Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 58/2014-T
Data da decisão: 2015-03-24  IUC  
Valor do pedido: € 17.807,55
Tema: IUC - incidência subjetiva; presunção
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DECISÃO ARBITRAL

 

Requerente: A..., S.A.

Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira

 

O Juiz-árbitro Francisco de Carvalho Furtado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), para formar o Tribunal Arbitral constituído em 28 de Março de 2014, decide o seguinte:

 

A)Relatório

 

1.Em 25 de Janeiro de 2014, o A..., S.A., contribuinte n.º ..., doravante identificada por Requerente, apresentou pedido de pronúncia arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado por RJAT), em conjugação com a alínea a), do artigo 99.º e alínea d) do n.º 1 do artigo 102.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável ex vi artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

2.Com o referido pedido de pronúncia arbitral a Requerente pretende que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade dos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação dos anos de 2009, 2010, 2011 e de 2012, melhor identificados no Requerimento Inicial.

 

3.O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante identificada como Requerida).

 

4.A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1, do RJAT, o signatário foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral Singular, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos. O Tribunal foi constituído, nos termos do disposto no artigo 11.º, do RJAT, em 28 de Março de 2014.

 

5.Em 7 de Maio de 2014, a Requerida apresentou a sua Resposta.

 

6.Através de requerimentos apresentados na sequência do despacho arbitral de 16 de Maio de 2014, as partes declararam prescindir da realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.

 

7. Em 28 de Julho de 2014, a Requerente apresentou as suas alegações.

 

8. Em 8 de Setembro de 2014, a Requerida apresentou as suas alegações.

 

A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, da seguinte forma:

 

  1. A Requerente é uma instituição de crédito;
  2. De entre as suas áreas de actividade, assume especial relevância o financiamento ao sector automóvel;
  3. A Requerente celebra – entre outros – contractos de locação financeira destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis;
  4. Os contractos celebrados obedecem, de forma geral, a um guião comum, próprio deste tipo de financiamentos: a Requerente, depois de contactada pelo cliente – que, nessa fase, escolheu já o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características (marca, modelo, acessórios, etc.), e inclusive o seu preço – adquire o veículo ao fornecedor que lhe seja indicado pelo cliente;
  5. Procede, de seguida, à sua entrega ao referido cliente – que assume, pois, a qualidade de locatário e mantém o gozo do veículo no período em que vigorar o contrato;
  6. Todos os actos de liquidação cuja declaração de ilegalidade se pretende se referem a veículos relativamente aos quais foi celebrado contrato de locação e reportam-se a período em que esse contrato estava vigente;
  7. A Requerente pagou o imposto liquidado em cada um dos actos de liquidação cuja anulação se pretende;
  8. A Administração tributária sabia – ou devia saber, porquanto a locação financeira é objecto de registo junto da Conservatória do Registo Comercial – que, sobre estes veículos automóveis em particular, incidiam contratos de locação financeira, e conhecia a identidade dos locatários;
  9. O IUC é o tributo que visa onerar os contribuintes pelo custo ambiental e viário que lhes está associado, numa lógica de equivalência e igualdade tributária (art. 1.º do Código do IUC).
  10. Subjacente a esta regra de incidência está o pressuposto do potencial de utilização de veículos automóveis, ou seja a tributação de quem tem à sua disposição o direito de utilizar um veículo;
  11. Na maioria dos casos, será o proprietário do automóvel;
  12. A situação é já diferente, todavia, se o veículo for sistematicamente utilizado – e, mais ainda, por imposição contratual e legal – por outrem que não o seu proprietário;
  13. Isto é: se a AT tiver conhecimento – ou dever tê-lo – de que o potencial de utilização do veículo cabe não ao seu proprietário, mas sim a uma terceira entidade;
  14. E não apenas isso: se a AT souber – ou dever sabê-lo – que o proprietário, por força do contrato que celebrou, está até impedido de utilizar o veículo, uma vez que atribuiu o direito ao seu gozo exclusivo à tal terceira entidade;
  15. Nesses casos, pouco sentido fará, à luz da teleologia que perpassa este imposto, que seja o proprietário onerado com o dever de pagar o IUC;
  16. Assim, depois de fixar a regra geral de que a obrigação de pagamento de imposto cabe ao proprietário o legislador fiscal fez-lhes equivaler, logo de seguida, entre outros, os locatários financeiros;
  17. O locatário é equiparado ao proprietário do veículo para os efeitos do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, sendo considerado sujeito passivo do IUC;
  18. No contrato de locação financeira, o direito de utilizar o bem é subtraído ao respectivo proprietário – que, nesta sede, se assume como locador – para integrar na esfera do locatário;
  19. Nos termos do n.º 2 do artigo 3.º do Código do IUC, cabendo ao locatário o gozo exclusivo do veículo automóvel sobre o qual recai o contrato, cabe-lhe também a obrigação de pagar o imposto;
  20. No caso concreto todos os veículos automóveis já se encontravam na posse dos respectivos locatários no termo do mês da matrícula ou, tratando-se do ano de registo do veículo, noventa dias após a data da matrícula –, sem excepção, pelo que dever-se-á concluir que a responsabilidade pela liquidação do imposto pertence aos locatários;
  21. De igual modo, não está em causa responsabilidade solidária, dado que tal situação não se encontra prevista na Lei;
  22. Conclui pedindo, também, a condenação da Requerida no reembolso do imposto pago e no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Na sua Resposta, a Requerida, invocou, em síntese, o seguinte:

