com efeito, podemos estar perante uma presunção mesmo quando o legislador haja optado por outros verbos, nomeadamente pelo verbo considerar. Na verdade, e ao invés do propugnado pela Requerida, é esta a conclusão que menos belisca a coerência sistemática postulada pelo ordenamento jurídico como um todo.
Mas mais: também o elemento racional autoriza semelhante conclusão.
Convoquemos a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 118/X, de 07/03/2007, que originou a Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, porquanto dali resulta clara a ratio legis.
Pretendeu-se empreender uma “reforma global e coerente dos impostos ligados à aquisição e propriedade dos veículos automóveis” em função da “necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.
Assim, “os dois novos impostos que agora se criam, o imposto sobre veículos e o imposto único de circulação, constituem muito mais do que o prolongamento técnico das figuras criadas nos anos 70 e 80 que os antecederam, voltadas predominantemente para a angariação da receita, indiferentes ao custo social resultante da circulação automóvel. Constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade.”
De forma congruente àquela motivação, o legislador veio consagrar, no artigo 1.º do CIUC, o princípio da equivalência, ficando claro “que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária. É este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate”.
Pode, aliás, dizer-se que as preocupações ambientais e energéticas são tão impressivas em sede de IUC, que o princípio da equivalência molda não apenas a base tributável, mas também, e sobretudo, a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º.
Uma vez mais se convoca a Decisão Arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 73/2013-T: “Tendo em conta quer o lugar sistemático que o princípio da equivalência ocupa (artigo 1.º do CIUC) – elemento sistemático – quer o elemento histórico corporizado pela Proposta de Lei n.º 118/X (fonte de lei), quer o racional (ou teleológico) acabado de analisar, todos apontam no sentido da conclusão preliminar a que chegámos aquando da análise do elemento gramatical, só fazendo sentido conceber no contexto do artigo 3.º do CIUC a expressão “considerando-se como tais” como reveladora da presença de uma presunção ilidível (…). Na verdade, a ratio legis do imposto antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o proprietário económico, no dizer de DIOGO LEITE DE CAMPOS, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade”.
Assente que fica a natureza jurídica da norma contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, cumpre agora clarificar a questão da incidência subjectiva do imposto quando o veículo, à data do facto gerador do imposto, já tiver sido alienado.
Celebrado o contrato de compra e venda, o adquirente será instituído, ex contratu, na posição de proprietário, consequentemente passando a ser-lhe aplicável o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC; i.e., o novo proprietário passa a deter, para efeitos de IUC, a posição de sujeito passivo do imposto.
E tal solução impõe-se desde o momento da perfeição do contrato de compra e venda não apenas porque o Código do IUC o determina – ao afirmar que são sujeitos passivos do imposto os proprietários –, mas também pelo facto de entre nós vigorar o princípio da consensualidade, que importa que a transmissão da propriedade ocorra por mero efeito do contrato; como resulta em primeira linha do n.º 1 do artigo 408.º do Código Civil. Veja-se ainda, reforçando o «que acima se diz, a alínea a) do artigo 879.º daquele diploma.
Refira-se, ainda, que o entendimento exposto no parágrafo que antecede é unanimemente propugnado por Doutrina([7]) e Jurisprudência([8]), não carecendo, assim, de desenvolvimentos adicionais.
E o que se vem de dizer releva para sustentar a nossa posição no que tange ao valor jurídico do registo automóvel. Recorde-se, porém, que de acordo com a regra geral acima vista a transferência do direito se produz ex contratu, sem necessidade de qualquer acto material ou de publicidade([9]).
Como pacificamente aceite pela Doutrina e pela Jurisprudência, perante o silêncio do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, quanto à questão do valor jurídico do registo automóvel, torna-se necessário lançar mão da disciplina do registo predial; operação ademais autorizada pelo artigo 29.º daquele Decreto-Lei.
Ora, atendendo ao Código do Registo Predial – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 125/13, de 30 de Agosto –, maxime ao seu artigo 7.º, e conjugando esta norma com o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 54/75, rapidamente se infere a função primacial do registo (automóvel): dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor.
