Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 319/2014-T
Data da decisão: 2015-05-21  IRS  
Valor do pedido: € 7.000,00
Tema: IRS – Cisão; tributação de dividendos
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

  1. Imobiliária A…, SA, pessoa colectiva n.º …, com sede na Av. …, na qualidade de sociedade incorporante da sociedade B…, S.A., pessoa coletiva n.º …, com sede na Rua …, doravante designada Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º n.º 1 a) e 10.º n.º 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a declaração de ilegalidade da liquidação de IR n.º 2013.....

 

  1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 08-04-2014.

 

  1. Nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º. n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 26-05-2014 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

  1. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 16-06-2014.

 

  1. No dia 06/01/2015, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.

 

  1. As testemunhas arroladas pela Requerente C… e D… foram inquiridas pelas partes no dia 20 de Janeiro de 2015, tendo, de seguida, os representantes da Requerente e da Requerida produzido as correspondentes alegações orais.

e

  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

  1. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

  1. O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

  1. As alegações que sustentam o pedido de pronúncia arbitral do Requerente são, em súmula, as seguintes:

 

Alegações da Requerente

           

11.1 A título prévio, a Requerente esclarece que, por força de um processo de fusão, assumiu, em 30/12/2011, a posição de incorporante da sociedade B..., SA, NIF …, conforme certidão permanente que junta como documento n.º 1.

 

11.2 A sociedade B..., SA, era uma sociedade anónima, constituída em 17/01/1995, e cujo objeto consistia na “prestação de serviços de contabilidade, processamento de dados, consulta e direção, assistência fiscal, elaboração de estudos económicos, projetos de investimento, comissões e representações comerciais.”

 

11.3 Face ao incremento da atividade imobiliária da sociedade, a ora Requerente decidiu alterar o objeto social de forma a contemplar a atividade imobiliária, conforme registo comercial de alteração do pacto social de 23/11/2009.

 

11.4 Por motivos de gestão e desenvolvimento do negócio, a administração da empresa considerou que seria mais adequado transferir o ramo de atividade de prestação de serviços às empresas para constituir uma nova sociedade.

 

11.5 Assim, uma parte do património da ora Requerente foi destacado para constituir uma nova sociedade a que foi atribuída a designação social de B... – Serviço de Gestão, S.A..

 

11.6 Do ponto de vista jurídico-societário, a operação em causa constitui uma cisão-simples, de acordo com a modalidade prevista na al. a) do n.º 1 do artigo 118.º do Código das Sociedades Comerciais, conforme projeto de cisão que juntou.

 

11.7 Em simultâneo com o destaque do património, foi feita também uma redução do capital da sociedade cindida do valor de € 165.000,00 para o valor de € 150.000,00.

 

11.8 Face ao valor dos ativos e passivos que seriam transferidos, a nova sociedade foi constituída com o capital de € 50.000,00.

 

11.9 Resulta do projeto de cisão, nos termos e para os efeitos da al. f) do artigo 119.º do CSC, “a relação de troca de participações sociais teve como base a ponderação das participações dos atuais acionistas da sociedade a cindir no seu capital social, mantendo-se exatamente a mesma proporção na sociedade a constituir por efeito da cisão”.

 

11.10 Em termos fiscais, a operação foi efetuada ao abrigo do regime especial de neutralidade fiscal previsto nos artigos 67.º e seguintes do Código do IRC (em vigor à data).

 

11.11 A sociedade foi objeto de uma ação de inspeção levada a cabo pela Divisão de Inspeção Tributária II da Direção de Finanças de ... que concluiu que “Nesta operação de cisão, assistiu-se a uma redução do capital social na sociedade cindida de € 165.000,00 para € 150.000,00, redução esta que teve como contrapartida a constituição de parte do capital da sociedade beneficiária. O restante capital da sociedade beneficiária, 35.000,00, foi constituído através da utilização de reservas livres da sociedade cindida.”