 

1      A interpretação e aplicação que a Requerente pretende fazer valer não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o Código do IUC;

2      O legislador, estabeleceu no artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC quem são os sujeitos passivos deste imposto não utilizando o vocábulo “presumem-se”, mas “considerando-se”;

3      Assim, será imperativo concluir que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente sobre quem incide subjectivamente o imposto, ou seja a pessoa em nome dos quais os veículos se encontrem registados;

4      Não se trata de uma presunção, mas de uma opção de política legislativa;

5      De igual modo, é preciso atender ao facto de o artigo 6.º, n.º 1, do CIUC determinar que o facto gerador do imposto é a propriedade tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional;

6      Da articulação entre a incidência subjectiva e o facto gerador resulta que só as situações jurídicas objecto de registo geram o nascimento da obrigação de imposto;

7      Existe uma relação directa entre o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto e a emissão do certificado de matrícula;

8      A Administração tributária liquida o imposto com base nos elementos público, constantes do Registo Automóvel;

9      A ratio do regime aponta no sentido de ter sido a intenção do legislador criar um Imposto Único de Circulação assente na tributação do proprietário do veículo, tal como constante do registo automóvel;

10  Com efeito, o CIUC procedeu a uma reforma do regime da tributação dos veículos em Portugal passando a ser sujeito passivo do imposto o proprietário constante do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública;

11  O IUC passou a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos;

12  Tal ratio resulta dos debates parlamentares em torno da aprovação do Decreto-Lei n.º 20/2008, de 31 de Janeiro;

13  A Requerente não demonstrou ter dado cumprimento ao disposto no artigo 19.º, do Código do IUC;

14  A aplicação do n.º 2 do artigo 3.º do Código do IUC está dependente do cumprimento do disposto no artigo 19.º do mesmo Código;

15  A interpretação do artigo 3.º, do CIUC que a Requerente quer fazer valer é ofensiva do basilar princípio da confiança, segurança jurídica e da proporcionalidade, que deve enformar qualquer relação jurídica;

16  De igual modo, tal interpretação da Requerente, também se mostra ofensiva do princípio da eficiência do sistema tributário;

17  Não se encontram verificados os pressupostos para que a Requerida seja condenada no pagamento de juros indemnizatórios;

18  Ainda que o Tribunal Arbitral decida pela ilegalidade das liquidações em apreço, as custas arbitrais deverão ser suportadas pela Requerente.

 

B)Objecto da Pronúncia Arbitral

 

Vêm colocadas ao Tribunal as seguintes questões, nos termos atrás descritos:

a)      Existindo um contrato de locação financeira no momento em que se verifica o facto tributário, quem, atento o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º, do Código do IUC, deve ser considerado sujeito passivo deste imposto: os proprietários dos veículos considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados, ou os locatários financeiros?

b)      Estão verificados os pressupostos para condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios?