Pode então afirmar-se que o registo não tem natureza constitutiva, antes meramente declarativa, permitindo apenas presumir a existência do direito e a sua titularidade. Note-se: presumir e não ficcionar, podendo assim ser ilidida mediante prova em contrário.
E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408.º do Código Civil, e salvas as excepções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente de qualquer acto subsequente, e.g., inscrição no registo.
Desta feita, não prevendo a lei qualquer excepção para o contrato de compra e venda de veículo automóvel, a eficácia real produz normalmente os seus efeitos, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo.
Ora, se independentemente do registo o adquirente passa a ser o proprietário, o titular inscrito deixa concomitantemente de o ser; pese embora no registo figure como tal.
In casu, e não obstante a falta de inscrição no registo, as transmissões efectuadas são oponíveis à Requerida, não podendo esta prevalecer-se do disposto no n.º 1 do artigo 5º do Código do Registo Predial.
Desde logo pelo facto de a Requerida não ser, para efeitos do disposto naquela norma, havida como terceiro para efeitos de registo.
A noção de terceiros para efeitos de registo é-nos dada pelo n.º 4 do mesmo artigo 5.º: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si; donde fatalmente se retira não ser este, manifestamente, o caso dos autos.
Ora, pese embora à data das liquidações de imposto a Requerente ainda figurar no registo como proprietária dos veículos, a verdade é que alega não ser, à data do facto gerador do imposto, a sua proprietária, por já os haver alienado.
Assim, e uma vez que a presunção resultante do registo é, como vimos, ilidível, vejamos se os documentos juntos pela Requerente são aptos a cumprir tal desiderato.
Com vista a provar que os veículos referidos nos presentes autos foram por si alienados em data anterior à da ocorrência do facto gerador do imposto, a Requerente juntou, relativamente aos quatro veículos, as respectivas facturas de venda, acompanhadas dos respectivos extractos de conta corrente dos clientes que procederam à sua aquisição.
Note-se, no entanto, que a factura junta aos autos para prova da venda dos veículos com as matrículas …-…-… e …-…-…, não identifica as viaturas alienadas, limitando-se a remeter para um anexo qual o equipamento destinado a abate.
Vejamos então qual o valor probatório das facturas juntas pela Requerente.
Conforme já exposto, a Requerente juntou, relativamente aos quatros veículos automóveis em causa, facturas de venda. Por outro lado, conforme resulta dos factos provados, nenhum dos veículos em causa nos presentes autos pertence às categorias F ou G a que alude o artigo 4º do CIUC, pelo que o facto gerador do imposto ocorre na data da respectiva matrícula ou em cada um dos seus aniversários.
A este propósito, invoca a Requerida que “uma fatura não é apta a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois aquele documento não revela por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte do pretenso adquirente”, pelo que tratando-se de um “documento particular e unilateral, não é per si meio de prova suficiente e idóneo para comprovar uma compra venda”.
Acrescentando que “não faltam casos de emissão de faturas referentes a transmissões de bens e/ou de prestações de serviços que nunca chegaram a concretizar-se”.
É certo, como invoca a Requerida, que muitas situações existem em que as facturas não titulam qualquer negócio jurídico. No caso dos autos, porém, nenhum elemento permite formar a convicção de que as facturas juntas não titulem negócio algum, sendo certo que a sua falsidade não foi sequer arguida pela Requerida, que se limitou a invocar existirem várias situações dessas, sem concretamente referir que a situação dos autos se subsumia a tal.
Deste modo, e à míngua de quaisquer elementos que permitam concluir o contrário, aceita-se, naturalmente, a veracidade dos documentos juntos.
Assente a veracidade das facturas juntas pela Requerente, bem como o seu conteúdo, teremos de considerar relativamente aos veículos com as matrículas …-…-… e ...-…-…, sem necessidade de quaisquer outras indagações, serem estas documentos aptos a provar a alienação dos veículos em causa.
Com efeito, não prevendo a lei qualquer forma específica para a celebração de um contrato de compra e venda de um bem móvel, terá, necessariamente, de se aceitar como prova do dito contrato a factura emitida nos termos legais.
Temos, pois, que à data do facto gerador do imposto (data da matrícula ou de cada um dos seus aniversários) a Requerente havia já alienado todos os veículos, pese embora as referidas alienações não tenham sido espelhadas no competente registo.