 

11.12 Conclui a AT que este diferencial de € 35.000,00 resultantes da utilização das reservas livres deve ser considerado dividendo, nos termos da al. a) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS.

 

11.13 Tal conclusão é, na opinião da Requerente, contrário ao regime de neutralidade fiscal, enquadramento nunca contestado pela AT.

 

11.14 Em conformidade com o disposto no artigo 73.º do CIRC, foram atribuídas aos acionistas da sociedade partes de capital da nova sociedade, na exata proporção das participações detidas.

 

11.15 Dado que se manteve a estrutura acionista na exata proporção inicial, a quantificação do peso da relação de troca de ações torna-se inócua.

 

11.17 Sem conceder, sempre se dirá que o relatório de inspeção não fundamenta devidamente as correções feitas já que considera distribuição de dividendos a utilização de reservas para com elas constituir o capital social, sem indicar qual o fundamento legal.

 

11.18 A AT considera com distribuição de dividendos uma operação de aumento de capital social por incorporação de reservas, no âmbito de um processo de fusão, sem tratar de explicar qual a diferença entre um aumento de capital social por incorporação de reservas (artigo 91.º do CSC) e a mesma operação inserida numa cisão-simples sujeita ao regime de neutralidade fiscal.

 

11.19 Ou seja, a AT violou não só o dever de fundamentação, mas também o princípio da igualdade previsto no artigo 55.º da LGT.

 

11.20 Por fim, a Requerente invoca a Diretiva 90/234/CEE relativa ao regime fiscal comum aplicável às fusões, cisões, entrada de ativos e permuta de ações entre sociedades de Estados-membros diferentes que, relativamente aos sócios, estabelece: “a atribuição de títulos representativos do capital social da sociedade benefíciária ou adquirente a um sócio da sociedade contribuidora ou adquirida, em troca de títulos representativos do capital social desta última, não deve, por si mesma, implicar qualquer tributação sobre o rendimento, os lucros ou as mais-valias do referido sócio (n.º 1 do artigo 8.º).

 

11.21 Cita, neste sentido, o Acórdão de 23/04/2013, Proc. 180/13, disponível em www.dgsi.pt: “(…) no que se refere aos sócios das sociedade fundidas ou cindidas não haverá lugar ao apuramento de ganhos ou perdas para efeitos fiscais em consequência da fusão, desde que, na sua contabilidade, seja mantido para as novas participações sociais o valor pelo qual as antigas se encontravam registadas. O que não obsta, claro está, à tributação das importâncias que lhes sejam eventualmente atribuídas em consequência da fusão ou cisão.”

 

 

 

Resposta da Requerida

 

12.1 Na Resposta, a AT explicita as operações contabilísticas de destacamento do património da Requerida para a sociedade beneficiária:

a) A aferição dos ativos e passivos a transmitir para a sociedade beneficiária tiveram por base o balanço intercalar reportado a setembro de 2009;

b) O valor dos ativos transferidos ascende a € 72.523,44 e o valor global líquidos dos passivos transferidos ascende a € 41.865,35, pelo que os capitais próprios da beneficiária ascendem a € 30.688,09;

c) Para a realização do capital social na sociedade B... – Serviços de Gestão, SA, no montante de € 50.000,00, assistiu-se a uma redução do capital em € 15.000,00 e à utilização de reservas livres, conta 574, no montante de € 35.000,00;

d) Os acionistas que antes da cisão detinham participações sociais no montante de € 165.000,00, passaram, por força da operação, a ser titulares de valores no montante de € 200.000,00 [(165.000,00-15.000,00) + 50.000,00]

           

12.2 Face ao exposto, na operação de cisão, assistiu-se ao destaque de uma parte do património da sociedade cindida para com ela constituir parte da nova sociedade, sendo que as participações que os acionistas individualmente detinham na sociedade cindida foram acrescidas (enriquecidas) do valor do capital realizado pela utilização de reservas livres da sociedade cindida.