 

 

C)Matéria de facto

 

C.1 – Factos provados

 

Consideram-se como provados os seguintes factos com relevância para a decisão, com base na prova documental junta aos autos:

 

a)      A Requerente foi notificada dos 189 actos de liquidação de IUC juntos ao requerimento inicial (cfr. actos de liquidação juntos ao Requerimento inicial e identificados no Anexo A ao mesmo);

b)      Relativamente aos veículos sobre os quais foi liquidado o imposto foi celebrado um contrato denominado de “contrato de locação financeira” (cfr. contratos juntos ao Requerimento inicial);

c)      Cada um dos contractos de locação financeira estava em vigor em cada um dos períodos de imposto liquidados (cfr. contratos juntos ao Requerimento inicial);

d)     A Requerente promoveu o pagamento dos actos de liquidação de IUC identificados em a) (cfr. actos de liquidação junto ao requerimento inicial e identificados no Anexo A ao mesmo);

 

Quanto aos factos provados a convicção do Tribunal fundou-se na prova documental referida, junta aos autos.

 

C.2 – Factos não provados

 

a)      A Requerente, relativamente a cada um dos contractos denominados “contrato de locação financeira”, comunicou, ao abrigo do artigo 19.º, do Código do IUC, os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados;

b)      Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados.

 

D)Saneador

 

O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. Não se verificam nulidades e questões prévias que atinjam todo o processo, pelo que se impõe, agora, o conhecer do mérito do pedido.

 

E)Do Direito

 

Em face do que se deixa exposto importa, desde logo, interpretar o artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Código do IUC. Com efeito, a fonte da discórdia entre a Requerente e a Requerida prende-se, no essencial, com o facto de a Requerente considerar que da referida disposição legal resulta que o sujeito passivo do imposto, nos casos em que está vigente um contrato de locação financeira, é o locatário e a Requerida considerar, por seu turno, que o sujeito passivo é a pessoa em nome do qual o veículo se encontra registado, junto da competente Conservatória.

A disposição legal em causa tem a seguinte redacção:

“ARTIGO 3º

INCIDÊNCIA SUBJECTIVA

             1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

         2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

Importa, pois, determinar, também à luz dos artigos 11.º da Lei Geral Tributária e 9.º, do Código Civil, o alcance da supra transcrita norma.

 

Em primeiro lugar, parece-nos, desde logo, que o n.º 1 do artigo 3.º, do Código do IUC estabelece uma presunção: a de que o proprietário do veículo é a pessoa em nome da qual o mesmo se encontra registado. A noção de presunção encontra-se consagrada no artigo 349.º, do Código Civil, que a define como “ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para formar um facto desconhecido.” Ora, a utilização de presunções não é desconhecida no âmbito do direito tributário na justa medida em que podem conferir contornos de maior praticabilidade ao sistema e, bem assim, serem instrumentos de combate à fraude e evasão. Com efeito, “perante a dúvida de certos factos ou situação a regular, a regra de Direito supõe que esses contornos são os de outro facto ou situações previstos numa outra regra jurídica” (Sousa, Marcelo Rebelo de; Galvão, Sofia, Introdução ao Estudo do Direito, Lex, 2000, Lisboa, Pág. 241).

Por outro lado, importa também ter presente que as presunções podem ser, quer explícitas, quer implícitas. As primeiras, são “reveladas pela utilização da expressão «presumem-se» ou semelhante (…)” (Sousa, Jorge Lopes de, Código de Procedimento e de Processo Tributário, I Vol. 6.ª Edição, Áreas Editoras, 2011, Lisboa, pág. 589).

 