Pelo que, no que respeita a estes veículos em relação aos quais foi junta factura de venda com a respectiva identificação dos veículos alienados, entendemos que a prova junta pela Requerente é suficiente para demonstrar que, à data da ocorrência do facto gerador do imposto, não era esta o sujeito passivo do imposto.
Já quanto à prova da venda dos veículos com as matrículas …-…-… e …-…-…, muito embora a factura de venda junta sob o documento número 8 não identifique directamente os veículos alienados, relegando tal identificação para um anexo, o certo é que da prova testemunhal produzida (maxime do depoimento das testemunhas C… e D…) resultou claro que tais veículos foram vendidos para sucata e desmantelados.
Considera-se, assim, ter sido produzida prova igualmente suficiente da alienação destes veículos.
Assim, atento o facto de a presunção resultante do registo ser ilidível mediante prova em contrário – prova essa que se considera realizada através da apresentação das facturas de venda, bem como dos depoimentos prestados pelas testemunhas –, e verificado que fica, relativamente aos veículos em apreço, não ser a Requerente sua proprietária à data da ocorrência do facto gerador do imposto, torna-se forçoso concluir não poder ser esta havida como sujeito passivo do IUC liquidado.
Em suma:
· A norma ínsita no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC contém uma presunção;
· Estando aquela presunção contida numa norma de incidência tributária, admitirá sempre prova em contrário, como resulta do artigo 73.º da LGT;
· Quando, na data da verificação do facto gerador do imposto, o veículo automóvel já tiver sido alienado, embora o direito de propriedade continue registado em nome do primitivo proprietário, o sujeito passivo do IUC é o novo proprietário, contanto que aquele ilida a presunção decorrente do registo;
· A transmissão da propriedade ocorre por mero efeito do contrato, não carecendo de qualquer acto subsequente;
· O registo automóvel não tem natureza constitutiva, antes visando dar publicidade à situação dos veículos através de presunções, ilidíveis, da existência do direito e da respectiva titularidade;
· Não pode a AT estribar-se na ausência de actualização do registo para, questionando a eficácia dos contratos de compra e venda, atribuir ao primitivo proprietário a qualidade de sujeito passivo de IUC e, assim, exigir deste o cumprimento da obrigação de imposto.
VI. DISPOSITIVO
Em face do exposto, decide-se:
a. Julgar procedente o pedido de anulação dos actos de liquidação de IUC impugnados, com todas as consequências legais;
b. Condenar a Requerida a proceder ao reembolso à Requerente do valor indevidamente pago, no montante global de € 7.441,10.
***
Fixa-se o valor do processo em € 7.441,10 nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
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Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, bem como do n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 4 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar pela Requerida por ser a parte vencida.
***
Registe e notifique.
Lisboa, 08 de Maio de 2015.
O Árbitro,
Alberto Amorim Pereira
***
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.
([1]) Cf. BAPTISTA MACHADO, JOÃO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1982, p. 175.
([2]) FERRARA, FRANCESCO, Interpretação e Aplicação das Leis, 1921, Roma; Tradução de MANUEL DE ANDRADE, Arménio Amado, Editor, Sucessor – Coimbra, 2.ª Edição, 1963, p. 138 e ss.
([3]) Vide, por todos, BAPTISTA MACHADO, JOÃO, op. cit., p. 181.
([4]) BAPTISTA MACHADO, JOÃO, op. cit., p. 183.
([5]) Cf. Decisão Arbitral de 5 de Dezembro de 2013, proferida no âmbito do Processo n.º 73/2013, p. 21.
([6]) Cf. LOPES DE SOUSA, JORGE, Código do Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Vol. I, 6ª Edição, Áreas Editora, Lisboa, 2011, p. 589.
([7]) Vide, por todos, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volumes I e II, Coimbra Editora, 4ª Edição Revista e Actualizada, Anotações aos artigos 408.º e 79.º.
([8]) Vide, inter alios, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Março de 1998.
([9]) Cf. EWALD HÖRSTER, HEINRICH, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 2ª Reimpressão da Edição de 1992, p. 467.