 

12.3 Desta forma, como é referido no relatório inspetivo, “o diferencial no valor de € 35.000,00, e que respeita à utilização das reservas livres, para com elas constituir o capital social, em nome dos acionistas, deve ser considerado distribuição de dividendos…”.

 

12.4 Quanto à falta ou insuficiência de fundamentação, “quer os factos apurados quer a análise e enquadramento jurídico dos mesmos no Relatório Inspetivo – que constituem o núcleo essencial da fundamentação -, possibilitam a um contribuinte que usasse de uma diligência normal (bonus pater familiae), escolher entre a aceitação da legalidade do acto e o recurso a procedimentos graciosos e/ou judiciais.”

 

12.5 No caso, a Requerente optou pela via contenciosa, demonstrando entender na plenitude todos os fundamentos de direito e de facto que conduziram à emissão do ato de liquidação ora impugnado.

 

12.6 Por outo lado, cabe referir que o relatório inspectivo para além de descrever com rigor a factualidade resultante da operação de cisão, destaca de forma clara e inequívoca os elementos de facto e o seu enquadramento jurídico.

 

12.7 A Requerida contesta também que o ato de liquidação tenha violado o regime fiscal de neutralidade fiscal previsto nos artigos 67.º a 72.º do Código do IRC (na redação em vigor à data).

 

12.8 Com efeito, no caso não houve uma mera troca de participações já que, concluída a operação, os acionistas passaram a deter no conjunto das duas sociedades participações nominais de € 200.000,00, ao invés dos € 165.000,00 existentes antes da operação.

 

12.9 Isto é, por força da operação, o património dos acionistas foi incrementado em € 35.000,00, diferencial que deve ser objeto de tributação.

 

12.10 Acrescenta-se ainda que não existe qualquer similitude entre a situação em análise e o aumento de capital por incorporação de reservas livres previsto no artigo 91.º do CSC, atendendo a que esta previsão legal reporta-se a aumentos de capital de sociedades já existentes, o que não é o caso.

 

12.11 Afasta, por fim, a violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva porque o que se trata é de um aumento patrimonial na esfera dos acionistas da ora Requerente.

 

Tudo visto, cumpre proferir decisão final.

 

A. MATÉRIA DE FACTO

 

A.1. Factos dados como provados

 

 

1-      A sociedade B..., SA, era uma sociedade anónima, constituída em 17/01/1995, e cujo objeto consistia na “prestação de serviços de contabilidade, processamento de dados, consulta e direção, assistência fiscal, elaboração de estudos económicos, projetos de investimento, comissões e representações comerciais.”

 

2-      Em 23/11/2009, a sociedade B..., SA decidiu alterar o objeto social de forma a contemplar a atividade imobiliária.

 

3-      No dia 28 de Novembro de 2009, foi registado o projeto de fusão, mediante depósito na Conservatória do Registo Comercial de ….

 

4-      Conforme projeto de fusão, a operação em causa constituiu uma cisão-simples, de acordo com a modalidade prevista na al. a) do n.º 1 do artigo 118.º do Código das Sociedades Comerciais, mediante ao destaque de parte do património da sociedade cindida (B..., SA) para a constituição de uma nova sociedade (B... – Serviços de Gestão, SA).

 

5-      O valor global dos ativos e passivos incorporados na nova sociedade foram de € 98.131,41 e € 50.466,02, respetivamente.

 

6-      Em simultâneo com o destaque do património, foi feita também uma redução do capital da sociedade cindida do valor de € 165.000,00 para o valor de € 150.000,00.

 

7-      A nova sociedade foi constituída com o capital de € 50.000,00, resultante da troca de participações de € 15.000,00 e a utilização das reservas livres da sociedade cindida no valor de € 35.000,00.

 

8-      A sociedade foi objeto de uma ação de inspeção levada a cabo pela Divisão de Inspeção Tributária II da Direção de Finanças de ... ao exercício de 2009, com início em 21/10/2013 e término em 25/10/2013.