Por contraposição àquela categoria de presunções, existem as presunções implícitas ou seja, aquelas que não resultam directa e expressamente da terminologia utilizada pelo legislador. Ora, como bem referido na douta decisão arbitral – à qual se adere - proferida no Processo n.º 14/2013-T: “Examinando o ordenamento jurídico português, encontramos imensas normas que consagram presunções utilizando o verbo considerar, muitas das quais empregues no gerúndio (“considerando” ou mesmo “considerando-se”). São disso exemplos as normas a seguir enumeradas: No Código Civil, entre outras, os artigos 314º, 369º nº 2, 374º nº1, 376º nº 2, 1629º. No Código da Propriedade Industrial, referimos a título de exemplo, o artigo 98º onde também o termo “considerando” é usado num contexto presuntivo. Também no ordenamento jurídico tributário se pode encontrar o verbo “considerar”, nomeadamente o termo “considera-se” com um sentido presuntivo. Como explicam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação nº 3 ao artigo 73º da LGT “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, revelada pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real” (sublinhado nosso), dando de seguida alguns exemplos de normas em que é utilizado o verbo “considerar” como no nº 2 do artigo 21º do CIRC acontece, ao estabelecer que “para efeitos de determinação do lucro tributável, considera-se como valor de aquisição dos incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito o seu valor de mercado não podendo ser inferior ao que resultar da aplicação das regras de determinação do valor tributável previstas no Código do Imposto do Selo”. Tendo em conta que o sistema jurídico deve formar um todo coerente, os exemplos acima referidos, acompanhados da doutrina e jurisprudência indicadas, por apelo ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos), autorizam a conclusão que não é só quando é usado o verbo “presumir” que estamos perante uma presunção, mas também o uso de outros termos ou expressões podem servir de base a presunções, nomeadamente o termo “considera-se”, mostrando-se desta forma cumprida a condição estabelecida no nº 2 do artigo 9º do CC, o qual exige que o pensamento legislativo tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.” (in www.caad.pt).

Com efeito, admitindo que se desconhece a real situação a regular (o titular do gozo efectivo do veículo equiparado a proprietário) recorre-se a outra situação já conhecida pelo Direito (o registo). Importa, aqui referir que, como constantemente referido na jurisprudência o registo não é constitutivo do direito mas meramente declarativo. Está, pois, em causa, uma verdadeira presunção e não uma ficção (o que poderia justificar uma opção de política legislativa) na justa medida em que no segundo caso o direito trata de forma idêntica factos que se sabe serem distintos. No caso concreto, e como resulta da primeira parte do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC pretende-se tributar o real proprietário ou equiparado (facto desconhecido) e, na segunda parte da norma, estabelece-se uma relação com um outro facto do direito, o registo (facto conhecido).

E compreende-se que o Legislador tenha seguido este caminho pois, por razão relacionadas com a praticabilidade e gestão do imposto, e mesmo a prevenção da fuga e fraude, o imposto deve ser liquidado com base nos dados conhecidos pelo sujeito activo da relação tributária. Todavia, estas razões de praticabilidade não são absolutas e não se podem sobrepor a outros princípios de valor bem mais elevado para o direito, designadamente o Constitucional, como sejam o da igualdade. Com efeito, o Tribunal Constitucional tem vindo a considerar não estar constitucionalmente vedada a utilização de presunções em direito tributário, conquanto as mesmas possam ser ilididas (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97, publicado em Diário da República, II Série, de 25 de Julho de 1997 e Acórdão n.º 211/2003, de 28 de Abril de 2003). Ou seja, o Tribunal Constitucional considera na sua Jurisprudência que, embora seja legítimo ao legislador tributário socorrer-se de presunções, está constitucionalmente limitado pelos princípios da igualdade, da capacidade contributiva e da repartição justa de rendimentos e da riqueza (que é o objectivo basilar do sistema fiscal, como se infere do artigo 103.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) sendo-lhe vedada a utilização de presunções absolutas. Com efeito, “o estabelecimento de presunções com o objectivo de conferir certeza e simplicidade às relações fiscais, de permitir uma pronta regular percepção dos impostos e de evitar e evasão e a fraude (…) tem de compatibilizar-se com o princípio em análise (de igualdade tributária) o que passa, quer pela ilegitimidade constitucional das presunções absolutas na medida em que impedem o contribuinte de provar a inexistência da capacidade contributiva visada na respectiva Lei, quer pela exigência de idoneidade das presunções relativas para apresentarem o pressuposto económico tido em conta”» (…) «As presunções devem apoiar-se em elementos concretamente positivos que as justifiquem racionalmente e admitir prova em contrário, de modo a que o imposto se ligue a um pressuposto económico certo, provado e não apenas provável»” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/1997, citando Casalta Nabais, Contratos Fiscais (Reflexões acerca da sua admissibilidade), pág. 279). Assim, e como sustenta este último Autor na Obra citada, pág. 265 e ss., “A tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado para objecto do imposto (…)”

 

Em consonância com a douta jurisprudência do Tribunal Constitucional e, bem assim, a mais reputada doutrina, o artigo 73.º, da Lei Geral Tributária determina expressamente que “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”

 

Em suma: o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC estabelece uma presunção no que respeita à incidência subjectiva do imposto, a qual é, ilidível. Esta é a única interpretação que, aliás, permite salvaguardar os princípios constitucionais indicados pela Administração tributária na sua Contestação que, ao contrário do que sustenta, seriam prejudicados e ofendidos pela procedência do entendimento vertido pela Requerida nas sua peças processuais.

 

No que respeita ao n.º 2 da referida disposição legal, verifica-se que equipara, expressamente, os locatários a proprietários. Ou seja, nos casos em que esteja em vigor um contrato de locação financeira, o sujeito passivo de imposto é o locatário enquanto equiparado a proprietário. Em face dos factos provados conclui-se que a Requerente, através da junção dos contractos de locação financeira, logrou ilidir a presunção estabelecida no artigo 3.º, do Código do IUC.

 

Em face da conclusão alcançada, importa analisar uma segunda questão que, bem, a Administração tributária suscita na sua Contestação – a de saber se o facto de não existir prova do cumprimento da obrigação a que alude o artigo 19.º, do Código do IUC é impeditivo do afastamento da presunção. Com efeito, tratando-se de uma presunção (como está já assente), o beneficiário da mesma (a Requerida) escusa de provar o facto a que ela conduz, cabendo à Requerente fazer prova do contrário. Este é o regime que resulta do artigo 350.º, do Código Civil.

A requerida sustenta que a consequência de tal incumprimento será o de não poder beneficiar do disposto no n.º 2 do artigo 3.º, do CIUC. Não podemos, contudo, acompanhar tal entendimento.

Não existem dúvidas que o princípio basilar do nosso ordenamento jurídico-fiscal é o da tributação de acordo com a justiça material. Tal decorre, sem margem para dúvidas do disposto nos artigos 103.º e 104.º, da Constituição da República Portuguesa. Do mesmo modo, o artigo 266.º, da Constituição da República Portuguesa, ao determinar que a actividade administrativa deve, acima de tudo, visar a prossecução do interesse público e a justiça e a proporcionalidade das medidas, demonstra que o fim último é a verdade material. Vejamos, então, como está estruturado o sistema fiscal, designadamente no que a obrigações declarativas diz respeito. Analisados os diversos códigos tributários verifica-se que a regra é a de que mesmo as declarações através das quais a Administração tributária determina a matéria tributável de imposto podem ser apresentadas fora do respectivo prazo legal ou substituídas. E a consequência, mesmo nestes casos em que o contribuinte não declara a sua matéria colectável, ou na letra da lei da Lei quando existam erros ou omissões na declarações que devem ser apresentadas a fim de que a administração tributária especificamente determinante, avalie ou comprove a matéria colectável é a da, eventual, aplicação de coima em sede de processo de contra-ordenação se para tanto existir previsão legal. Ou seja, atento o princípio da verdade material e da prossecução do interesse público, a lei penaliza o contribuinte pela omissão, mas nem por isso obnubila a verdade material do caso concreto. É, pois, evidente, que o sistema jurídico-tributário está, no seu todo, gizado para que o incumprimento atempado de obrigação declarativa não tenha consequências, drásticas, definitivas, e, eventualmente, desproporcionais. Assim sendo, parece curial que se conclua que a consequência decorrente do incumprimento do disposto no artigo 19.º, do CIUC não poderá ser a que é invocada pela Requerida mas, quanto muito, se a conduta se encontrar tipificada, a aplicação de sanção administrativa.

Existe, ainda, uma outra circunstância que parece impedir que o incumprimento da obrigação acessória prevista no artigo 19.º. do CIUC tenha a consequência pretendida pela Requerida. Como ensina Menezes Cordeiro (Franco, João Melo; Martins, Herlander Antunes, Dicionário de Conceitos e Princípios Jurídicos, Almedina, 1995, pág. 489) o incumprimento é a não realização da prestação enquanto devida. O incumprimento não pode ser considerado como simples ausência de comportamento. Ora analisada a norma legal relevante verifica-se que da mesma não decorre qualquer prazo para cumprimento, pelo que a mesma parece carecer de regulamentação não sendo auto-suficiente como sustentado pela Requerida. Por este motivo também não se podem extrair as consequências advogadas pela Requerida.