 

9-  Em resultado do relatório de inspeção, foi emitida a liquidação adicional IR n.º 2013...., ora impugnada, no valor de € 7000,00, relativos à aplicação da taxa de retenção na fonte de 20% sobre as reservas livres utilizadas para a realização do capital social da sociedade beneficiária.

 

 

A.2. Motivação

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 659.º, n.º 2 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os fatos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, de resto consensualmente reconhecidos e aceites pelas partes.

 

B. DO DIREITO

 

Atenta as posições das Partes assumidas nos argumentos apresentados, a questão central é saber se a utilização das reservas livres no processo de cisão simples e destaque de parte do património e constituição do capital social da sociedade beneficiaria configura ou não uma distribuição de dividendos sujeita a tributação.

 

B2. A cisão no Direito Comercial

 

Para devida compreensão dos efeitos fiscais da cisão, devemos, em primeiro lugar, atender ao seu enquadramento comercial (artigo 118.º.º e ss do Código das Sociedades Comerciais).

 

Estabelece o artigo 118.º n.º 1 do CSC que “É permitido a uma sociedade: a) Destacar parte do seu património para com ela constituir outra sociedade; b) Dissolver e dividir o seu património, sendo cada uma das partes resultantes destinada a constituir uma nova sociedade; c)Destacar parte do seu património ou dissolver-se, dividindo o seu património em duas ou mais partes, para as fundir com sociedades já existentes ou com partes do património de outras sociedades, separadas por idênticos processos e com igual finalidade.

 

 

Como é salientado pela doutrina, “a cisão é um processo de reestruturação de sociedade que se caracteriza pela separação de partes do elemento patrimonial das sociedades envolvidas destinadas à sua autonomização em centros de imputação jurídica, já existentes (no caso, cisão-fusão) ou constituídos no próprio processo, com a consequente atribuição aos sócios das sociedades cindidas de participações sociais nas sociedades beneficiárias.” (Código das Sociedades Comerciais Anotado, Coordenação António Menezes Cordeiro, 2009, p. 410).

 

O CSC adotou a terminologia cisão simples (al. a) do artigo 118.º), cisão-dissolução (al. b)) e cisão-fusão (al. c)).

 

No caso, trata-se de um cisão simples que consiste no destaque de parte do património de uma sociedade para com ela constituir uma outra sociedade. Os sócios da sociedade cindida recebem, por efeitos da cisão, participações sociais na sociedade beneficiária.

 

A cisão simples é também uma cisão parcial porque a sociedade cindida continua a existir e a exercer a sua atividade.

 

Quanto à concretização da operação de destaque do património da sociedade cindida, o CSC estabelece um conjunto de regras e limites que a sociedade cindida deve respeitar. Desde logo, não é admissível a cisão (i) se o valor do património da sociedade cindida se tornar inferior à soma das importâncias do capital social e da reserva legal e não se proceder, antes da cisão ou conjuntamente com ela, à correspondente redução do capital; (ii) se o capital da sociedade a cindir não estiver integralmente liberado (artigo 123.º n.º 1 alíneas a) e b) do CSC).

 

Com estas disposições pretende-se, em primeira mão, a conservação do capital social da sociedade cindida já que esta modalidade de cisão pressupõe sempre a saída de património sem nenhuma contrapartida já que as participações da nova sociedade são atribuídas diretamente aos sócios da sociedade cindida.

 

Por outro lado, a cisão parcial, do ponto de vista societário, não implica necessariamente a redução do capital social da sociedade cindida. Tal resulta, muitas das vezes, apenas da necessidade de cumprir o disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 123.º do CSC que referimos.

 

Relativamente às novas participações sociais, em regra, os sócios da sociedade cindida recebem participações sociais na nova sociedade, na mesma proporção em que os mesmos participavam na sociedade cindida. Mais, estabelece o n.º 2 do artigo 129.º do CSC que a participação dos novos sócios na nova sociedade não pode ser superior ao valor dos bens destacados, líquido do passivo igualmente transmitido. De outro modo, permitia-se que aos sócios fossem atribuídas participações sociais com um valor nominal superior ao valor do património transmitido.

 

Do exposto resulta, com relevância para a questão que aqui nos traz, que o legislador não estabelece – nem tal faria qualquer sentido - uma imposição legal de redução do capital social da sociedade cindida para troca de participações sociais com a sociedade beneficiária. Pelo contrário, a constituição do capital social pode resultar exclusivamente do património destacado, nomeadamente do valor do capital próprio[1], com respeito pelo limite do no artigo 129.º n.º 2.

 

Cabe, de seguida, aferir o enquadramento fiscal desta operação. Conforme determina o n.º 2 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária, ainda que se apliquem termos e conceitos de outros ramos do direito, devemos, em primeiro lugar, aferir se o seu sentido e alcance não decorre da própria lei fiscal.

 

 

B3. Efeitos fiscais da cisão

 

Como regra, podemos afirmar que o Direito Fiscal, atentos aos seus fins, reconduz a fusão ou cisão a uma transmissão de ativos. Tal resulta, desde logo, dos n.ºs 1 e al. d) do n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRC (em vigor à data, atual artigo 46.º) que tributa as mais-valias ou menos-valias resultantes da transmissão onerosa dos elementos do ativo imobilizado, seja a que título opere. Considera-se, para este efeito, valor de realização o valor de mercado dos elementos do ativo imobilizado transmitidos em consequência daqueles atos de fusão ou cisão.

 

Em derrogação desta regra geral, nos artigos 67.º a 72.º do Código do IRC (atuais 73.º a 78.º) está previsto um regime especial aplicável às fusões, cisões, entradas de ativos e permutas de partes sociais de sociedades residentes. O objetivo deste regime, que resulta da transposição da Diretiva n.º 90/934/CEE, é assegurar a neutralidade dessas operações de reorganização das unidades produtivas, mediante o cumprimento de determinadas condições.

 

Tal desiderato é expressamente apontado pelo legislador quer no preâmbulo do Código do IRC quer na própria Directiva n.º 90/034/CEE.

 

Desde logo, no preâmbulo do Decreto que aprovou o CIRC, Decreto-Lei n° 442-B/88, diz-se:

“Outra área em que se faz sentir a necessidade de a fiscalidade adoptar uma postura de neutralidade é a que se relaciona com as fusões e cisões de empresas. É que a reorganização e o fortalecimento do tecido empresarial não devem ser dificultados, mas antes incentivados, pelo que, refletindo, em termos gerais, o consenso que ao nível da CEE, tem vindo a ganhar corpo neste domínio, criam-se condições para que aquelas operações não encontrem qualquer obstáculo fiscal à sua efetivação desde que, pela forma como se processam, esteja garantido que apenas visam um adequado redimensionamento das unidades económicas.”

 

Também a própria Diretiva 90/434/CEE é clara nos seus considerandos ao afirmar “as fusões, as cisões, as entradas de ativos e as permutas de ações entre sociedades de Estados-membros diferentes podem ser necessárias para criar, na Comunidade, condições análogas às de um mercado interno e assegurar deste modo a realização e o bom funcionamento do mercado comum; que essas operações não devem ser entravadas por restrições, desvantagens ou distorções especiais resultantes das disposições fiscais dos Estados-membros; que importa, por conseguinte, instaurar, para essas operações, regras fiscais neutras relativamente à concorrência, a fim de permitir que as empresas se adaptem às exigências do mercado comum, aumentem a sua produtividade e reforcem a sua posição concorrencial no plano internacional”.

 

Para tal, determina o n.º 1 do artigo 68.º do Código do IRC (em vigor à data), que “na determinação do lucro tributável das sociedades fundidas ou cindidas ou da sociedade contribuidora, no caso da entrada de activos, não é considerado qualquer resultado derivado da transferência dos elementos patrimoniais em consequência da fusão, cisão ou entrada de activos, nem são consideradas como proveitos ou ganhos, nos termos do n.º 2 do artigo 34.º, as provisões constituídas e aceites para efeitos fiscais que respeitem aos créditos, existências e obrigações e encargos objecto de transferência.”