 

Destarte, sendo que na data da ocorrência do facto gerador do imposto vigorava contrato de locação financeira que tem como objecto o veículo subjacente a cada uma das liquidações, sujeito passivo do imposto não é o locador mas sim, à luz dos n.ºs 1 e 2 do artigo 3º do Código do IUC, o locatário, sendo os actos de liquidação em apreço ilegais, devendo ser anulados em conformidade.

Deste modo, visando, como vimos já, o IUC incidir subjectivamente sobre o real proprietário (a que expressamente se equipara o locatário) do veículo em cada ano e no mês de matrícula (cfr. artigos 3.º, 4.º e 6.º, do Código do IUC), é forçoso que se conclua que os referidos actos de liquidação, violam o disposto nas referidas disposições legais devendo ser declarados ilegais e anulados, porque praticados com ofensa das normas e princípios jurídicos vigentes (cfr. artigo 135.º, do Código de Procedimento Administrativo).

Por fim, a Requerente pede o reembolso dos valores pagos, acrescidos de juros indemnizatórios, nos termos previstos no artigo 43.º, da Lei Geral Tributária. Contra esta pretensão insurge-se a Requerida, não só porque considera que os actos de liquidação praticados são legais, mas também porque nenhuma culpa lhe pode ser imputada atenta a omissão de cumprimento da obrigação acessória por parte da Requerente. Analisados os factos, verifica-se que não se encontra demonstrado que a Requerente tenha comunicado à Administração tributária os dados relativo à identificação fiscal dos locatários. De igual modo, a Requerente não alega nem demonstra que em momento anterior ao da prática de cada um dos actos de liquidação sub judice tenha transmitido à Administração tributária os elementos que permitissem concluir que o sujeito passivo de imposto por referência a cada um dos actos de liquidação seriam os respectivos locatários. Vejamos então:

O artigo 43.º, da Lei Geral Tributária determina que o contribuinte terá direito a ser ressarcido através de juros indemnizatórios sempre que o pagamento indevido de imposto seja imputável a erro dos serviços.

“O erro imputável aos serviços que operaram a liquidação fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou a impugnação dessa mesma liquidação e o erro não for imputável ao contribuinte (por exemplo, haverá anulação por erro imputável ao contribuinte quando a liquidação assentar em errados pressupostos de facto, mas o erro ter por base uma indicação errada na declaração que o contribuinte apresentou). ” (Campos, Diogo Leite de; Rodrigues, Benjamim Silva, Sousa, Jorge Lopes de, Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.º Ed. 2012 Encontro da Escrita, Lisboa, pág. 342).

No caso em apreço, como se determinou já, os actos de liquidação de IUC são ilegais, porque praticados com erro e ofensa das normas e princípios jurídicos aplicáveis. Todavia, atentos os factos conhecidos nos autos não está demonstrado que tal erro seja imputável à Requerida dado que se desconhece se a Requerente transmitiu os elementos de identificação fiscal dos locatários. Assim, no caso concreto, não se verifica uma actuação culposa por parte da Requerida não, estando, pois, verificados os pressupostos previstos no artigo 43.º, da LGT para que à Requerente possa ser reconhecido o direito a juros indemnizatórios. Julga-se improcedente, nesta parte, o pedido formulado.

 

Decisão

Em face do exposto, decide este Tribunal Arbitral julgar parcialmente procedente o pedido formulado e consequentemente:

 

a)      Declarar a ilegalidade dos actos de liquidação de IUC e de juros compensatórios contestados anulando-os;

b)      Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios;

c)      Condenar a Requerente e a Requerida no pagamento das custas na proporção do decaimento, que se fixa em 5% para a Requerente e 95% para a Requerida.

 

Fixa-se o valor da acção em € 17.807,55 (dezassete mil, oitocentos e sete euros e cinquenta e cinco cêntimos), nos termos do disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

Fixa-se o valor da Taxa de Arbitragem em € 1.224,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente e pela Requerida conforme supra exposto, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, 22.º, n.º 4, do RJAT e 4.º, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 24 de Março de 2015

 

O Árbitro

 

 

Francisco de Carvalho Furtado