 

No n.º 2 do artigo 67.º, o legislador dá-nos a noção de cisão, para efeitos de aplicação do presente regime. Considera-se cisão:

 

a)      Uma sociedade (sociedade cindida) destaca um ou mais ramos da sua atividade, mantendo pelo menos um dos ramos de atividade, para com eles constituir outras sociedades (sociedades beneficiárias) ou para os fundir com sociedades já existentes, mediante a atribuição aos seus sócios de partes representativas do capital social destas últimas sociedades e, eventualmente, de uma quantia em dinheiro que não exceda 10% do valor nominal ou, na falta de valor nominal, do valor contabilístico equivalente ao nominal das participações que lhes sejam atribuídas;

 

b)      Uma sociedade (sociedade cindida) é dissolvida e dividido o seu património em duas ou mais partes, sendo cada uma delas destinada a constituir um nova sociedade (sociedade beneficiária) ou a ser fundida com sociedades já existentes ou com partes do património de outras sociedades, separadas por idênticos processos e com igual finalidade, mediante a atribuição aos seus sócios de partes representativas do capital social destas últimas sociedades e, eventualmente, de uma quantia em dinheiro que não exceda 10% do valor nominal ou, na falta de valor nominal, do valor contabilístico equivalente ao nominal das participações que lhes forem atribuídas.

 

No caso concreto, o processo de cisão enquadrou-se na al. a) do n.º 2 do artigo 67.º, por se tratar do destaque por uma sociedade de um ramo de atividade para com este constituir uma nova sociedade.

 

Para que possa beneficiar deste regime, a sociedade incorporante deve observar as seguintes condições (n.ºs 3 e 4 do artigo 68.º em vigor à data): (i) Os elementos patrimoniais objeto de transferência sejam inscritos na respetiva contabilidade com os mesmos valores que tinham na contabilidade das sociedades fundidas, cindidas ou da sociedade contribuidora; (ii) O apuramento dos resultados respeitantes aos elementos patrimoniais transferidos é feito como se não tivesse havido fusão, cisão ou entrada de ativos; (iii) As reintegrações ou amortizações sobre os elementos do ativo imobilizado transferidos são efetuadas de acordo com o regime que vinha sendo seguido nas sociedades fundidas, cindidas ou na sociedade contribuidora.

 

Ou seja, não haverá lugar a tributação em sede de IRC dos ativos transmitidos se a sociedade incorporante ou nova sociedade mantiver o mesmo registo fiscal do valor e política de amortizações dos ativos.

 

Do exposto, o regime de neutralidade tem natureza especial e extraordinária, pelo que só é aplicável nos termos e condições expressamente previstos no Código do IRC. No demais ou caso não sejam respeitados os respetivos requisitos, as transmissões patrimoniais realizadas e demais operações associadas – porque é este o sentido fiscal dos conceitos de fusão ou cisão – serão tributadas.

 

Assim sendo, não tendo sido posto em causa o regime de neutralidade fiscal pela AT, caberá saber se, no âmbito deste regime, foi expressamente prevista a não tributação nos sócios de eventuais ganhos ou perdas com a atribuição de partes sociais.

 

Em sede de IRC, os n.º 1 e 3 do artigo 70.º (em vigor à data), determinam que Nos casos de fusão [ou cisão, por força do n.º 3] de sociedades a que seja aplicável o regime especial estabelecido no artigo 68.º, não há lugar, relativamente aos sócios das sociedades fundidas, ao apuramento de ganhos ou perdas para efeitos fiscais em consequência da fusão, desde que, na sua contabilidade, seja mantido quanto às novas participações sociais o valor pelo qual as antigas se encontravam registadas.

 

De igual modo, os n.º 8 e 9 do artigo 10.º do Código do IRS (em vigor à data) também excluem expressamente qualquer tributação resultante da atribuição das novas participações sociais aos sócios da sociedade cindida, sem prejuízo da eventual tributação das importâncias em dinheiro que lhe sejam atribuídas.

 

A exclusão de qualquer tributação é também uma imposição da Diretiva 90/234/CEE, com as alterações introduzidas pela Diretiva 2005/19/CE, que no seu artigo 8.º n.º 2 estabelece que “Em caso de cisão parcial, a atribuição de títulos representativos do capital social da sociedade beneficiária a um sócio da sociedade contribuidora não deve, por si mesma, implicar qualquer tributação sobre o rendimento, os lucros ou as mais-valias do referido sócio.

 

Em conclusão, ficam, por regra, excluídos de tributação os efeitos resultantes da atribuição aos sócios das novas participações sociais se aplicável o regime especial de neutralidade fiscal previsto nos artigos 67.º a 72.º do Código do IRC (em vigor à data).

 

 

B. 4 Da tributação dos dividendos

 

Sem prejuízo, também não vislumbramos, na operação de cisão em causa, qualquer distribuição aos sócios das reservas (lucros) que possam ser enquadradas na al. h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS por inexistir qualquer vantagem económica e não ter sido colocado à disposição dos seus titulares.

 

Com efeito, a operação consistiu num destaque de um ramo de atividade (conjunto de ativos e passivos) da sociedade cindida para constituição de uma nova sociedade. A constituição do capital social da sociedade beneficiária não resultou da utilização das reservas livres da sociedade cindida mas do património transferido, nomeadamente o seu capital próprio (diferença entre os ativos e passivos). A operação contabilística de anulação das reservas livres resulta da necessidade de, com o destaque do património, reduzir o capital próprio da sociedade cindida na exata proporção. Não resultando da lei comercial ou da lei fiscal que tal deve resultar da redução do capital social (até porque, em muitos dos casos, tal pode não ser sequer possível), o reconhecimento da transferência do património deverá ser feita por compensação com outros componentes do capital próprio.

 

Daqui resulta que não há, no caso, qualquer vantagem económica a imputar aos sócios já que ao reconhecimento do capital próprio sociedade beneficiada do capital próprio correspondeu a concomitante redução no capital próprio da sociedade cindida. O valor económico das participações somadas não sofreu qualquer alteração e caso tal tivesse acontecido, estaríamos, nesse caso, perante uma mais-valia ou menos-valia resultante da transmissão do capital social.

 

Em segundo lugar, ainda que, ainda que se admita que existe um ganho (soma do valor nominal participações), trata-se de um ganho meramente potencial excluído de tributação, à semelhança do que acontece com o aumento de capital por incorporação de reservas da qual também não resulta qualquer tributação.

 

 

Em conclusão, estão reunidos os pressupostos necessários para a procedência do pedido de anulação das liquidações, com fundamento em ilegalidade e erro nos pressupostos.

 

 

C. Juros indemnizatórios

 

A Impugnante procedeu ao pagamento integral da referida liquidação adicional, pelo que pede o reembolso desses montantes indevidos, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, nos termos do art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade do ato de liquidação, há lugar a reembolso do imposto, por força dos referidos arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.

 

Consequentemente, a requerente tem também direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia que pagou indevidamente, desde a data do pagamento até ao integral reembolso dessa mesma quantia.

 

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D. DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

  1. Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IR n.º 2013.....

a)      Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira na restituição à Requerente dos valores pagos, com juros indemnizatórios desde a data do pagamento até ao integral reembolso do imposto indevido;

b)      Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento das custas do processo, no montante de € 612,00.

 

E. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 7.000,00, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

F. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa

21 de Maio de 2015

 

O Árbitro

 

 

(Amândio Silva)



[1] Entendido como o “interesse residual nos ativos da empresa depois de lhe deduzir os passivos” (ativos-passivos) - Cfr parágrafo 49.º da Estrutura Conceptual, Aviso n.º 15652/2009 in DR nº 173 – II Série, de 7 de setembro.